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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Riccardo Scamarcio: "Caravaggio poderia ser definitivamente uma personagem de um filme do Scorsese."

Hugo Gomes, 02.05.24

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Riccardo Scamarcio em L'ombra di Caravaggio (2022)

Ator com um pé em cada geografia: por um lado, na indústria italiana, pequena e familiar, e por outro, nas grandes produções de Hollywood, onde tem ocupado pouco a pouco um espaço mais próximo do holofote, Riccardo Scamarcio é agora Michelangelo Merisi, ou famosamente conhecido somente por Caravaggio, sim, o pintor num dos mais influentes da sua arte como das periferias artísticas. Protagonista deste falso-thriller de investigação e clarificações assinado por um dos realizadores que mais estima - Michele Placido - “L'ombra di Caravaggio” (“A Sombra de Caravaggio”) foge do formato tradicional de cinebiografia e, através da sua narrativa detetivesca, explora os tormentos do artista, de grandes excessos, de grande infernos e de maiores ativismos.

O filme estreia em Portugal, após uma antestreia na Festa do Cinema Italiano com a presença do próprio Riccardo Scamarcio, mas antes dirigiu-se aos jornalistas para uma breve conversa. O Cinematograficamente Falando... conversou com o ator, produtor e argumentista sobre Caravaggio, o cancelamento artístico, a liberdade sob a sua perspectiva e os seus próximos passos, talvez até a possibilidade de assumir a cadeira de realizador.

Como chegou a este papel?

Basicamente, já tinha trabalhado com o realizador, Michele Placido, o qual conhecemo-nos muito bem. Anteriormente, fizemos dois filmes juntos, o “Romanzo Criminale” (2005) e “Il Grande Sogno” (2009), desde então sabia que ele tinha a ambição de levar para o ecrã uma história sobre a vida do pintor Caravaggio. Durante uma chamada telefónica, confessou-me que achava que este era o momento certo para avançar com tal filme, porque o mundo está a caminhar para uma criminalização dos artistas. Quero sublinhar que, por vezes, isso acontece por boas razões, sem desvalorizar a importância de certos movimentos, no entanto, também testemunhamos uma abordagem mais inquisitorial em relação aos artistas de forma geral. Há algo sobre artistas, os seus privilégios e o que eles representam, que nos faz questionar o que realmente estamos a fazer. Este é o meu ponto de vista pessoal e acho que Caravaggio é um ótimo exemplo para refrescar a nossa mente sobre o que poderá acontecer se não tivermos cuidado. Definitivamente, não queremos que um artista seja silenciado pelo Poder apenas por estar a dizer coisas que vão contra o que o Poder dominante deseja.

Normalmente o caso Caravaggio é um dos exemplos usados para defender, ou criticar a “cultura do cancelamento” nos dias de hoje. É constantemente mencionado esse episódio do homicídio e a feroz perseguição para o silenciar.

O objetivo principal por trás da criminalização de Caravaggio foi uma desculpa para “calá-lo” por causa das suas ideias controversas. Vamos considerar a época em que ele viveu e produziu sua arte, nos anos 1500, o período em que o filme se baseia. Nessa época, não havia cinema, fotografia, música, rádio, televisão, nem informação como a conhecemos hoje. A única forma de produzir imagens e comunicar ideias era através da pintura, o que a tornava uma arte muito importante. A Igreja e o Vaticano detinham grande poder e influência, controlando não apenas o discurso religioso, mas também o imaginário das pessoas. Era comum usar pinturas para transmitir conceitos como a imagem de Jesus, o Paraíso, o Diabo, o Mal.

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Michele Placido, Louis Garrel e Riccardo Scamarcio em L'ombra di Caravaggio (2022) / Foto.: Luisa Carcavale

Caravaggio inovou ao pintar figuras religiosas usando pessoas simples, pobres, para interpretar santos como São Pedro ou Santo Agostinho, e isso para a Igreja foi uma afronta, uma ameaça ao seu controlo ideológico. Se olharmos para as pinturas de Caravaggio, notamos que ele sempre começa com uma tela preta, onde então pinta e coloca suas personagens, usando a escuridão para direcionar a luz de uma forma única. Além disso, retratou santos com rostos de pessoas comuns, como prostitutas e mendigos. A Virgem Maria, por exemplo, foi representada por Lena Antonietti [no filme interpretada por Micaela Ramazzotti], uma prostituta. Era algo completamente blasfemo para a Igreja, mas, ao mesmo tempo, eles não podiam calá-lo completamente porque reconheciam seu inegável talento.

Eu tive a oportunidade de ver um Caravaggio de perto, a uma distância como a que estamos agora [Riccardo Scamarcio aponta para uma parede da sala]. É indescritível a beleza e o talento desse homem. É incrível! Mesmo com todas as controvérsias, o poder da sua arte fala por si, tendo a capacidade de desafiar e inspirar ao mesmo tempo.

