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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Como ver a “Índia por um canudo” ...

Hugo Gomes, 06.05.23

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Karen (Denise Fraga) deseja estabelecer um tipo de contacto espiritual com a cidade de Lisboa, um refúgio à sua melancolia, e para isso contrata os serviços de guia turístico-histórico de Tiago (Pedro Inês), especializado, pouco ortodoxo, e ainda assim de jeitos metódicos. Na primeira digressão pela capital portuguesa, a brasileira Karen deslumbra-se com a fachada do Teatro de São Carlos, sob os anúncios da ópera de Giuseppe Verdi - “La Forza del Destino” -, dirigindo-se ao seu guia com a hesitante contestação - “É a ópera?” - no qual é recebida com tamanho desprezo pelo mesmo - “Lisboa é uma cidade feita de muitas revoluções, vou falar de alguns, mas digo-lhe já que das ‘fachas’ não falo…”. 

Com isto, “Índia”, a primeira longa-metragem de Telmo Churro, esclarece ao nosso espectador o tipo de figura que este protagonista será, um “Ramiro” de Mozos doente, “esquerdinado” e agressivo-passivamente embargado na sua própria tragédia. A tragédia de não se revoltar, ou metamorfosear para algo acima da mortal e inútil carapaça, da mesma forma que Lisboa manifestou ao longo da sua “existência”. Nisto chegamos à "Índia", através de um invisível caminho marítimo, nas caravelas velejadas e conduzidas nos sugeridos azimutes da Rosa dos Ventos, aqui, Churro, o escritor e editor tão lá da casa da produtora “O Som e a Fúria”, se tem definido como um farol estético e temático do cinema de Miguel Gomes, sobretudo, ou do já mencionado “Ramiro” de Manuel Mozos (a referência não foi ao calhas). O Adamastor de uma Lisboa “afundada” num estado de graça saudosista e em plena fase de negação, mística e detentora de uma veia cínico-fabulista. 

Digamos que é a cidade de João César Monteiro sem o seu espírito de irreverência, sem a sua perversão e ocultismo cinéfilo, são os “rebentos”, as vagas e vagens deixadas e semeadas em terra de ninguém, contudo, se Miguel Gomes criou nos embarques da África Colonial ou dos ditos e feitos à lá Sherazade um sinónimo seu, e do outro, Mozos, figura patusca, algo zeitgeist de um cinema paralelamente projetado e idealizado, Churro revela-se incapaz de emancipar dos seus colhidos frutos. Não por estas tormentas condenar “Índia” à perfeita inutilidade, é um filme de espaços, não físicos, e sim temporais, onde cada ideia se amontoa na outra, consequentemente criando num alinhar de tendências e criatividades inutilizadas pelo seu ego. 

Se ficamos encantados com Karen, essa personagem evadida do seu próprio espaço, comunicando com a ausência como Nanni Moretti fizera nos últimos tempos, por outro, sentimos esvaziados com a ridicularidade com que Tiago se assume. Em teoria, são maçãs do mesmo ramo, figuras lidando com o seu próprio desterro, mirando Índia por um canudo”, essa sua respectiva idealização de felicidade, nem que seja temporária. Karen consegue, com serenidade e tréguas com a sua tragédia, enquanto que Tiago, a sua inquieta e inconsolável dor o enquadra no perfeito caos. Em “Índia”, Churro persiste num filme visto e revisto quanto aos seus graus técnicos e processuais, sendo que no fundo uma história, ou antes, uma alegoria é encenada e relida à luz das idiossincrasias.  

 

Ele está a contar uma história?”

“Acho que sim … mas eu não estou entendendo nada.”

“Quer que lhe vá explicando.”

“Não deixa, isso já está passando.

Será que as tartarugas também amam?

Hugo Gomes, 03.03.23

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Feita uma pausa na dedicada procissão ao inventário artístico e intelectual de Pedro Costa, Júlio Alves encena a novela de Mário de Carvalho - “A Arte de Morrer Longe” - um “Marriage Story” à portuguesa, constrangido e dotado de um senso de absurdo que passa por representação da espuma dos nossos dias. 

Aqui, o casal Arnaldo e Bárbara (Pedro Lacerda e Ana Moreira) colhe os frutos da negligência aos seus “felizes para sempre”, sintetizando que em “terra enfadonha” não existe príncipes encantados e como tal, a separação soa-nos um golpe de misericórdia ao suplício de uma relação moribunda. O processo formaliza-se como um inventário (aliás, outro para a carreira de Alves) - “da cozinha podes ficar com o microondas” - até que alguém menciona o “elefante da sala”, mais precisamente outro animal a assumir o silencioso e embaraçoso ícone do conflito: uma tartaruga. 

O pequeno e singelo réptil é a partir daquele específico momento a exaltação de um necessário final de compromissos, possivelmente a última em que o “casal” terá como tomar enquanto … isso mesmo, casal. Porém, através de debates para apurar quem “fica com o ‘bicho’”, ou de quem o “‘bicho’ é propriedade”, que Arnaldo e Bárbara conformam-se em unir ao derradeiro destino do animal, naquele, aparentemente, simbólico e pequeno gesto, uma emancipação dos mesmos, o direito da sua respectiva individualização (possivelmente o digno final do casal, esse conjuntivo social o qual se empreenderam anos e anos). 

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A Arte de Morrer Longe” é uma tragicomédia que embarca na alegoria do quelônio, o medidor de tensão arterial a uma relação, prescrevendo-a a um digno final, mais do que a consolidação. O desfecho será visto como acesso à independência social. Enquanto isso, a jornada doméstica destes seres não habilitados para com o anterior animal de estimação é tido num visual respeito quanto à sua privacidade, dito isto são os constantes planos engendrados em que Arnaldo e Bárbara mantêm-se, de alguma forma, separados e retidos para com o seu redor, a solidão por ambos emanadas traduzir-se em “gravidades” próprias (bem presente devaneios oníricos que aludem a essa, cada vez mais, distância para com o estabelecido conformismo), apenas intercalados por grandes planos da tartaruga, cuja natural vagarosidade do animal transfere uma certa indiferença ao conflito do casal. 

Dito isto, Júlio Alves converte-se num certificador da imaginária e criada “ordem de restrição" decretada pelas personagens, e sem barricadas, indicia um invulgar trilho de superação para ambas. Os atores, por sua vez, são cúmplices dessa entranhada e voluntária melancolia. O que existe depois do amor?

Arquitetando males à lá Canijo

Hugo Gomes, 27.02.23

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"Mal Viver" (João Canijo, 2023)

Convém declarar que no cinema de Canijo o processo acaba sempre por ser a atração dos seus projetos, e nele concentra-se uma ação performativa intensamente arrastada, seja nos atores e a sua maleabilidade para aquilo que chamamos de “realismo” (o nosso senso perante essas representações), ou por outra, pela construção de uma instalação visual, cénica e sonora. 

No caso deste recortado “Mal Viver”, a sua característica nata encontra-se no segundo ponto, mais do que as possibilidades com que os seus atores (com muitas “caras” reconhecíveis do universo de Canijo por aqui) possam expressar. É a inteira percepção do realizador em elaborar um filme, arquitetonicamente falando, retalhado em diversas perspectivas (sendo que isso nos levará à outra face do díptico, mas já lá vamos). Assim, com “Mal Viver”, somos conduzidos a uma teia de dramas a ter lugar num hotel rústico, com enfoque na equipa que gerencia este mesmo espaço, esse abordado maioritariamente por vias de planos conjuntos, onde a ação é somente uma janela à escolha do freguês (literalmente e não-literalmente). O espectador assume então a posição de voyeur e é igualmente resistente face a não distrair-se do enredo principal, essa coluna vertebral conectando tudo o resto sem ordenar a sua execução linear. 

João Canijo presta-se ao desafio, vislumbrando o seu mais Tati dos filmes, um objeto aglomerante de ações sob ações, e o procedimento dessas mesmas em grande ecrã, como os diálogos interpolados e independentes, são apenas sintomas dessas personagens em livre arbítrio, pelo menos a sensação dada, visto que o realizador é um realizador por inteiro, autocrata e onipresente (próximo da rigidez de Haneke). O espectador, porém, perde esse estatuto endeusado, convertendo-se num testemunho impotente e sem certezas absolutas, escolhendo a óptica que lhe enquadrar e nisso prescrever o seu próprio filme. 

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"Viver Mal" (João Canijo, 2023)

Mal Viver” não se deleita nos corpos dos seus intérpretes (em território “canijiano” são escravos do seu método), é antes disso um filme-edificante, pensando e casuístico, cuja sua arquitetura se revelará ainda mais com “Viver Mal”, que ao contrário do filme-siamês, tende em controlar a perspetiva do espectador, ao invés de deixá-lo a “marinar” no ambiente. Desta feita, o enredo não é novo, já havia sido “descoberto” no filme anterior, e em modo loop é trabalhado com severidade na sua mimetização. Aqui, seguimos três histórias, três reservas, cada uma apresentando hóspedes presos aos seus respetivos pecados capitais ou crónicos bovarismos (“ah, o velho conto dos privilegiados encurralados nos seus ‘mundinhos’”). 

Mais do que a matéria desenvolvida em “Mal Viver”, “Viver Mal” encanta-se com os seus atores, e ainda mais na dramaturgia emanada por eles, os seus corpos tornam-se devidas medidas temporais quanto à narrativa tríptica, expondo o esqueleto deste projeto, entretanto repartido em duas estâncias fílmicas. E a conexão sexual entre os demais, reluzentes atrativos para o “buraco na fechadura” que o então voyeur-espectador não deixará de espreitar. Tal como o referido, e estabelecido, filme anterior, “misturamo-nos” com a plebe, faminta por “conhecer” os traços das vidas animalescas e de excentricidades calcificadas dos passageiros residentes (o qual tão bem nos identificamos com a personagem de Cleia Almeida, a camareira que remexe os pertences dos hóspedes ou que se intervém nas suas trivialidades, uma fantasiadora do degrau que nunca irá “pisar”). 

