Julie Newmar em McKeenna's Gold (J. Lee Thompson, 1969)
Convida-me o meu amigo e colega destas andanças Hugo Gomes para ser um dos magnificent fifteen ou um dos dirty fifteen, como quiserem, a comemorar os quinze anos de existência do seu espaço de crítica, e reflexão sobre estas coisas do cinema, o que me deixa bastante comovido.
A ideia é falar um pouco sobre cinefilia mas, habituado a ter de escrever para algo de específico, um filme que se vê por aí, um festival a que se vai, ou uma entrevista que se fez, a ausência de um tema mais específico coloca-me na posição daqueles escritores que, face à página em branco, se deparam com um bloqueio criativo.
O que fazer? As horas estão a passar e o Hugo, e muito bem, vai começar a mandar-me emails ou mensagens telefónicas a recordar que era esta a data prevista para a publicação do meu texto. Como nunca falhei uma data para entregar seja que trabalho for, aqui estou eu face ao computador, pressionado pelo tempo e pela honra.
Terei eu alguma coisa de interessante para transmitir a quem me vai ler? Por onde devo começar? Quem me conhece sabe que estou nos antípodas dos chamados “estudos fílmicos”, que no entanto aprecio ler. E aprecio a paciência de quem os escreve, apesar de, por vezes, ter de ir ao dicionário procurar palavras que seguramente fariam o Samuel Fuller pegar na pistola ou o Howard Hawks arrancar algumas páginas do guião. Por isso, por aí não me levam.
Também não dou para o peditório do “antes é que era bom”. Não me vejo como um dos velhos dos marretas, a dizer mal de tudo o que se vê nos cinemas. É verdades que, apesar de 40 filmes vistos em Cannes, se temos tempo para ir aos Cannes Classics saímos de lá com a sensação que o melhor filme do festival de 2022 foi um Satyajit Ray! O cinema mudou, não há dúvida, é impossível encontrar hoje obras como as de Renoir ou Ozu, Ford ou Visconti, Hawks ou Antonioni. Mas há por vezes filmes que nos dão a garantia de que o cinema está vivo. Dos que ainda estarão por aí, “A Lei de Teerão” ("Just 6.5") é um deles, “Recreio” ("Une Monde") é outro. Vêm do Irão e da Bélgica. Vão ver.
Mas estou a fugir ao tema, e à minha obrigação para quem me irá ler. Se tiverem tempo e paciência para tal. Talvez o mais interessante seja recordar um pouco o percurso de alguém – desculpem, mas sou eu – que começou “apenas” por adorar ir ao cinema e, aos poucos, por metade de sorte, metade de perseverança, acabou por fazer a sua vida no cinema, a trabalhar na Cinemateca, a escrever sobre filmes, a ir a festivais, entrevistar milhares e milhares de atores e realizadores, escrever livros e até produzir filmes – um deles chegou há dias à Netflix, é verdade, vão lá procurar.
Vamos então ver como é que era no meu tempo, sem nostalgias nem egocentrismos. Serve também, espero, como memória futura.
Os primeiros passos (filmes)
The Devils (Ken Russell, 1971)
Não será muito original, mas a primeira memória de ver filmes em grande ecrã é de uns Charlots na sala de espetáculos da Voz do Operário, onde fiz a instrução primária, na primeira metade da década de 1960. Lembro-me também da então obrigatória ida familiar – incluindo a criada de servir, a minha mãe era muito doente – ao Tivoli, ver o “Música no Coração” ("The Sound of Music"). Ou da emoção que era ir ao Monumental, na Páscoa, ver o “Ben-Hur”, naquele ecrã que nunca mais acabava (qual IMAX qual carapuça, o velho Monumental é que era).
Ainda era cedo para uma vocação cinéfila, mas a minha irmã, doze anos mais velha, deu uma ajuda. Já me tinha “mostrado” muita música, naquele gira-discos que parecia uma mala e onde ouvia as 45 rotações dos Beatles e muita música francesa – a Teresa foi das pessoas que consegui arranjar um exemplar do “Je t’Aime Mon Non Plus”, do Serge Gainsbourg e da Jane Birkin, proibidíssimo antes do 25 de Abril de 1974.