Posso imaginar essa grandeza, até porque Caravaggio é dos artistas mais influentes na arte contemporânea, como também no cinema, digamos. 

Ah, sim, ele teve uma grande influência no cinema contemporâneo e em outros pintores. E sabes, foi só recentemente, entre 1925 e 1930, não me lembro bem dos anos, mas foi por volta dessa altura, que começaram, finalmente, a atribuir aquelas pinturas a Caravaggio. Até então, ninguém associava essas obras ao pintor, era como se ele não existisse. A Igreja tentou apagá-lo por completo. Durante séculos, foi como se Caravaggio não tivesse deixado rasto. Mas depois houve uma mudança de atitude, e começaram a reconhecer: "Ok, sim, isto é de Caravaggio, isto também, e aquela pintura, 'La Decollazione di San Giovanni Battista', é definitivamente dele."

Pergunto, visto que pouco ou nada sabemos da personalidade de Caravaggio sem ser as suas pinturas, como compões um personagem histórico desta dimensão?

Bem, fui inspirado por Elvis Presley de uma maneira que me fez pensar: este homem é rock and roll. Quero dizer, ele é uma estrela do rock, mas com um coração sensível e muito emotivo. É como uma explosão de energia, e esta é a minha impressão dele. 

Falando sobre Caravaggio, vemos algo semelhante. Não é fácil, como se pode ver nos filmes, criar essas pinturas enormes. As telas têm cerca de três metros por dois, enormes mesmo. Ele trabalhava com cenógrafos, pessoas, ferramentas, móveis, recriando cenas para depois pintá-las. Havia muito trabalho envolvido, quase como uma produção cinematográfica. Para conseguir fazer isso, era preciso muita energia, e ele parecia estar cheio dela, e sabemos por relatos que realmente era uma pessoa muito energética. É um trabalho cansativo e intenso. Mas, ao mesmo tempo, Caravaggio queria viver uma vida exuberante.

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La Decollazione di San Giovanni Battista

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Isabelle Huppert e Riccardo Scamarcio em L'ombra di Caravaggio (2022) 

Devemos lembrar que Roma, naquela época, era o centro do mundo artístico, principalmente porque a Igreja Católica estava lá e financiava muitos artistas. Além de Roma, outras cidades italianas, como Florença e Veneza, também eram importantes pólos de arte. A Itália era realmente o epicentro da arte naquela época.

Cada pincelada de Caravaggio é político, portanto, como seria o pintor se vivesse nos dias de hoje? Imagina que continuaria político e controverso, ou apenas conformado?

Bem, podemos imaginar. Acho que os poderes teriam tentado silenciá-lo novamente. Não estamos tão distantes desse período e daqueles momentos. Todos dizem: "Sim, mas podes dizer o que quiseres." Sim, é verdade. Todos podem dizer. Posso dizer o que quiser. Mas, espera um segundo. Não é porque podemos dizer o que quisermos que não haja limites.

Mesmo que todos possam dizer o que quiserem, a realidade é diferente. Não é bem assim. É como se o sistema tivesse se tornado tão democrático que virou uma selva. Parece que todos podem dizer o que quiserem, mas, ao mesmo tempo, essa falsa sensação de liberdade, alimentada por ferramentas como telemóveis e redes sociais, não é tão livre quanto parece. É tudo um teatro. Eu nem tenho isso. Nunca tive. É como se existisse um fascismo tecnocrático. Vês o que quero dizer? Estamos a regredir em termos de liberdade. Estamos a viver num momento em que não há uma abordagem pedagógica para ensinar aos jovens o que é liberdade de verdade. Liberdade é empatia, sensibilidade, humanidade. Sabemos que não estamos a viver numa... Estamos a passar por uma fase muito desumana. Tudo está a caminhar na direção oposta ao que deveria ser.

Referiu numa entrevista que Martin Scorsese é o seu realizador preferido, presumo que tenha o desejo de vir a trabalhar com ele?

Sim, obviamente. É um dos meus preferidos. 

Em certa maneira existem dois tipos de personagens scorseseanos, os oriundos dos filmes de gangsters, personagens corrompidas pelo excesso e que ao mesmo tempo tentam prevalecer os seus ideais e morais, e do outro lado, personagens comprometidas à religião, direta ou indiretamente, que resistem para preservar a sua fé em momentos conflituosos. Isto, para lhe perguntar, se viria Caravaggio como uma personagem scorseseana? Porque no filme parece possuir essas propriedades.

Ah, com certeza! Scorsese frequentemente trabalha com dois elementos que são recorrentes nos seus filmes: fé e crime. Ele explora o mundo criminal e os criminosos porque eles vivem no limite. Estão sempre num estado de constante perigo e caos, enfrentando a morte de perto. É esse tipo de tensão que ele procura nas suas histórias. Esta dinâmica, estas personagens que precisam lutar para sobreviver, é algo que o cinema valoriza bastante.

