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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Morte macaca

Hugo Gomes, 18.02.25

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A macacada faz-se com Stephen King à baila!!

Baseado num conto do escritor, o novo filme de Osgood Perkins (ou Oz Perkins para os amigos) tinha tudo para manter o registo de “realizador do arrepio” onde se tem banhado, e ainda mais depois do êxito de “Longlegs”. Acrescenta-se à equação James Wan como produtor, e eis um trio maravilha que só poderia conceber maravilhas… mas não foi o caso. Primeiro, apeteceu culpar King (escritor sobrevalorizado no campo da fantasia e do terror… fico a aguardar as pedradas), que rapidamente recorreu às redes sociais e à comunicação social para “vender” o filme como peça fundamental do terror cinematográfico atual (exagero da nossa parte, como também da dele), mas, como bem sabemos, o seu gosto pelas suas adaptações deixa muito a desejar — “Shining” e “Carrie” são a sua pedra no sapato, “Dreamcatcher” e “Dark Tower” os seus “hurrays”. Felizmente, Kubrick e De Palma se borrifaram para aprovações, e deram a subtileza que o escritor sempre careceu.

Contudo, apeteceu abraçá-lo. Não como rendição às suas palavras, mas para o desculpar da minha ira, porque nele culpa alguma se deve tirar. O conto original é “kingueano” na dose certa, o filme, esse, exaltou-se e, sobretudo, aparvalhou-se. Podemos encarar o camp como uma arma lúdica e, por vezes, escapista, dou de barato os pequenos estúdios ou o independente apostarem nesse tom — fica-lhes bem, soa autêntico e despretensioso, “The Monkey”, por outro lado, não. Para além de soar a falsete, tenta impregnar um filme que não existe, deixar-se encantar com a sua violência pensada e medida, mas acaba acidentado como tencionava evitar.

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Mas afinal, do que se trata “The Monkey”? Um artefacto amaldiçoado, perverso e demoníaco: um macaco de brinquedo que, ao ser ativado, provoca uma aleatória e espectacular morte. A premissa remete-nos para um daqueles livros da franquia “Goosebumps” — aliás, um poster pode ser visto na infância do protagonista, vínculo direto com essa inconsequência. E não vamos por menos: apesar do seu gore, este mascara-se com um tom trocista e freeze frames que zombam da sua agressividade. Um festim de sangue levado na desportividade, com um horizonte apocalíptico bigger than life que se encaixa na hiperatividade imposta por Perkins ao seu macaco.

O tal “realizador do arrepio” ainda se debruça numa atmosfera que evoca-nos para uma outra obra - o tal filme que não existe. O resultado, porém, é um estremecer grosseiro, com sangue a rodos e uma narrativa infantilizada com  a sua “moral”, o de aceitar a naturalidade da morte, elemento casual apenas enaltecido pela sua incompreensão / fascinação enquanto humanos. Talvez esse fosse o propósito, e estejamos a ser demasiado severos com o primata. Um filme de morte e mortes, aliciado para audiências mais jovens, que transforma o terror numa experiência mais acriançada, longe das causas e das alegorias, dos sustos e da experiência. Uma “porta aberta”, dirão alguns em defesa do consumidor. Nós, expomos a amenização de um género para melhor encaixá-lo numa lógica de mercado.

Everybody dies. Some of us peacefully and in our sleep, and some of us... horribly. And that's life."

Exterminadora Implacável

Hugo Gomes, 17.01.23

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A título pessoal: Em teoria, “M3gan” é uma salada de frutas dos meus medos, a começar pela pedofobia (não assustem com a designação, trata-se apenas de fobia a bonecas), passando pelo complexo de “uncanny valley” (a repugna ao que aparenta ser humano mas que não o é) e terminando na desconfiança tecnológica (principalmente no conceito ainda prototípica do A.I [inteligência artificial]). Ou seja, temos “caldo entornado” para uma experiência de fazer eriçar a pilosidade dos braços.

A título formal: Trata-se de uma histórias de “bonecas de última gama”, cada vez mais realistas e alicerçadas ao que indica ser inteligência por por conta própria (há indícios de consciência dickiana, principalmente quando a sintética antagonista esmiúça sobre a Morte), que se resume à homónima criação. Um experimento, e por sua vez, apropriado por uma grande corporação para o viabilizar como o “next big thing” do mercado - ou “a maior invenção do Homem desde o automóvel”, tal e qual é citado a meio da sua narrativa. Obviamente, que tudo é receita para uma pequena catástrofe.  

