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Fora do filme, há uma história no mínimo curiosa em torno da sua estreia no mais mediático festival de cinema do mundo, Cannes (edição 2018). Concorrendo também à Palma de Ouro, “Les Filles du Soleil”, a segunda longa-metragem da realizadora Eva Husson, retratava mulheres guerreiras no Curdistão e teve uma estreia mundial marcada por ativismo feminista. No tapete vermelho, uma marcha de mulheres precedeu a sessão, com 82 figuras femininas de peso na indústria cinematográfica, entre elas Agnès Varda e a então presidente do júri, Cate Blanchett, reivindicando direitos e, sobretudo, uma maior representatividade das mulheres no setor. Todo este evento transformou automaticamente “Les Filles du Soleil” num acontecimento, um filme que poderia apropriar-se da mensagem impulsionada pelo grupo de ativistas.
Contudo, apesar de salientar a força daquelas mulheres, cuja única escolha era lutar ou submeter-se à opressão do regime, o filme revelou-se pólvora seca perante a crítica e grande parte do público (apesar dos aplausos, que, neste tipo de gala, não passam de uma formalidade). Naquele mesmo festival, estreava outro filme inserido na constelação feminina: “3 Faces”, do peculiar caso do cinema iraniano de Jafar Panahi. Peculiar por quê? Porque, sendo um realizador proibido de filmar pelo governo persa, a sua atividade na sétima arte continua impressionante e, inclusive, recompensadora (basta lembrar o Urso de Ouro conquistado por “Taxi” em Berlim, 2015). Contudo, o seu estatuto de “figura insurrecta e maldita” era suficiente para "vender" os seus filmes na lufa-lufa do festival da Riviera Francesa — mas o feitiço joga-se contra o feiticeiro.
O que importa aqui não é enumerar os pecados de “Les Filles du Soleil" em benefício de “3 Faces”, mas antes refletir sobre como o universo feminino no grande ecrã resulta de algo mais do que simples identificação. Neste caso, as mulheres são utilizadas como veículo de uma mensagem, sem, no entanto, recorrer aos caminhos fáceis do propagandismo. Panahi mistura-se na jornada "heroica", não só sacrificando o corpo ao manifesto (interpretando-se a si próprio), mas também transpondo a sua realidade para o campo fílmico. É um jogo de enganos, daqueles em que o espectador aceita ser atraiçoado, um panorama onde o real e o falso se combinam, originando um novo estado. No seu cinema, Jafar Panahi não reinventa a roda — este é o seu território habitual —, mas, tendo em conta as restrições que enfrenta, a ousadia de transportar este enredo para as montanhas do Azerbaijão eleva a sua proposta.
A ambiguidade entre realidade e ficção traça um trilho por vezes encruzilhado em direção às suas ideias. “3 Faces” leva-nos à boleia do próprio Jafar Panahi (who else?), acompanhado por Behnaz Jafari (a popular atriz iraniana, cujo currículo inclui “Blackboards” de Samira Makhmalbaf), numa viagem pelas montanhas para investigar um suposto suicídio numa aldeia remota, onde o tradicionalismo mantém-se intacto, expondo o preconceito e as crenças populares que, de forma subtil, analisam a condição da mulher numa sociedade ainda patriarcal. Poderíamos argumentar que Panahi, sendo homem, impõe uma visão masculina, mas as suas imagens não carregam mensagens unidimensionais, estas atrizes (de três diferentes gerações) parecem ser independentes dessa forma, dessa, desde o início, quebrada rigidez. Abrem espaço à ambiguidade, questionando a veracidade das próprias ideias e representações.
Há uma certa amargura neste dispositivo farsante que vitimiza a realidade imposta. Nesse aspeto, Panahi aproxima-se do seu conterrâneo Abbas Kiarostami e a sua mescla entre o real e o ficcional de “Close-Up” (1990). O desespero de quem busca a evasão na sequência final remete diretamente para esses signos, enquanto as colinas e montes evocam a libertação de um outro homem, a de “Taste of Cherry" (1997). Panahi traça aqui o seu encontro espectral com o antigo mestre do Irão cinematográfico.