Contudo, é neste capítulo que presenciamos os desempenhos mais ferozes, seja uma Beatriz Batarda em modo “mommy dearest” ou uma Leonor Silveira, despojada vilã de novela, no desempenho mais desafiador da sua carreira nos últimos (e largos) anos. Poderão ser dois filmes desiguais, um mais cuidado que o outro, mas são provas da maratona que Canijo tem executado ao longo da sua carreira, da performance à idealização de um cinema prestigiado por diversos “pontos de fuga”.

 

"Magoamos a mãe?"

Fisicamente ...

Parir doi ...

Transforma."

E tudo começou na Rua da Cidade de Rabat ...

Hugo Gomes, 22.02.23

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O cinema como confessionário, ou antes divã. Papel branco em jeito diarístico, tela como o mais fiel companheiro, a plataforma de partilha de sentimentos, pensamentos e anotações. Gesto, esse, que se tem sido sugerido como um caminho a percorrer a novas vozes ou a estágios de introspecção, e no panorama nacional, vemos uma normalização desse mesmo estado de “abertura” enquanto matéria fílmica. Para muitos uma tendência de tratar o cinema por “tu” e o espectador por “vocês”, para outros um tratado de ego, um narcisismo, a espreitadela contemplativa ao Espelho de Narciso

Susana Nobre nunca negou que o seu cinema é feito de partilhas, de experiências e motivações concretamente trabalhadas em filme, condensadas e integradas num perpétuo movimento de procura e de redescoberta. Fez desse mote a sua partida observacional no programa das Novas Oportunidades [“Vida Activa”, 2014)”, para mais tarde espelhar as suas reflexões maternais [“Tempo Comum”, 2018] e pelo caminho debruçando em histórias de outros [“No Táxi do Jack”, 2021], Nobre nunca dedicou-se inteiramente a si, até porque sob a sua perspetiva o cinema é um mecanismo “díptico, uma pessoa que ouve, outra pessoa que fala, uma que interpela e outra que responde, num espaço completamente circunscrito”. Mas é aí que “Cidade Rabat” rompe a “tradição”. Confeccionado como a sua primeira longa de ficção assumida, a realizadora se esconde por trás do exercício narrativo para transformar memórias num afazer. 

O exercício está à vista de todos, deitar-se no divã e abordar os seus fantasmas, o seu luto e trazer dessa sua experiência um deslumbramento para novos rumos, mais existencialistas que artísticos. Nessa feita, “Cidade Rabat” parte de um estado de autognose, uma rua lisboeta de igual designação ao do título nas Portas de Benfica, uma escadaria num prédio antigo, moradores singulares, piso a piso, até cedermos ao rés-do-chão, à figura maternal que aí habita (ou habitava), esse início de tudo. A voz de Susana - um espírito concentrado na figura de Raquel Castro, anterior enfermeira (esta informação dará luzes a um discreto e delicioso cameo em tom jocoso de "troca-de-papéis"), agora atriz - nos guia por essa viagem memorialista sem representação visual, é um trajeto imaginário em modo “Big Bang”, a génese, a origem das “coisas”, ou melhor o fim de todas elas. 

Porque é através do luto que “Cidade Rabat” despoleta, metamorfoseia-se num retrato de dor (o verbo não é coincidência, o filme prossegue do mesmo ponto que A Metamorfose dos Pássaros de Catarina Vasconcelos, da ausência), numa terapia à mesma, porém, ao contrário do seu cinema não dá “ares” de partilha, remonta-se como uma demanda sua e só sua poderá se revelar. Porém, o exercício esgota na sua própria premissa, a veste fúnebre é intransponível, a realizadora fala para ela própria (com imagens sobre ela própria) enquanto despe a sua ficção de todas as suas vertentes fabulistas, ao espectador cabe entender o nojo, a negação, a deambulação e por fim, superação em forma de emancipação (muitos “ãos” aqui reunidos!). Com “Cidade Rabat”, uma “coisa” é certa, Susana Nobre é mais arregaçada em falar dos outros do que resumir-se a si própria. 

“Aqui não vos acontece nada”

Hugo Gomes, 01.02.23

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"A Primeira Idade" (Alexander David, 2023)

Em “A Primeira Idade” existe a prolongação de um sentimento (ora também transferido para esferas político-sociais portuguesas) de que necessitamos da “disciplina” ou da regulamentação, tão bem infiltradas como “tradições”, para nos movimentar numa falsa-sensação de liberdade. Possíveis migalhas de uma "indústria" crescida sob o “asilo” salazarento, bastando recordar um particular “episódio”, que no apogeu de uma balbúrdia, as crianças são abrigadas nas promessas de seguranças de Vasco Santana e do garrafal lettering Salazar em “O Pátio das Cantigas” (“Aqui não vos acontece nada”). 

Fora as propagandas de regime, e a passagem do militarismo quase panfletário que muitas produções pós-25 de Abril se revelaram, chegamos ao novo século nas juras de liberdade existencial, porém, enganadas pelo ditame de regras e normas comportamentais por escrito. Em “A Cara que Mereces” (2004), a primeira longa de Miguel Gomes, o protagonista (José Airosa) refugia-se do “mundo” [da sua realidade] e para isso constrói o seu próprio regimento, a lista de normas que não só o próprio, mas como todos os seus participantes anseiam cumpri. O seu cumprimento não é mais do que o merecido numa instantânea fábula de imposição. Por outro lado, alicerçado a uma satírica alegoria política, “A Espada e a Rosa” de João Nicolau (2010), requisita a inspiração corsária na demanda de um quotidiano regido pelas suas limitações, em confronto direto para com o embuste liberal da suas anteriores vidas (aqui, é a substituição de uma doutrina por outra, sublinhando apenas a ideologia a abraçar em cada uma dessas “realidades”). 

Nesta trajetória chegamos a bom porto à ilha de crianças-adultas cujo medo da segunda e derradeira parte do seu crescimento leva-os a conceber uma “mini-sociedade” politizada e interagida em costumes ancestrais. A existências destes jovens é contada, cronometrada e concentrada, a passagem para a fase seguinte os conduz a uma cerimónia de dissidência. Abandono ou suícido é o que espera destas outrora crianças deixadas ao desconhecido e na “companhia” da sua maturidade.

Esta primeira longa-metragem de Alexander David (que "bebe" de iguais e mencionadas regulamentações presentes na filmografia de Miguel Clara Vasconcelos, o qual trabalhou diversas vezes como ator) é uma quimera de “O Senhor das Moscas” [o romance por William Golding], crianças à mercê da sua kantiana consciência de preservação, para trespassar numa alegórica Caverna de Platão, no preciso momento em que um grupo de desertores aventura-se para longe do seu, temporariamente, conformista território. Nessa demanda, a paragem única e possível é uma cabana no meio do mato, uma armadilha “desenhada” pelos adultos monstruosos que os observam atentamente. 

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Vampyr” (Carl Theodor Dreyer, 1932)

Aí livros, objetos nunca vistos para estes olhos inocentes e cinema entram em contacto com os exilados. Assim, prescreve-se o anterior ato de descrição daquela improvisada sociedade distópica, prosseguindo num questionando do próprio regime perpetuado no entusiasmo das suas personagens quanto às respectivas descobertas. Entre elas, o encontro imediato de terceiro grau com imagens desvirginadores, o cinema mudo a assumir esse papel-guia por temáticas desconhecidas para os demais. A morte presenciada em “Vampyr” (Carl Theodor Dreyer, 1932), por exemplo, preenche a pedagogia em falta, é como se David encantasse com a ideia de uma hipotética redescoberta do cinema (mimetizando o construção do alfabético semiótico suscitado com a proximidade das “imagens em movimento” de há um século). 

Contudo, essa descoberta é efêmera, até porque a deambulação persiste ao invés do proativismo que poderia emanar. “A Primeira Idade” [coincidentemente da produtora Primeira Idade] é interiormente um filme de amarras com a cobiça de se libertar e vaguear pelo paraíso das “coisas”, mas acaba por ser incapacitado face à sua prisão, e nisto entra uma certa tendência portuguesa, mais por culpa da nossa inerência do que da produção em si, o de encostarmos a este senso utópico da regra enquanto único harmonista.

Pedro Henrique: "Se não nos dedicarmos a subverter e a transformar o mundo, de que é que vale a pena?"

Hugo Gomes, 31.01.23

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"Frágil" (2022)

Chegamos ao tão pretendido *Club*, a ambição acima do humanamente possível que o protagonista Miguel (Miguel Ângelo Santarém) deseja concretizar, como último desejo da sua juventude de abanões e abandonos. Esta é a premissa, ora rasurada, ora minimizada de “Frágil”, um dos mais falados filmes portugueses de 2022 (graças aos protestos na sua sessão de apresentação no Indielisboa), a primeira longa-metragem de Pedro Henrique (sob o nome artístico de João Eça), que marca presença no calendário de estreias comerciais no primeiro mês de 2023. 

Convidado pelo Cinematograficamente Falando … para responder a algumas questões sobre a sua obra, sobre a sua órbita e sobre o estado formal e intelectual do cinema poruguês, eis as suas respostas e quiçá, statements

Gostaria de iniciar, não como uma questão limitada à génese deste projeto, mas dando uma festa ao “elefante na sala” [o protesto na sessão de apresentação do “Frágil” no Indielisboa e no Festival de Turim], como tal gostaria de fazer a pergunta desta maneira: o que pretende atingir com o seu projeto?

Nunca é demais lembrar a máxima que diz que o processo é mais importante do que a meta. Na verdade, só há uma “meta”, no sentido em que falamos de um “fim”, porque vivemos num sistema que nos dita que as coisas têm, forçosamente, de acabar. Ou seja, o “fim” ou a “finalidade” não são existências ontológicas do mundo, são sim efeitos políticos e performativos do discurso e das nossas práticas. 