M3gan”, apesar das suas hipóteses de terror moderno e consciente, verga-se pela tradição de muito do que é hoje produzido no género em terras yankees, o conceito acima da prática. Esta nova prole de Jason Blum [produtor que assume autoralmente os seus “rebentos”], “bombeado” por um guião assinado por James Wan (não esquecer a direção de Gerard Johnstone, de “Housebound”) - uma versão “Child’s Play” [mais como extensão do remake de 2019 do que o original fomentador da duradoura saga] para novas gerações - apresenta-se como um recital de apontamentos e reaproveitamentos de medos comuns. 

Digamos que dentro desse esquema de produto pré-fabricado, o filme espelha uma ideia há muito cobiçada por Hollywood, envergando e sumarizando os conceitos robóticos incentivados por Phillip K. Dick e toda a nossa relação com “vida artificial”, só que nesta variação, mesmo sendo narrativamente previsível até à medula, a idealização nunca trespassa o papel, preferindo-se mapear do que aprofundar as suas devidas preocupações teóricas e com isso falsear em momentos puramente “camp” ou de júbilo de cariz macabro.

A Blumhouse em parceria com o Atomic Monster [equação vencedora Blum + Wan] poderão ter encontrado a sua “galinha dos ovos de ouro” no que refere a matéria de franchises, até porque a “criatura” frankensteiniana obsessiva (um sinistro "avatar" de Amie Donald) preserva características frutíferas aos mais diferentes ícones do slasher (nomeadamente ao Chucky de Child’s Play, de Don Mancini [pelo menos fica tudo em “família”]), entre as quais a força de centralizar a trama ao redor da sua figura (enquanto que as personagens humanas são tudo menos interessantes e empáticas). 

Um modelo formalizado que garante sucesso com poucos milhões investidos. Low cost ou não, a verdade é que “M3gan” funciona graças à sua modéstia e de ocasional foco às questões fora da sua natureza. Por outras palavras, poderia ser mais cerebral e complexo, mas ficamos com o protótipo oleado.  

A título pessoal: Poderia ser a autêntica materialização dos meus pesadelo ... Poderia, se não fosse a sua leveza e seu jeito “brincalhão” como manda a indústria do qual está inserida. Talvez numa próxima!

O cancro maligno do terror de degustação

Hugo Gomes, 18.09.21

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Sublinho que James Wan é um tecnicista. É necessário que, para o seu cinema vingar em tela, exista alguém que reforce a sua genica, empurrando-o e incentivando-o criativamente. Seja Leigh Whanell ou o produtor Jason Blum, cúmplice necessário para transcrever uma técnica em prol de uma estética e consequentemente com um conteúdo. Nada contra, existem muitos “autores” que se vingam pela forma como se posicionam ou narram as ditas desventuras, só que “Malignant” parece ser eventualmente essa afirmação autoral acima de uma verdadeira orgânica da essência.
 
A esta altura, muito foi escrito e descrito sobre o filme, supostamente independente, de um dos mentores de “The Conjuring” e “Saw”, duas importantes sagas do género de terror do século XXI que redefiniram exatamente isso para as mesmas gerações. “Malignant” é somente a citação de um legado, um giallo prescrito e homenageado pelo próprio, o qual tenta transladar uma certa sujidade e artesanato a uma indústria de requinte propícia a “copy and past”. Nesse sentido, as referências, aquelas “piscadelas” no olhar do aficionado ou do cinéfilo mais saudosista, são dilacerados e misturados numa papa pronta a servir. O que basta é comer, saborear e automaticamente sermos invocados numa espécie de proustiana sensação de reciclagem. Sabendo nós, que o terror, nada ou pouco parece reinventar hoje em dia, o legado persiste na fórmula adequada de propagação, James Wan comete o erro da fanfarrice na sua recitação, não deseja inovar, nem sequer ser o tal e formado James Wan, apenas sentar na mesma mesa posta com os outros ditos mestres, seja Dario Argento, seja Brian De Palma, seja Luci Fulci ou Wes Craven (possivelmente o maior dos signos desta obra), tudo, aspirações (não inspirações) para o nosso malaio indiciar nestas jornadas de calafrios.
 
