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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Nas máquinas confiarei o meu futuro! Jia Zhangke em mais um retrato da China em movimento

Hugo Gomes, 28.05.25

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Jia Zhangke reforçando-se como Jia Zhangke, bofetada “autoral” e fidelidade a um estilo que a China pavoneia diante de uma América cada vez mais submetida às pressões políticas ou ao entretenimento de massas enquanto nova colonização “cultural”. Poderia ser a justiça oriental frente ao Ocidente em decomposição … poderia … mas não o é. Zhangke é um dos raros autores ainda em plena atividade no seu próprio panorama. O restante, essa cinematografia chinesa, divide-se entre marginais que encenam uma espécie de realismo desencantado ou "cinema de guerrilha", e o "megamasso" a mimetizar vaidades à la Hollywood … muitas delas, pasme-se(!), apresentando-se como propaganda ideológica pouco subtil.

Mas falemos do nosso chinês em questão, e com ele de “Caught by the Tides”, filme que reafirma essas marcas, essa dentição cujo contacto nos leva a exclamar bem alto: “claramente, é Jia Zhangke!”. Se essa questão autoral nos remete a um reconhecimento estético, conceptual ou temático, com esta obra a tese prolonga-se com um devido ponto de interrogação: o que acontece às sociedades onde a política do trabalho acelera na sua própria mutação, com os trabalhadores a não conseguir acompanhar a reformulação dos mesmos?

A questão levanta-se como a persistência de um autor em plena observação das modificações do seu mundo, e como folha de papel vegetal, tracejar as similaridades e as referidas diferenças, para nos encantar com o óbvio, mas não fácil, retrato sociopolítico. Caminhamos para uma nova Humanidade, talvez mais distante, ou, na urgência de persistir nos seus traços, desafiar a ordem do progresso. Mas já lá vamos! Novamente requisitada, a atriz Zhao Tao guia-nos, sob a narrativa de três atos temporais, por uma mulher que opta pelo silêncio como forma de enfrentamento da realidade inconstante. Iniciarmo-nos neste “mundo” pela propaganda ao coletivo, enquanto país de uma só voz e direção, e terminarmos com o mesmo coletivo enquanto esperança libertária, curiosamente ecoando, ainda assim, numa só voz (e a voz enquanto brilharete narrativo a fazer-se ouvir).

Mas até lá dá-se um desaparecimento. Os anos passam, e é o rio Yangtzé que conduz a protagonista, em busca do marido em parte incerta, até ao inesperado - e, por sua vez, previsível - o fado da sua classe. A voz, ou melhor, a ausência dela, não constitui problema: Zhao Tao comunica como bem sabe, pela orgânica dos seus movimentos, pelos olhos afogados em desilusão infestosa e pelos escassos deslumbramentos ao contacto com o tecnológico: essa promessa de um futuro onde as máquinas, substituindo de forma determinante a mão-de-obra, libertariam a Humanidade da sua condição proletária e precária.

Já no último ato - num futuro ali ao virar da esquina, facilmente identificável - o trabalho e o respectivo estatuto social são substituídos por novas formas de empreendedorismo. Os “velhos do Restelo” nem sabem como se comportar perante a influência das redes sociais e os seus congéneres, enquanto a nossa trágica heroína encontra conforto em estranhos sintéticos. No final, as dores conjugam-se de maneira improvável. Jia Zhangke é um exímio pintor de natureza morta e de distopias descalcificadas, nisso não há duvidar, o seu toque mantém-se vivaz. Como tem sido na sua presença recente, os moldes resultam dessa escolha de embater o passado contra uma ideia de futuro, levando o espectador a refletir sobre onde mudou, ou a sentir-se para além da compreensão, diante da diluição temporal. E, à sua maneira, é político: cinema que sussurra ao ouvido os seus manifestos.

Denise Fernandes: "A autenticidade, para mim, não é algo que se procura, mas sim algo que se respeita."

Hugo Gomes, 15.05.25

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Peço desculpa pelo que vai acontecer [risos]. Tenho conversado com alguns colegas meus que já a entrevistaram nos últimos dias, portanto, algumas questões que lhe farei já as fizeram anteriormente”, “Não faz mal [risos]”, responde a voz do outro lado da linha.

Uns quantos aviões passam. Lisboa, de céus tão exaustos desses aços alados, deixa-se rasgar por um barulho por vezes insuportável. Contudo, nem as forças antagónicas saídas do aeroporto Humberto Delgado impediram a conversa — breve, mas reveladora — com Denise Fernandes, laureada há poucos dias na 22.ª edição do IndieLisboa, ao conquistar a Competição Nacional com a sua primeira longa-metragem, “Hanami”. Já consagrado em Locarno, chega agora às salas portuguesas prometendo um bilhete, só de ida, para a Ilha do Fogo, em Cabo Verde.

O filme aponta mar adentro até desembarcar no refúgio atlântico, entre escombros e casas-fantasmas, onde a pequena Nana, nascida e criada ali, vê os outros partir e “conquistar Mundo”, esse mesmo que, para ela, apenas presente naquele pedaço de terra à beira do vulcão. Em contraste com o ruído incansável de Lisboa, aquele paraíso insular instala-se num silêncio quase melódico. Por entre festejos de funaná com muita comida e doces de coco para sobremesa, é nas proximidades do cume e da terra batida em cinzas que a ausência de som nos transporta para outras eras, ou, quem sabe, para outros realismos, mágicos até. Contudo, Denise Fernandes não quer delirar: quer autenticar. Ir atrás do que realmente representa Cabo Verde — as suas gentes, as diásporas, as antípodas, a identidade de “ser cabo-verdiana”.

Sem mais demoras, segue uma breve conversa do Cinematograficamente Falando… com a realizadora: sobre a obra-destaque, os olhares, existencialismos e simbolismos, e, acima de tudo, autenticidade. A palavra de ordem.

... Só um momento... vai passar mais um avião!

Antes de conversarmos gostaria de lhe dar os parabéns pelo Prémio do IndieLisboa [Competição Nacional], do passado domingo, como também pelos prémios conquistados no Festival de Locarno no ano passado [Cineasta do Presente em 2024]. Portanto, começo exatamente por aí: sendo “Hanami” a sua primeira longa-metragem, o que significam para si estas distinções? E que tipo de impulso ou motivação podem trazer à sua carreira?

A maior recompensa para um filme como “Hanami”, que não é de todo um filme comercial, é, sem dúvida, a visibilidade. Filmes independentes, de autor, não têm o mesmo acesso a promoção e distribuição que os comerciais. Por isso, o reconhecimento através de prémios pode dar precisamente isso: mais visibilidade. E essa mesma é essencial para projetos com esta dimensão.

Antes de Hanami, a Denise já tinha realizado algumas curtas, nomeadamente “Nha Mila” (2020), estreado também em Locarno, que lhe deu alguma projeção. Que desafios encontrou na transição para a longa-metragem?

Foram muitos. Quando estudamos cinema, como foi o meu caso, fazer curtas faz parte do percurso académico, mas não há um caminho claro ou direto para seguir para uma longa. É um processo muito mais longo e complexo.

Tudo o que acontece antes de filmar uma longa envolve anos de desenvolvimento, preparação, tentativas de financiamento. Um dos maiores desafios foi, precisamente, perceber como se faz uma longa: por onde começar, o que é suposto fazer em cada fase. E isso varia muito: depende do país, do contexto de produção, da língua, do sítio onde se vive.

No meu caso, o primeiro grande desafio foi este: tinha uma ideia, mas como é que chego a concretizá-la?