Além disso, Scorsese é nostálgico, tem um toque melancólico no final dos seus filmes, onde deparamos com seres humanos insatisfeitos, que tentam crescer e lutam por uma vida melhor. Por vezes conseguem, outras vezes nem por isso. Compreendes o que quero dizer? Mas isso é uma natureza muito italiana, tenho de admitir, esta vida louca com um toque nostálgico. E ele é um grande cineasta. Acho que Caravaggio poderia ser definitivamente uma personagem de um filme do Scorsese.

Como em Portugal tenho a sensação que o cinema italiano é hoje um círculo muito pequeno e fechado …

Sim, realmente!

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Riccardo Scamarcio em "Race to Glory" (Stefano Mordini, 2024)

Faço esta comparação para destacar a sua expansão para outros campos. Por um lado, foste o vilão em "John Wick 2" e, além disso, trabalhaste num filme dirigido por Kenneth Branagh, ou seja, aos poucos estás a tornar-te uma presença cada vez mais constante no cinema norte-americano...

… terminei um filme com Johnny Depp e Al Pacino, o qual também produzem, “Modigliani”. Um filme sobre a vida do pintor Amedeo Modigliani, e eu o interpreto.

Sim, e além disso, também produz alguns dos seus próprios filmes. No caso do "Race For Glory" [que estreia brevemente em Portugal], além de seres o produtor, também és o autor do argumento. Gostaria de saber mais sobre o processo de produção desse filme. E, por último, podemos esperar ver o Ricardo Scamarcio como realizador no futuro?

Deixa-me começar pela última pergunta. Tenho um projeto como realizador, mas ainda não decidi se quero mesmo realizá-lo. Ser realizador é um trabalho totalmente diferente, devo dizer, tenho estado a produzir filmes desde 2012, já lá vão mais de 12 anos como produtor. Aprendi bastante neste tempo, e agora sei como gerir uma produção com confiança. Já produzi mais de 13 filmes talvez. E, claro, sou basicamente um ator. Então, a questão é: será que quero ser realizador também? Tenho um projeto em mente, talvez um dia me sinta pronto para dar esse passo. Mas, por enquanto, ser produtor e ator já é trabalho suficiente para mim.

Além disso, ser produtor dá-te um certo poder editorial, se tenho um projeto que quero concretizar, posso encontrar um realizador, juntar todas as peças necessárias, e pronto, estamos no caminho. O "Race For Glory" é um grande projeto para mim porque tem um custo de produção superior a oito milhões de euros. Sim, é um filme incrível e muito específico, centrado no mundo dos ralis, tem sequências filmadas em Portugal porque, claro, o vosso país tem uma etapa importante no Campeonato do Mundo de Rali.

A história decorre em 1983, e aborda o grande desafio entre os italianos da Lancia e os alemães da Audi. Acho que este filme vai ser um sucesso.

Falando com Ira Sachs, um americano em Sintra que decidiu 'fazer' um filme

Hugo Gomes, 12.12.19

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Ira Sachs

Frankie”, uma coprodução francesa/portuguesa, foi o nosso representante na Competição de Cannes. É uma declaração de amor de Ira Sachs à região de Sintra, um filme turístico que aproveita a sua essência para gerar um trabalho sob um constante olhar estrangeiro.

Mas nada se perde aqui, para além da habitual linguagem nova-iorquina e citadina do realizador. Sintra, por seu lado, mantém a sua beleza, a sua natureza e o peculiar misticismo que contagia personagens passageiras lideradas por Isabelle Huppert, Brendan Gleeson, Greg Kinnear, Jérémie Renier, Marisa Tomei e o português Carloto Cotta.

Até mesmo na sua abordagem, “Frankie” é “estrangeirado”; um americano que se aproxima à memória europeia, às réstias “rohmerianas” que compõem as férias de uma família privilegiada que encontra nesta serra a catarse para os seus assuntos pendentes, deixados na outra costa.

Sachs encontrou-se connosco no terraço da Unifrance, a poucos metros do Palais du Festival de Cannes, para falar sobre o filme, ainda fresco, recorrendo às suas memórias e à sua posição cinematográfica. Expressou a sua admiração por Huppert que, segundo o próprio, a par de Catherine Deneuve, é uma relíquia do cinema francês sem igual.

As romarias de um dos mais interessantes realizadores independentes norte-americanos em terras lusas e um elenco internacional de fazer inveja, “Frankie” é o seu mais arriscado desafio.

Porquê a escolha de Sintra para as filmagens?

Estava a viver em Portugal com a minha família já há uns 4 meses e meio e, durante muito tempo, pensei em fazer um filme sobre uma família. O meu co-argumentista, Maurício Zacharias, brasileiro com “costela de português”, conhecia aqueles lados [Sintra]. Tudo isto acabou por desencadear uma memória minha. Estive de férias naquela zona quando tinha 14 anos, em 1979; com a minha mãe e as minhas duas irmãs. Lembro-me de ter um diário e todos aqueles elementos que caracterizam uma adolescência, ou seja, luxos. Eu e o Maurício permanecemos lá durante 10 dias e começamos a conhecer os cantos. Com essa viagem formou-se uma história que se enquadraria com aqueles cenários e as “coisas” que por lá vi.