Mas como havia refiro no início do texto, Wan é um tecnicista, e como tal é na técnica que se vinga, trabalhando, como sempre, os espaços e transformando-os em palcos de assombrados gags, ou colocar o espectador no centro da ação, como o travellingant farm” com finalidade de nunca nos deixar à deriva dos jumpscares, mas, por infelicidade do próprio Wan, tal tem sido um truque recorrente na saga que o próprio criou (sim, falo desses Conjurings e Annabelles da vida). Contudo, é essa ambição de Wan em tentar envergar pelos mestres do costume, que não o separa de outro James querido da crítica - o Gray - que por si é também mais tecnicista que autor. Aliás, hoje em dia, a noção de autor do cinema encontra-se mais acorrentada à recriação de gestos antigos do que propriamente a um universo próprio.

Eis "Aquaman", para voltar a acreditar no lado “camp” do super-herói

Hugo Gomes, 12.12.18

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"Permission to come aboard."

Longe dos fundamentalismos (ou “fanatismos”) por trás dos universos partilhados MCU (Marvel/Disney) e DCEU (DC Extended Universe), venho defender uma “impopular” perspetiva. A nível formal as apostas da Warner Bros. ostentam uma certa personalidade individual que entram em conformidade com o respetivo “maestro” do projeto, enquanto a Marvel / Disney (com exceção das incursões de James Gunn e Taika Waititi), preservam uma coerência visual e narrativa em nome do seu franchise, quase requisitando uma linguagem no contexto do seriado. A junção DC / Warner opera através de filmes desengonçados na sua natureza de partilha de um ecossistema, respeitando sobretudo o estilo ou os elementos característicos do seu realizador.

Evidentemente, e usando como exemplo os tiques estéticos que traçavam uma narrativa sobretudo visual de Zack Snyder em Batman V Superman: Dawn of Justice”, as tentativas de um neo-noir pós-Training Day de David Ayer em “Suicide Squad” e a sensibilidade da construção de personagens femininas em “Wonder Woman” (é importante sublinhar o “tenta-se”), nenhum destes capítulos se interligam da maneira mais orgânica. Portanto, não cedendo em miopias de quem faz melhor ou pior, é certo que neste “Aquaman” assistimos novamente a essa corrente da “tentativa” autoral, desta feita com James Wan a ganhar o gosto pela grande produção, a trabalhar sobretudo os espaços como tem feito com algum sucesso em recentes e inauguradas sagas como “The Conjuring” e “Insidious”. Essa relação é sobretudo adaptada para com a natureza deste filme que segue o ressurgimento de Arthur Curry como Aquaman, herói da DC que tem sido anos a fio envolvido num certo tom anedótico.

James Wan não tem a visão milimétrica com que engenha os jumpscares dos seus habituais “palcos dos horrores”. Pegando como exemplo a primeira sequência de ação, onde Nicole Kidman luta contra um punhado de guardas atlantes dentro de um farol (importante referir o reduzido espaço cénico), a câmara em ponto semi-zenit mapeia todo o campo, medindo a sua dimensão ao mesmo tempo que incide como um olhar atento à decorrente ação. A partir daqui, surge, ponto a ponto, esse cuidado cénico e a cumplicidade desta para com o movimento das suas personagens (a destacar uma materialização CGI do tão mítico poster de “Jaws / Tubarão”, auferindo ao espectador uma visão unidimensional da própria ação). Em palavras mais precisas, "Aquaman" joga com pequenas pitadas de dinamismo técnico-narrativo, as imagens-ação em voga com as imagens-tempo (citando Deleuze), tudo em função de uma invisível arquitetura de arcos narrativos.

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Por outro lado, esta nova aventura da DC experimenta, a nível tecnológico, novas realidades e possibilidades na criação de mundos artificiais. Em jeito de “Avatar” de Cameron (para referir essa perfeição nos mandamentos de George Lucas – as mil e uma possibilidades graças à “autenticidade” do CGI), o filme de James Wan ousa em corporalizar uma Atlântica submersa, como toda uma ação / conflito decorrido debaixo de água (ou até os diálogos envolvidos num certo eco adquirem essa (in)coerência possível).

