Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

15 Anos, Escritos de Resistência [Índice]

Hugo Gomes, 12.08.22

Cinefilia e homicídios perfeitos

Hugo Gomes, 21.07.22

Manhattan Murder Mystery - Woody Allen, 1993.jpg

Manhattan Murder Mystery (Woody Allen, 1993)

 

Carol: What about this: what if they had a big insurance policy, or something like that?

Larry: Too much Double Indemnity.

 

Há poucos dias, revendo Manhattan Murder Mystery, reavivou-se-me no espírito o aspecto central nesse filme de Woody Allen, a que não dediquei um pensamento estruturado da primeira vez que o vi. Falo das relações entre as personagens, claro, mas sobretudo da coreografia amorosa que se impõe, independentemente de haver aqui um casal bem estabelecido, Larry e Carol (Woody Allen e Diane Keaton). Quando uso a palavra "amorosa" não estou a referir-me ao taxativo lado romântico das relações, mas sim a uma determinada paixão em comum que desenha afinidades entre as personagens. Assim: Carol está excitadíssima com a possibilidade de viver ao lado de um assassino, e dedica-se a uma investigação descuidada com todo o apoio e participação do amigo Ted (Alan Alda), ao passo que Larry, atemorizado com a ideia de a mulher, possuída por uma ânsia detectivesca, estar a “infringir a Constituição americana”, prefere aprender póquer com a escritora Marcia Fox (Anjelica Huston). Para completar a dessincronia, Carol gosta de ópera, Larry gosta de hóquei – paladares individuais, mutuamente tolerados mas não partilhados –, e a certa altura ela reclama com o facto de o marido, editor, presumir que ela não gostava de literatura light (um prazer que o próprio partilha com Marcia Fox).

Há um esquema perfeito em Manhattan Murder Mystery para unir pessoas em torno daquilo que lhes desperta curiosidade e motiva diálogos animados. E é por aí que, inevitavelmente, entra na equação uma aragem romântica.

Ao refletir um pouco sobre isto, não consegui evitar aquele cliché de que só se ama alguém que gosta do mesmo filme (ou da mesma canção, como diz o outro). Não acho que seja assim, mas já lá vou. O que este filme tem de mais tocante, a meu ver, é o universo das paixões, específicas e quase solitárias, que conectam duas ou mais pessoas. E vejo ali muito da minha própria cinefilia desengonçada, que tende para o gesto de esbracejar, quando quero falar de uma cena ou de um detalhe que me intrigou, como quem aponta para uma prova de crime. Por exemplo, mesmo na noite anterior a ter revisto Manhattan Murder Mystery, estava num jantar ao lado da esplanada da Cinemateca, onde passava o Invasion of the Body Snatchers de Philip Kaufman, e dei comigo com bichos-carpinteiros a recordar momentos do filme só pelo som que vinha do exterior. Já quase no fim, falei com os convivas do cameo de Don Siegel e daquele grito final de Donald Sutherland. “Como é que te lembras disso?”, perguntou-me o Ricardo, com um espanto engraçado. Não o soube explicar na altura, mas acho que tenho um impulso para “decorar” imagens. Talvez seja uma mera habilidade forense.

By the way, nessa mesa de jantar estavam amigos que não estão sempre de acordo no gosto dos filmes, mas que gostam muito de cinema. Não é essa a magia que nos liga?

Voltando à base, escolhi o plano final de Manhattan Murder Mystery para ilustrar este texto porque corresponde ao momento em que Carol reconhece que o marido foi "surpreendentemente corajoso" na situação de risco que ambos experienciaram. Como se, de repente, a chama amorosa dos dois, qual Grace Kelly e James Stewart em Rear Window, se tivesse reacendido pelo efeito da aventura, ou melhor, pelo efeito da revelação de que Larry está no mesmo plano (concreta e simbolicamente) que ela, e sente na veia a adrenalina que ela sente, mesmo que com uma dose extra de neurose. Estão, enfim, em sintonia nesse bichinho nova-iorquino dos casos misteriosos. A sintonia que também define os amigos cinéfilos, pessoas que podem falar de um filme como quem fala de um homicídio perfeito – para mim, a cinefilia passa por esse reconhecimento no outro de um amor pelo cinema que não se rege por uma Constituição do Gosto.

Obrigada, Hugo, amigo cinéfilo, pelo convite que levou a este singelo exercício filosófico.

 

*Texto da autoria de Inês Lourenço, crítica de cinema do Diário de Notícias, revista Metropolis, À pala de Walsh e da Antena 2 - A Grande Ilusão - e com um mestrado em Cinema e Televisão pela Universidade Nova de Lisboa.