Numa recente entrevista foi abordada a questão do regresso a Cabo Verde. No entanto, mencionou que não é originária da Ilha do Fogo onde o filme decorre. O que a atraiu cinematograficamente nessa ilha, ao ponto de situar aí uma história tão pessoal?

É verdade, os meus pais são da Ilha de Santiago, não do Fogo. Mas muitos dos temas abordados em “Hanami” — a diáspora, a espera, o vínculo ao território — são comuns à identidade cabo-verdiana no geral. Então, mesmo não sendo do Fogo, esses temas dizem-me respeito. Escolhi a Ilha do Fogo porque as suas características — tanto geográficas como simbólicas — estavam alinhadas com a história que queria contar. Foi quase ao contrário: primeiro escolhi a ilha e só depois surgiu a história. Para mim, “Hanami” não podia acontecer noutro lugar. A ilha, com a sua paisagem, a sua energia, foi determinante.

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Denise Fernandes e o produtor Luís Urbano [O Som e a Fúria] durante a apresentação de "Hanami" na antestreia no Batalha Centro de Cinema.

Numa outra entrevista, julgo que foi uma reportagem de Cabo Verde onde a Denise iria programar sessões do “Hanami” para a comunidade da Ilha do Fogo, ressaltou a importância de trazer autenticidade às pessoas e aos locais retratados no filme. Tendo em conta que a Ilha do Fogo tem sido representada por realizadores estrangeiros — como Pedro Costa, entre outros —, gostava que me falasse sobre essa necessidade de um olhar interno. E também sobre o realismo mágico presente em “Hanami, como é que ele se cruza com esse conceito de autenticidade?

A autenticidade, para mim, não é algo que se procura, mas sim algo que se respeita. É um compromisso com as pessoas que vivem aquilo que estou a filmar. Sendo cabo-verdiana, embora não do Fogo, senti que o mínimo que podia fazer era garantir que quem vive na ilha se reconhecesse no retrato que apresentava.

Quanto ao realismo mágico, não foi uma escolha estilística deliberada no sentido clássico. Cresci a ler livros infantis onde tudo era possível; personagens que voavam, portas que se abriam para jardins infinitos. Mas raramente vi essas possibilidades aplicadas ao contexto africano. Era como se a África fosse sempre apresentada como lugar de limites, de carência. Com “Hanami, quis contrariar isso.

A “magia” no filme não foi inventada, ela já lá estava, na forma como as crianças veem o mundo, nos rituais, na paisagem. Apenas a aceitei como parte do universo. Para mim, filmar o realismo mágico foi filmar o real, só que com os olhos de quem está disponível para ver o invisível.

Quando pensamos na Ilha do Fogo no cinema, é difícil não lembrar imediatamente de “Casa de Lava”, do Pedro Costa, por exemplo, e de outros autores portugueses que, depois dele, foram a Cabo Verde retratar as suas próprias ideias sobre o país. O seu filme parece contrariar essas visões externas. Tem alguma posição sobre essa tradição? Vê o “Hanami” como um gesto consciente contra esse olhar?

Sim, tinha consciência de que a Ilha do Fogo já tinha sido filmada por olhares exteriores, e, de certa forma, também o meu é um olhar exterior: como disse sou da diáspora e não nasci naquela ilha. Mas escolhi não me focar nesses outros filmes. Quis concentrar-me no meu percurso, no que desejava contar.

Dito isto, claro que desejo uma mudança: um futuro onde as histórias de Cabo Verde sejam contadas de dentro para fora. Onde a ilha não seja apenas um cenário exótico, mas um lugar com voz própria. O ideal seria que os próprios realizadores cabo-verdianos tivessem os meios e as oportunidades para narrar o seu país. O que já foi feito está feito — não costumo comentar. O que me interessa é o que ainda está por vir, e o que podemos construir a partir de dentro.

Mas existe um momento, diria até, quase de antípoda no seu filme. Há uma energia japonesa, não só representada no título da obra (“Hanami” = palavra nipónica que significa “contemplar as flores de cerejeira”) como também em vários elementos a certa altura. Porquê o de cruzar estes universos tão distintos? Há uma tentativa de aproximação entre culturas que aparentemente estão nos antípodas?

O tema do Japão é, ao mesmo tempo, simples e complexo. Não queria que o filme fosse só sobre uma ilha isolada no mundo. Queria mostrar que essa ilha também pode estar ligada ao resto do mundo, que há pontes possíveis, mesmo que pareçam improváveis. E, pessoalmente, novamente, enquanto cabo-verdiana da diáspora, cresci com uma certa narrativa sobre África como um lugar distante, quase incomunicável com o resto.

Aceitamos muitas vezes essas narrativas sem as questionar, e isso é doloroso. O que tentei fazer com o “Hanami” foi contrariar isso: criar uma metáfora de aproximação. A presença japonesa não é um exotismo gratuito, é um exercício de empatia, de espelhar experiências humanas aparentemente distantes que, afinal, podem ter muito em comum. 

Posso avançar que a tartaruga presente nesses “espaços de aproximação” funciona como uma subtil representação do Tempo? Ou é apenas a minha leitura?

A tartaruga? Sim, pode representar muitas coisas — o tempo, a continuidade, o ritmo da natureza. Mas prefiro deixar isso aberto à interpretação de cada um [risos].

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Voltando ao território da autenticidade, e novamente àquela reportagem em Cabo Verde: você falou sobre trabalhar com não-atores. Gostaria de saber mais sobre essa escolha e como isso se relaciona com a autenticidade do filme.

Na verdade, essa não foi uma escolha consciente no sentido de querer trabalhar com não-atores. A realidade é que estamos a falar de Cabo Verde, de um país que não tem uma indústria cinematográfica forte, como em Portugal, França ou nos Estados Unidos, onde há uma enorme disponibilidade de atores profissionais. Para fazer um filme em Cabo Verde, na Ilha do Fogo, e especialmente em locais remotos, como o Pacífico, sabia desde o início que ia ser feito com pessoas locais, da própria ilha. Quase todos os atores portugueses presentes no filme nunca tinham feito filmes antes. Isso não era apenas uma escolha minha, era uma realidade do contexto em que estávamos a trabalhar.

No entanto, penso que isso acabou sendo uma das maiores riquezas do filme. Eles trouxeram uma autenticidade e uma naturalidade para as suas personagens que não teria conseguido alcançar de outra forma. Mesmo sabendo que não eram profissionais, eles deram muito ao filme. Para mim, trabalhar com não-atores foi uma maneira de ter uma conexão mais direta e genuína com as pessoas e a história, sem as formalidades e os limites que às vezes um ator profissional pode trazer. Foi um grande desafio, mas também uma experiência profundamente enriquecedora.

Só mais uma questão que tem a ver com o trabalho com não-atores. Sabemos que em muitos filmes, quando se trabalha com não-atores, ou atores não profissionais, como muitos preferem apelidar, há sempre esse elemento de autenticidade que é difícil de conseguir com profissionais. Como é que você lidou com a direção dos não-atores? Foi um desafio maior para você, já que, como você mencionou, a maioria deles nunca tinha atuado antes?

Sim, foi um desafio grande, porque, de facto, a maior parte das pessoas que participaram no filme não tinham experiência com a atuação. Mas, ao mesmo tempo, isso foi uma grande vantagem para o projeto. Ao contrário do que poderia parecer, a falta de formação formal em interpretação não limitou as pessoas, porque elas trouxeram algo que nenhum ator profissional poderia oferecer: uma espontaneidade, uma forma muito pura de expressar emoções, que é muito característica de quem vive naquele ambiente.