É verdade que depois desta proposta seguimos um brindar da tecnologia e do visual colorido em modo de um espetáculo circense, mas convém referir que para o bem ou para o mal, “Aquaman” é um filme antiquado (e não menciono das pequenas essências shakespearianas), exibindo virilidade (o facto de termos Dolph Lundgren por estas águas, aprofunda ainda mais essa sensação) e um espírito aventuroso que o afasta das demais incursões do subgénero. Esta sua atitude leva-o a uma tendência auto-jocosa e é possível imaginar que se este mesmo filme fosse reproduzido na década de 80 ou 90, seria protagonizado por um Arnold Schwarzenegger ou Sylvester Stallone.

Contudo, sem fazer muito pelo cinema de super-heróis ou ser uma ode do blockbuster americano, Aquaman apura-se como um entretenimento de certo aprumo, aptidão e de constante busca por uma identidade (sabendo nós, que tenta prevalecer e definir o franchise construído por pesados, mas poucos passos). Pelo menos existe um espírito mais “Star Wars” que as últimas variações da saga.

Hollywood para toda a velocidade para Bollywood

Hugo Gomes, 01.08.16

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Furious 7 (James Wan, 2015)

Era uma vez …

Estamos em 2015, depois de uma tresanda de anúncios e trailers dos próximos “filmes-fenómenos”, chega por fim o nosso filme. Para muitos dos que partilham a sala de cinema comigo, este é o mais esperado do ano, quiçá em anos. Sala bem composta onde o público marcava presença através de sussurros, conversas alheias, gargalhadas ocasionais e vozes que se confundiam com o ambiente em que se vivia, porém, o silêncio toma forma no preciso momento em que o nosso filme arranca.

Depois de um prelúdio onde nos é apresentado o “vilão de serviço”, Jason Statham ocupando o tempo do espectador com o seu monólogo protector, somos amparados com os créditos iniciais até estes desvanecerem na estrada com a passagem de um 1970 Plymouth Barracuda, dentro desse veículo duas das mais amadas personagens do nosso público dão entrada, “estão bem vivinhos da silva” pensam alguns. Michelle Rodriguez parece confusa nesta sequência “Come on Dom so where are you taking me?”, Vin Diesel no lugar do condutor responde com uma frase pseudo-profunda, uma filosofia de camionista que se enquadra como uma declaração de amor pela vida existente “They say the open road helps you think about where you’ve been where you're going”.

Bem, pela descrição já podem adivinhar qual é o filme em questão, no caso de não reconhecerem, eu passo então a explicar. Trata-se de “Furious 7”, que por cá sob o título de “Velocidade Furiosa 7”, o sétimo capítulo de um franchise que tem conquistado milhões e milhões de fãs. O vórtice desse sucesso é um cocktail de elementos que tanto agradam o grande público, “good-looking guys”, heróis maçudos e viris, mulheres esculturais com roupas reduzidas, sequências de acção que incluem perseguições automobilísticas e combates corpo-a-corpo, assim como uma ciência envolto de automóveis personificados e de topo de gama.

Sim, a fórmula é vencedora, os atores contribuem para isso, muitos deles cumprindo o check-in com somente as respectivas presenças e os realizadores, meros artesãos ao serviço de um grande estúdio, tentam a custo ter “mão” numa industrialização em série. Os objetivos estão definidos, “Furious 7” não é uma obra intimista, experimental, nem aspirando ser mais do que um “arrasa-quarteirões” (blockbuster), é em todo o caso, e não querendo reduzir o conceito de cinema em “castas”, um filme de povo, um entretenimento popular. Hollywood está mais que habituado em criar esse tipo de produções, “crowd pleaser" assim chamados, mas não é o único a fazê-lo.

Sendo óbvio que todas as produções locais e nacionais têm os seus sucessos de bilheteiras e as suas fórmulas triunfantes (relembramos que em Portugal “coisas” como “Crime do Padre Amaro” e “Pátio das Cantigas” detém o recorde de espectadores), apenas um mercado cinematográfico é capaz de rivalizar, e em certos casos superar, em número o comércio de Hollywood. Trata-se de Bollywood, cujo “B” não é silencioso, mas é referente a Bombaim (oficialmente Mumbai), a maior e mais importante cidade da Índia, a “terra dos sonhos” para grande parte da população indiana, onde todos os anos milhares de produções são lançadas tendo como grande objectivo atingir o público e "amealhar" os seus quinhões de rupias.

