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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Uma outra América na pele de Jamie Bell

Hugo Gomes, 05.10.19

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Poderíamos falar de movimentos de extrema-direita, do ódio irracional que parece traduzir os nossos dias ou até as comparações (injustamente) incontornáveis com a «America History X», sobre outro skinhead racista que vira as costas ao ódio e à violência. Podíamos, mas não seria a mesma coisa, porque no coração deste “conto de violência embalado em humanismo” deparamos com um dos atores mais subvalorizados da atualidade: Jamie Bell.

Tendo conquistado corações no seu primeiro papel - quem se lembra do eterno Billy, o rapazinho que escapava das aulas de pugilismo para o ballet em “Billy Elliot” - Bell não seguiu de todo um caminho fácil pela indústria cinematográfica, arriscando e com isso fugindo da maldição de “jovem estrela”. Escapando ao esquecimento, tornou-se emancipado a partir do bélico de Michael J. Basset (“Deathwatch”), recuperando o fôlego com as incursões de Thomas Vinterberg (“Dear Wendy”), David Gordon Green (“Undertow”) e no desprezado “The Chumscrubber” de Arie Posin, e por fim quase se restringindo a secundário de sustento nos mais diferentes géneros: fantástico ("Fantastic Four”, “King Kong”), guerra (“Flags of our Fathers”), épico (“The Eagle”) ou ficção científica (“Snowpiercer”). Mais recentemente, reconquistou o protagonismo no curioso “Film Stars Don’t Die in Liverpool”, ao lado de Annette Bening, mas o filme não chegou aos laureados cantos da temporada de prémios e o mesmo se pode dizer do seu empenho neste “Skin”, validando uma certa ideia de ignorância (para não apontar o lobby) das academias.

Ao chegar a esta longa-metragem de Guy Nattiv (vencedor de um Óscar com a curta de mesmo nome) compreendemos que, enquanto ator, Bell é dotado em construir conflitos num registo silencioso, personagens conturbadas aprisionadas ao seu inerente. Em “Skin”, ele vive a pele (melhor palavra para referir esta personagem) de Byron Bab’ Widner, um membro de uma comunidade enraizada nos ensinamentos vikings, obviamente fermentada por ideologias de supremacia branca e de masculinidade tóxica. Jamie Bell apropria-se então dessa pele para costurar a sua própria camada epidérmica, resultando num homem encaminhado para becos sem saída, cercado por um ódio implementado. Mas ao contrário do portento Derek Vinyard, o neonazi arrependido encarnado por Edward Norton em “America History X”, Byron sempre se sentiu desencaixado no ecossistema de ódio diluído que é a sua família e convertidos. Para a personagem, toda esta violência é normalizada e, como consequência, para além da pregada ideologia, a sua expressividade é descompensada por um instinto quase animalesco.

Não se trata de encontrar em “Skin” um reflexão para este fenómeno de doutrinação, e novamente (pedimos desculpas ao leitor pela constante recorrência) comparando com “America History X” (filme que o próprio realizador, Tony Kaye, renega), não pretende solucionar com respostas simples um retrato absolutamente maniqueísta (há que encarar a extrema-direita e incentivos de ódio como algo mais complexo). Guy Nattiv aposta na individualidade da sua proposta: Byron é um objeto de estudo, não no sentido sociológico, mas emocional, a superação como virtude de um humanismo hoje desvalorizado.

Pegar em farrapos humanos e devolvê-los à sua humanidade”, o objetivo proferido pela personagem de Daryle Jenkins (Mike Colter) é também o objetivo do filme, e o faz com a cumplicidade de Jamie Bell, menino-prodígio de ontem, o homem do presente que procura o seu merecido holofote. Está aqui, sem dúvida, um dos melhores desempenhos da sua carreira.