É perfeitamente possível imaginar um mundo alternativo em que umx cineasta poderia trabalhar num filme o tempo que quisesse, justamente porque não haveria estruturas nem instituições económicas e políticas que estabelecessem e/ou regulassem os seus poderes através da performatividade da meta e do prazo: “tens de acabar isto até dia X, senão vais fora!” Ora, esta lógica do poder só existe, no fim de contas, fruto dos mecanismos de competição que devem definir xs vencedorxs em prole dxs vencidxs (é justamente porque vivemos num sistema de vencedorxs a que chamamos o capitalismo que devemos competir a todo o custo). A competição (em primeiro lugar económica, mas não só) entre indivíduxs (isto é, entre átomos sociais) veio substituir outros tipos de hierarquização e distribuição do poder: a linhagem de sangue e o sistema de vassalagem feudal, por exemplo; os sistemas de castas; certas práticas religiosas de beatificação ou canonização…

Foi justamente contra esta ideia de competição que dirigimos o nosso protesto-performance no IndieLisboa, ou seja, contra o facto de os festivais de cinema nos obrigarem a competir contra xs nossxs amigxs e colegas de profissão(e não apenas de forma directa e violentíssima, como também tornando essa competição num espectáculo performativo de massas). Mas, para além desse facto mais evidente ao qual nos opusemos de forma clara no nosso discurso e ações, há outras coisas (também elas fruto da competição) que temos criticado para nós mesmxs com veemência: por exemplo, toda a pressão que implica termos de estar ali, naquele momento de apresentação do filme, com um objecto absolutamente terminado que deve ser considerado melhor que os outros. O que a competição e a lógica da vitória produzem é a quase total obliteração da liberdade de experimentação, do erro, da criação partilhada, do trabalho que dure no tempo, da possibilidade da crítica construtiva, da reformulação dos projectos... 

Segundo a regra da competição tudo deve estar pronto o quanto antes, e o melhor possível, claro! Esta pressão do tempo é intrínseca ao capitalismo, porque é de uma verdadeira corrida que se trata. Ora, o que temos pretendido atingir com o nosso “projecto”(como lhe chamas) é, tanto quanto possível, não fazer disto uma corrida. Tomar o tempo necessário (o tempo justo, diria mesmo), seja esse tempo de seis meses ou seis anos. E ir pensando em cada fase do processo (à medida que o próprio processo se vai desenrolando) para que possamos tomar, com calma e justiça, as decisões que nos deixem num espaço político e artístico confortável. É evidente que algumas destas decisões são de uma enorme complexidade: por exemplo, queremos estrear o filme comercialmente, ou não queremos? E se queremos, estamos dispostxs a estreá-lo em qualquer cinema, ou queremos escolher o “tipo” de sala? Quais as implicações políticas em estrear um filme (sobretudo um filme como o nosso) num multiplex, provavelmente situado dentro de um centro comercial e que o público irá consumir da mesma forma que consome fast food ou um produto estandardizado de supermercado? Etc., etc., etc. 

As perguntas, as dúvidas e as decisões, claro, são infinitas. Mas temos de fazer o esforço (político, ético) de ir tentando respondê-las uma a uma, mesmo que muitas vezes possamos não estar inteiramente certxs das respostas. Assim sendo, a minha resposta à tua pergunta é esta: o que pretendemos é adquirir o máximo de controlo sobre o nosso filme e sobre o seu destino e isso envolve preocuparmo-nos menos com uma qualquer meta final e mais com o processo e a forma como ele é conduzido. Talvez não tivéssemos esta consciência quando começámos a rodar o filme (eu pelo menos não tinha), mas foi algo que fomos adquirindo com o processo de o fazer e, sobretudo, de o mostrar.

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“Greed'' (Erich von Stroheim, 1924)

Este processo envolve não só a forma como lidamos uns e umas com xs outrxs (as pessoas que trabalharam no filme), mas também a forma como lidamos com as instituições. Os nossos protestos no Indie ou em Turim falam por si mesmos: não só queremos dizer um “NÃO” à competição e ao elitismo dos festivais como também queremos aproveitar o momento de visibilidade que implica estar em cima de um palco a apresentar um filme para denunciar a violência subjacente ao “fazer-cinema” em Portugal (e no mundo, claro, mas a nossa realidade é sempre a que conhecemos melhor). Uma coisa que se tem tornado muito evidente para mim é que os filmes, de certa maneira, se tornaram numa espécie de traição ao próprio cinema. Ou seja, justamente porque olhamos para os filmes como objectos fechados (e por isso finalizados; o que é a mesma coisa que dizer: como fins em si mesmos) tendemos a esquecer todo o processo que existiu por detrás: isto é, todo o esforço, toda a injustiça, toda a exploração. 

O cinema, dada a sua dimensão industrial, é uma arte especialmente violenta e o cinema clássico (americano e não só) tentou esconder isso a todo o custo: a permanente associação do cinema ao sonho, as mitologias por detrás das grandes stars de Hollywood, as narrativas heróicas e escapistas, os happy endings... Mas por detrás disto tudo temos o Irving Thalberg a remontar o “Greed”, do Stroheim, de 8 horas para 2 horas e meia; temos a Judy Garland medicada (barbitúricos, anfetaminas, sabe-se lá mais o quê) pelos próprios estúdios para perder peso e ter energia; e, claro, todxs xs tarefeirxs anónimxs a trabalharem em dias de 11 horas, com 1 folga por semana, a filmarem durante 3 meses fora da sua cidade, senão mesmo fora do seu país (são estes os horários de trabalho no mundo do cinema neste nosso Portugalinho de hoje em dia...). 

De alguma forma, habituamo-nos a que os filmes invisibilizassem o próprio cinema, isto é, a forma como se faz cinema. Ou seja, o objecto-filme esconde ou dissimula o processo-cinema.Por isso, poderíamos mesmo dizer que cada filme é uma espécie de mentira sobre a forma como foi feito: uma verdadeira traição! Há poucxs realizadorxs que procuraram dar a volta a isso (Godard é, sem dúvida, um delxs, especialmente no período Dziga Vertov). Acho que o que tentámos fazer com os nossos protestos foi tornar visível esta violência que geralmente é invisibilizada, isto é, tornar essa violência num assunto público. Mais do que fazer bons filmes (isto é, objectos “finais”, perfeitos ou imaculados, portanto,objectos que sejam um resultado ou uma meta em si mesmos) queremos transformar os processos de fazer cinema. E não vejo como poderia ser de outra forma. Porque, no fim de contas, o cinema é muito mais importante do que os filmes.

Mas quanto aos protestos, e sabendo que hoje [com a estreia do filme em circuito comercial], será difícil dissociar a sua ação do filme. Publicidade gratuita? Ou uma maldição para o mesmo?

A ideia de que aquelxs que protestam são “uns ou umas desesperadxs em busca de atenção” é uma ideia muito comum entre gente mesquinha e sem grande horizonte de sentido (crítico e sobretudo autocrítico). Ora, curiosamente, umas horas antes de responder a esta entrevista estive a ver o vídeo do protesto da Keyla Brasil, artista trans e prostituta que interrompeu a peça “Tudo Sobre a Minha Mãe”, no Teatro São Luiz, denunciado o facto de uma das personagens trans ser interpretada por um actor cisgénero (dessa forma ocupando o palco de um dos teatros mais famosos de Portugal enquanto ela e outras artistas trans têm de se prostituir na rua para conseguirem sobreviver economicamente). Ora, no post de Facebook da página do Expresso (como sabemos, um jornal de direita) era assustador reparar (para além da falta de sensibilidade e evidente transfobia dos comentários) no quão frequentemente se atacava o protesto da Keyla pelo ângulo do mediatismo. Basta citar alguns desses comentários:

«A julgar pelos contornos e desenvolvimentos do episódio, sou levado a crer que toda esta situação foi "armada" para publicitar a peça teatral em questão. Nos dias de hoje, o marketing pela polémica tem muita força e alcance.»

«5 min de fama!!!!! Pior é quem dá crédito a isto.»

«Um mero golpe publicitário. Já que a peça é o que é...e o público anda desinteressado...»

Numa sociedade onde a purga do conflito se tornou um imperativo moral (tout va bien, como diz o título de um filme do Godard) qualquer sobressalto, crítica ou disrupção será visto como um “chamar à atenção”, ou seja, como um golpe publicitário ou de mediatismo. Na verdade, quão mais se insiste na ideia de que o importante não é o conteúdo crítico, mas sim o gesto (individualista, narcísico, etc.) dx performer que comete o acto disruptivo, mais atenção se dá a estx últimx. Ou seja, aquelxs reaccionárixs que pretendem desmontar o interesse (supostamente cínico)de quem fez o protesto acabam por contribuir para a causa que criticam: ou seja, não param de chamar a atenção sobre a figura do performer, mesmo quando pretendem o contrário. Ora, a meu ver, essa “publicidade gratuita” (citando atua pergunta) é absolutamente irrelevante perante a dimensão do protesto. O que importa que o nome de Keyla Brasil seja agora conhecido por mais algumas centenas, senão mesmo milhares de pessoas? O que importa é a dimensão, ou o conteúdo,implicado pelo seu gesto e creio que ela estava absolutamente consciente dessa dimensão (política, estética, histórica, performativa...). 

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A atriz trans Keyla Brasil interrompendo a peça "Tudo Sobre a Minha Mãe" no Teatro São Luiz, em protesto à representação "trans" do espectáculo / janeiro de 2023

O resto (o mediatismo) vem logicamente por acréscimo e será sempre tão instável como qualquer ideia de sucesso ou de fama ao longo da história da humanidade (pode durar 5 segundos, 5 anos ou 5 séculos...). De qualquer modo, quem somos nós para dizer que Keyla Brasil não merece agora um pouco mais de reconhecimento, diríamos mesmo, um pouco mais de “publicidade”? Não foi o gesto dela muito mais artístico do que qualquer coisa que em muito tempo tenha estreado no São Luiz? Porque segundo esta lógica retorcida do ressabianço daquelxs que integram o status quo, uma performer merece sucesso e reconhecimento se estrear uma peça num palco de renome e se xs críticxs forem lá dar muitas estrelinhas (cumprindo assim toda a expectativa normativa, institucional e burguesa em torno do “fazer-arte”), mas uma performer que faça um gesto verdadeiramente artístico (porque verdadeiramente disruptivo e político) como o de Keyla Brasil, aí só está à procura de publicidade gratuita?!! Ora, para quem quer que ocupe lugares de visibilidade para fazer protestos políticos, sejam eles o palco do Indielisboa, do São Luiz ou o Ministério da Habitação (por exemplo, em várias acções em que participei ao longo dos anos com o colectivo Stop Despejos), é evidente que o mediatismo é um factor importante. 