Quanto a esta sua colaboração com Isabelle Huppert? Como a convenceu a entrar no seu filme? [risos]

Sempre a admirei e desejei desde sempre trabalhar com ela. A Isabelle Huppert é única, ela tem um tipo de desempenho que me interessava submeter aos meus filmes. Diria mesmo que é um tipo de desempenho europeu. Muito europeia, ela é. Já trabalhei com atores dinamarqueses, russos e até mesmo latino-americanos. Por norma, prefiro trabalhar com atores não-americanos, por diversas razões.

No caso da Isabelle, ela abordou-me depois de ter concluído “Love is Strange” e desde então falamos ao ponto de conhecê-la melhor e, por fim, decidimos trabalhar juntos. Tinha esta ideia de um filme sobre uma família em férias, possivelmente inspirado na obra de Satyajit Ray, “Kanchenjungha”, sobre uma família que passa férias nos Himalaias. Queria replicar esse efeito e, sobretudo, a sua estrutura narrativa, visto a intriga decorrer em apenas um dia. Era esse o meu maior motivo para trabalhar com a Isabelle. Nunca faria um filme com ela em França, não tenho as ferramentas necessárias para isso. Mas a Isabelle é uma espécie de espaço à parte, e isso funcionou comigo.

Nunca filmaria Huppert em França? Sente-se intimidado?

Não é uma questão de ficar intimidado, é uma questão de intimidade, é o que falta na minha relação com França. O que acontece em comparação com Portugal é que me sinto capaz de contar uma história aí. Obviamente que teria que ser sobre uma família estrangeira de férias, porque nunca iria fazer um filme em Portugal sobre a cultura portuguesa. Não teria essa capacidade.

Em “Frankie”, o filme, não conseguimos diferenciar a personagem da atriz. Em certo ponto, há quase uma requisição do seu alter-ego, da imagem que temos dela na indústria.

Sim, julgo que da maneira que o filme está concebido, desde a sua abordagem até à mise-en-scène, o espectador está sempre ciente da personagem e do ator. E não é apenas o caso de Isabelle. Existe todo um trabalho de set e uma relação com a natureza que nos faz querer olhar para estas personagens / alter-egos.

Acima de tudo, os cortes não são devido aos ênfases, mas porque simplesmente as personagens movem-se por entre os espaços. Com isso digo que os atores apenas interpretam e essas personagens são algo nuas, de certa forma pouco trabalhadas porque estão presas à imagem que temos destes profissionais. É um ato muito europeu, próprio do que se fazia nos anos 70, que reflete sobre essas relações. É como, por exemplo, os filmes do Fassbinder: temos Maria Braun e Hanna Schygulla ao mesmo tempo, são a mesma figura diluída. Penso que este filme é sobre os prazeres da vida. Aliás, sobre a vida acima da morte. Sobre a beleza. Para mim, uma das belezas deste Mundo é a sua beleza teatral.

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Frankie (2019)

“Frankie”, mesmo apresentando os seus conflitos, é quase um filme rodeado de positivismo.

Não diria positivo, porque existem ainda conflitos nesta família. Os subenredos que utilizo, que são três principais: a ligação pai/filho, marido/mulher e as duas amigas que vêm desvendar uma espécie de “women buddies movie” levam-me a uma espécie de cruzamento de géneros. Todos aqueles enredos são guiados por teores diferentes uns dos outros, e isso agrada-me. Não gosto de me restringir-me a um só género, penso que o Cinema é mais que isso, assim como a Vida. Tem um pouco de tragédia, como um pouco de comédia. Cada um tem a sua história e a sua experiência, e o facto de ser um filme de elenco é a representação de como encaro a Vida actualmente.

E a constante referência a “Star Wars” no filme? Provocação ou desejo?

Diga-me outro filme que seja mais identificável que “Star Wars”? Para a indústria é quase o pico, uma espécie de credibilidade reconhecida em Hollywood. É algo que estamos cientes, em qualquer lado e em qualquer momento poderá ser gravado um novo filme de “Star Wars”. Por isso, em termos simbólicos, é que citei esses filmes. Tentei criar um contraste de alguém inserido no universo arthouse, o criativo artístico cinematográfico que se vê na conceção de um filme desta franquia. É um conflito interno de reafirmação na indústria. Foi um elemento que joguei como cómico, um deleite.

Se lhe fosse proposto realizar um filme “Star Wars” ou outro de uma grande saga, aceitaria?

Não aceitaria … quer dizer, eles estariam a cometer um erro [risos]. Uns dos clientes do meu agente, realizadores independentes de Sundance, trabalharam para um daqueles filmes de super-heróis. Aquele com a Brie Larson?