"As Estrelas Não Morrem em Liverpool", mas renascem lá

Hugo Gomes, 08.02.18

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“Film Stars Don’t Die in Liverpool” (“As Estrelas Não Morrem em Liverpool”) pega nas memórias de Peter Turner, na altura do enredo, um ator de início de carreira que conhece por acaso, Gloria Grahame, a suposta vizinha do lado que na realidade foi em tempos um dos rostos reluzentes da grande indústria californiana. Ela tinha 50 anos, ele somente 26, mas nada impediu de viverem um romance que bem poderia imortalizar-se no grande ecrã sob o fôlego de um drama romântico, daqueles que apenas Hollywood era capaz de fazer.

Contudo, esse mesmo mundo é hoje escombros fragmentados e em constante confronto, sendo que temos a nosso dispor, como alternativa, uma produção britânica que aposta sobretudo na modéstia. Mas vamos por partes. Quando falamos em modéstias não referirmos simplesmente ao formato telefilme sob o selo de qualidade BBC, consequentemente às cinebiografias esquemáticas que surgem anualmente como bando de pombos em busca do seu prémio. Essa modéstia a que Film Stars’ remete é na singela ternura da sua história, sem nunca trespassá-la para questões mais filosóficas ou existencialistas. Mesmo assim, é um filme cuja modéstia não o impede de tentar ser narrativamente criativo, e aqui sublinho o tentar.

Por entre uma narrativa que oscila por dois espaços temporais, o encontro e por fim o derradeiro reencontro, os flashbacks são integrados na ação decorrente. Desta forma a nossa memória cinéfila invoca-nos para a outro trabalho notável de costura entre as diferentes dimensões temporais, “Profissão: Repórter”, de Michelangelo Antonioni, onde Jack Nicholson, numa muda de camisa à velocidade do panorama executado pela câmara, protagoniza a sua própria “memória”. Nesse sentido poderemos apelidar o filme de Paul McGuigan (do culto “Acid House” e do agora esquecido “Lucky Number Slevin”) como um descendente de quinta geração das experimentações “antonionianas”, mas é certo que o seu esforço em tecer uma narrativa que não se joga ao comprido pelo básico academismo é de facto um esforço louvável.

Entretanto, os dispositivos A a B e sucessivamente a C encontram-se lá, “rasteirinhos” e quietinhos, como manda a indústria atual. Porém, existe outro enriquecimento que não devemos esquecer – Annette Bening. Toda a memória hollywoodiana num só velcro. A atriz vai para além da personificação copista e encara esta oportunidade para executar um cocktail daquela Hollywood preservada, hoje encarada como um museu ambulante. Um afunilamento de idiossincrasias, gestos e presenças, que bem relembra-nos uma das frases de Charles Aznavour em “Tirez sur le Pianiste” de Truffaut (“Conheces uma, conheces todas”). Existe algo de Gloria Swanson nela, não apenas na partilha do nome próprio (é lógico!), mas na natureza Diva que nega o seu esquecimento, habitando na ilusão de um estrelato longínquo (alusão a “Sunset Boulevard”, a prestação mais célebre de Swanson).

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Obviamente, o filme passa o recado desse paralelo, ou a citada comparação, assim como as outras que diluem no desempenho de Bening. Uma Marylin Monroesob efeito de Schrödinger” (se a estrela de “Some Like It Hot” tivesse chegado aos cinquenta anos) e a uma aura de mistério conjugada digna de uma Lauren Bacall (“Has anyone ever told you that you look like Lauren Bacall when you smoke? / Humphrey Bogart. And I didn’t like it then either.”). Sim, o filme tende em executar com uma prenunciadora astúcia e as memórias de Turner devem a isso, um tributo ao seu amor perdido, ao romance que transcende todos os ecrãs que projeta um legado de performances e estados naturais. “Film Stars Don’t Die in Liverpool” é “pequeno cinema” preso no corpo de um protótipo de “pequena produção”. E devido a tais esforços, merecia melhor sorte que um somente derrotado desta “award season”.