Foi a minha irmã também que me começou a convidar para ir ao cinema, uma vez por semana, quando não eram filmes “Para Maiores de 17”, a maioria durante o período da malfadada Censura. Mas lá ia eu com ela e as amigas dela ver filmes que me abriam os olhos para outras realidades. Nunca o disse a ninguém, mas para um garoto de 10 ou 12 anos, no Portugal cinzento da ditadura, ver uma índia atirar-se à água nua, numa sequência de “O Ouro de Mackenna” ("McKeena's Gold"), do J. Lee Thompson foi uma emoção inesquecível. Mais tarde, já em liberdade, foi com a Teresa que vi, pela primeira vez, a “Laranja Mecânica” ("A Clockwork Orange"). Que revelação!
Acho no entanto que a grande vocação cinéfila se deu no quartel de Santa Margarida, perto de Abrantes. O meu pai era militar e, depois de mandado três vezes para África, para uma guerra de que quase nunca falava, foi colocado em Santa Margarida, que era uma espécie de cidade, com piscina para os filhos dos oficiais como eu, campo de futebol, igreja (onde acho que nunca entrei), sala de jogos e… cinema!
Cinco vezes por semana, três vezes completamente grátis e duas vezes a 5 escudos o bilhete, por lá vi, nos verões de 73 e 74, dezenas e dezenas de filmes. Sobretudo séries B e Z, filmes de terror, westerns, peplums, filmes de guerra, policiais, comédias. Bons e maus, mas sempre bons, mesmo os maus, para quem ia lá para se divertir. Em cópias já completamente estilhaçadas, cheias de riscos, com cortes aqui e ali, fotogramas a queimar-se à nossa frente… Que saudades de ver um filme com riscos…
E foi ali que comecei a dar notas aos filmes que via, de 0 a 20, a fazer fichas individuais e a escrever duas ou três linhas sobre o que tinha visto. Tinha 14 ou 15 anos, era tudo seguramente muito ingénuo e recordo-me, sem qualquer tipo de vergonha, que durante muito tempo o filme que teve uma classificação mais alta foi “Os Diabos” ("The Devils"), do Ken Russell. Que impressão danada (perceberam o segundo sentido?) me fez aquele filme com o Oliver Reed e a Vanessa Redgrave.
Do fanzine à primeira revista
Deep Throat / La vera gola profonda (Gerald Damiano, 1972)
Cheguei à faculdade em 1976 ou 1977. Por exclusão de partes (estava fora de questão medicina, direito ou engenharia) fui ter a Economia. Nunca tive problemas com números, o curso tinha prestígio e naqueles anos do PREC estudava-se Marx. Mas, enquanto a maior parte dos colegas só falava mesmo dos estudos ou de política, eu só falava de cinema e um colega de outra turma, o Rui Carrola, só falava também de cinema.
Devo abrir aqui um parêntesis para explicar como era ir ao cinema em Lisboa no final dos anos de 1970. Não havia nenhum multiplex. O primeiro foi o Alfa Triplex, à saída do Areeiro. Mas havia tantas, tantas salas. Comecemos pela Baixa. Havia o Eden, onde ia sempre para o 3º Balcão (sim, havia) onde os bilhetes eram mais baratos e as cadeiras de pau. Na rua do Coliseu havia o Politeama, sempre com filmes populares. Na Rua dos Condes havia o Odeon, já em decadência e não esquecer o Olympia, onde vi alguns excelentes pornos do Gerard Damiano. E, é claro, o grande Condes, com aqueles cartazes gigantes na fachada.
Depois subia-se a avenida e havia o São Jorge de um lado (ainda só com uma sala) e o Tivoli do outro. Também não esquecer o Capitólio, no Parque Mayer, especializado em filmes hard-core e onde vi o “Garganta Funda” ("Deep Throat"). Melhor do que uma grande percentagem dos filmes “normais” que vi na vida!
Passando para a Fontes Pereira de Melo, tínhamos o Mundial e no Saldanha o imenso Monumental, com uma pequena sala estúdio, o Satélite. Ali perto havia o Cinebolso e o Cine 222, mais longe o Estúdio 444, o Apolo 70, com a programação do Lauro António, que também escolhia filmes para o Caleidoscópio, no Campo Grande, tão longe do metro mas onde fui ver “As Noites de Cabíria” ("Le notti di Cabiria") do Fellini e os “Jogos Perigosos” ("Wild Game Crossing"), do Fassbinder.