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Furious 7 (2015)

É um tipo de cinema hoje atribuído ao maneirismo, ao senso comum que lhe cataloga num profundo estereótipo, numa receita que parece hoje estar presente na moda até mesmo na nossa própria cultura: um rapaz, uma rapariga e uma árvore o qual serve de cenário para um evento de dança. Essa descrição tem sido mais que suficiente para que os amantes de cinema mais ocidental (e mesmo oriental) evitem o contacto para com esta indústria de sucesso, porém, ainda pouco explorada. Mas existe uma razão para esta invocação e ainda mais o paralelismo entre o último “Velocidade Furiosa” e as modernas produções bollywoodescas. Como diria Miguel Gomes na sua trilogia “Mil e uma Noites”, “ou existe paralelismo, ou é puramente abstracto". Mas o abstracto é algo dado a vertigens“. Para entendermos a relação entre estes dois pontos, devemos regressar aos primórdios do cinema, em alturas em que a Sétima Arte dava os seus primeiros passos e que a Índia desafiada por este novo “diamante bruto“, explora uma plataforma a fim de reivindicá-la como sua.

Ao contrário do que se possa julgar, a Índia foi um dos primeiros países a obter contacto com o engenho dos irmãos Lumière (em 1896). Tecnicamente, não era um país absoluto nessa altura, mas sim uma colónia inglesa, um facto que levou o subcontinente a produzir excertos fílmicos aos estilos dos primeiros ensaios da dupla criadora primeiro que muitos outros locais. O primeiro fragmento cinematográfico puramente indiano surgiu em 1899 com “The Wrestlers”, a filmagem de um combate de wrestling local. Todavia, só em 1913 chega a primeira longa-metragem, o início do Bollywood propriamente dito, com o mudo “Raja Harishchandra” (realizado por Dadasaheb Phalke), atualmente perdido.

Eram filmes populares que seguiam de acordo com o agrado do público, compondo dramas familiares vinculados por uma Índia tradicional e religiosa. Assim, as produções tornaram-se cada vez mais abundantes, até que em 1930 chegaram a ser filmados mais de 200 filmes por ano, mas existia uma ausência nestas populares histórias de grande ecrã, algo que evitava uma entrada na verídica alma desses seres bailantes – a voz. Em ’31, Bollywood aprende a cantar com Alam Ara (de Ardeshir Irani), a popularidade levou as autoridades a conterem as multidões em certas regiões e a partir daí seguiram ciclos que fermentavam ainda mais fama deste cinema, assim como a vanglória da exacta indústria.

Na década de 40, a tendência cinematográfica de Bombaim propaga-se para as regiões de Tamil, Telugu e Kannada, convertendo o cinema indiano numa arte polivalente, poliglota (detendo várias línguas e dialectos), assim como culturalmente diversificada (tendo em conta a cultura interior das suas respectivas religiões). Mesmo apresentado com histórias e intrigas popularmente identificáveis com a sua população, Bollywood teve que procurar influências para erguer-se de maneira pujante, e esses mesmos teores vieram de Hollywood, nomeadamente os seus musicais dos anos 20 e 30, das suas estrelas e claro do próprio modelo de star system. O cinema indiano replicou a sua Hollywood.

Contudo, a década 50 foi bem mais complicada e crucial para a Índia, mas os resultados foram satisfatórios. Com a luta pela independência, Bollywood revitalizou-se, ficou mais forte e firme no comércio local como global, a chamada Idade de Ouro desta indústria e nota-se que nesse momento Hollywood vai perdendo a sua pujança, o seu brilho e a sua credibilidade. É também neste período que entra em cena os autores; Adoor Gopalakrishnan, Ritwik Ghatak, Aravindan, Satyajit Ray, Shaji Karun, que contribuíram para a fama e de alguma “dignidade cinéfila” do cinema indiano no resto do Mundo. Duas décadas depois, à imagem do que sucedia nos EUA, Bollywood “contrata” os seus filmes violentos, predominando a temática dos gangsters e outros anti-heróis, como forma de desafiar e contornar a censura estabelecida na indústria desde os anos 30.