2020: uma odisseia na crítica de cinema

Hugo Gomes, 28.03.20

x426Jnqs.jpg

 Les Sièges de l'Alcazar (Luc Moullet, 1989)

Uma “nova normalidade” que poderá ditar uma futura revalorização do cinema como experiência de sala, mas por enquanto é o trabalho do crítico de cinema a derradeira prova de fogo para estes dias negros. Há uns dias a comunidade da crítica de cinema sofria com um abalo sísmico: o fim anunciado da Cahiers du Cinèma, a revista francesa encarada, mesmo nos dias de hoje, como a sagrada instituição deste ramo profissional. Atualmente, a profissão, à semelhança de praticamente todas as outras, sofre com a vinda de uma nova realidade, a de uma declarada pandemia do Covid-19, que desencadeou uma série de alterações sociais, económicas, culturais, etc.

A quarentena forçada levou ao cancelamento de diversos eventos cinematográficos, pois nenhum é imune à ameaça patológica. A própria ida à sala do cinema tornou-se restrita, para não dizer nula,  e nem mencionamos o trauma que virá a seguir e que a China – país onde já reabriram centenas de salas – está já a revelar. Na verdade, o cinema isolou-se agora em múltiplas plataformas de streaming, no VOD, Home Video ou simplesmente na incerteza. O trabalho do crítico de cinema tem novos desafios e a questão que se coloca é: como sobreviver perante estes novos (e forçados) hábitos de ver e escrever sobre cinema sem diluir-se na esfera da opinião pública, onde se competirá com milhares de vozes que habitam as redes sociais e outras plataformas de partilha? Será que a profissão vai-se desintegrar perante a crise financeira anunciada e suscitada como efeito secundário desta epidemia?

EUA, Reino Unido e França, três países onde a crítica de cinema ainda goza do estatuto presencial na cultura popular e intelectual, debatem-se nas “sombras” pela futura existência deste modo de pensar em cinema, e como se enquadrará no mundo pós-2020. Em Portugal, mesmo que o mercado e público seja menor que nos países referidos, a preocupação não é menor, até porque os críticos de cinema profissionais são “espécies em vias de extinção”, que tentam ainda encontrar novos meios de comunicação para com os seus seguidores. Alguns deles usufruem mesmo da imagem de “guru”, figuras de culto de uma cinefilia em perpétua mudança. Como encaram os nossos profissionais neste novo cenário? Como irá evoluir a crítica de cinema, ou como muitos vão subsistir perante este hiato? Será esta a derradeira ameaça para a definição tradicional de crítica de cinema?

Nem todas as perspetivas são catastróficas, como aponta Vasco Câmara, um dos três críticos em atividade no jornal Público e editor do suplemento Ípsilon. O mesmo partilhou uma feliz experiência desse “enclausuramento“, dando o exemplo do número saído na passada sexta-feira (20/03), “todo ele feito em isolamento” e que mesmo assim resultou, segundo as suas palavras, “nas melhores coisas” que o jornal já fez. Para Câmara, estamos a viver “uma nova normalidade”, conceito que é partilhado por outros colegas.

Jorge Leitão Ramos, um dos críticos do semanário Expresso, desmonta a preocupação alarmista que muitos vêem nesta realidade ainda por digerir: “até agora, a grande diferença profissional é não escrever sobre filmes em sala, mas sobre ‘coisas’ na Internet.“. Já João Lopes, crítico veterano do Diário de Notícias, para além de colaborar na rubrica Cartaz Cultural da SIC Notícias, sublinha que “não há volta a dar: todas as atividades humanas, das mais essenciais (a defesa da saúde pública) às de reflexão e pensamento (em que, melhor ou pior, se inclui a crítica de cinema), estão a ser desafiadas nos seus pressupostos e fronteiras.“. O mesmo salienta, sem uma visão completamente catastrófica sobre o seu ramo profissional, que “não deixámos de ser espectadores e a dimensão drástica daquilo que estamos a viver tem, para muitos de nós, o efeito paradoxal de reforçar a nossa atividade enquanto espectadores. Nesta perspetiva, o labor específico do crítico de cinema não muda: ‘Lawrence of the Arabia’ não foi feito para ser visto na estreiteza do nosso ecrã de computador (muito menos de telemóvel), mas resiste a todas as dimensões de ecrã e contextos de visão…

Já para Inês Lourenço, também ela colaboradora do Diário de Notícias, para além de ser a voz do programa de rádio A Grande Ilusão, é difícil neste momento perspetivar, a longo prazo, o efeito desta situação no seu trabalho como crítica e jornalista. “Naturalmente, a cessação abrupta das estreias em sala é algo que, desde logo, se impõe como uma mudança no quotidiano e provoca uma sensação de estranheza e apreensão. Mas depois há as alternativas do streaming e da televisão (entre outras), que ganham terreno nisto que se espera ser uma considerável fatia de tempo até que tudo volta à “normalidade“. Talvez com o correr desse tempo a angústia aumente, mas por agora tenho algum otimismo de que quando se puder regressar às salas de cinema haverá uma revalorização da experiência – um bocado aquela ideia de que é quando estamos privados de algo que aprendemos a dar valor. Nestes dias, o mais importante é tentar ser criativo para contornar a limitação dos “conteúdos” habituais.