Por fim, e como mera curiosidade, eis filme anexado a uma meta-dimensão, que nos transporta para o glamour desses tempos de “ouro”, ao mesmo tempo que lança farpas aos movimentos atuais e a hipocrisia político-social ligada à elite hollywoodesca. E faz tal apenas transmitindo a vitória de “verdadeira” Gloria Grahame na Gala dos Óscares. A sua vitória como secundária em “The Bad and the Beautiful” e o seu curtíssimo discurso, um “thank you” corrido, hoje seria visto como uma afronta ao pseudo-ativismo mercantil de muitos dos vencedores das mesmas estatuetas.

Fantastic Four (2015): apurando as causas do "atentado"

Hugo Gomes, 29.01.17

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Tendo em conta o hype negativo que o afronta e as notícias saídas da "tumba" que nos demonstram uma produção complicada, quase digna de um futuro documentário, este Quarteto Fantástico não é pior, nem melhor que muitos dos produtos que nos são sugeridos do Universo dos super-heróis de comics. Aliás, atrevo-me a dizer que a própria Marvel, enquanto estúdio já nos presentearam exemplos bem mais degradante, basta só verificar alguns dos filmes-a-solos com narrativas apressadas cuja existência serviram para um único propósito - The Avengers.

O grande problema deste falhado filme de Josh Trank, para além da fama adquirida, é a constante "batata quente" nas culpas, e obviamente o interesse quase comum de uma das importantes séries de banda-desenhada da Marvel integrar o seu, por direito, Universo Cinematográfico. Há muitos factores que poderíamos explorar para o insucesso da fita, mas uma coisa é certa, este Quarteto Fantástico tentou a diferença de alguma forma, começando por esquivar dos lugares-comuns do porte e anti-socializar da homogeneidade que estes produtos têm sido alvo.

Tudo começa com um filme negro, isente de pingos de comédia (e cameos de Stan Lee), quatro jovens actores "embrulhados" por promessas de potenciais carreiras futuras e a credibilidade, sim, a vontade de Trank de executar uma ficção de cientifica, acima dos vínculos do comics. O realizador de Chronicles havia citado que cobiçava levar o Quarteto Fantástico a território de Cronenberg, como o "body horror" de The Fly por exemplo, e o que consegue é apenas um invocar dessas extensas fronteiras. Talvez seja por isso, que Fantastic Four fuja do ambiente pitoresco e colorido do diptíco de Tim Story e de que modestos sucessos haviam culminados, nesse sentido eis um dos mais violentos e negros da sua classe. Porém, o elefante ainda se encontra bem presente na sala, demasiado grande para ser ignorado, e depois de um início bem envolvente e enraizado na veia de ficção científica, o filme de Josh Trank começa a evidenciar os seus legítimos problemas, entre os quais, uma grave crise de identidade.

Após o fim do primeiro acto - a introdução das personagens ao universo adaptado - o filme começa a contrair uma tendência de "crowd pleaser", aliás tudo se resume a um filme de super-heróis, e não existe heróis sem o habitual plano de salvação do Mundo como nós conhecemos. E é a partir daí que tudo corre a passos largos, deixando de lado qualquer ênfase e literalmente "despachando" todo o enredo e introduzindo um vilão descaradamente intrusivo à narrativa. Pois bem, o resultado neste perdido terceiro acto que evidencia os propósitos comerciais por parte do estúdio e envolvidos, é que este "onírico sonho" de dimensões paralelas e os seus artefactos científicos, assim como uma revolta anti-NASA (para contrariar a tendência de coadjuvação), foi vítima de inúmeros factores saídos das "câmaras de horror".