Os anos 90, os dramas familiares dominam as apostas cinematográficas na Índia, o estereótipo é formado: filmes longos, recheados de canções e dança sincronizada, enredos de heróis apaixonados por raparigas prometidas, vilões maniqueístas e a árvore como um tremendo símbolo de paz interior e da relação sempre acentuada entre Homem e Natureza. Bollywood praticava esta fórmula no limiar da exaustão, mas tirando os seus maneirismos reconhecíveis, não era de todo um cinema que diferenciasse daquelas cujas inspirações embebeu. Aliás, Bollywood era uma autêntica máquina produtiva de cópias exactas de Hollywood, de forma a não render ao mercado americano e tornar vivo o seu próprio cinema, uma possível essência revolucionária ainda resida da sua “prisão colonial“.

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Pather Panchali / Apu: Song of the Little Road (Satyajit Ray, 1955)

A “infiltração” indiana em terras do Tio Sam!

Porém, foi na passagem para o novo século que o cinema de Bollywood começou a “dar nas vistas” no Ocidente. As imigrações de vários artesãos de Bombaim para Hollywood contagiaram um mercado que parecia inabalável. A partir daí, foi uma ascensão. Na verdade, a própria internet teve também contributo na difusão de Bollywood no Mundo:

  • Em 2001, a Índia tem o seu candidato ao Óscar presente entre os nomeados para Melhor Filme Estrangeiro, “Lagaan” (de Ashutosh Gowariker), num ano em que a estatueta “caiu nas mãos” do destemido “No Man’s Land” (“Terra de Ninguém”, Danis Tanovic).
  • Baz Luhrmann dirige “Moulin Rouge!”, um dos últimos grandes êxitos musicais do cinema norte-americano, com claras influências a Bollywood. Basta verificar na forma como a música enquadra-se na ação e sob uma certa independência transpira para fora desta, recriando cenários oníricos invocados no intuito de acentuar as emoções das suas personagens. O caso mais “gritante” é a dança entre Nicole Kidman e Ewan McGregor num espaço rodeado de nébula e uma Paris de miniatura).
  • A visão reconhecivelmente “bollywoodiana” trazida pelo indiano Tarsem Singh, evidente na maioria das suas obras, de “Cell” (“Cela”, 2000) a “Mirror Mirror” (“Espelho Meu, Espelho Meu! Há Alguém Mais Gira do Que Eu?”, 2012). Visualmente enriquecidos, quer em termos cénicos, quer em termos de guarda-roupa.
  • As apropriações culturais no cinema de Hollywood visto em produções como o oscarizado “Slumdog Millionaire” (“Quem quer ser Bilionário?”, 2008), dirigido a meias por Danny Boyle e a “bollywoodesca” Loveleen Tandan. A “peregrinação” de Mira Nair para a “Meca do cinema“, a sua estadia gerou produtos como “Vanity Fair” (“A Feira das Vaidades”, 2004) e “The Namesake” (“O Bom Nome”, 2006).
  • A co-produção entre os EUA e Índia em “Marigold” (de Willard Carroll, 2007), uma homenagem ao cinema de Bollywood que fracassou dando origem a um “branqueamento” de uma Índia fabulista. "Marigold" também serviu de título para o êxito de John Madden em 2011 (“The Exotic Marigold Hotel”) e a sequela de 2015.
  • O crescente sucesso de produções de Bollywood no mercado norte-americano, chegando ao ponto de figurarem no Top 20 do box-office dos EUA.

 

Velocidade Furiosa: uma nova produção bollywoodiana?

Obviamente que todo este fenómeno de influências, alusiva ao eterno retorno de Nietzsche, é uma questão de globalização. Esses efeitos transmitem cada vez mais uma sensação de utopia quanto a referências e marcas culturais como também étnicas. Mas, voltando ao início da questão, os blockbusters norte-americanos que nos dias de hoje vendem milhões de bilhetes em todo o Mundo, muitos deles quebrando invejáveis recordes, falam gradualmente uma língua “bollywoodiana“. O mesmo deparamos com uma Bollywood a citar a veia do seu antípoda. A descoberta do CGI, por exemplo, motivou uma crescente afluência para produções mais arriscadas a nível de conteúdo.