À partida, diríamos que ninguém faz um protesto para que ele morra no momento em que acontece. Mas daí a extrapolar para uma espécie de oportunismo parece-me apenas uma contra-estratégia muito baixa (e muito fácil) por parte de quem não é capaz sequer de criticar o conteúdo político do protesto em si. Quando os meus filmes não tinham estreado em nenhum festival e eu passava a vida a criticar a competição e o mundo do cinema, havia quem me chamasse ressabiado porque ainda não tinha tido nenhum sucesso (do tipo: “ele só diz mal dos festivais porque os filmes dele nunca foram seleccionados para nenhum”). Agora que um dos meus filmes, este “Frágil” de que aqui falamos, de alguma forma foi “reconhecido” pelo sistema, há quem venha questionar (como na tua pergunta) se o nosso protesto não foi publicidade gratuita... 

Bom, o que isto quer dizer é que não podemos ter nenhum gesto político hoje em dia porque há sempre alguém que vem dizer que ou somos ressabiados (porque ainda não fomos aceites pelo sistema) ou somos oportunistas (porque estamos a usar a crítica ao sistema para entrar no próprio sistema, ou seja, para nos valorizarmos)! Se calhar devíamos passar menos tempo a tentar rebaixar ou desmascarar aquelxs que ousam criticar o status quo e dar mais atenção ao conteúdo das suas críticas, que é o que realmente importa.Mas é sempre mais fácil a tentativa do rebaixamento pessoal... especialmente para quem não tem muito jeito para a argumentação política ou para quem ao longo da sua vida muito pouco tem feito para mudar seja o que for.

Quanto à segunda parte da pergunta, não percebo em que sentido é que o protesto poderia ser uma maldição para o filme. O protesto é, na verdade, um prolongamento necessário do próprio filme e dos seus temas mais evidentes: ora, troque-se o “Club” do filme por um festival de cinema e o resultado político é mais ou menos o mesmo.

“Frágil” foi automaticamente apelidado de “OVNI no Cinema Português” pela crítica antecipada e pelo público recorrente do Indielisboa, este termo provoca-lhe alguma “aflição”? Ou é um sintoma de uma cinematografia que durante anos envolve-se nos mesmos temas, estéticas e pensamentos? O que realmente pensa do cinema português atual?

Ser um OVNI é sempre bom. Significa que não estamos a seguir uma manada, para usar uma expressão muito bonita do Saramago. Sobre o cinema português, acho que há pouca gente que esteja realmente a experimentar novas formas cinematográficas: ou fazem-no durante um tempo, quando são jovens, antes de se acomodarem ao sucesso e às fórmulas que “resultam” (porque vendem, porque dão boas críticas, porque dão prémios: veja-se o caso do Pedro Costa, de quem gosto muito de alguns filmes, mas que já não é capaz de arriscar em nada, portanto, que já não é capaz de mudar a própria “fórmula” segura que encontrou com o tempo). Contrapomos o “cinema de autor” ao “cinema mainstream”, o que é uma forma fácil de evitar grandes questionamentos sobre como mesmo a “autoria” está sujeita à reprodução acrítica de fórmulas, de tiques, de maneirismos. O facto de haver certas linguagens ou certas formas de fazer cinema que “vencem” (por exemplo: o cinema do Oliveira, do Pedro Costa, do César Monteiro) faz com que surjam uma série de imitadorxs menos interessantes. Não digo que essa “imitação” seja consciente, até pode não ser, mas o que ela revela é que acabamos por nos subordinar, ainda que inconscientemente (o que até é mais perigoso, de certa maneira), aos modos vitoriosos de fazer cinema, isto é, aos modos que triunfam nos festivais, na crítica, etc. Mas sobre a questão que falava a propósito do cinema tardio do Pedro Costa, é muito frequente que quando umx cineasta faz um ou dois ou três filmes aclamados se acomode de repente a esta coisa tão fácil que é fazer pastiches do seu próprio cinema. 

É como se umx cineasta já não tivesse nenhum objecto de reflexão ou de interesse a não ser uma ideia formatada do que deve ser o seu próprio cinema, como se não pudesse senão repetir ad infinitum aquele filme ou dois que o tornaram famosx. Neste caso, já não são cineastas a imitar outrxs cineastas, mas cineastas a imitarem-se a si mesmxs (basta ver os filmes mais recentes do Tarantino ou do Woody Allen, óptimos exemplos desta decadência para o pastiche quase caricatural da própria obra de umx realizadorx). Há alguns e algumas cineastas portuguesxs de que admiro os primeiros filmes, mas que depois cedem a esta pressão “maneirista” de se repetirem (e de se esvaziarem) até à exaustão.

Fora estas questões mais estéticas (mas que em todo o rigor também são profundamente políticas), o que me deprime mais é o elitismo e o tribalismo do fazer cinema em Portugal. Há uma fragmentação muito grande das produtoras e é muito difícil conseguir os grandes financiamentos do ICA (porque são demasiado poucos). Por isso, as produtoras só apostam em projectos de alguém que já tenha um certo currículo: ou seja, ganho um prémio, circulado em vários festivais, recebido este ou aquele financiamento. Isto conduz-nos a um ciclo vicioso: precisamos de financiamento e de uma produtora para fazermos um filme, mas, veja-se o paradoxo!, o financiamento e as produtoras só vêm se já tivermos (não se sabe bem como) arranjado forma de fazer um filme antes (e, claro, se ele tiver tido algum sucesso!). Ou seja, para conseguirmos fazer um filme de maneira convencional (isto é, com financiamento, produtora e com possibilidade de pagar decentemente à equipa e actores ou actrizes...) temos de já ter um BOM (seja lá o que isso for...) filme para exibir no currículo. Ora, como é que se sai deste imbróglio? Anda-se seis anos a fazer um filme sem financiamento e quase sem dinheiro, com a boa-vontade de um grupo de amigxs e colegas de profissão, esperando que um dia se consiga acabar o filme e que alguém tenha a paciência de lhe dar um pouco de atenção. 

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"Frágil" (2022)

Aconteceu com o “Frágil”, é verdade, mas conheço casos de filmes maravilhosos (que demoraram 5 anos a ser feitos) e que não tiveram a mesma sorte no processo de distribuição (ou seja, que praticamente não foram vistos em festivais, nem tiveram estreia comercial, nem sequer qualquer atenção por parte da crítica...). O processo de começar a fazer cinema depois de sairmos da escola é especialmente ingrato, violento e muitas vezes desesperante. Há muita gente que faz um filme e depois desiste, há mesmo quem não chegue a fazer nenhum.Por outro lado, aquelxs que triunfam tornam-se nas divindades bem-apetecidas das produtoras, sobretudo porque o ICA valoriza de forma absurda o currículo dxs realizadorxs, em vez de se focar na proposta artística dos projectos, como acontece com os outros financiamentos de menor escala (GDA, Gulbenkian, SPA). 

Isto conduz a um fechamento das produtoras nestx ou naquelx realizadorx e só contribui para aumentar o tribalismo e o exclusivismo, bem como a lógica atomista da competição. Resultado: o cinema português (de sucesso) resume-se a estx (grande) realizadorx a competir contra aquelx outrx (grande) realizadorx, cada umx delxs apoiadx pela sua produtorazinha mascote... Já imaginaram o que seria se um puto saído da Escola de Cinema se virasse para o Pedro Costa e lhe dissesse que queria corealizar um filme com ele? O Costa nem lhe respondia: virava-lhe a cara e fechava-se outros seis anos a fazer o seu próximo filme numa solidão quase masturbatória. E, no entanto, o que é que há assim de tão estranho nesta ideia? Quer dizer, de que miúdxs e graúdxs pudessem colaborar uns e umas com xs outrxs. De que não houvesse esta divisão absurda entre o sucesso e o insucesso, entre a experiência e a falta dela. Vivêssemos nós num mundo onde a cooperação e a solidariedade fossem a norma...

Em 6 anos de concepção de “Frágil”, sentiu que durante esse período a noite lisboeta e dos noctívagos “transformaram-se” (não referindo apenas ao contexto pandêmico)? Que o retrato, mesmo que meio abstrato e satírico desse mundo nocturno, é hoje reconstituição histórica do seu filme? Ouvi após uma sessão de “Frágil” que os “afters” já não existem mais, apenas os resquícios … 

As minhas ressacas são a prova de que os afters estão tão vivos quanto antes. A noite de Lisboa mudou muito, é verdade... os afters não diria tanto. O que posso dizer é que dantes o meu grupo era mais afunilado, basicamente a malta toda que aparece no filme e mais umas quantas pessoas. Também o que é certo é que na altura conhecia muito menos gente (na verdade, comecei a sair à noite “a sério” em 2015 e o filme foi filmado em 2016/2017: foi tudo muito rápido, muito vertiginoso). Hoje dou-me com mais grupos distintos, por isso é evidente que algumas coisas mudaram nas dinâmicas sociais. Mas o core (dos afters) continua o mesmo. Quanto à noite em si, creio que a pandemia veio piorar a situação toda. Houve espaços que ficaram em grandes dificuldades financeiras com os lockdown se por isso se viram forçados a aumentar os preços de entrada: espaços onde o acesso era gratuito e onde agora se paga um valor à porta, ou espaços associativos onde a quota subiu exponencialmente de preço. 

Outra coisa que aconteceu foi alguns espaços terem mantido os horários pandémicos e agora fecharem às 2h ou mais cedo em vez de fecharem às 4h, como antes da pandemia. O que isto significa é que a oferta geral (sobretudo a preços acessíveis) diminuiu bastante e, em contrapartida, os espaços foram invadidos por turistas. Havia lugares que dantes eram “meeting points” e que agora deixaram de o ser. A cidade ficou com uma energia meio centrífuga e dispersa, não sei, parece meio deserta às vezes. É preciso ir-se para a porta do Lounge para tentar encontrar alguém... E é evidente que se arranja sempre alguma coisa, mas lá está, muito mais em casas de amigxs do que propriamente na noite. 

