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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Falando com Ira Sachs, um americano em Sintra que decidiu 'fazer' um filme

Hugo Gomes, 12.12.19

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Ira Sachs

Frankie”, uma coprodução francesa/portuguesa, foi o nosso representante na Competição de Cannes. É uma declaração de amor de Ira Sachs à região de Sintra, um filme turístico que aproveita a sua essência para gerar um trabalho sob um constante olhar estrangeiro.

Mas nada se perde aqui, para além da habitual linguagem nova-iorquina e citadina do realizador. Sintra, por seu lado, mantém a sua beleza, a sua natureza e o peculiar misticismo que contagia personagens passageiras lideradas por Isabelle Huppert, Brendan Gleeson, Greg Kinnear, Jérémie Renier, Marisa Tomei e o português Carloto Cotta.

Até mesmo na sua abordagem, “Frankie” é “estrangeirado”; um americano que se aproxima à memória europeia, às réstias “rohmerianas” que compõem as férias de uma família privilegiada que encontra nesta serra a catarse para os seus assuntos pendentes, deixados na outra costa.

Sachs encontrou-se connosco no terraço da Unifrance, a poucos metros do Palais du Festival de Cannes, para falar sobre o filme, ainda fresco, recorrendo às suas memórias e à sua posição cinematográfica. Expressou a sua admiração por Huppert que, segundo o próprio, a par de Catherine Deneuve, é uma relíquia do cinema francês sem igual.

As romarias de um dos mais interessantes realizadores independentes norte-americanos em terras lusas e um elenco internacional de fazer inveja, “Frankie” é o seu mais arriscado desafio.

Porquê a escolha de Sintra para as filmagens?

Estava a viver em Portugal com a minha família já há uns 4 meses e meio e, durante muito tempo, pensei em fazer um filme sobre uma família. O meu co-argumentista, Maurício Zacharias, brasileiro com “costela de português”, conhecia aqueles lados [Sintra]. Tudo isto acabou por desencadear uma memória minha. Estive de férias naquela zona quando tinha 14 anos, em 1979; com a minha mãe e as minhas duas irmãs. Lembro-me de ter um diário e todos aqueles elementos que caracterizam uma adolescência, ou seja, luxos. Eu e o Maurício permanecemos lá durante 10 dias e começamos a conhecer os cantos. Com essa viagem formou-se uma história que se enquadraria com aqueles cenários e as “coisas” que por lá vi.

Quanto a esta sua colaboração com Isabelle Huppert? Como a convenceu a entrar no seu filme? [risos]

Sempre a admirei e desejei desde sempre trabalhar com ela. A Isabelle Huppert é única, ela tem um tipo de desempenho que me interessava submeter aos meus filmes. Diria mesmo que é um tipo de desempenho europeu. Muito europeia, ela é. Já trabalhei com atores dinamarqueses, russos e até mesmo latino-americanos. Por norma, prefiro trabalhar com atores não-americanos, por diversas razões.

No caso da Isabelle, ela abordou-me depois de ter concluído “Love is Strange” e desde então falamos ao ponto de conhecê-la melhor e, por fim, decidimos trabalhar juntos. Tinha esta ideia de um filme sobre uma família em férias, possivelmente inspirado na obra de Satyajit Ray, “Kanchenjungha”, sobre uma família que passa férias nos Himalaias. Queria replicar esse efeito e, sobretudo, a sua estrutura narrativa, visto a intriga decorrer em apenas um dia. Era esse o meu maior motivo para trabalhar com a Isabelle. Nunca faria um filme com ela em França, não tenho as ferramentas necessárias para isso. Mas a Isabelle é uma espécie de espaço à parte, e isso funcionou comigo.

Nunca filmaria Huppert em França? Sente-se intimidado?

Não é uma questão de ficar intimidado, é uma questão de intimidade, é o que falta na minha relação com França. O que acontece em comparação com Portugal é que me sinto capaz de contar uma história aí. Obviamente que teria que ser sobre uma família estrangeira de férias, porque nunca iria fazer um filme em Portugal sobre a cultura portuguesa. Não teria essa capacidade.

Em “Frankie”, o filme, não conseguimos diferenciar a personagem da atriz. Em certo ponto, há quase uma requisição do seu alter-ego, da imagem que temos dela na indústria.