“Captain Marvel”?

Isso. Mas eles são ainda novos [Anna Boden e Ryan Fleck]. Eu, por outro lado, tenho 53 anos e preciso do meu “final cut“. Por isso, não. Não faria um filme desses. Não a esta altura da minha vida. Prefiro fazer filmes a 4 mil dólares.

Não é só “Star Wars” que é mencionado, Nova Iorque é constantemente invocada por estas personagens e há pouco referia “morrer em Nova Iorque”. A “Big Apple” não o abandona, nem mesmo nos seus filmes?

O que Nova Iorque tem de mais maravilhoso é que já não é mais maravilhoso. Encontra-se marginalizada e igualmente globalizada. Enfrenta imensos problemas que hoje em dia várias cidades também enfrentam e visualmente já não possui o brilho de outrora. Já não nos agarra. Só que as pessoas continuam maravilhosas como sempre foram, desde que me mudei para lá em ’84. É uma cidade sonhadora, porque as pessoas instalaram-se pelos seus respetivos sonhos. Por isso é que neste filme, Nova Iorque é apresentada como uma fantasia, uma utopia.

Gostaria que me falasse daquele plano final. A forma como conseguiu captar o misticismo daquele lugar. Queria deixar uma nota à fotografia de Rui Poças…

Eu não sou uma pessoa ligada à mística, mas consigo experienciar o espanto, aquilo que denomino de “OH”. A vida é um “OH”, como também associo à escala, grandiosidade e ao mesmo tempo modéstia, e um lugar como Sintra. Aliás, aquele local do final inspira o meu senso de exposição. Sinto-me nu perante aquilo. Foi como se estivesse em Nova Iorque, a morrer à velocidade de um piscar de olhos. O “OH” é como se fosse um Deus para mim, que me faz reconhecer a minha falta de importância.

E como conseguiu “coreografar” aquele momento?

Tínhamos um batedor que nos garantiu acesso aos mais remotos e belos locais da região. Por vezes é na rotina desses mesmos sítios que nos apercebemos o quanto podem e devem ser filmados. E eu estava à procura de uma localização final. Possivelmente, estive nesse local mais de 15 a 20 vezes. Porém, foi no dia em que filmamos a cena final que ele recomendou que esperássemos para experienciar aquele efeito. Coisa de 20 minutos, para que o Sol interagisse com a água e o resto é aquilo que se vê no ecrã. Foi algo aparentemente mágico, para ali, naquele exato local. Era mais que o normal, mais um dia.

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Frankie (2019)

Por acaso, não falava da manifestação natural em si ou da sua grandiosidade. Referiam-me à posição e movimento dos atores, que pareciam sincronizados com aquele pôr-do-sol.

Sim, mas foi tudo repentino, apenas experienciado no momento. Filmamos e esperamos que o Sol descesse e o resto foi saindo à medida que o pôr-do-sol concretizasse. Comecei a minha carreira como encenador de teatro e naquele momento bloqueia-me quanto à direção dos atores; como iria colocá-los, como se movimentarem, quem e onde. Foi então que tudo começou a fazer sentido para mim; aquelas figuras encontraram os seus destinos, e moveram-se à luz do Sol como se fossem uma animação. Tinha em mente as suas silhuetas, as sombras, nada mais. Poderiam ser bonecos ao invés de pessoas de carne e osso, poderiam ser, sei lá, o Rato Mickey. O que aconteceu foi que de um momento para o outro imaginei os movimentos de cada um e executei a cena. Assim, nasceu aquela cena.

Diga-me qual foi o momento que o motivou a seguir o Cinema?

Bem, diria que foi o divórcio dos meus pais. Naquela altura, nos anos 70, era comum o pai levar a criança ao cinema como forma de preencher o tempo perdido. Desde cedo criou-me uma intimidade com a Sétima Arte, até mesmo quando me mudei para Paris ia constantemente ao cinema ver filmes franceses, alguns deles sem legendas em inglês. Lembro dos Truffauts que vi, no “Sem Eira Nem Beira” (“Sans toit ni loi”) da Varda.

Falava há bocado do “final cut” e dessa liberdade. Como um realizador bem ativo, como resiste para preservar essa emancipação e a mesma prolificidade?

Foi difícil manter o ritmo, mas tudo se facilitou a partir de “Keep the Lights On”. Ou seja, tinha um projeto antes, em 2009, para o qual não consegui financiamento, nem mesmo na indústria independente, e como tal comecei a imaginar formas independentes de conseguir financiar os meus filmes. Comecei a angariar o meu próprio dinheiro, não havia produtor algum que fizesse isso por mim. Atualmente, afirmo que sou uma espécie de Cassavetes ou Shirley Clarke quanto aos métodos de produção independente em relação à economia tradicional.

E está a funcionar esse método?

Sim, de momento está a funcionar.