E a direção foi algo que teve de ser ajustado constantemente, porque era necessário trabalhar mais com as emoções e as reações naturais das pessoas do que com a técnica de atuação. Queria que as personagens fossem verdadeiras, não criadas, e, por isso, o trabalho foi mais de orientá-las para o que a cena exigia, mas sem perder a autenticidade. A maior parte das cenas foi construída no improviso, e as reações, as interações entre os personagens, eram muito naturais. Foi importante também criar um ambiente de confiança com eles, onde se sentissem à vontade para se expressar sem medo de errar.

Claro que houve momentos difíceis, como seria de esperar, especialmente em algumas cenas mais emocionais, mas, no final, tudo isso acabou sendo uma das maiores riquezas do filme. Eles estavam completamente imersos nas suas personagens e na história, e isso é algo que é muito difícil de reproduzir com atores profissionais. Para mim, foi uma experiência extremamente gratificante, o de dar voz a quem nunca tinha sido ouvido nesse contexto cinematográfico.

No terceiro ato do filme, há uma forte questão identitária em jogo, principalmente relacionada à protagonista e ao seu conflito com a mãe, e até mesmo à recusa de ir com ela para fora da ilha. Encaro isso como um dos pontos centrais do filme — um questionamento profundo sobre o que significa “ser cabo-verdiano hoje”, na diáspora, e mesmo na ilha. Gostaria de saber o que você pensa sobre isso. Ou, numa questão mais aberta, que “significa ser cabo-verdiano” para você?

Ah, essa é uma pergunta que não tenho uma resposta definitiva, e gosto muito de não ter [risos]. Para mim, a beleza dessa questão é justamente a sua resposta indefinida. O que significa ser cabo-verdiano é pode variar de pessoa para pessoa, de experiência para experiência, e, por isso, também gosto que o filme lance essas perguntas ao espectador, sem impor uma resposta clara.

É claro que, hoje, ser cabo-verdiano tem a ver com o que estamos vivendo agora, mas talvez também com o que já foi vivido e isso não é algo estático. O conceito de identidade é fluido, e também muda dependendo do tempo e da perspectiva. Gosto da ideia de que a resposta não é algo fixo, algo que se pode definir de uma vez por todas. Cada pessoa tem a sua própria experiência, a sua própria vivência da identidade cabo-verdiana. E o filme, para mim, abre esse espaço para reflexão, sem querer forçar uma única visão sobre o que é ser cabo-verdiano.

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Agora, para terminarmos a nossa conversa, gostaria de saber se, sendo esta a sua primeira longa-metragem, que vai ser lançada nos cinemas portugueses esta semana, você já tem novos projetos em mente? Está a pensar em mais uma longa-metragem? Ou algum outro tipo de projeto?

Não sei... A minha resposta é muito simples. Espero que sim, mas também sou muito reservada com relação a isso. Na verdade, não gosto de falar muito sobre projetos antes de estarem realmente concretizados. Para mim, os meus filmes são quase como segredos, protejo muito o processo e os projetos. Considero que as pessoas só devem saber o que o filme vai ser quando ele chegar aos cinemas. Então, mesmo que tenha uma ideia ou sinopse, nunca diria exatamente o que vou fazer, porque para mim, o processo criativo é algo que deve ser protegido até o momento em que o filme se concretize. Espero que consiga fazer a segunda longa-metragem, mas, de facto, ainda está tudo muito no início.

Dizem que a segunda longa é ainda mais desafiadora do que a primeira. Vamos ver. [risos]

Nora Aunor (1953 - 2025)

Hugo Gomes, 14.05.25

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Thy Womb (2012), filme de Brillante Ma Mendoza, o último antes de cair por aí abaixo no miserabilismo ou nos dutertenismos, praticamente inédito em Portugal, salvo uma apresentação no IndieLisboa de 2013. Obra sobre fertilidades que respira como poucas; a vida, abundante, mesmo que apenas no vasto mar filipino, e Nora Aunor, parteira de ocasião, mulher de ventre seco, é a Gaia dessa harmonicidade.

Da sua expressividade à imponência da figura, nega o trágico da própria tragédia, altruísta, com o dever cravado em trazer vida a este mundo. Para além da naturalidade revelada nesse filme, voltaria a trabalhar com Mendoza no cataclismo porno-miséria de “Taklub” (2015).

Diz-se que era uma superestrela nas Filipinas, mas, pelo que vi em “Thy Womb”, foi uma deusa por instantes. Deixo a última minha vénia!

Nicolau, um rapaz de Lisboa

Hugo Gomes, 12.05.25

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Se Richard Linklater capturou uma vida num projecto megalómano em termos conceptuais com "Boyhood" (filmado ao longo de 12 anos, em progressão real), João Rosas acompanha, desde “verdinho” até aos seus “verdes anos”, a história de Nicolau, uma presença nas suas curtas-metragens e culmina por fim na sua primeira longa ficcional (tendo anteriormente estreado o documentário "A Morte da Cidade"). De "Entrecampos" (2013), passando pela desvirginação em "Maria do Mar" (2015), por "Catavento" (2020), até chegar ao demarcador "A Vida Luminosa", não com promessas de fecho, e sim em sugestões de novas abordagens. Nestes termos, Nicolau, sempre interpretado por Francisco Melo (cúmplice desta forma há mais de 11 anos) que, aos 24, acena à ruptura para com o sedentarismo em que parece preso.

Saído de uma relação difícil de dissipar da mente, do coração e do libido, dividido entre trabalhos precários e “de sol de pouca dura”, participante pouco entusiástico de uma banda de garagem que nunca arranca, o nosso protagonista constrói-se ora de forma proustiana, ora autobiográfica (como o realizador já declarou), ora ainda através de uma mistela geracional — do “rasca” ao “mal-amparado” — de futuros escassos mas esperanças intactas, alimentadas pela colheita da sua jovialidade. Sexo, cultura, a mística da tenra idade (como um passeio por Lisboa!), Rosas retrata tudo com exatidão e conhecimento, mantendo a credibilidade de um percurso íntimo. Adivinha-se que "A Vida Luminosa" possa ser lido de múltiplas formas: como “filme de cidade”, como crónica anedótica da juventude inconstante ou até como proeza do amiguismo. Porque, nesta capital tantas vezes solarenga, habitam figuras-chave de uma certa cultura lisboeta, bem como convites generosos a espaços que preenchem este imaginário de nicho.

Reconheço os lugares, as pessoas, até mesmo as situações .. confesso. Mas isso fará de mim um burguês? Uma “esquerda caviar”? São outros tostões, diremos. Mas em "A Vida Luminosa" há uma linha invisível que une diversas vivências, sem estas pertencerem obrigatoriamente ao mapeamento físico da cidade ou à sua cultura. A juventude tem dessas ‘coisas’: reconhece as dores nas nossas, e João Rosas capta isso como poucos no panorama nacional. É fácil apontar o dedo. Difícil é ver neste gesto [quase de autoficção] uma tentativa de diálogo com a modernidade: das mudanças, hesitações, inquietações, passivismos. Uma receita que serve para qualquer problema: político, social ou cultural. Na jornada de Nicolau, vemos o crescimento em ação, a maturidade em reflexão, a busca por afirmação … todos os ingredientes que compõem as maiores epopeias do século XXI, nestes tempos em que o mundo soa-nos esgotado de mistérios. Daí nascer a vaidade de revisitar memórias como quem quer voltar a experienciar o mistério da vida.