Sim, julgo que da maneira que o filme está concebido, desde a sua abordagem até à mise-en-scène, o espectador está sempre ciente da personagem e do ator. E não é apenas o caso de Isabelle. Existe todo um trabalho de set e uma relação com a natureza que nos faz querer olhar para estas personagens / alter-egos.

Acima de tudo, os cortes não são devido aos ênfases, mas porque simplesmente as personagens movem-se por entre os espaços. Com isso digo que os atores apenas interpretam e essas personagens são algo nuas, de certa forma pouco trabalhadas porque estão presas à imagem que temos destes profissionais. É um ato muito europeu, próprio do que se fazia nos anos 70, que reflete sobre essas relações. É como, por exemplo, os filmes do Fassbinder: temos Maria Braun e Hanna Schygulla ao mesmo tempo, são a mesma figura diluída. Penso que este filme é sobre os prazeres da vida. Aliás, sobre a vida acima da morte. Sobre a beleza. Para mim, uma das belezas deste Mundo é a sua beleza teatral.

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Frankie (2019)

“Frankie”, mesmo apresentando os seus conflitos, é quase um filme rodeado de positivismo.

Não diria positivo, porque existem ainda conflitos nesta família. Os subenredos que utilizo, que são três principais: a ligação pai/filho, marido/mulher e as duas amigas que vêm desvendar uma espécie de “women buddies movie” levam-me a uma espécie de cruzamento de géneros. Todos aqueles enredos são guiados por teores diferentes uns dos outros, e isso agrada-me. Não gosto de me restringir-me a um só género, penso que o Cinema é mais que isso, assim como a Vida. Tem um pouco de tragédia, como um pouco de comédia. Cada um tem a sua história e a sua experiência, e o facto de ser um filme de elenco é a representação de como encaro a Vida actualmente.

E a constante referência a “Star Wars” no filme? Provocação ou desejo?

Diga-me outro filme que seja mais identificável que “Star Wars”? Para a indústria é quase o pico, uma espécie de credibilidade reconhecida em Hollywood. É algo que estamos cientes, em qualquer lado e em qualquer momento poderá ser gravado um novo filme de “Star Wars”. Por isso, em termos simbólicos, é que citei esses filmes. Tentei criar um contraste de alguém inserido no universo arthouse, o criativo artístico cinematográfico que se vê na conceção de um filme desta franquia. É um conflito interno de reafirmação na indústria. Foi um elemento que joguei como cómico, um deleite.

Se lhe fosse proposto realizar um filme “Star Wars” ou outro de uma grande saga, aceitaria?

Não aceitaria … quer dizer, eles estariam a cometer um erro [risos]. Uns dos clientes do meu agente, realizadores independentes de Sundance, trabalharam para um daqueles filmes de super-heróis. Aquele com a Brie Larson?

“Captain Marvel”?

Isso. Mas eles são ainda novos [Anna Boden e Ryan Fleck]. Eu, por outro lado, tenho 53 anos e preciso do meu “final cut“. Por isso, não. Não faria um filme desses. Não a esta altura da minha vida. Prefiro fazer filmes a 4 mil dólares.

Não é só “Star Wars” que é mencionado, Nova Iorque é constantemente invocada por estas personagens e há pouco referia “morrer em Nova Iorque”. A “Big Apple” não o abandona, nem mesmo nos seus filmes?

O que Nova Iorque tem de mais maravilhoso é que já não é mais maravilhoso. Encontra-se marginalizada e igualmente globalizada. Enfrenta imensos problemas que hoje em dia várias cidades também enfrentam e visualmente já não possui o brilho de outrora. Já não nos agarra. Só que as pessoas continuam maravilhosas como sempre foram, desde que me mudei para lá em ’84. É uma cidade sonhadora, porque as pessoas instalaram-se pelos seus respetivos sonhos. Por isso é que neste filme, Nova Iorque é apresentada como uma fantasia, uma utopia.

Gostaria que me falasse daquele plano final. A forma como conseguiu captar o misticismo daquele lugar. Queria deixar uma nota à fotografia de Rui Poças…

Eu não sou uma pessoa ligada à mística, mas consigo experienciar o espanto, aquilo que denomino de “OH”. A vida é um “OH”, como também associo à escala, grandiosidade e ao mesmo tempo modéstia, e um lugar como Sintra. Aliás, aquele local do final inspira o meu senso de exposição. Sinto-me nu perante aquilo. Foi como se estivesse em Nova Iorque, a morrer à velocidade de um piscar de olhos. O “OH” é como se fosse um Deus para mim, que me faz reconhecer a minha falta de importância.