Festas fixes há muito poucas: os espaços fecham cedo, estão mais caros, cheios de turistas e a malta já não vai lá como antigamente.É uma espécie de gentrificação da noite que não passa necessariamente pelos espaços fecharem, mas pela sua reconfiguração, encarecimento e turistificação. O que é bastante triste, na verdade. E pronto, lá continua o “Club” de Lisboa, à beira rio, hegemónico como sempre...

Há um outro filme português - “Verão Danado” de Pedro Cabeleira - que fora das suas “festividades” e “viciosos néctares" [álcool, drogas, e mais] contemplamos uma juventude no seu limite, mal-amparada, precária e sem sorrisos guardados para o futuro. Encontrei isso no seu filme, excepto a “juventude fora-de-prazo”, mas esse silencioso desespero de esbarrar num “beco sem saída” e cujas festas e seus ingredientes servem de escapismo. 

Apesar das inspirações ao Cinema dos Safdie e do Korine que o filme tem suscitado entre os demais, é certo, que reprova esse cinema como sua influência, tendo em conta as entrevistas dadas nos mais diferentes órgãos, o qual responde com muito do clássico e fora da entropia juvenil e febril que associamos a muita produção atual.

O cinema contemporâneo interessa-me pouco. Um dia, com mais tempo, hei-de escrever algo sobre isso, mas assim esquematicamente creio que uma série de fatores históricos e políticos vieram um bocado arrumar com a “sétima arte.” Não se trata de dizer que “antigamente é que era bom”, isso é um discurso reacionário para o qual não tenho paciência. Mas a ideia oposta (de que as coisas nunca mudam, de que é sempre tudo bom) é uma ideia que recusa a própria noção de História (e, por isso, de transformação do mundo). Ou seja, a meu ver, há de facto momentos e períodos específicos da história humana que permitem e permitiram certos acontecimentos estéticos, formais e, sem dúvida, inovadores. 

O cinema soviético dos anos 1920 é qualquer coisa de inigualável: um momento maravilhoso para a humanidade! Mesmo o clássico americano (mas também o francês, por exemplo), com toda a sua formatação e aparente simplicidade produziu alguns dos filmes mais arrebatadores da história do cinema (é preciso não esquecer que, fruto do nazismo, houve centenas, senão milhares de realizadorxs, técnicxs e actores/actrizes que fugiram da Europa para o core do studio system americano: basta mencionar o caso de um dos meus favoritos de sempre, o Fritz Lang!). Ou seja, o clássico americano, por causa de um acontecimento histórico (o nazismo e a segunda guerra mundial), foi invadido pelo “crème de la crème” do cinema europeu de vanguarda (pelo que o clássico nunca foi, em todo o rigor, inteiramente clássico...). 

Mas regressando ao cinema contemporâneo: acho que o cinema está cada vez mais formatado pelas linguagens televisivas e agora pela internet; mas, sobretudo, acho que o começo do reinado do blockbuster nos anos 1970/1980 veio destruir esta merda toda. A lógica no interior do studio system sempre tinha sido a do dinheiro, é verdade, mas ainda assim havia uma competição (mesmo entre os estúdios) que era também ela artística. Isso perdeu-se com os rios de dinheiro que os blockbusters começaram a fazer, mas principalmente porque o tipo de filme que dá dinheiro se modificou e se veio a focar cada vez mais na lógica do efeito especial e do estímulo sensorial imediato. 

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"After Hours" (Martin Scorsese, 1985)

Paradoxalmente, ao mesmo tempo que o “efeito” (e não o drama, a narrativa ou a forma) se tornou preponderante sobre tudo o resto, os filmes não pararam de ficar mais realistas. Uma verdadeira seca: filmes cheios de monstros, mas onde tudo é o mais real possível... O realismo (ou a convenção do que é o realismo) implica a destruição da arte. Vivemos uma crise da imaginação e poderia escrever páginas sobre isto, mas de forma muito resumida acredito cada vez mais que quão menos a imaginação for estimulada, menos opções ou alternativas a este sistema vão surgir. Tudo isto é profundamente político, portanto: refiro-me à ditadura do realismo (que não é apenas um realismo artístico ou estético, é todo um sistema ideológico a que o Mark Fisher chamou “realismo capitalista”). Nos anos 1930, ’40 e ’50 havia cinema mainstream bom, isto é, a produção dominante era muitas vezes desafiante, arrojada, crítica, estimulante (e isto apesar de toda a censura, formatação, etc.). Hoje em dia isso não acontece. Claro que há cineastas que me interessam, mas é quase impossível ver os filmes delxs. 

Falando sobre o caso americano: onde é que eu consigo ver um filme da Deborah Stratman ou do Jon Jost numa sala de cinema? Tenho de esperar que a Cinemateca se lembre de fazer uma retrospectiva... Mesmo "sacar" os filmes desta gente é difícil, às vezes impossível. Resultado: raramente vejo um filme contemporâneo que me interesse. Os que estreiam no cinema são já formatações do que deve ser o cinema “sério”, de autor, o cinema que resiste ao mainstream. Mas também isso é já uma produção industrial, ou seja, uma reprodução de uma ideia dominante e burguesa de fazer cinema. Filmes de festivais, poderíamos dizer. E a maioria deles mais secas realistas. Não tenho paciência... Dêem-me os lagos do James Benning.

Ora, como já disse noutros lados a comédia musical, a paródia e o slapstick foram os géneros ou estilos “clássicos” que inspiraram o “Frágil”. Mas falar em clássico é sempre enganador porque, justamente, estes géneros (ou estilos) eram os mais disruptivos (o musical porque fazia suspender a narrativa, mudava a função dos objectos ou introduzia a abstracção do gesto coreografado, entre tantas outras coisa, claro; o slapstick porque fazia emergir as situações mais absurdas e disruptivas no interior da expectativa dramatúrgica; etc, etc, etc.). Estou a simplificar tudo isto, como é óbvio, podia escrever um livro sobre a radicalidade da comédia musical no interior da formatação do studio system. O que quero dizer é que aquilo que me inspira no clássico é justamente o quão moderno ele consegue ser. 

Vivemos na pós-modernidade (peço desculpa pelo chavão) e por isso não posso deixar de me interessar pelas zonas de intersecção, ou seja, por tudo o que ponha em causa os dualismos fáceis e as oposições confortáveis. A comédia musical situa-se numa zona de intersecção entre o clássico e o moderno. Creio que é esse o território que o “Frágil” ocupa, porque esse é um território necessariamente lúdico, de experimentação entre várias formas e modelos. E o mundo que nos propomos a filmar é também ele um mundo lúdico, um mundo de intersecção entre várias oposições: a noite e o dia, a festa e o mundo das obrigações, o imaginário (infantil) da brincadeira e a expectativa (adulta) da normalidade… No after, tal como na comédia musical, a “narrativa” (dominante) é suspensa temporariamente e podemos dar asas a um mundo onde tudo pode ser reconfigurado. A citação da Alice no País das Maravilhas (o guarda-roupa do Miguel na cena dos ácidos) não é por acaso... 

Ora, um musical em ácido em que descemos cada vez mais fundo pela toca do coelho da Alice, não é isso que são os nossos afters? 

(Espero que sim, senão é porque não andam a ter afters de jeito.)

Senti em “Frágil” um espírito muy “After Hours” de Scorsese, ambos os filmes seguem a simples premissa de uma tarefa aparentemente fácil (no filme de 1985 o protagonista apenas desejava regressar a casa, aqui, o desejo de ir ao *Clube*), mas impossíveis de serem executados devido a um intenso malapata. Pertinente, gostaria de trazer à tona a longa gestação desta obra com esse conceito de tarefa “impossível”…

O filme do Scorsese é, sem dúvida, uma influência. Embora com o passar do tempo vá gostando menos do filme, confesso que acho a premissa extremamente sedutora. De qualquer forma, esta concentração temporal da narrativa numa única noite ou, pelo menos, num bloco aparentemente sequencial não é uma invenção do Scorsese. Mas é algo que funciona extremamente bem neste registo alucinado pois, como é evidente, a sucessão de peripécias é ainda mais acentuada quando o tempo aparece concentrado ou, pelo menos, o mais contínuo ou linear possível. Nesse sentido,para mim sempre foi bastante claro que a ação do “Frágil” deveria decorrer no seguimento de uma única saída (estendida, como acontece muitas vezes, ao longo de um fim-de-semana inteiro...). 

Sobre a ideia do filme como tarefa impossível, creio que o que (quase) impossibilita (ou poderia ter impossibilitado) a concretização do mesmo é este sistema doentio que montámos para nós mesmxs. Um sistema de elites e de exclusão, de vencedorxs e de vencidxs, de frustradxs e de invejosxs, de gente sozinha com os seus filmezinhos. O cinema devia ser uma festa, uma coisa colaborativa e de aprendizagem mútua, uma forma de nos relacionarmos com e de transformarmos o real. Em vez disso, tornou-se numa coisa de egos, de competição, de narcisismo e de solidão. E de alienação, no fundo. Estamos separadxs uns e umas dos outrxs. Mais impossível que acabar um filme, é superar esta separação fundamental. Ou seja, reconfigurar toda a forma como fazemos cinema.

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"Frágil" (2022)

“Acho que é preciso corroer a academia a partir de dentro”, disse numa entrevista à “À Pala de Walsh”, acrescentado que se encontra no meio de um doutoramento. Deseja ser professor para subverter e desafiar os próprios moldes acadêmicos? Acha possível o fazer num futuro próximo? 

Se não nos dedicarmos a subverter e a transformar o mundo, de que é que vale a pena? Quero muito vir a dar aulas porque apesar de estar muito consciente da estratificação e da rigidez da academia acredito bastante no poder de umx professorx, não enquanto figura autoritária, mas enquanto figura de autoridade (autoridade no sentido descrito pela filósofa Marie-José Mondzain no seu livro “Homo Spectator”: a autoridade, distinta do poder, seria uma forma de reconhecimento: por exemplo, x alunx que reconhece a sapiência de umx professorx e que quer, de forma voluntária, aprender com elx; e isto é uma coisa bastante distinta da forma disciplinar como funciona a academia e a relação com o ensino e xs docentes). 