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Já me estou a alongar … Fica-se com um filme de passagens — um coming-of-age, como tomámos emprestado da língua anglo-saxónica — evidenciado aqui num “Boyhood às fatias”. Mas não consigo desligar-me do mistério. Ele ainda vive. Nas aventuras em salas da Cinemateca, naquele plano geral da fachada com o letreiro tão luminoso como um farol a orientar barcos errantes; na livraria [Linha de Sombra] captada por um travelling doce, com prateleiras abarrotadas e o catálogo Griffith a destacar-se desse “livredo”; ou na projecção de "The Wedding March" de Eric von Stroheim, onde a magia, ainda conservada pelo mundo despido de romantismos, acontece na luz projetada de um filme vintage, no piano de Filipe Raposo e nas mãos… Os melhores cineastas tendem em filmar mãos… A corresponderem-se nessa hibridez de som e imagem.

Foi desses momentos que João Rosas nos fez suspirar, pelo que a nossa modernidade, cada vez mais desencantada, cada vez mais refém de conceitos de realismo, ainda tem para nos oferecer. Mágica e verdadeiramente. Quero continuar a acreditar!

 

Competição Nacional do 22º Indielisboa

Porque a vida não é só flores ...

Hugo Gomes, 10.05.25

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Em conjunto com Margarida Meneses, Madalena Fragoso, num registo documental de imagens ao sabor do vento, elabora em Casa e os Cães uma espécie de varanda para a incerteza sentida pela sua geração, num quotidiano algures entre o automatizado e o inquieto. Desse gesto a dois nasce uma obra onde tudo está representado: o amadorismo, a incapacidade e, igualmente, o instinto de filme, daí sublinhado como essência de um cinema que não se quer situado em lado algum, um pouco como os seus autores e protagonistas, lidando com a constante despertença.

“As Flores” transporta estes vários sentimentos para a Praça das Flores, em Lisboa, onde Fragoso, agora como realizadora-a-solo, filma a partir do seu quiosque tudo o que vê, percorrendo estações, clientelas e movimentações de qualquer género. Adivinha-se uma ensaboadela daquelas que Wiseman se orgulha de fazer às ditas instituições, mas, infelizmente, aqui não há nada de político, planeado ou pensado, seja na montagem, seja na sonoplastia. São imagens avulsas, organizadas cronologicamente com o propósito de registar e, quem sabe, ocupar o tempo.

Dessa inconsequência, nasce porém uma tese subjacente: a da importância dessas mesmas imagens. As Flores e a sua colectânea petular provêm de um acto de captação espontânea e compulsiva, feita através de um smartphone (daí a sua verticalidade), trazendo-nos um sintoma desta actualidade: a futilidade, a desaprovação, ou mesmo a desvalorização das próprias imagens. Quais os seus significados, simbolismos ou preocupações estéticas, até?

Neste caso, cabe ao espectador decidir o que quer ver: a alusão aos tempos correntes e à nossa relação despreocupada com o vídeo, ou o simples filmar por filmar. Contudo, há quem, como se ouve a dada altura, pergunte: "Pediu autorização para filmar?" Talvez seja um pedido de protecção, a insinuar que essas mesmas imagens estão desprovidas de valor.

Competição nacional do 22º IndieLisboa

Charlie Shackleton: "Diria que 90% da crítica escrita não é particularmente interessante."

Hugo Gomes, 09.05.25

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O tipo da ‘tinta a secar’”, foi com estes termos que muitos reagiram à notícia da presença de Charlie Shackleton no 22º IndieLisboa, onde veio presentear os espectadores com a sua obra, incluindo as (in)fames dez horas de “Paint Drying”, o seu “filme-protesto” no qual forçou os censores britânicos a vê-lo esse tempo equivalente a “tinta a secar” na íntegra. A notícia desse feito corria entre nós em 2016 e, embora hoje esse trabalho seja tratado como um fenómeno viral, Shackleton é muito mais do que esse cognome: é um crítico tornado ensaísta e, por sua vez, um cineasta com uma personalidade singular, neste mundo em plena desconstrução e reflexão canónica.

Lida com as frustrações das obras inconclusas através de interiorizações sobre a indústria e a fórmula, essa “sopa quente” para espectadores passivos, uma ferramenta que o próprio realizador assume até apreciar, nem que seja para pensar nas suas próprias matrizes. Num encontro na Cinemateca de Lisboa, horas antes da abertura do ciclo que teria a honra de inaugurar com as jornadas do true crime em “Zodiac Killer Project” (2025), o Cinematograficamente Falando … conversou com o jovem das mil e um empenhos sobre o mais recente trabalho, outros projectos e, igualmente, sobre crítica de cinema e cânone… onde o colocar? Ah, e sem esquecer o fantasma godardiano dos “não-filmes”.

Para primeiro tópico desta conversa gostaria de tocar no “elefante na sala”: o ‘Paint Drying’. Vi várias entrevistas contigo em que referes este filme como a tua maldição, porque tudo o que fizeres a seguir não adianta, serás sempre relembrado como o “tipo que fez o ‘Paint Drying’”. O que no fundo é um filme de protesto, certo?

Sim, exatamente. Quando digo que é uma “maldição”, é com algum carinho. Porque foi um projeto que significou muito para mim. Foi pensado como um protesto contra o British Board of Film Classification (BBFC), o organismo de classificação britânico. A primeira vaga de atenção mediática, em 2016, esteve obviamente ligada a isso — ao que o protesto pretendia denunciar, e fiquei muito contente por ter tido tanta cobertura da imprensa na altura.

Pois, ouvi falar do filme ainda em 2016!

Ah, ouviste falar ainda nessa altura?

Sim, e queria por aí  mesmo... a tua visão sobre os mecanismos de censura no Reino Unido. Para ti, a entidade britânica BBFC é uma continuação dessa lógica censória?

Sim, acho que sim. A entidade britânica mudou de nome em 1984 — passou de British Board of Film Censors para British Board of Film Classification. Fizeram essa mudança de nome, mas, na minha opinião, o modo de funcionamento continua a ser o mesmo. Eles continuam a ter a palavra final sobre o que pode ou não ser exibido. É obrigatório passar por eles.

E tens de pagar por isso?

Exatamente, tens de pagar! E o impacto mais direto é para os realizadores independentes que querem exibir os seus filmes sem distribuidor. Nessas situações, são os próprios realizadores que têm de arcar com os custos, e muitas vezes esse dinheiro simplesmente não existe. Se quiser exibir um filme em três salas, posso nem conseguir recuperar o suficiente para pagar o certificado necessário. Sempre tive uma relação de confronto com essa entidade, mas mesmo assim, mesmo na altura em que o filme teve muita atenção mediática, nunca imaginei que as pessoas ainda falariam dele dez anos depois — e por tantas razões diferentes. Hoje em dia, o principal legado do filme é este fenómeno no Letterboxd, que na verdade nem tem a ver com o projeto em si. É só um acaso histórico: as pessoas escolheram aquela página para comentar tudo aquilo.

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"Paint Drying" (2016)

Mas depois desse protesto, o filme foi distribuído normalmente?

Não. Esta será apenas a segunda vez que o filme será exibido publicamente. Foi mostrado pela primeira vez há alguns anos, na Austrália, como parte de uma exposição. Aqui, conto como a segunda exibição. Até então, ninguém o tinha visto além dos censores.

O teu filme vai ser exibido na Sala Rank do Cinema São Jorge ... Bem, não numa sala qualquer, mas sim a que era usada para os censores durante o Estado Novo?

Sim, era mesmo a sala deles, não era? O que é incrível.