Num outro lado da cidade, começando pela Rua da Palma, podíamos ver filmes no Roxy e no Pathé, na Alameda erguia-se outra tela gigantesca, a do Império, onde vi o “Lawrence da Arábia” ("Lawrence of Arabia"). E lá em cima existia ainda o Estúdio onde, aos 14 anos, vi o primeiro Bergman, aliciado seguramente pelo título, “A Força do Sexo Fraco” ("All Thee Women"). Mais “burgueses” eram o Star e o Londres, com aquelas cadeiras que desciam de que nunca gostei, mas onde estreavam todos os Bergman, os Fellinis, os Viscontis… Depois era o Roma, o ABCine e o Alvalade.
Era nestas salas, e em outras que agora seguramente me esqueço, que estavam sempre em cartaz três ou quatro dezenas de filmes diferentes. E havia público para todas… Ver 500 filmes por ano não era difícil, até porque entretanto apareceram as sessões do Palácio Foz e havia o Instituto Alemão, onde vi centenas de filmes, desde os grandes clássicos do Expressionismo até às obra completas dos nomes grandes do Novo Cinema Alemão – o meu preferido foi sempre o Werner Herzog, que muito mais tarde tive a honra de entrevistar.
Voltemos à bobine anterior. Eu só falava de cinema, o Rui só falava de cinema. E foi assim que decidimos levar cinema ao ISE. Descobrimos que o IPC (nome que o ICA tinha à época) emprestava cópias de filmes portugueses, que a Direcção-Geral de Acção Cultural emprestava máquina e projecionistas e decidimos avançar. Fizemos uma “espera” ao Lauro António no Vává, demos com ele à primeira, acompanhado pela Maria Eduarda Reis Colares, grávida do Frederico Coroado, e ele lá nos conseguiu que o Tenente-Coronel da Lusomundo alugasse umas cópias a preços baixos. NO IPC, e à revelia da direção, arranjavam-nos resmas de papel e stencils (vão procurar ao Google, faz-vos muito bem, que eu não estou aqui para ensinar tudo) e escrevíamos um fanzine de quatro páginas, o Cine-ISE, que vendíamos a vinte e cinco tostões na cantina, para arranjar dinheiro para as cópias. Exibimos, entre muitos outros, “As Horas de Maria” e o “Lágrimas e Suspiros” ("Cries and Whispers") e convidámos o João Lopes e o Camacho Costa para apresentarem um filme do Jerry Lewis, de que eram fãs.
O esquema estava bem feito. As distribuidoras tinham os armazéns na zona da Avenida da Liberdade e nós, miúdos e simpáticos, convencemos os projecionistas e irem buscar os filmes antes da projeção e depois passarem por lá a devolvê-los. Até que um dia nos disseram que tinham outro compromisso, desmontaram a tenda e deixaram-nos com seis bobines em caixas de metal com vários quilos cada, para devolver ainda nesse dia, para não pagar outro de aluguer. A solução foi meter-nos no elétrico com as bobines e ir devolvê-las nós próprios. Hoje transporta-se um filme numa “pen” ou manda-se pela internet…
No ano seguinte, passei a pertencer à direção da Associação de Estudantes e o fanzine transformou-se em revista. O momento mais memorável foi a entrevista em casa do Lauro António, sobre o “Manhã Submersa”, com o Lauro a convencer o Vergílio Ferreira a aparecer. Está publicado, vão à procura, a Cinemateca tem cópia…
A Gulbenkian e o primeiro livro
Céline et Julie Vont en Bateau / Celine and Julie Go Boating (Jacques Rivette, 1974)
Depois de um lendário Ciclo Rossellini, que ainda não apanhei, com o próprio na sala a apresentar o “Roma, Cidade Aberta”, apesar da proibição da PIDE, o Bénard programou dois ciclos em simultâneo, Mizoguchi e Rivette. Eu tinha 18 anos e optei por não ir aos Mizoguchi (que felizmente recuperei mais tarde) e vi todos os Rivette. “Céline et Julie Vont en Bateau”, que experiência, e que apaixonado estava na altura pela Bulle Ogier…