“Velocidade Furiosa 7” não é mais que um arquétipo bollywoodesco construído para público ocidental, a esta altura o leitor deixa escapar um grito de espanto, decidindo recorrer à memória em busca de performances musicais e cantantes entre Vin Diesel e Dwayne “The Rock” Johnson. Pois, o paralelismo invocado não está no evidente, mas sim no seu subliminar íntimo.

A começar pelo mais vistoso, o filme de James Wan tem, sim, momentos de pura musicalidade, não na forma transcendente como os mais clássicos modelos de Bollywood, mas disfarçados na narrativa que intriga e que fielmente segue. Entre eles, a longa sequência de dança emanada em Dubai, pura passagem de folia, contágio sexual e eufórico, ou até a ilícita “race wars” que aparece no início. Nestas específicas cenas, o filme tende em sair da sua própria realidade e interagir com a sua veia video-musical, um pouco como Bollywood faz com as suas personagens que de um momento para outro se vêem envolvidos numa dança que afronta a narrativa linear o qual se “pendurava“.

Como já havia dito, o CGI e o abuso dos stunts são dois elementos constantemente similares com as duas indústrias. Enquanto rimos que nem perdidos da imaginação tresloucada dos profissionais indianos em recriar ação insurgente das regras da física, fiquemos energéticos em seguir sequências idênticas num “Furious 7", como se acreditássemos que os “carros pudessem voar“.

Mas os seus conflitos estão nas suas mensagens, a masculinidade que reina em ambos os lados, no caso do “Velocidade Furiosa” é evidente essa testosterona, o foco que o filme tende em dar a um homoerotismo constantemente desmentido e obviamente o “bromance” que se comporta como combustão para todo o enredo. Tirando o último ponto, o cinema bollywoodiano goza dessa “veneração” ao homem, principalmente ao herói, determinado, justo e aparentemente sem falhas de carácter. Ambos são resultados de um sexismo absorvido e vivido nas respectivas sociedades, relembro que nestes exemplos as personagens femininas são esboços vagos existentes a fim de cumprir as necessidades do messiânico herói (par amoroso, motivo de conflito, leitmotiv, demonstração de maniqueísmo).

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Bãhubali: The Beginning (S.S. Rajamouli, 2015)

O herói tende a ser um “outsider“, porém, revela-se num conservador moralista, no caso do “Velocidade Furiosa”. A personagem de Vin Diesel refere constantemente a criação de uma família, seguindo questões afetivas, ou as exibições de religiosidade, como se tal transmitisse os valores morais e éticos e a abundância do politicamente correto. Em Bollywood, face algumas exceções, é um cinema leve, censurado, cujo herói é o exemplo individual do bem, e tudo vindo dele é justamente o correto modelo a seguir. A religião, como havia referido, é tema recorrente e respeitado no cinema indiano.

Quanto à sexualidade, ambos são sugestivamente provocadores, mas não passam daí, em causa está a moralidade, o conservacionismo e como é óbvio, a censura causada pelos sistemas de avaliação. Os heróis são igualmente pólos atractivos para o sexo feminino, existe uma clara firmeza de que todas as mulheres do filme estão interessadas no protagonista. Contudo, esses mesmos seres heroicos são incuravelmente românticos.    

Por último, o nacionalismo, no caso da produção norte-americana, poderíamos apelidar de patriotismo, e eles não fazem questão de esconder tal teor nas suas obras. Nos filmes de Hollywood, nomeadamente este “Velocidade Furiosa”, todo o Mundo fala inglês, e o resto dele é inserido em estereótipos que automaticamente identificam a sua cultura ou país. Em Bollywood, existe uma sobrevalorização de tudo o que é indiano. Nestas produções, Britânicos e Paquistaneses são por norma “demónios” alicerçados à vilania.

 

Sob o signo da seleção natural!

They say the open road helps you think about where you’ve been where you're going”, a primeira frase de Vin Diesel no êxito de 2015 evidencia os caminhos que Hollywood segue actualmente, e sem querer focar no óbvio, as ideias começam sobretudo a faltar quanto mais a busca por novas linguagens cinematográficas e inovadores dispositivos narrativos. “Who cares“, a Hollywood moderna e recente é vista como um ponto de reciclagem, atenta a concepções e fórmulas que eventualmente surgem neste Mundo fora, Bollywood é só um molde de como é possível transformar algo, por vezes repugnado pelas audiências ocidentais, em “minas de ouro“.