Pensa voltar ao teatro?

Não penso fazer mais teatro, porém, ando com uma ideia e quero avançar num musical do “Love is Strange”. Atenção, quero lançar a ideia, mas não  me quero comprometer a ser o encenador ou o guionista.

Espera uma produção digna da Broadway? [risos]

Quem sabe. Poderia ser um musical integral dirigido pelo mesmo encenador de “Rent”. Já estou a imaginar. [risos]

Turismo em Sintra!

Hugo Gomes, 08.12.19

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Soou a um caso mal amparado quando se soube que Ira Sachs, realizador nascido e criado em Memphis e um terno habitante e devorador da cultura nova-iorquina, iria filmar na zona de Sintra a sua sétima longa-metragem com um elenco internacional, encabeçado por Isabelle Huppert. Automaticamente, a ideia de um cartão de visita ao tão cinematográfico concelho surgia nas nossas memórias, porém, e não querendo fugir do típico percurso postal, “Frankie” é um filme duplamente íntimo vindo de um cineasta independente cada vez mais respeitado nos mais diversos nichos. E o primeiro foco de intimismo localiza-se em Sintra como um canto de recordações e emoções há muito não vividas (Sachs confidenciou-nos essa ligação em Cannes). Poderia ser qualquer lugar, mas não, o realizador encontrou o seu retiro espiritual e o contacto direto com a saudade, funcionando numa espécie de revisitação daqueles lugares alicerçados numa aura proustiana.

Em relação ao segundo, a intimidade para com as personagens, todas estrangeiras e deslocadas do seu habitat natural para serem posicionadas num satírico xadrez de relações, afetos e afinidades. Contudo, é a distância com que o espectador as encara que confirma o gesto de proteção por parte de um realizador tão delicado com a sensibilidade das personagens do seu universo (olhe-se para as suas obras anteriores, como “Love is Strange – O Amor é uma Coisa Estranha” ou “Little Men). Assim, é neste nosso olhar de longe que deparamos que todas estas figuras são incapazes de emancipar-se do respetivo ator, sem nunca ceder aos tons biográficos de cada um, mas sim à imagem vendida e comercializada no circuito cinematográfico. Esse carinho para os protagonistas do legado e devoção de Ira Sachs à sua micro-indústria e ao seu cinema mais próximo é quase como se fosse um método de preservação em etanol.

Em certo jeito, “Frankie” é uma obra pessoal estampada como uma peregrinação a uma adolescência perdida e, ao mesmo tempo, uma aventura do cineasta em assumir o espírito europeu, as romarias rohmerianas, um risco em replicar uma utopia estilística e provar uma certa versatilidade. O resultado pode ser uma derivação desses atos cinematográficos, o simplismo como forma e a invocação de um naturalismo estagnado e perversamente calculado, assim como aquela bela sequência final, uma das mais fortes vistas este ano: uma dança de abraços vivo com a morte perante a omnipresente beleza natural, a única certeza para o conceito de eternidade.

Ira Sachs fala aqui de despedidas, redescobertas, carícias prometidas e ainda arranja espaço para troçar da indústria que evita integrar, usando como refém o estandarte do capitalismo cinematográfico [“Star Wars”], tudo num filme pleno, seguro e sobretudo económico com os gestos. E tudo isto, em Sintra!

O meu Cinema é feito de Mulheres!

Hugo Gomes, 09.03.19

Não é só o dia 8 de Março que as mulheres devem celebradas, aliás, o dia da Mulher deve ser, sobretudo, normalizado. Todos os dias são dias de mulheres, e todas as mulheres fazem parte dos nossos dias. Como tal, eis o meu contributo, as mulheres especiais que integram o meu Cinema … digo por passagem, que são somente algumas.

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A tentação chamada Eva

Hugo Gomes, 13.06.18

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Se é bem verdade que a Benoît Jacquot atribuímos a força das suas propostas acima do resultado, que revela-se na maior parte das vezes passivo, para “Eva” implicaria uma maior agressividade, o que acaba por nunca acontecer, visto que o propósito deste conto de luxúria e fantasias de farsante é o fascínio.

E de onde vem esse fascínio? Na atriz, Isabelle Huppert, transformada numa persona acorrentada aos maneirismos reconhecidos da sua longa carreira, a mulher que o Cinema sonha e neste caso a fantasia sexual de qualquer homem empenhado. Da mesma forma que a personagem de Gaspard Ulliel absorve desta sua convivência com Huppert, a Eva do título para ser mais preciso (uma musa para a sua criação dramaturga somente planeada e projetada por vias de uma emotividade composta pelo tabu), Benoît Jacquot manipula o espectador a sentir a fenomenologia neste meta-enredo. Aliás, todos nós somos deslumbrados pela sua figura, até mesmo quando Huppert se torna somente Huppert, a mulher acima de qualquer homem.