Depois, em 1977, o Ciclo de Cinema Americano dos Anos 30. Bilheteira aberta para o primeiro bloco, chegada à Gulbenkian ainda de manhã, fila imensa. Fiquei atrás do cineclubista e crítico de cinema Manuel Machado da Luz, que me contou tantas histórias, por exemplo como o Marcello Caetano foi em pessoa à sessão da censura da “Laranja Mecânica” e decretou desde logo a proibição absoluta do filme. Mas a fila não andava muito depressa e nesse dia começava o Ciclo Polanski no Palácio Foz e no primeiro dia era logo o “Faca na Água” ("Knife in the Water"), que nunca tinha visto. Assim, pedi ao Manuel Machado da Luz para me guardar o lugar, fui de metro para os Restauradores, comprei o meu bilhete na abertura da bilheteira e voltei de metro para a Gulbenkian, onde ainda não tinha chegado a minha vez. Alguém faria osso hoje? Acho que sim! A paixão pelo cinema continua…
Dois anos mais tarde, ciclo dos anos 40. Eu e o Manuel João chegámos às seis da manhã e fomos os primeiros. Começámos a jogar às cartas e um polícia veio logo ter connosco. “Passem para cá as cartas”, como se estivéssemos a jogar à batota. Mas só queríamos ter a certeza de arranjar bilhetes para os filmes do Ford, do Hitchcock, do Minnelli… Por essa altura, o Bénard já nos conhecia bem. Mesmo quando havia sessões esgotadas e nós não tínhamos bilhete, lá nos fazia entrar. Eu e o Manuel João fazíamos parte de um grupo cinéfilo, que incluía o Armando Bordalo, o Hernan Christie, o Manuel Cintra Ferreira e o Mário Jorge Torres. Eu fiquei responsável pelo tráfico das “folhas”. Quem não ia a uma sessão sabia que eu lhes arranjava, porque tirava sempre cinco ou seis de cada…
Por esse conhecimento do nosso grupo, a Gulbenkian deu-me, a mim e ao Manuel João, um subsídio para lançar um livro de recolha de listas de melhores filmes e melhores realizadores, algo que nunca tinha sido feito em Portugal. Sem recurso a internet nem mesmo fax, apenas com contactos pessoais e telefónicos, recolhemos 52 listas e editámos, em fevereiro de 1982, o livro “Melhores Filmes, Melhores Cineastas”. Às veze ainda aparece aí nos alfarrabistas…
De hobby a profissão
Costumo dizer que sou tão velhinho que ainda pedi emprego ao Félix Ribeiro, para entrar na Cinemateca. Foi já o Luís de Pina diretor, que em conhecia dos ciclos do São Luiz, outra sala onde se via cinema alternativo – tive por exemplo a honra de conhecer a Marguerite Duras, que me autografou o meu exemplar dos Yeux Vertes dos Cahiers du Cinéma escrito por ela – foi o Luís de Pina, dizia eu, que me levou para a Cinemateca, onde estou há quase 40 anos. Dizia eu, nos dias antes de entrar, que iam ser sete ou oito horas por dia de relação física com o objeto amado…
Três anos depois, liga-me o José de Matos-Cruz, a saber como é que eu estava de tempo. Pensei que era para esse dia. Mas não, era para ir escrever para o semanário O Jornal. Foi ai que tive então a minha primeira experiência profissional de jornalismo de cinema, a escrever sobre os filmes que passavam nas televisões.
O resto já sabem. Já escrevi para dezenas de publicações, dirigi algumas, fui a imensos festivais, fui júri por esse mundo fora, entrevistei mais de quatro mil pessoas, escrevi sobre milhares e milhares de filmes, dei aulas de história de cinema e história de cinema português, escrevi livros. Durante muito tempo dizia que fazia tudo no cinema, menos fazer filmes. Agora, dou comigo a produzir filmes, a levá-los a festivais, a receber prémios, a exibi-los em televisões. Mas, como digo sempre, filmes podem ser vistos em qualquer altura, o mais importante são as amizades que se fizeram ao longo destes anos todos. Se não fosse assim, não estava aqui a aborrecê-los com a história da minha vida cinéfila. Espero que a leitura seja minimamente inspiradora.
*Texto da autoria de João Antunes, cinéfilo, trabalhador do cinema, jornalista nas horas vagas.