Ou seja, continua-se a manter o mesmo simbolismo da tua primeira acção de protesto, certo?

Exato. É o cenário perfeito. Nem consegui acreditar que estava disponível. E tem sido interessante, por causa daquele fenómeno no Letterboxd, que se tornou tão grande, as pessoas começaram a descobrir o projeto em si. E isso reacendeu o gesto de protesto, o que aprecio muito.

Vou confessar, ainda não vi o “Paint Drying”...

Ninguém viu. Não te preocupes. [risos]

Sobre o seu mais recente projeto, premiado no último Sundance, “Zodiac Killer Project”, o qual fez-me lembrar um conceito de Godard — os não-filmes. Filmes que só existem na mente do criador e que, por vezes, são melhores do que o próprio projeto materializado. Li sobre isso numa conversa que ele teve com a Marguerite Duras. Ele dava o exemplo do “Last Emperor” do Bertolucci, afirmava com “todos os dentes” que o filme imaginado pelo realizador, o não-filme, era um filme, e que o se concretizou deixou de ser um filme no momento em que se fez acontecer. É uma teoria arriscada, mas pertinente. E, no teu caso, senti que o teu projeto também começou como um não-filme, com a sua impossibilidade de adaptar aquele livro (“The Zodiac Killer Cover-Up: The Silenced Badge” de Lyndon E. Lafferty). E por isso acabaste por fazer uma desconstrução, usando essa tendência atual dos “true crime shows”, quase como um filme hipotético. Refiro isto, porque diversas vezes vejo este conceito dos não-filmes presente noutros trabalhos seus.

Sim, completamente. Acho que quase todos os realizadores têm vários não-filmes ao longo da carreira. Na verdade, é mais comum não conseguir fazer um filme do que conseguir, e eu nunca consegui aceitar totalmente essa frustração. No passado, peguei em ideias de projetos que não avançaram e transformei-as noutras coisas, ou usei a investigação que já tinha feito para criar algo diferente. Mas este foi o primeiro caso em que a inexistência do filme se tornou o próprio tema.

Obrigado por referires a Duras e o Godard, durante o processo vi “Le Camion” (1977) e “King Lear” (1987), ambos ótimos exemplos de filmes sobre não-filmes. Para mim, isso é uma extensão do desejo de fazer filmes que incorporam o seu próprio processo criativo dentro do próprio filme. Acredito que tudo o que fiz até agora, possui esse elemento.

Antes de fazer filmes, era crítico de cinema...

Queria mesmo ir por aí!

Pois, exatamente! [risos] Considero que tudo o que faço como realizador ainda mantém esse lado crítico, essa meta-textualidade.

É bom mencionar o teu passado como crítico, porque ao fazeres os teus ensaios audiovisuais, aliás curtas, são, de certa forma, uma nova forma de crítica. Queria perguntar algo isto de uma forma algo abstracta: sentes-te mais crítico ou realizador?

Acho que agora... Bem, para ser sincero, nunca fui um grande crítico de cinema. [risos] Durante algum tempo, quando comecei a realizar, continuei a escrever crítica em paralelo. Mas sempre achei a crítica escrita um pouco... difícil.

Penso que sou muito melhor a expressar ideias críticas através do audiovisual do que pela escrita. Hoje, já nem sei qual das duas categorias escolheria, porque para mim são quase impossíveis de separar. Não consigo imaginar fazer um filme que não seja, de algum modo, também um ensaio ou uma forma de crítica.

É engraçado... Hoje em dia, a única situação em que escolho um termo ou outro é em candidaturas a financiamento, e depende do que acho que a entidade quer ouvir. Se for um fundo que nunca financiaria um ensaio audiovisual, então escrevo “documentário” ou “longa-metragem” ou o que achar que vai resultar. Mas os termos, para mim, estão totalmente entrelaçados.

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Zodiac Killer Project (2025)

Porque o filme, ou o ensaio audiovisual, como preferires chamar, é seguro. Aqui dizemos que o audiovisual é "seguro", no sentido literal. Mas muitos críticos de cinema usam o próprio cinema como uma forma de expandir a crítica, como se o cinema também pudesse ser a linguagem da crítica. Só que, nos últimos tempos, surge sempre aquela dúvida: estamos ainda perante um filme ou apenas perante uma extensão dessa mesma crítica?

Sim, percebo o que dizes. É curioso que o ensaio audiovisual, tal como a crítica escrita, à medida que se tornou mais popular e dominante, acabou também muito monopolizado por trabalhos que, para mim, não são assim tão interessantes. Esse estilo didático dos vídeos no YouTubemea culpa também — que te dizem com certeza o que algo significa ou como funciona, não me atrai muito. Não explora aquilo que o formato pode realmente oferecer.

Mas isso é tão verdade para a crítica escrita como para o ensaio. Diria que 90% da crítica escrita também não é particularmente interessante. É nos restantes 10% que encontramos algo estimulante, aqueles críticos que têm uma forma especial de interpretar e compreender a arte.

Para mim, quando a crítica é boa, seja no formato que for, percebe-se logo. O meio usado, se é texto, vídeo, som, torna-se secundário.

Quero continuar por essa via da crítica, até porque és crítico e, ao mesmo tempo, muito crítico da própria crítica. Mas agora quero tocar noutro ponto. Só que antes disso … o teu nome é Charlie Shackleton, mas vários filmes teus estão assinados como Charlie Lyne.

Pois, é verdade. Cresci como Charlie Shackleton, mas por razões familiares complicadas comecei a usar o nome do meu pai, Lyne, durante os meus finais de adolescência e início dos 20 anos. Foi nessa altura que alguns dos meus filmes saíram com esse nome. Mais tarde voltei a usar o apelido da minha mãe, Shackleton. Portanto, essa diferença nos créditos é só isso, nomes de família, nada de alter-egos. Sou sempre eu, o mesmo autor.

Infelizmente, mesmo que quisesse, não posso renegá-los! Fiz aqueles filmes, goste ou não deles hoje.

Então há algum desses ensaios que hoje preferias não estar associado? Um com o qual já não te identificas?

Tenho uma relação complicada com todos os filmes mais antigos, como acontece com muita gente. Alguns têm mais de 10 anos e sou uma pessoa muito diferente da que era com 22 anos. Ver esses trabalhos hoje é um misto estranho de emoções. É como olhar para fotografias antigas da adolescência, reconheces a pessoa, tens carinho, mas também um certo desconforto.

Como as fotos do secundário? [Risos]

Exactamente! [Risos] E, ironicamente, um desses filmes é sobre filmes teen, o que intensifica essa sensação de proximidade e distância ao mesmo tempo.

Sim, o “Beyond Clueless" (2014). Em entrevistas sobre esse filme, o Charlie falou de "fórmulas" e como elas criam conforto no espectador. Porque quem vê sente-se seguro, sabe o que esperar, e no seu trabalho, mesmo quando identificadas essas fórmulas, parece que as destroi simultaneamente. Como se dissesses: “Sim, isto é uma fórmula, mas vamos olhar para ela de outro modo”. É isso?

Sim. Muito do que fiz acaba, de forma quase acidental, por ser sobre isso: como funcionam os géneros, as fórmulas do cinema. Para mim, o mais interessante é mesmo esse movimento de avanço e recuo — dar ao espectador algo familiar, para depois o surpreender ou desafiar com uma torção dessa familiaridade.