E como conseguiu “coreografar” aquele momento?

Tínhamos um batedor que nos garantiu acesso aos mais remotos e belos locais da região. Por vezes é na rotina desses mesmos sítios que nos apercebemos o quanto podem e devem ser filmados. E eu estava à procura de uma localização final. Possivelmente, estive nesse local mais de 15 a 20 vezes. Porém, foi no dia em que filmamos a cena final que ele recomendou que esperássemos para experienciar aquele efeito. Coisa de 20 minutos, para que o Sol interagisse com a água e o resto é aquilo que se vê no ecrã. Foi algo aparentemente mágico, para ali, naquele exato local. Era mais que o normal, mais um dia.

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Frankie (2019)

Por acaso, não falava da manifestação natural em si ou da sua grandiosidade. Referiam-me à posição e movimento dos atores, que pareciam sincronizados com aquele pôr-do-sol.

Sim, mas foi tudo repentino, apenas experienciado no momento. Filmamos e esperamos que o Sol descesse e o resto foi saindo à medida que o pôr-do-sol concretizasse. Comecei a minha carreira como encenador de teatro e naquele momento bloqueia-me quanto à direção dos atores; como iria colocá-los, como se movimentarem, quem e onde. Foi então que tudo começou a fazer sentido para mim; aquelas figuras encontraram os seus destinos, e moveram-se à luz do Sol como se fossem uma animação. Tinha em mente as suas silhuetas, as sombras, nada mais. Poderiam ser bonecos ao invés de pessoas de carne e osso, poderiam ser, sei lá, o Rato Mickey. O que aconteceu foi que de um momento para o outro imaginei os movimentos de cada um e executei a cena. Assim, nasceu aquela cena.

Diga-me qual foi o momento que o motivou a seguir o Cinema?

Bem, diria que foi o divórcio dos meus pais. Naquela altura, nos anos 70, era comum o pai levar a criança ao cinema como forma de preencher o tempo perdido. Desde cedo criou-me uma intimidade com a Sétima Arte, até mesmo quando me mudei para Paris ia constantemente ao cinema ver filmes franceses, alguns deles sem legendas em inglês. Lembro dos Truffauts que vi, no “Sem Eira Nem Beira” (“Sans toit ni loi”) da Varda.

Falava há bocado do “final cut” e dessa liberdade. Como um realizador bem ativo, como resiste para preservar essa emancipação e a mesma prolificidade?

Foi difícil manter o ritmo, mas tudo se facilitou a partir de “Keep the Lights On”. Ou seja, tinha um projeto antes, em 2009, para o qual não consegui financiamento, nem mesmo na indústria independente, e como tal comecei a imaginar formas independentes de conseguir financiar os meus filmes. Comecei a angariar o meu próprio dinheiro, não havia produtor algum que fizesse isso por mim. Atualmente, afirmo que sou uma espécie de Cassavetes ou Shirley Clarke quanto aos métodos de produção independente em relação à economia tradicional.

E está a funcionar esse método?

Sim, de momento está a funcionar.

Pensa voltar ao teatro?

Não penso fazer mais teatro, porém, ando com uma ideia e quero avançar num musical do “Love is Strange”. Atenção, quero lançar a ideia, mas não  me quero comprometer a ser o encenador ou o guionista.

Espera uma produção digna da Broadway? [risos]

Quem sabe. Poderia ser um musical integral dirigido pelo mesmo encenador de “Rent”. Já estou a imaginar. [risos]

Turismo em Sintra!