Por mais que possamos ter detestado a escola ou a faculdade creio que toda a gente teve pelo menos umx ou mais professorxs que nos cativaram (pelo menos eu tive). Às vezes basta umx para mudar a nossa vida. Apesar do meu cinismo e descrença relativamente às instituições, acredito neste poder tão humano que é o de uma pessoa querer aprender com outra. E acho que, nesse sentido, umx bom ou boa professorx pode ser capaz de criar na sala de aula uma zona temporária autónoma, para usar a expressão do Hakim Bey, ou seja, uma zona onde as hierarquias são suspensas ou contornadas e onde as estruturais institucionais podem, e devem, ser questionadas. No fundo, acredito que uma sala de aula pode constituir-se como uma bolha à parte, ou à margem, no core mesmo da academia. Posto isto, quero demorar o meu tempo a terminar o doutoramento, não tenho pressa de me tornar professor já. Tenho muita coisa para aprender eu mesmo, antes de assumir esse papel. E quando o fizer, quero fazê-lo bem feito. Se calhar na altura vou ter de aprender a fazer menos afters. Vamos ver.

Gostaria que me falasse sobre o “We Live In Fear”, o qual tem declarado em diferentes meios como o seu “primeiro filme com um financiamento a sério”?

Se falar agora sobre o filme, depois perde a piada! A paciência é uma virtude. A única coisa que posso adiantar é que, tal como o “Frágil”, vai demorar o seu tempo. E ainda bem.

Caminhando entre gigantes: Paul Vecchiali, um homem maior que a vida

Hugo Gomes, 19.01.23

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Le Cancre (2016)

Paul Vecchiali nunca acreditou em fazer parte da História do Cinema, o que não lhe impossibilitava de atormentar as suas próprias bases. Provocador, como muitos lhe apelidavam, digamos mesmo que era um prolífico, um polivalente, um homem de “mangas arregaçadas” no que requer à prática de “fazer Cinema”. 

Crítico como crítico na sua vida, descobri Vecchiali nas oportunidades trazidas pelo Indielisboa [em 2017]. Vi parte da sua obra nesses andamentos, sem a menor resistência. Comecei pela empatia, a empatia em não julgar as suas personagens, de nem sequer persegui-las e “enclausurá-las” nas esquadras da moral e da razão. Desse jeito, olhei para aquela face de piedade que só Geneviève Thénier possuía em Les Ruses du Diable” (1966), um contacto directo a de Harriet Andersson em “Sommaren med Moniks” de Bergman, ambas quebrando a quarta parede e solicitando o julgamento por parte do espectador. Nesse particular momento, aquelas personagens deixaram de ser personagens e transformaram-se em algo “nosso”, da nossa realidade, do nosso espírito, Andersson atravessou essa realidade, seguido pela Thénier num filme em que a sua persona era tudo menos agradável de estar. 

Nada no cinema de Vecchiali invoca a fácil conexão, porém não se refugia nos seus “mundinhos”, o seu universo, que se vem abrindo, mais e mais, adquirindo um tom acentuadamente mais intimista (“Le Cancre”, “Train de vies ou les voyages d'Angélique”), mas antes disso o gesto da importunação, “nascer para irritar” seguindo a dica vivente do dramaturgo Dias Gomes. Ora, pena de morte, homossexualidade em períodos tabus, carnalidade, entre outros, “irreverentes” satélites que orbitam essa sua filmografia, Paul Vecchiali foi tudo num só, mas pouco valor lhe atribuíram, hoje esquecido, injustamente ignorado ao cânone e por vezes em desuso perante as correntes ideologias. 

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La Machine (1977)

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Once More (1988)

O único produtor francês na atualidade sou eu” declararia em Cannes em 2016, determinado em não deixar morrer a sua presença naquela nefasta indústria, porém, apesar dos constantes punhos erguidos, Vecchiali era um Senhor (o “S” grande é propositado). Pessoalmente, foi com ele que tive uma das melhores conversas na minha (ainda curta) jornada pelo cinema. Aconteceu na Cinemateca Portuguesa [em 2016], por entre as abarrotadas estantes da sua livraria, ao lado do seu livro de apontamentos sobre cinema francês, “acabadinho” de chegar ao estaminé. , falamos um pouco de tudo - aproveitando o pouco tempo dado pela organização do festival - principalmente sobre a sua relação atual com a arte que aos poucos lhe virava costas e dos seus “pecados”. 

Hoje em dia é necessário bater na política de autores”, frase que ecoou em mim ao longo destes anos, a sua insubordinação contra a uma prisão intelectual e impotência crítica, e além de tudo, uma ode à nossa capacidade de pensar. O homem foi um mestre, e eu, por minutos, o seu discípulo, mesmo que a língua tenha sido uma barreira (o meu francês não é dado a vanglórias). Não me julgou, ao invés disso, demonstrou um carinho pelo meu esforço em construir uma ponte entre duas distintas gerações, cujo ponto-comum era sem dúvida as imagens na tela, esse dialeto universal e transmissível. 

Por fim, recordo, absolutamente, de um acenar de cabeça leve e gentil após ter-lhe dirigido um obrigado pelo tempo disponibilizado por mim. E não foi tempo perdido. Aliás, com Vecchiali nunca é tempo perdido.

Paul Vecchiali (1930 - 2023)

'Bora ao *Club*?

Hugo Gomes, 15.01.23

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Club”, uma palavra censurada, um destino interdito, o “fruto proibido”, a tentação (ou será melhor obsessão) de Miguel (Miguel Ângelo Santarém), jovem que lida com a sua frágil existência, desejando conquistar o lugar (essa tal “heresia”) como fim de uma longa e “desmerecida” viagem. O que não será fácil, porque Lisboa, cidade que alberga esse “Shangri-lá” da diversão noturna, é um espaço labiríntico, e quiçá “carroleano”, habitado por personagens caricatamente excêntricas, “chapeleiros loucos” ou “rainhas de copas”, todas elas, presas aos “seus respectivos mundinhos” o qual tentam prevalecer acima das vontades do nosso protagonista. 

A esta altura do campeonato, difícil será dissociar “Frágil”, a primeira longa-metragem de Pedro Henrique [sob o nome artístico de João Eça], com o seu gesto de protesto, esse, materializado na sua badalada passagem no Indielisboa e no Festival de Turim, e o outro, projetado em forma de filme, produzido e concebido sem (ou poucos) apoios e resultante de um esforços mútuo entre amigos e devotos, uma ode a uma ideia utópica sobre como e deve o cinema português ser produzido para garantir a sua resiliência identitária. Portanto, é nesse aspecto que muitos aproveitam a deixa da sua concretização para tecer textos e repertórios sobre o futuro incerto deste cinema, construindo pontes para uma História ainda “alive and kicking”. 

Frágil”, em certo jeito, ejecta-se diretamente para o território do filme “malapata”, espiritualmente invocando o possível maestro dessa fronte - “After Hours”, de Martin Scorsese - cuja uma simples tarefa reverte-se na impossibilidade de concretizá-la graças às peripécias e encontros acidentais que são invocadas como pragas bíblicas. Para Miguel, essa “toca do coelho” é recheado de todas as distrações que a noite reserva, e por entre elas, o dito “coelho branco” sempre no seu estado lufa-lufa -  o “Club” - esse lounge de uma cidade em estreita mudança, e consequentemente o “after”, tradição em plena convulsão pelas passagens geracionais. Diria mesmo, e entendo, a facilidade com que encostamos o filme a uma específica quadrilha fílmica composta pelos irmãos Safdie ou Harmony Korine, mesmo que Henrique negue com todos os “dentes que têm” tais influências, dando como alternativa o cinema clássico, aquele confundido às gerações que revêem nesta Lisboa de fantasias e estupefacientes como passivos e rígidos estados canonizados. 

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Pois bem, esse classicismo encontra-se presente, camuflado e até configurado àquela lente inconsequente e entrópica. Basta estabelecer uma ligação aos “musicais de sapateado” à moda de Gene Kelly ou Fred Astaire naquele pseudo-momento de musical-contrafeito, um “fail-safe” que “Frágil” guarda como aperitivo alusivo, retirando a ação do terreno slapstick e das idiossincrasias satirizadas desta “Juventude Inconsciente”. Até porque “Frágil” não se sustenta na mera “sai o que sair” como aspeto formal, há um cuidado de não ceder-se ao desleixo como muito do “cinema-jovem” hoje produzido graças ao boom digital. Convém, afirmar que “Frágil” é cinema de vaidades e de malabarismos, mas nunca subjugando-se ao espectáculo grotesco ou desalinhado. 

Em “língua de Camões”, existem outras aproximações a sublinhar, uma delas, também ele um produto “entre-amigos”, “O Verão Danado” de Pedro Cabeleira, o retrato, ora festivo, ora de tragédia de uma última festa do Planeta, de uma juventude nos seus confins, precária, mal-preparada e mal-amparada (de um jeito ou de outro, “Frágil” corresponde nesse esquema de uma Terra do Nunca em cacos, adultos-crianças restringidas ao manual da última balbúrdia). Do outro lado, e sintonizando a sua produtora - Promenade (para além de Videolotion do mencionado "Verão Danado")- encabeçada por Justin Amorim ("Leviano"), um espaço cultivador de “sangue fresco” e de temáticas absorventes dessa mancebia, jogando-se numa estilização pop que se revê como disrupção de uma estabelecida tradição cinematográfica. 

Frágil” é todo ele uma orgia, um protesto, uma ideologia, um escape, uma burguesia, uma afronta, um devaneio, um clássico e um progresso. Mas acima disso, é como uma noite inesperada e mal planeada, nunca prevemos o que irá “sair-nos na rifa”. Desta feita, partimos então em direção ao *Club* … a nossa e possível última estância. 