Dou-te um exemplo: no “Zodiac Killer Project”, o formato é bastante pouco convencional, é muito estático, não há grande coisa a acontecer visualmente, é apenas eu a falar de forma contínua. Pode ser alienante. Mas o que fiz foi usar as fórmulas dos true crime para criar uma falsa sensação de conforto. O espectador pensa que sabe o que está a ver, até perceber que está a ser conduzido por um caminho bem diferente.

Essa tensão é uma ferramenta poderosa. Porque todos nós, quer queiramos quer não, estamos sujeitos a essas fórmulas narrativas o tempo todo.

Penso muitas vezes sobre fórmulas, especialmente nos últimos dias, tenho pensado naquela fórmula dos filmes da Marvel, por exemplo. Vi recentemente o “Thunderbolt*”, e o que vi foi a mesma coisa, repetidamente. Muitas pessoas se sentem seguras com isso, e por vezes o formulaico gera consensos. Mas fico curioso sobre o “Zodiac Killer Project”, parece-me que é uma jornada para construir um filme, um filme de não-resistência na tua mente. Mas de certa forma, há críticas sobre essa tendência, sobre o próprio true crime, que continua a ser um subgénero muito confortável. E que cresceu, pode muito ser mais grotesco na temática, mas mantém-se como confortável para a maioria das pessoas.

Sim, acho que as pessoas realmente encontram conforto nisso. Em parte por causa daquele fascínio estranho pelo macabro, como também porque, se você viu um desses programas, já viu todos. Penso que parte do apelo de se fazer esse tipo de conteúdo para os grandes serviços de streaming, por exemplo, o qual exige muito pouca atenção. Você pode deixá-lo a “rolar” ao fundo, sair, voltar, e ainda assim saber exatamente o que está a acontecer. Não se vai perder o fio da narrativa, o que é uma maneira curiosa de pensar sobre entretenimento de conforto, quando, como disseste, é algo tão sombrio na maioria das vezes. Só que é uma história muito formatada, e dá para encaixar qualquer crime real nela, seguir os mesmos pontos narrativos com fiabilidade. Se observar... a maioria dos streamers disponibiliza guias ou livros de estrutura narrativa que dizem literalmente a uma produtora como estruturar uma história sem sequer saber qual é a história. Se for sobre um assassinato, está lá como dividir em cinco episódios, e claro que a realidade não devia encaixar-se num molde tão pré-definido, mas pode ser forçada a isso.

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Beyond Clueless (2014)

É como os biopics! As pessoas são diferentes, mas sentimos que as vidas são iguais.

Certo, exatamente. Haverá sempre algo que parece suficientemente próximo.

Mas és bastante crítico ao mundo do streaming. Mesmo em “Frames and Containers” (2017), fizeste uma desconstrução sobre o filme do Xavier Dolan, “Mommy”, e quando este foi parar à Netflix, em que eles cortaram a questão do enquadramento, que funciona naquele caso como uma elemento associadamente narrativo. Mas o próprio streaming parece não pensar para além das fórmulas, até nas produções exclusivas da Netflix, sentimos esse modelo construído com um só propósito, ser entendido da maneira mais leviana e sem distrações. Podemos ir à casa de banho, lavar a louça, e ainda assim não perdemos o fio do filme. 

É engraçado, pensar que quando fiz “Frames and Containers”, já parece que foi há mil anos que a Netflix adquiriu “Mommy” e colocou-o no serviço. Isso parece muito mais interessante agora do que a maioria do que se encontra lá. Houve um momento, certamente nos documentários, lembro-me em festivais de cinema por volta de 2017, 2018, quando a Netflix começou a investir a sério em documentários: o consenso era que eram os únicos dispostos a apostar em coisas fora da fórmula. Queriam ser ousados e diferentes, e ganhar prémios, então apostavam em coisas arriscadas. Tal desapareceu muito rapidamente. Como o próprio filme. Tornou-se tudo muito direto. Entenderam que podiam ganhar prémios com “My Octopus Teacher” em vez disso, e teriam muito mais audiência com algo assim. Não sou contra o streaming, em teoria, vejo muitos mais filmes em casa do que no cinema. Mas em termos do modelo de streaming dos últimos anos, o que tem sido favorecido é o trabalho replicável, baseado em fórmulas.

O que pensas sobre o algoritmo?

Sobre o algoritmo? É engraçado. Não sinto que saiba o suficiente sobre como ele funciona atualmente. As pessoas falam sempre de como estes algoritmos são super ajustados e sabem tudo sobre nós. Mas sempre que abro o Netflix, vejo exatamente as mesmas coisas que toda a gente. Não me parece... Suponho que, enquanto fazia o “Zodiac Killer Project”, vi tanto true crime que agora o Netflix só me mostra isso. Então, provavelmente, sou um espectador muito aborrecido para o Netflix. Tenho um interesse, e mostram-me aquilo repetidamente. Mas não sei. Já não parece haver conteúdo suficiente lá para ser hiper-específico.

E voltando à crítica, tens outra curta antiga intitulada de “Criticism in the TikTok Age” (2019). Também achei muito interessante porque usaste a estética do TikTok para fazer uma autocrítica ao TikTok.

Sim. Usei a forma dele. Aquilo já me parece tão desatualizado, obviamente, porque foi feito no mês em que ouvi falar do TikTok, que acho que já existia há algum tempo, mas só ouvi falar em 2019. Então pensei: “Ah, aqui está esta coisa nova, vou tentar entendê-la.” E agora o TikTok é este fenómeno inescapável. Tenho a certeza de que muitas das observações que fiz naquele filme já não são relevantes para o que acontece atualmente na plataforma. Eu nem tenho TikTok, então não sei bem. Mas lembro-me de ter achado fascinante que fosse essencialmente uma app de criação de vídeo, apesar de ser uma rede social. Foi isso que me levou a fazer o vídeo no formato vertical como do ecrã do telemóvel. Ainda assim acho isso fascinante. Não sei se todos os jovens no TikTok estão a criar vídeos ou se a maioria está só a assistir. Porque não entendo como funciona como rede social.

Como eles se comunicam entre si?

Estou completamente por fora agora. Tive uma janela breve em que percebia o que era, mas agora já não sei. [Risos]

Conheço pessoas muito jovens que fazem crítica de cinema no TikTok. Mais “reviews” do que ensaios. Do tipo sair de uma sessão e dizer “esse filme é assim ou assado”. Mas como isso funciona? Os vídeos são tão curtos.

Sabes uma coisa … quando a Letterboxd entrevistou-me sobre “Paint Drying”, e colocaram o vídeo no TikTok e Instagram, esse mesmo foi mais visto do que qualquer outro filme que fiz. Ou qualquer outra coisa em que estive envolvido. Já fui reconhecido por causa desse vídeo em apps de namoro, na rua... Nem sei quem é esse público, mas é enorme. É loucura. Tipo, 5 milhões de pessoas viram esse vídeo. Nenhuma delas sabe quem eu sou.

Honestamente, o número de pessoas que me disseram que viram esse vídeo por aí é surreal. Alguém está a ver.

Posso adiantar que vi esse vídeo! [Risos] Mas voltando à fórmula, tens outro filme que gostaria de falar: “Copycat”. Usas alguém [Rolfe Kanefsky] que fez um filme contra as fórmulas dos filmes de terror [“There 's Nothing Out There”, 1991] e depois volta, como espectador, a esse lugar seguro da fórmula. Porém, a história por detrás desse filme parece uma história digna de uma teoria da conspiração. E até tem direito a plot twist.