Nesse sentido, o filme inteira-se nessa mesma “proeza” e o realizador revela-se esforçado em atribuir a todas estes “crimes e escapadelas” uma natureza psicológica, algures entre o desejo e a obsessão, eficazmente cedendo à falsa perspetiva masculina (nota-se aqui palco para a dominância "hupperteana"). Mas “Eva” [o filme] tende a ceder nas ideias esgotadas, assim encara o realizador perante o seu material, perdendo numa corrida contra ao tempo para o desfecho idealizado. Evidencia-se um desleixo técnico e narrativo nas proximidades do terceiro ato - deixando-se levar pela força do terceiro grau (o equivalente teatral) - o loop que nos guia à queda do protagonista em distorcido reflexo para com as primeiras cenas, a intro forçada no pecado do disfarce.

Desaproveitar-se o potencial da intriga, deixa-se à mercê o potencial da atriz Julia Roy (que trabalhou com maior afinco com Jacquot no anterior “À Jamais”) e desconeta-se a potência do desejo proposto. Assim, regressando ao primeiro ponto de partida, como manda a lei do terceiro grau, a proposta é sempre mais interessante que o todo. No final, caímos no universo teatral em jeito Almeida Garrett: “Quem é? Ninguém!

Que bela educação!

Hugo Gomes, 08.03.18

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Até que ponto Marvin não será uma mera raiz quadrada da temática coming-to-age queer, na qual somos presenteados com a panóplia possível, desde o bullying até a famílias disfuncionais (e caindo no português “correto”, bestas), alcançado a sua autodescoberta e por fim a libertação, espiritual e sexual. Inspirado na obra autobiográfica Acabar com Eddy Bellegueule (“En finir avec Eddy Bellegueule”), escrita por Édouard Louis, este novo trabalho de Anne Fontaine (“Adore”, “Coco Avant Chanel” e “Les Innocentes) ostenta, em similaridade com o seu protagonista, uma atitude de introspeção dos valores, vasculhando um filme sólido nestas tendências fragmentadas.

É como, novamente caindo em alusões, a sequência em que Marvin, a personagem-título interpretada por Finnegan Oldfield, após ter conquistado o seu “holofote”, revisita o seu pai que poucas memórias e afeto lhe trouxeram. A caminho deste reencontro, o protagonista traz consigo o livro da sua autoria e ao preparar-se para escrever uma dedicatória sincera e cheia de compaixão, este hesita, pois as palavras não correspondem aos seus sentimentos. A hipocrisia, a capa que o cobriu anos a fio, impedindo-o de descobrir o seu verdadeiro “eu”, não mora mais neste agora ser convicto.

Ao invés do livro autografado e dedicado, a desculpa foi uma mentira “deixei o livro no comboio”, de forma a evitar, duas uma, a dita falsidade nada correspondente às suas vivências, ou o confronto necessário dessa verdade sentida. São essas palavras não ditas, escritas ou expressadas que este "Marvin" [filme] vive, por entre rasgos, ocultações e sobretudo o esforço de evitar a narrativa linear, elementos que o constroi como uma obra de frases soltas, incoerente nos seus valores e indisposto em transgredir as fronteiras da já revista fórmula.

O projeto bem poderia desabar se não fossem dois pilares que tentam a todo o custo erguê-lo, como Atlas da mitologia que nem sob o cansaço do Mundo cede. Essas duas forças são Vincent Macaigne, que proclama uma melodia de paixões na libertação do ser, e discursa a certo ponto as ditas diferenças étnicas e sexuais, ambas colidindo com a discriminação. E Isabelle Huppert, a co-protagonizar o momento-chave, inerente e identitário desta obra.

O “teatro filmado” a converter-se no resumo existencialista de um filme que não conseguiu superar as suas estabelecidas barreiras.

Óscars: "La La Land" perdeu-se no luar?

Hugo Gomes, 27.02.17

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City of Stars ecoa como um hino de derrota, uma triste melodia que protagonizou um dos (se não o) momento mais caricato da cerimónia e da História dos Óscares. Segundo consta, o erro esteve num envelope equivocado, um erro descoberto tarde demais, no preciso momento em que a equipa do musical discursava os seus agradecimentos. O prémio máximo acabaria por ser entregue a “Moonlight”, a resposta mais marginal às luzes e sons de “La La Land”. Durante alguns segundos, o musical mais amado/odiado da atualidade converteu-se num filme de compaixão, até porque se livrou da maldição do Óscar, e essa mesmo abateu-se na obra de Barry Jenkins. Só o tempo dirá o que esta “valorização” vai significar.

Como sabem, as estatuetas douradas não são  mais que meras representações de consenso oriundo de votantes, que, sabe-se lá de onde, adoram sentir-se humilhados com as declarações anónimas para a The Hollywood Reporter. Ao ver essas publicações, percebemos que de consciência crítica, esse grupo raramente o possui. É tudo uma questão de gosto, e até que ponto os separa do mais mundano espectador? Aliás, filmes como “Hacksaw Ridge” nunca teriam lugar numa lista composta pelos supostos “melhores do ano” … Reformulando, nenhum daqueles nomeados merecia tais títulos, mas isso é outra conversa.