Radu Jude em edição Unrated

Hugo Gomes, 31.08.22

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Bad Luck Banging or Loony Porn (Radu Jude, 2021)

Em “Bad Luck Banging or Loony Porn” (“Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”), a questão não se resume a “mau porno”, ao invés disso, como a atualidade transformou-se em “pornografia rasca”. A mais recente longa-metragem de Radu Jude (cineasta que tem dado cartas na pós-vaga romena e realçando um cinema muito crítico à história do seu país) venceu o Festival de Berlim de 2021 (mesmo que virtual) com distinção, provando além de mais estar ao desencontro do dito radicalismo que muitos querem vender perante o seu formalismo algo tosco, é um cinema que fala na contemporaneidade por vias de uma ridicularização cruel.

O filme inicia assim como um choque frontal. Pornografia explícita e real frente aos nossos olhos, o dispositivo narrativo que culminará toda esta paródia tragicómica de perspetiva quase apocalíptica. Como tal, seguimos a professora Emi (Katia Pascariu), de uma reputada escola, que irá enfrentar o dia mais desafiante da sua vida. Em plena pandemia, ela será sentenciada por um bando de pais raivosos, com a responsabilidade de ditar o seu futuro. O porquê? Porque a nossa protagonista é estrela de um filme de sexo caseiro com o seu marido, que por obra, ainda desconhecida, “cai” na internet à mercê de qualquer um, principalmente dos seus alunos.

Radu Jude não é um nome praticamente desconhecido para os espectadores portugueses, os seus filmes são presença habitual em festivais nacionais, principalmente o Indielisboa  onde conquistou o Grande Prémio com “Aferim!”, em 2015, e “Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental” não foi excepção nessa mesma tradição, garantindo lugar cativo na programação do festival lisboeta de cinema independente em 2021. Foi nesse período e através desse evento para o qual o contactei para falarmos sobre o seu filme. Dessa conversa nasceu uma troca de ideias que para além da sua nova produção, pandemia, Roménia e até mesmo cinema português eram igualmente mencionados.

[Abaixo segue a entrevista, versão integral e completa da publicada no Sapo]

Gostaria de começar por lhe perguntar de onde surgiu a ideia para este filme e ao mesmo tempo questionar se a pandemia teve um papel fundamental na inspiração do projeto?

Na verdade, a ideia veio antes da pandemia, só que a vinda dela me obrigou a adaptar a tal cenário.

Sendo assim, que desafios trouxe a pandemia ao filme?

Influenciou-se de duas maneiras. A primeira foi a adaptação da história ao contexto pandémico e tivemos de alterar alguns pormenores ali e acolá. A outra, talvez a mais importante, esteve relacionada com a segurança e proteção da equipa e do elenco. Quando estávamos a rodar, no final do Verão do ano passado, os casos de COVID estavam a subir e todos nós estávamos preocupados. Tínhamos alguns atores vulneráveis e que solicitavam mais proteção, por isso tive que mudar. Como se pode ver, no último ato de “Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”, a ação era para decorrer numa sala de aula, mas talvez por razões dramáticas, visto que durante a pandemia tais reuniões em sítios fechados não eram recomendados, alteramos a sequência para o ar livre, com distância social e máscaras. E é isso também, o uso das máscaras, não só entre a equipa, mas no filme. Queria captar aquele momento em que vivíamos, a cidade “vestida” nesse medo pandémico. Como tal, as máscaras não só funcionaram como um método de segurança na rodagem, mas também como um marco temporal para o filme.

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Radu Jude na rodagem de "Bad Luck Banging or Loony Porn" (2021)

Teve que lidar com algum caso de anti-máscara na equipa?

Sim, mas... no caso dos anti-máscaras ou anti-vacinas... compreendo que, para se ser rebelde, tem que se quebrar regras, ser contra as autoridades. Apoio totalmente isso... só que, nestes casos, julgo que vão numa direção oposta. Porque ser contra as máscaras é ser contra o outro, a saúde do próximo. Não usar máscara não é só um risco para quem não quer utilizar, mas para os outros, é como ir na autoestrada a 200 km/h, torna-se um perigo, quer para si como para os outros. Nisso não vejo rebelião alguma, mas sim narcisismo e egoísmo. Expus isto à minha equipa e apenas alguns é que resistiram. Claro que custa fazer um filme ou atuar com máscara, rodamos com tempo caloroso e durante várias horas. É normal que torne o processo ainda mais fatigante. Mas há uma diferença entre esse cansaço e o sacrifício que todos nós fazemos para levar a cabo o projeto. Ou seja, todos, de alguma maneira, cedem para pertencer a uma equipa.

No terceiro e último ato do seu “Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”, aquela reunião entre pais e a professora, foi quase como olhar para a atualidade das nossas redes sociais. Ouvimos teorias da conspiração, antissemitismo, racismo, misoginia, homofobia, um conservadorismo prejudicial, entre as outras barbaridades, é como se o Facebook ganhasse um corpo e rosto.

É verdade. Houve um crítico romeno, Andrei Gorzo, que escreveu que se assemelhava a um conflito de Facebook. Penso que têm razão porque baseei-me realmente no tipo de interações e no dito "barulho" de como saltamos de tópico em tópico nas nossas discussões no espaço virtual. É por isso que tento artificializar essa mesma discussão, tratando-a como uma "sitcom" ou uma comédia de arte, afastando do realismo e abraçando a caricatura. É como Picasso disse uma vez sobre as caricaturas, se não são realistas é porque são verdadeiras.

Para ser sincero, não fiquei convicto que essas figuras fossem totalmente caricaturas, por vezes pareceram-me tão … familiares. 

Sim, claro que juntar todas aquelas vozes no mesmo espaço por mais de meia hora seja meio exagerado. Mas hein? Não é isso que são as redes sociais? Agregadores de discursos díspares? Infelizmente, como bem sentes, aqueles discursos podem ser encontrados exatamente daquela maneira.

Há uma frase que não é literalmente citada no seu filme, mas que parece ser constantemente invocada – “Não há revolução, sem revolução sexual”. Tal que foi vezes sem conta mencionada no clássico jugoslavo de Dusan Makavejev, “WR: Os Mistérios do Organismo” (1971), que acredito que tenha sido uma influência para si, principalmente na forma como a sociedade descrita no seu filme lida com o intimismo e o desejo sexual da Mulher.

Antes de mais, temos que ter em conta que existe uma diferença entre países. O que se passa na Roménia é bem diferente do que ocorre na Alemanha, ou do que ocorre na Holanda, ou até mesmo em Portugal. Não existe bem um senso comum na Europa ou Ocidente, como quisermos chamar.

Porém, é verdade que na Roménia estas atitudes sexistas, misóginas, homofóbicas são mais acentuadas que em outras sociedades como aquelas que mencionei … pelo menos em comparação com a Holanda e Alemanha, nisso tenho a certeza. Claro que o Makavejev foi uma influência para mim, e aqui tentei prestar a sua devida homenagem, não sei se reparou, mas a certa altura é possível ouvir parte da banda sonora do “WR: Os Mistérios do Organismo”. E não só Makavejev, mas uma fatia importante do cinema jugoslavo. No meio deste turbilhão de influências também posso garantir que me baseei na Vaga Francesa, desde Rivette a Godard, e “pitadinhas” de literatura modernista, propícias a esta fragmentação narrativa.

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Katia Pascariu em "Bad Luck Banging or Loony Porn" (2021)

Mantendo a questão da sexualidade, gostaria que me falasse sobre aquela primeira sequência.

O filme porno?

Exatamente.

Foi a única cena filmada antes da pandemia. Um mês antes. Tivemos um ator pornografico e a Katia Pascariu o qual devo-lhe todos os elogios. É uma grande atriz, que tem feito bastante teatro independente e político, e que demonstrou zero complexo para com esta sequência. Aliás,a rodagem desta cena foi bastante cómica, e curiosamente o ator porno mostrou-se mais inibido que a Katia

No segundo ato, intitulado “Pequeno Dicionário de Anedotas, Signos e Maravilhas”, quando chegamos à definição da palavra 'Cinema', somos confrontados com a seguinte ideia: “O cinema reflete os horrores do Mundo, os quais estamos demasiados amedrontados para ver na sua realidade”. Isto, entrando numa metáfora alusiva ao mito de Medusa. Gostaria de confrontar esta mesma definição com o seu cinema.

A citação, em si, do contexto da Medusa e do seu olhar para atribuir significado para com a nossa relação com o cinema, foi retirada do livro “Theory of Film”, de Siegfried Kracauer. É uma frase poética, mas que penso não se enquadrar totalmente com a ideia de cinema. No fundo, gosto desse paralelismo com as imagens visualizadas no ecrã para com a mitologia ateniense de Perseus e o seu escudo espelhado, como única forma de olhar para a monstruosa Medusa. Neste caso para os horrores do mundo que os nossos olhos “a nu” são incapazes de lidar. Colocando dessa maneira, são levantadas mais questões do que respostas. Susan Sontag falou disso no seu livro “Regarding the pain of others” [“Diante da Dor dos Outros”], sobre a complexidade e questionabilidade da realidade. A imagem, em si, é questionada consoante a sua natureza. Por isso mesmo, não tenho com isto uma resposta concreta, nem sequer uma solução para permanentes dúvidas sobre a que imagens deveremos assistir, quais as que devemos rejeitar. Se é eticamente correto vermos imagens de horrores ou se as devemos desprezar. Julgo que nós, enquanto Humanidade, teremos uma resposta absoluta para isto.

Mas no seu filme “I Do Not Care If We Go Down in History as Barbarians” (2018), você exibe essas “imagens de horror” com o propósito de captar as reações a elas. 

Sim, é verdade … por vezes mostro “imagens de horrores”. No filme que mencionas não era bem o ato de mostrar, quer dizer era impossível reconstruir um massacre, mas foi uma tentativa com um propósito. Só que sim, é um problema e um interminável dilema. 

Em muita da sua obra, assim como neste filme, critica a Igreja Ortodoxa ...

Não tanto como queria. [risos] Deixe-me só salientar isto: não tenho problema algum com religião. Claro, desde que não apelem à violência. Nem com os crentes, com a fé em geral. Por mim, as pessoas podem acreditar no que quiserem, até mesmo no horóscopo [risos]. O meu problema com a Igreja, a Ortodoxa neste caso, é ela como instituição, que por diversas vezes se associou a movimentos fascistas. Desde a sua origem turbulenta, que levou à criação daquilo que foi comummente designado como “Ku Klux Klan Ortodoxo”, passando pela ditadura comunista, onde a Igreja fez parte do regime, até posteriormente ligar-se ao poder político e difundir sempre uma mensagem racista, homofóbica e aí fora. É neste sentido que estou contra a Igreja. Quer dizer, se fosse simplesmente para cuidar dos seus fiéis não me oporia, mas pelo facto de se assumir como uma força política com ambição de mudar a sociedade não só para crentes, mas para todos nós... não posso apelar a qualquer simpatia por uma instituição destas.