São os "meninos" malcomportados que desafiam realizadores, por sua vez oprimidos por estúdios dominados por produtores que vêm os seus filmes como meros produtos de comércio a grande escala, como um videojogo tratasse, e os espectadores cada vez menos conscientes de que o cinema não é sinonimo de portes nem universos partilhados, nem sequer fidelidade com a matéria-prima. A criatividade é assim subestimada, até porque o desejo global é de ver Fantastic Four inserido na franquia da Marvel / Disney Studios. Resumindo e concluindo, uma tentativa falhada por consequência de diferentes factores, mas com potencialidades para algo mais do que o título adquirido de "pior filme do ano". Mesmo assim, um desperdício de talentos.  

"How did we get this far? Human beings have an immeasurable desire to discover, to invent, to build. Our future depends on us furthering these ideals, a responsibility that rests on the shoulders of generations to come. But with every new discovery, there is risk, there is sacrifice... and there are consequences."

Safadezas de Lars Von Trier custam caro

Hugo Gomes, 07.02.14

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E assim chegamos ao esperado segundo volume da pomposa promessa de Lars Von Trier, “a epopeia sexual de uma mulher, desde a sua infância até à sua meia-idade“, sem com isso envergar temas aludidos ao título, ou seja, sem definir a ninfomania como uma causa nem sequer um culpa de uma sociedade imoral e corrompida pela luxúria. Contudo, perante tal cenário social, o autor dinamarquês, acompanhado pela sua bagagem referencial e uma atriz disposta a moldar às suas fantasias (Charlotte Gainsbourg), não evita nem minimiza em momento algum a provocação, sendo este o trunfo do primeiro e agora integrado no segundo e derradeiro volume. Porém, existe algo que não “bate” de todo certo neste episódico conjunto de devaneios sexuais, a descoberta do exotismo erótico na frieza nórdica.

Primeiro, semelhante ao processo de contar uma anedota (a primeira vez é memorável, a segunda parece incomodar), depois de um início dinâmico e, confesso, divertido por entre teorias da conspiração e “colagens” de abordagem sexual a outros assuntos de importância cultural e social, “Nymphomaniac” dá lugar ao cansaço, ao forjar de referências e por fim à ambição do realizador em construir uma obra cada vez mais lírica que visual. O interesse mantém-se com o desenrolar da narrativa, mas as “tacadas” dadas por Von Trier perderam a frescura e, pior, a irreverência mais fluida e versátil com o próprio enredo. Tudo isto leva a elaboração de um puzzle entusiasmante de montar mas que resulta num todo decepcionante em termos cinematográficos. Nisto vem um arrastar, o imperar temas e opiniões (uma defesa quase constrangedora dos pedófilos, algo insuportável de refletir), e onde Von Trier esteve por momentos tão perto da genialidade insana como também na pura e ruinosa ejaculação intelectual.

O que assistimos assim é um retrato disposto de engenhoso de uma sociedade saturada por sexo, onde a temática soa como a raiz quadrada de todos os elementos expostos no nosso quotidiano, e que no seu todo resulta de uma desequilibrada visão e intolerância cinematográfica, onde não faltam as promessas de uma descida exclusiva ao inferno sexual que não são cumpridas e a consolidação entre o melhor do cinema deste autor (referências exaustivas da sua obra anterior “Antichrist”, talvez o fim de tudo) e a pior da sua técnica operativa (existem planos e sequências imperdoáveis na industria cinematográfica que demonstram por exemplo uma falta de cuidado na posição e utilização da luz).

Por outras palavras, em “Nymphomaniac” o percurso (o Volume 1) é mais cativante e libertino que a sua própria conclusão (Volume 2), que se impõe como uma liberdade artística utilizada para júbilo pessoal e onde Von Trier foi traído pela sua forma, fechando com Chave de Bronze a sua, agora, completa trilogia da depressão.

Vale a pena ainda salientar o desempenho algo sinistro de Jamie Bell como K e todos os seus adereços, naquele que poderá ser visto como o capítulo mais intenso, arrojado e magistral de toda esta “bíblia” sexual.