Sim, é engraçado. Porque o Rolfe sente que foi plagiado pelo Wes Craven [em “Scream”]. O que me interessava nisso é que é um sentimento muito reconhecível. Ter uma ideia e alguém aparecer com a mesma ideia, mas executá-la de um modo que tu não consegues. Acho que todos nós já sentimos isso de alguma forma. Especialmente, como disse, quando envolve algo que tantas pessoas conhecem — os tropos de um género — há mais probabilidade de várias pessoas terem a mesma ideia. Por isso é que tantos filmes de terror se parecem uns com os outros. Uma coisa de que me arrependo um pouco nesse curta é que, como era novo no cinema e ainda não tinha apurado o meu estilo, acho que o filme acaba por parecer uma defesa da tese do Rolf e um ataque a Wes Craven. O que não era realmente o que pretendia fazer. Estava muito mais interessado no impulso emocional do que em descobrir quem copiou quem.

Se fizesse hoje, acho que focaria mais nesse sentimento do que na questão factual.

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There 's Nothing Out There (Rolfe Kanefsky, 1991)

Mas é um filme muito interessante porque de alguma maneira nos faz refletir sobre “Scream” e o seu papel no cânone do género. Mas foi como disse, é um mundo pequeno. Todos estão a ser influenciados por todos. Hoje em dia já não acredito muito em plágios, mas é curiosa a ideia dele — de que o Wes Craven “roubou-lhe” o filme.

É um sentimento irresistível.

Sim, é um sentimento irresistível. Confesso que detenho uma espécie de sedução pelas teorias da conspiração em si. Não somente porque as acho maioritariamente engraçadas, mas porque é um tratado psico-sociológico o facto das pessoas acreditarem mesmo nelas. Não estou a dizer que metade do que ele diz [Rolfe] é verdade ou mentira, é tão obviamente falso ou verdadeiro — e mesmo assim é delicioso.

Sim, acho que é mais... Até porque o Rolfe conta essa história há 20 anos. Provavelmente já nem sabe quanto acredita nela, porque, para ser justo, ele não esconde essa incerteza: “Não sei se foi mesmo plágio ou se foi coincidência.” Mesmo assim, persiste em contá-la. Acho que agora ele está mais a repetir a história do que a sentir de novo, e isso é uma característica presente em muitas teorias da conspiração também. Decoramos a história, repetimo-la, e muitas vezes nem lembramos como nos sentimos da primeira vez. Só se tornou um refrão.

Vejo nesse filme um sintoma gradualmente presente hoje em dia, principalmente na crítica ou até nos meios acadêmicos, o de tentar recontar a história do cinema, o cânone e as devidas influências. Esse teu filme trabalha como se estivéssemos a refletir sobre essa reconstrução.

Não sei se tenho esse sentimento sobre recontar a história do cinema, para dizer a verdade.

Qual é o teu sentimento em relação ao cânone?

Na verdade, é exatamente isso que Rolfe estava a fazer: tentar inserir o seu filme no cânone. E, de certa forma, ajudei-o a fazer isso. Ainda não é canónico, mas está mais perto do que antes. Tenho muito interesse nisso: como os cânones se formam, e, em geral, sou bastante desconfiado deles. Comecei a aproveitar muito mais o cinema e a cinefilia quando deixei de lado essa ideia de “ver os 100 filmes obrigatórios”, ou “ver todos os filmes de um realizador”. Hoje tenho uma relação mais estimulante com o cinema porque aceito que é algo pessoal e idiossincrático. Vamos sempre ter lacunas. Todos morremos sem ver vários “clássicos”. Portanto, hoje em dia, aproveito muito mais tendo deixado esse sentimento de cânone para trás.

E quanto a novos projetos? O “Zodiac Killer Project” vai gerar outro projeto?

Há um filme que tenho tentado fazer há algum tempo, mas que pus em pausa enquanto fazia o projeto do “Zodíaco”. É um filme sobre a força policial britânica da obscenidade — que era uma divisão da polícia metropolitana de Londres chamada Obscene Publications Squad [também conhecido como Dirty Squad]. Basicamente, eles aplicavam a lei da obscenidade no Reino Unido. No filme proponho uma reflexão sobre isso, sendo o que é ou não obsceno como algo muito subjetivo, e o facto dos tipos de casos com que lidavam foram mudando ao longo das décadas.

Vai ser curta ou longa-metragem?

Será uma longa, sim. Ainda estou a trabalhar nisso, mas é um projeto que tenho vindo a desenvolver há vários anos e que continuo com muita vontade de concretizar.

Gostas dessa ideia de desconstrução, aliás é uma característica bastante presente na tua obra?

Sim. Tem bastante a ver com... até com o projeto “Paint Drying”, obviamente, que também tratava de temas semelhantes. Sinto que este projeto já se vem a formar há muito tempo. Mas, por agora, continua a ser um não-filme.

Um não-filme! O Jean-Luc Godard ia gostar disso.

Esperemos que, um dia, se torne num filme verdadeiro. [Risos]

Entre javalis e javardos ...

Hugo Gomes, 02.05.25

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Como transformar a revolução num gesto vazio? Na sua primeira longa-metragem, a artista Elsa Brès parece ter a resposta com o seu “Les Sanglières”, ou “javalis” na tradução à letra, fazendo dos suínos silvestres a imagem do caos, do inimigo “desconhecido”, inteiramente saído das sombras para atormentar culturas e (agri)culturas (se bem me entendem!).

Faz disso pelo seu próprio prazer e presunção (com água benta) para aliciar-se numa mensagem. Talvez, ou talvez não. Comecemos com a logística feudal, num “faz-de-conta” de outras eras para depressa pontapear até à nossa modernidade. Aí, na esperança de algo acontecer, somos restringidos nas imagens de diferentes fontes, seja do imediatismo, seja no fabricado, no documental, o do “cinema do real”, deixemo-nos dormir perante a panóplia delas, nada de wisemaniano, nada de bennigiano. Simplesmente por lá estar, por lá ficar, por covardemente não se aventurar. É o nada em forma de filme, vendido, por via de curadorias com mensagens bonitas para lá permanecer estampado num festival.

Agora, o filme ofende-me? Não. O filme mexe com a minha consciência? Não. O filme ataca o meu privilégio? Não. Então porque raio este filme existe? Apenas pelo ato de existir!? Entre javalis e javardos, sinopses que macaquizam manifestos sobre corpos femininos ou feminismo como “luta armada”, entenda-se, o vazio gera filmes e por vezes filmes geram o vazio. Como se desprender disso? Não sei …

Filme visualizado no âmbito do 22º Indielisboa: Festival Internacional de Cinema

A rebelião do faducho, a normatividade em tela

Hugo Gomes, 18.04.25

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Da génese à intimidade, e a meio, uma refeição "vegana" (será assim que se chama?, pergunta alguém perante tachos e cogumelos), depois, há os concertos, os preâmbulos de cada canção, uma chamada, uns quantos gestos de provocação na promessa de uma revolução sexual e identitária. É o Fado Bicha, ou, no plural, "As Fado Bicha". O artigo, e com ele o género, é fluidez.

É desta forma que Lila Tiago e João Caçador se apresentam a Justine Lemahieu, a realizadora que decidiu acompanhar a dupla durante um ano. A motivação: este filme, o descortinar das suas sombras e cores, e a concepção de um novo disco - frankensteiniano, como aprovam - reunindo fado e outros timbres, do tradicionalismo ao progressivo, entre o suspiro e o melódico grito. É certo: este pedaço documental não defraudará as expectativas de quem já os segue, quem apenas pressente, ou quem se revê nas causas que os artistas elevam. O filme não carrega o esforço hercúleo de converter os incrédulos, nem pede sorrisos forçados a quem torce o nariz. Como tantos outros, é chamado pela curiosidade dos fãs, dos atentos, dos ainda-por-ser.