Tendo em conta o tipo de produção que nos chega, nomeadamente a dita Nova Vaga (Cristian Mungiu, Cristi Puiu, Corneliu Porumboiu ou até mesmo você), na qual o podemos incluir, e até, recentemente, pelo documentário “Colectiv”, ficamos com a sensação de que a Roménia é um país terrível para se viver. [risos].

É uma questão demasiado complexa, e tem, obviamente, uma relação de comparação e perspetiva. Por exemplo, se eu vir os filmes de Pedro Costa, a minha primeira impressão é que Portugal é um país horrível para viver. Mas depois assistimos a um Manoel de Oliveira, ou até mesmo ao “Diamantino”, e já não partilhamos essa ideia. A verdade é que os cenários oferecidos pelo cinema não são 100% coerentes. O que acontece é que nós, romenos, sofremos com a comparação. Comparamo-nos com muitos dos países ocidentais e sentimo-nos mal com essa comparação. Sentimo-nos pobres, incultos ou pequenos. Como referiu, um "terrível país para viver”, com imensos problemas, pobreza e maus políticos. Temos muito para resolver, mas equivalente aos nossos problemas, muita boa gente que forma este país.

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Colectiv (Alexander Nanau, 2019)

Mas nem tudo é mau, e voltando à comparação, se fizermos com, talvez, uma Albânia ou uma Ucrânia, reparamos que, na Roménia, possuímos algumas liberdades que faltam a esses países. E poderíamos ser grandes com uma boa direção, com os ditos bons políticos. Mas como dizia, são questões complexas e a culpa não é concreta. Pode ser nossa, como pode ser da União Europeia, sei lá, é simplesmente complicado. E nisso, é para mim, um dos grandes problemas com o "Colectiv, porque o filme praticamente nos diz que o problema vem da velha política e sistema, e que isso pode ser resolvido com a entrada de novos políticos. Como Vlad Voiculescu, que se especulava que teria a possibilidade de alterar o cenário se fosse promovido a ministro da Saúde. Como tal, fica “bem” no filme, mas é bastante ingénuo e simplista. Porque isso aconteceu, esse tipo converteu-se no ministro da Saúde num novo governo no ano passado e o que resultou foi um desastre. Não por ser corrupto, ele não é corrupto, mas por ser um incompetente e narcisista. Obviamente, que a culpa não seja só dele, o sistema é demasiado grande e profundo para ser alterado apenas pela vontade de uma só pessoa. É uma ideia ridícula e ridiculamente inocente. E é esse o meu problema com o “Colectiv”, o de dar a ilusão de que o sistema pode ser combatido por apenas uma pessoa.

Referi “Colectiv”, porque o filme teve uma forte expressão aqui em Portugal. 

Atenção, acho o “Colectiv” um bom filme, nada contra e não estou a menosprezar o seu impacto, só que traz a ideia errada de que algo tão entranhado pode ser mudado com a força quer de um político ou de um jornalista, é mais complicado que isso.  

Se grande parte do cinema romeno que atravessa as fronteiras é um cinema político e contra as forças políticas em atividade, como é a sua relação com elas? Existem boicotes, “censuras” ou impedimentos para que esta visão seja transmitida para o mundo fora?

Na Roménia, o cinema é tão insignificante que não se torna cúmplice do poder local e gere como cresce de uma forma independente. Apesar de existirem certos aspetos, estamos satisfeitos com essa independência que nos garante uma certa liberdade que, novamente voltando à comparação, alguns países não possuem. Por exemplo, a Hungria. Claro, que temos alguns jornalistas, políticos, conservadores e 'influencers' que se revoltam contra o nosso cinema, mas, na minha perspetiva, acho isso ótimo [risos].

Quanto a novos projetos? É sabido que apresentou recentemente em Locarno uma curta experimental.

Bem, tenho dois projetos. O que foi apresentado em Locarno [“Caricaturana”], o outro que será em Veneza [“Plastic Semiotic”]. E estou a trabalhar em mais duas curtas, sobre a história da Roménia e da Europa. Acabei de receber financiamento para um novo filme, que espero começar a rodar já para o próximo ano. Tenho reescrito o guião, será um filme bastante simples mas que sempre tive vontade de concretizar e espero conseguir fazê-lo. Será sobre relações entre indivíduos e grandes empresas.

De que maneira a pandemia o afectou, ou afecta, a si enquanto realizador?

Tirando todos os elementos que abordamos, sinceramente não me afetou de todo. Para mim é como se não tivesse tido confinamento [“lockdown”]. Trabalhei neste filme e fiz muita ‘coisa’ online, incluindo casting, encontros e preparações, como também viajei, mesmo que difícil se tenha tornado. Fui à República Checa e ao Luxemburgo para a correção de cor e a edição de som. Depois entrou a Berlinale, de seguida trabalhei nas minhas curtas, tenho ido aos festivais quando consigo. Para mim é como se não tivesse havido uma pandemia, quer dizer, estava ciente e a minha vida social foi afetada, mas a nível profissional continuei a minha jornada como realizador. Nada mudou na trajetória, só os meios. 

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I Do Not Care If We Go Down in History as Barbarians (2018)

Em Portugal, o cinema saiu bastante afetado com pandemia …

Ah sim, os cinemas … Obviamente que sim, aqui na Roménia também muito do nosso cinema foi afectado e as salas de cinemas. Mas o que posso fazer? Apenas continuo o meu trabalho enquanto posso e pelas suas possibilidades. Resistimos e acredito que o cinema resistirá.

Há pouco citou nomes como Oliveira, Pedro Costa e o filme “Diamantino”, segue ou costuma ver Cinema Português?

Oliveira, Costa, Miguel Gomes, Susana Sousa Dias e … bem, agora está-me a faltar o nome … o realizador do “Comédia de Deus”.

João César Monteiro?

Isso. Gosto de cinema português e sigo aquilo que consigo. Mas do que vi encontro muitas parecenças como cinema romeno, não consigo bem explicar, mas deve ser algo de espírito. Mas não é só de cinema, sou um admirador do Fernando Pessoa, amaria visitar a casa dele aí em Lisboa

Nunca veio a Lisboa?

Não, nunca meti os pés em Portugal. [risos]

Mas os seus filmes são “habituèes” dos festivais de cá, principalmente o Indielisboa, onde o seu “Aferim!” ganhou o prémio principal no certame de 2015. 

Eu sei, e nunca faltou oportunidades para ir aí.

 

* O filme está disponível na Filmin Portugal [ver aqui]

Cinema em coma até ao regresso da Humanidade

Hugo Gomes, 14.05.22

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Entendemos que Bertrand Bonello tem-se dedicado aos “fins” acima das criações, seja o término da romantização da “profissão mais velha do mundo” (“L’Apollonide: Souvenirs de la Maison Close”, 2011) como da pornografia e as réstias do seu debatido requinte (“Le Pornographe”, 2009) ou até mesmo da ideologia (“Nocturama”, 2016), esse é o signo trabalhado por um realizador que anseia reafirmar-se num panorama autoral francês. Mais perto de aniquilá-lo do que integrá-lo [círculo da autoralidade francesa], tendo em conta a sua vontade mostrada, é com “Coma” sob os “-idos” de uma pandemia e um sentimento de destruição que tal acarreta, que Bonello encena um apocalipse representado aos mais diferentes níveis; terrenos, éticos e civilizacionais, e para isso, numa carta acentuada na maioridade da sua filha (o qual dedica por inteiro), conduz-se numa alfabetização em oposição aos velhos costumes cinematográficos. 

O resultado, porém, possui mais experimentalismo do que anarquismo, visto que o Cinema, contra tudo e contra todos, sobrevive ao fim da Humanidade como bem queremos e ao ponto final decretado ao mundo em questão. Apenas transforma-se em qualquer outra coisa, algo indecifrável e inabitável no nosso biótipo, com as suas devidas regras e operacionalidades. “Coma” não é de todo, o último “grito” da modernização da linguagem cinematográfica até porque a mensagem aí vincada sobressai do ziguezague eclético que  percorre os terrenos ficcionais, documentais e as diferentes técnicas de animação (rotoscopia, stop-motion), com isso também extraindo aos mais recentes dialectos semióticos uma tradução da tal prescrita contemporaneidade (o "desktop film”, o “found footage” ou a mimetização do lufa-lufa virtual imposta influencer de pseudónimo Patricia ‘Coma’, interpretada em jeito higienizado por Julia Faure). Essa “decifrada” carta dirigida ao espectador, não é mais que um tormento sobre o final de uma Era, o qual indecisamente não codificamos automaticamente o seu significado. 

Por um lado alarmista, por outro pessimista, este é o filme de pandemia (ou de confinamento) que resgata as ramificações depressivas da mera demagogia barata e as insere numa atmosfera esquizofrénica à luz daqueles que se encontraram perdidos entre o tempo e na realidade (para muitos o confinamento é relembrando como uma massa uniforme de horas, dias, semanas e até meses, um evento verdadeiramente traumático). Por outro lado, “Coma” não tem nenhuma salvação preparada para a Humanidade (ou o que resta dela), o desespero torna-se na rota das especiarias desta jornada entre dimensões, a intenção de criar o absolutismo para o depois destruir, e com todo os trilhos cuja civilização ocidental (com a restante por arrasto) prosseguiu, desde o culto ao grotesco até à falta de empatia com vista na sobrevivência da “espécie”. 

Para Bonello, depois de esgotar estéticas, fonéticas e representações, o que tem para oferecer à filha é somente o Apocalipse (um filme-testamento?). A próxima história é o que ela verdadeiramente fará com tal oferenda.

O que podemos esperar da modernidade se o que nos aguarda é a sobrevivência?"