6201_46209_11461.webp

Lawrence of Arabia (David Lean, 1962)

Essa revalorização não é somente uma ideia de Inês, pois o seu colega João Lopes referiu também esse regresso da sala de cinema como um marco de superação da era de confinamento e sequencialmente a sua ribalta: “O “lugar” de consumo dos filmes envolve uma questão adensada ao longo dos últimos anos: creio que é fundamental continuar a defender a especificidade do cinema como um acontecimento da sala escura, para a sala escura — um acontecimento social, enfim. Ao mesmo tempo, seria um ‘lirismo’ sem fundamento negar, ou renegar, o modo como as alternativas do streaming criaram uma nova paisagem de consumo, não só recheada de oportunidades como também, convém não esquecê-lo, quase sempre menos dispendiosa do que a visão dos filmes em sala. A situação de pandemia agravou esta clivagem, transformando-nos a todos em espectadores online, ao mesmo tempo que, mesmo por perversa ironia, nos faz (re)valorizar a experiência insubstituível da sala. Já com saudade.

Para Rui Tendinha, também crítico do Diário de Notícias, para além dos seus trabalhos na televisão sob o formato Cinetendinha, esta “nova normalidade” defendida por alguns dos seus colegas são “dias de apocalipse“. O crítico expressou as suas preocupações, confessando que estes tempos poderão prejudicar o seu trabalho, mesmo que “felizmente”, ainda haja cinema online. “Mas não é o mesmo”, remata, acrescentando: “Sou crítico de cinema e não de Home Cinema. Acredito muito no cinema em grande ecrã. Também estou a ser prejudicado como programador – 3 dos festivais que trabalho foram adiados… Perdi também entrevistas que tinha marcado no estrangeiro e uma série de outras possibilidades. O melhor de tudo isto é que estamos todos a levar um curso crash para sabermos viver com menos. O streaming vai crescer e poderá deixar marcas de hábito. Quem descobre um ‘Uncut Gems’ na Netflix talvez comece a querer perder o hábito de pagar um bilhete de cinema. Preocupa-me muito a situação dos cinemas mais independentes. A pirataria vai voltar a ter dias mais felizes e isso dos festivais online também vai proliferar. Se me perguntam se isso é melhor do que não haver, sou o primeiro a dizer que não, mas temo os efeitos futuros. A ressaca de tudo isto vai fazer com que haja depois um período longo em que muitos não vão querer estar numa sala escura cheia a ver cinema. Será psicossomático. O cinema vai mudar, a vida de um crítico de cinema também.“ Não foi apenas Rui Tendinha a expressar uma visão negativa em todo este cenário: um crítico que preferiu não ser identificado, mencionou que como “não há estreias, as páginas de cultura diminuíram ainda mais”. “Não publico, logo não ganho“, concluiu.

Terminando esta ronda pela crítica profissional, João Lopes terminou a nossa conversa com ambiguidade, mas sobretudo crença na conservação do papel do crítico no futuro pós-coronavírus: “o crítico de cinema, seja qual for o seu talento, não é um profeta, muito menos um adivinho. Quando se pergunta a um crítico ‘…quem vai ganhar os Oscars’, convém começar por responder o mais rudimentar: ‘Não sei.’ Ou seja: ninguém consegue antecipar o que está para vir, desde a economia global até ao universo tão particular do cinema. Digamos apenas o óbvio: nada será como dantes. O que quer dizer que o labor específico do crítico — e, em particular, do crítico ligado às formas clássicas de imprensa — vai enfrentar dúvidas e temas para os quais, em boa verdade, não estava preparado. De um modo ou de outro, será preciso continuar a defender/pensar o cinema, não como um mero “gadget” de usar e deitar fora, antes como uma forma de expressão artística & industrial com mais de um século de história (com coronavírus ou sem coronavírus, comemorar-se-ão este ano 125 anos da primeira projeção pública de filmes). As incertezas desse futuro obrigam-nos a sermos suficientemente ágeis e inteligentes na preservação da memória cinéfila.