Mas convém reforçar que para um filme sobre uma dupla tão pulsante — em palco e fora dele —, não se sente o ímpeto de contornar a convencionalidade formal, a normatividade que estas produções parecem ter abraçado. Nesse sentido, "As Fado Bicha" não rezam as mesmas orações dos seus protagonistas; não captam a sua essência, nem o espírito. Tornam-se mensagens formulaicas, sem acompanhamento. Mas pronto. Há que saber que o André da peixaria gosta do Chico e a mãe não consente. Entre outros êxitos.

À espera dos trópicos ...

Hugo Gomes, 09.02.25

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O tom labiríntico com o qual Sandro Aguilar confere aos seus filmes (refiro-me, numa óptica das suas longas-metragens – as curtas pertencem a um universo distinto, possivelmente mais experimental se pensarmos nisso atentamente) leva o espectador “às escuras”. A atenção é convocada, mas, acima de tudo, revela-se a capacidade semiótica para conectar os dotes e decifrar o puzzle assumido com precisão por estas obras. 

Em “Primeira Pessoa do Plural” não se distancia nem desafia essa lógica; pelo contrário, o que se observa é uma combinação mesclada de géneros (e épocas, sendo o 'cinema mudo' um horóscopo confirmado pelo próprio maestro) que o realizador pretende implementar neste universo, trazendo consigo um hiato febril de um casal burguês (os maneiristas Albano Jerónimo e Isabel Abreu), após a toma das vacinas necessárias para uma antecipada viagem aos trópicos. Encontra-se nele uma esquisitice que evoca os primeiros trabalhos de Lanthimos – sobretudo com Jerónimo, desde o instante inicial, munido de um passa‐montanhas branco, comporta-se como um predador animalesco na sua enclausura doméstica. “Primeira Pessoa do Plural” promete extrair, da crise desse matrimónio, algo higiênico, embora tropece nas diretrizes sociais, formalidades e cordialidades, revelando um ar de surrealismo delirante, sem jamais banalizar os trilhos narrativos.

Aguilar afasta a escuridão e abraça a plasticidade emancipada deste retrato – não só visual, mas igualmente orientado para uma performance de “faz de conta”. Há, assim, uma farsa entranhada na seriedade, por vezes derretida no tórrido humor. Nesse aspecto, aproxima-se do atual cinema “faz-por-ti-mesmo” de João Nicolau, que o próprio Aguilar tem vindo a produzir, e, pelo meio, oferece brindes à altura do cinefilismo como de Aki Kaurismaki (“The Man Without a Past”, sobretudo) ou de uma alusão quase felliniana a uma burguesia alienada, entretida na “caça aos gambuzinos”. Esta (minha) citação a “la Dolce Vita” não decorre do acaso, das últimas sequências, já no resort, filmado num artificial em Itália, onde, novamente sem perceber a causa, Jerónimo, levantando-se na praia, exibindo um ar abananado e despreocupado, tentando com isso sorrir à boleia da memória de Marcello Mastroianni nesse ato final do tal Fellini de coração.

Aguilar brincou às cinéfilas com o seu novo joguete com direito a banhos de sol, enquanto o espectador, perversamente, permanece embebido nas suas próprias trevas. O desafio surge no pós… e daí poderá realmente nascer um filme de apreço – ou não.

Deixem Salazar morrer ...

Hugo Gomes, 06.02.25

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Que Portugal o coma bem cozidinho, Sr. Presidente

A teatralização da morte, a ditadura da última vontade. É fácil encontrar uma espécie de castigo ou perversão na imaculada figura política de ditadores e autocratas — ou até mesmo, se seguirmos por outros ventos, na do estadista e governante. Mas fiquemos pelo primeiro ponto: quão perverso pode ser testemunhar a queda de um tirano, ou até a sua ridicularização como último verso da sua existência?

Pai Nosso – Os Últimos Dias de Salazar”, nova obra de José Filipe Costa, é, sem grandes surpresas — até porque o título já o revela —, o espetáculo da morte de um ditador. António de Oliveira Salazar chega-nos sob o prisma da desmistificação da sua figura autoritária, num gesto de desmistificação que já foi cumprido noutras geografias e por outros realizadores. Do outro lado da fronteira, Franco é cada vez mais revisitado e punido por desconstruções da sua suposta imponência. Pablo Larraín converteu Pinochet numa criatura draculiana sem nunca despir a capa do ridículo (“El Conde”, 2023). Os americanos, por sua vez, mataram Estaline em “The Death of Stalin” (Armando Iannucci, 2017), mais como sátira ao regime em si, sem nunca partir da desconstrução do líder soviético, nesse caso Fanny Ardant o concretizou, apostando num monstruoso Gérard Depardieu para dar corpo a um Josef Estaline de cabeça perdida, refugiado no seu poder insuflado (Le Divan de Staline, 2016). E, levando a troça ao extremo e de outras eras, por vezes mais libertárias (e libertinas), Augusto Tretti transformou Mussolini num fantoche num mundo humano — não só a morte, mas também a sua própria existência, é dotada de "bonecada" (“Il potere”, 1971).

Gozar com Salazar não é novidade. “Capitão Falcão” (João Leitão, 2015) trouxe o pitoresco à sua presença, mimetizada pelo ator José Pinto. Já José Filipe Costa, habituado ao simbolismo da Revolução, fixa-se no leito alucinado de Salazar após a célebre queda da cadeira. Isolado no seu palácio-fortaleza, convencido que ainda governava, enquanto Portugal transita para a chamada "Primavera Marcelista". Tal como no filme de Ardant, "Pai Nosso" não se rege pelas ditaduras da biopic convencional, onde os atores replicam a personalidade que encarnam, Jorge Mota não é um Salazar familiar nem reconhecível, tampouco imita os seus maneirismos vocais – “a oratória de professor de primária”, segundo Ricardo Araújo Pereira. Com essa distância, quer visual quer sonora, somos apanhados no abstrato deste salazarismo expirado.

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Um salazarismo, no seu conceito originário e dependente do culto à figura, sobrevive apenas naquele cenário, entre os olhares voyeurs de funcionários do Estado, médicos que o visitam regularmente, criadas reprimidas - mas no privado festivas e extrovertidas -, e uma governanta, Maria de Jesus (Catarina Avelar), que encarna a réstia e a taxidermia de todo um cocktail de costumes ditatoriais, nunca distanciando da sua essência vampiria, enquanto Salazar, que domesticou um país com uma mão de ferro e sermões; é agora, naquele aposento, reduzido a um homem gradualmente cadavérico, ele próprio uma sombra vampírica do seu regime. Entre perus, animais antropomórficos (alusões aos alcunhados termos e o provincianismo com que os portugueses eram retratados na lente do seu governador), alucinações e canibalismos políticos, este Salazar torna-se vítima de uma corrente de tortura hipnótica. Daí que o filme oscile entre a comédia negra e satírica, por vezes revanchista, e a tragédia que expõe a decadência, sobretudo mental, do ex-ditador. Todos, diante da proximidade da morte, tornam-se covardes como galináceos. O temido Salazar é, afinal, apenas um mortal, despojado da aura divina que o regime ultraconservador lhe atribuíra e, com ela, do poder opressor que exercera.

O filme faz desses rasgos delirantes a marca fundamental de José Filipe Costa (como já fizera em Prazer, Camaradas!”) e, desses interlúdios, a sua piada mortal.