Por outro lado, a popular indústria indiana cresceu à conta dessa “cruzada” pelas referências. Hoje encontra-se de olhos abertos para o seu redor, o mesmo que Hollywood. Pelos vistos os tempos das “ilhas cinéfilas” terminaram há muito.


Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.
Antoine Lavoisier

Poltergeists, possessões ... e uma freira

Hugo Gomes, 13.06.16

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Por estas alturas, James Wan goza de um implacável estatuto! Deu nas vistas em 2004 com o exercício de serial killers que originou um dos mais rentáveis franchises do género do terror, “Saw”, até chegar a todo um conjunto de obras de baixo-orçamento que garantiram sucessos instantâneos (sem falar da sua contribuição no cinema blockbuster como em “Furious 7” e “Aquaman”, este último ainda a ser preparado). O realizador malaio é atualmente um dos braços fortes desse “império” low cost do produtor Jason Blum (cada vez mais visto como um Roger Corman da nova geração), mas é inegável o toque que atribui a este conjunto de “produtos“, transformando ideias recicladas em matéria (pseudo)refrescante para ávidos apreciadores do cinema de terror.

Esta sequela do seu maior êxito de bilheteira, “The Conjuring” (com o orçamento de 20 milhões de dólares, rendeu mais de 300 milhões em todo o Mundo), é a prova viva desse veio “artístico” que Wan injeta (a sua ausência, por sua vez, foi catastrófica no terceiro capítulo de "Insidious") em terreno extremamente maleável. Infelizmente, o realizador preferiu-se vincar no seu guia “old school“, apresentando ao espectador os mais velhinhos truques do livro, uns com resultados satisfatórios e outros … nem por isso. 

Arrancando com uma ida e volta à célebre mansão de Amityville (o caso de investigação mais famoso do casal Warren), “The Conjuring 2” avança como uma auto-referência do cinema de Wan, neste caso Insidious é estampado no início deste “take“. Aí desenvolve os primeiros jump scares, com direito a monstruosos fantasmas e ameaças proclamadas que iremos seguir mais tarde (basta verificar a fórmula do primeiro filme para apercebemos como a “coisa” irá desenrolar). Depois desse início acelerado, com os Warrens (interpretados novamente por Vera Farmiga e Patrick Wilson) a serem puxados para segundo plano, seguimos para Inglaterra onde uma família é assombrada por um poltergeist “traquinas”. 

Trata-se do caso Enfield, o mais documentada da História da sobrenaturalidade, que acabou por revelar-se numa farsa. Porém, “The Conjuring 2” o visualiza como um caso de crença, onde o espectador mais informado sobre o sucedido terá que “fingir” que tudo não passa de uma possessão demoníaca de “colossal” tamanho. Tal como foram acusados o verdadeiro casal Warren, igualmente Wan traz um exagero a toda esta “assombração“, como tal basta comparar a entrevista televisiva da BBC feita a uma das crianças perturbada por estes fenómenos paranormais e a encenação fictícia neste filme. 

Obviamente que todo aquele argumento de que “isto não é mais que um filme” é uma cartada neste embate entre ficção e factos reais, porém, esse dito exagero cinematográfico que Wan traz a Enfield Poltergeist é rodeado pelos maiores clichés do género; as luzes descontroladas, as ameaças vindas de uma outra dimensão (temos uma freira demoníaca que é uma fábrica de pesadelos), os reflexos, a manipulação da sonoplastia, as crianças demoníacas e os artefactos infantis que de alguma forma servem de “ponte” entre vivos e os supostos mortos. Mas não é por isso que a viagem faz-se de maneira menos agradável, o que acaba por “desgraçar” toda esta pintura é um último ato, vulgarizado e estupidificado por um twist forçado, que de maneira alguma tem significado no percurso percorrido até então. De certa forma, este “The Conjuring 2” está mais próximo ao anterior “Poltergeist”, de Tobe Hooper, o qual ambos apostam num clímax mirabolante e demasiado vistoso para a sua condição de filme de “assombração”. 

Provavelmente, James Wan ainda estava a pensar no seu “Velocidade Furiosa”, esquecendo de desacelerar a narrativa deste exercício de terror de estúdio. Confirma-se, bastante inferior ao seu antecessor.