Hugo Gomes, 08.12.19

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Soou a um caso mal amparado quando se soube que Ira Sachs, realizador nascido e criado em Memphis e um terno habitante e devorador da cultura nova-iorquina, iria filmar na zona de Sintra a sua sétima longa-metragem com um elenco internacional, encabeçado por Isabelle Huppert. Automaticamente, a ideia de um cartão de visita ao tão cinematográfico concelho surgia nas nossas memórias, porém, e não querendo fugir do típico percurso postal, “Frankie” é um filme duplamente íntimo vindo de um cineasta independente cada vez mais respeitado nos mais diversos nichos. E o primeiro foco de intimismo localiza-se em Sintra como um canto de recordações e emoções há muito não vividas (Sachs confidenciou-nos essa ligação em Cannes). Poderia ser qualquer lugar, mas não, o realizador encontrou o seu retiro espiritual e o contacto direto com a saudade, funcionando numa espécie de revisitação daqueles lugares alicerçados numa aura proustiana.

Em relação ao segundo, a intimidade para com as personagens, todas estrangeiras e deslocadas do seu habitat natural para serem posicionadas num satírico xadrez de relações, afetos e afinidades. Contudo, é a distância com que o espectador as encara que confirma o gesto de proteção por parte de um realizador tão delicado com a sensibilidade das personagens do seu universo (olhe-se para as suas obras anteriores, como “Love is Strange – O Amor é uma Coisa Estranha” ou “Little Men). Assim, é neste nosso olhar de longe que deparamos que todas estas figuras são incapazes de emancipar-se do respetivo ator, sem nunca ceder aos tons biográficos de cada um, mas sim à imagem vendida e comercializada no circuito cinematográfico. Esse carinho para os protagonistas do legado e devoção de Ira Sachs à sua micro-indústria e ao seu cinema mais próximo é quase como se fosse um método de preservação em etanol.

Em certo jeito, “Frankie” é uma obra pessoal estampada como uma peregrinação a uma adolescência perdida e, ao mesmo tempo, uma aventura do cineasta em assumir o espírito europeu, as romarias rohmerianas, um risco em replicar uma utopia estilística e provar uma certa versatilidade. O resultado pode ser uma derivação desses atos cinematográficos, o simplismo como forma e a invocação de um naturalismo estagnado e perversamente calculado, assim como aquela bela sequência final, uma das mais fortes vistas este ano: uma dança de abraços vivo com a morte perante a omnipresente beleza natural, a única certeza para o conceito de eternidade.

Ira Sachs fala aqui de despedidas, redescobertas, carícias prometidas e ainda arranja espaço para troçar da indústria que evita integrar, usando como refém o estandarte do capitalismo cinematográfico [“Star Wars”], tudo num filme pleno, seguro e sobretudo económico com os gestos. E tudo isto, em Sintra!

Juventude consciente

Hugo Gomes, 18.01.17

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"O Cinema é a arte do sensível, e não só do visível" já dizia Jacques Rancière num dos seus ensaios sobre a obra de Béla Tarr. Talvez seja essa a ligação emocional que traz algum sabor nostálgico e agridoce a esta nova obra de Ira Sachs, um realizador que tem merecido a atenção da crítica e cinefilia desde "Love is Strange”. Enquanto o enredo dessa obra seguia um casal homossexual pronto a oficializar a sua relação de quarenta e poucos anos, em “Homenzinhos”, o intuindo da fraternidade não consanguínea volta a ser destacada, os afetos sob o signo inocente de uma amizade entre duas crianças, cujos progenitores iniciam um confronto de interesses.

É um registo ameno, simplista na sua concepção e na forma como os actores induzem nos espaços. Aqui, os apogeus emocionais e os overactings que o espectador mais mainstream gosta de recordar, é posto de fora. O que conta é um sentimentalismo contido por um elenco que se funde nestas personagens, que tão bem poderiam partilhar a nossa realidade. Ira Sachs prima por esse “keep it simple”, usufrui de uma tendência quase proustiana em relação à juventude, galgando pela tenra carne do elenco jovem, servindo-os de condutor para uma perspectiva de "dois gumes" por entre mundos não combinados. O lado adulto, imperceptível para os nossos protagonistas, e os anos verdes, negligenciados por adultos inseridos em vórtices existenciais e ideológicos.

Por um lado, Sachs vem beber da mesma água dos grandes exemplos do cinema de Linklater, mas ao contrário do registo sensorial de um “Dazed and Confused” (“Juventude Inconsciente”), por exemplo, vem culminado dum verdadeiro conto moral com início no incógnito e com desfecho incerto num futuro ainda por prescrever. Sem mais demoras, saliento que poderemos estar presentes num dos melhores exemplos cinematográficos do ano. Um pequeno grande filme!