Se o final foi inesperado, até mesmo para quem contava com a vitória de "Moonlight" nesta noite de “cartadas políticas” e de pouco cinema, o resto da cerimónia foi de puro tédio. Para além da previsibilidade, ainda tivemos que contar com a perpetuação de um certo conformismo, e destaco, obviamente,  dois Óscares em particular. O primeiro, o de Melhor Animação, onde numa lista composta por três formidáveis exemplares, longe dos grandes estúdios, a Academia se vergou perante a trivialidade de “Zootopia”. Parece que a Disney continua a possuir o seu peso nas decisões dos votantes. Já o segundo, foi o desperdiçar de uma oportunidade de fazer certo, o de entregar o prémio a Isabelle Huppert pelo seu desempenho em “Elle”, aquele “murro no estômago” de Paul Verhoeven. Nesta decisão foi o “sangue novo” que persistiu, como sempre, e Emma Stone conseguiu erguer o troféu com graça. Porém, a tristeza sentiu-se do outro lado.

Resumindo a noite, “Moonlight” ganhou … ganhou, mas a sua vitória saiu ridicularizada, e triste. Será que alguém se lembrará do filme sem o associar a este “estranho” episódio? E até que ponto a sua vitória, não foi a vitória do politicamente correto? De momento, iremos deixar o ódio, muitas vezes, irracional que “La La Land” parece ter tecido antes dos Óscares, e esperar qual destes filmes terá o “privilégio” de ser relembrado como “aquele que definitivamente merecia a estatueta“.

Cinquenta Sombras de Verhoeven

Hugo Gomes, 14.11.16

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Paul Verhoeven dirige Isabelle Huppert em "Elle" (2006)

Isabelle Huppert é mais que uma atriz num imenso papel, é a representação do desejo inconcebível no cinema, seja da ingenuidade testada em “Amateur” (Hal Hartley, 1994), passando pelo fetichismo sádico de “The Piano Teacher” (Michael Haneke, 2001) até chegar a este "atentado" ao mundo embalado no politicamente correto que é “Elle” (2016).

Antes de avançarmos para o universo sexualizado e masoquista de “Elle”, devemos focar-nos no homem que o orquestra, o holandês Paul Verhoeven. Um antigo antagonista do bem sagrado que “emigrou” para a indústria norte-americana para nos dar como presente as suas “delícias turcas”: foi a violência capitalizada pelas corporações em “RoboCop” (1987); o militarismo autoritário de “Starship Troopers” (1997); a sátira mais ou menos incompreendida da indústria do desejo em “Showgirls” (1995); e, por fim, possivelmente o seu maior êxito em terras "yankees", “Basic Instinct” (1992), carregando desejo e perversidade à imagem da "femme fatale".

Nesse período, o cineasta foi um herói desprezado, automaticamente catalogado por conotações misóginas e de claro fetichismo gráfico e explícito. Mas uma considerável reavaliação e lenta progressão do seu estado de graça aconteceu com a fuga de Hollywood e das suas limitações após uma das suas piores obras (“Hollow Man”, uma versão de análise à perversidade ao mito do Homem-Invisível). Após o curioso sucesso de "Black Book" (2006), Verhoeven afastou-se dez anos e quando regressou, aventurou-se em territórios negros cada vez mais proibidos ao género masculino: a fantasia sexual da mulher. Afastando-se do "mainstream" deslavado de um “Fifty Shades of Grey'', por exemplo, “Elle” inicia-se através de um "Cavalo de Tróia", um isco às nossas consciências, que é a violação.

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A partir daqui, regressamos automaticamente ao dispositivo de vingança no cinema em voga na década de 70 e da sua falsa imposição de mulher forte, mas Michèle, a personagem de Huppert, é a vítima de uma monstruosidade sem saber que foram abertos alçapões tenebrosos da sua inconsciência: o sexo, cada vez mais monótono para esta cinquentona socialmente dominante, é injetado com uma frescura mórbida e a traumática experiência é o seu mais negro fetiche.

Apesar de ser uma obra esteticamente limpa de um realizador habituado ao peso da sua agressiva falsidade (basta olhar para “Robocop” ou “Total Recall” para acertarmos no seu tom), em “Elle” surgem os ecos de “Basic Instinct". Isento dos fascínios pelo território sexual entreaberto, é o passo em frente e sucessivamente recuo para servir de mirone à posição da mulher na sociedade. A total emancipação de Michèle deriva da sua importância de abraçar os seus demónios interiorizados, porque uma mulher que persegue as suas próprias e mais íntimas fantasias é como um terror imperceptível para os homens que não acreditam na igualdade de géneros. 

E se acreditarmos realmente nisso, “Elle” é um filme feminista e um ato de provocação.