"Somos todos o Senhor do Adeus". Um ciclo em memória de João Manuel Serra no Alvalade Cineclube
O Alvalade Cineclube demonstra-se motivado em recuperar a cinefilia lisboeta, se não o seu espectro, e uma das bem-sucedidas tentativas foi com a iniciativa Salão Lisboa, em que foram projetadas 4 diferentes produções portuguesas em recintos próximos a antigos cinemas da capital. Porém, o trabalho para com esta memória, não tão longínqua, não para por aqui.
Um novo ciclo surge-nos, desta vez recordando uma das figuras mais emblemáticas da “cidade cinéfila” - João Manuel Serra, ou carinhosamente O Senhor do Adeus - que nos deixou em 2010, sem antes nos mostrar como se deve combater a solidão. A arma? Filmes e tertúlias, assim como um gesto de esperança, o aceno propriamente dito, a todos que seguissem de passagem.
E é sob essa homenagem que o Alvalade Cineclube parte, da última obra-prima de Francis Ford Coppola - “Tetro” (2009) - para outros hipotéticos “filmes prediletos”, estreados após o seu desaparecimento mas que a programação acredita na existência de suposto amor sentido por parte de João Manuel Serra se tivesse tido a oportunidade de uma “deslumbrar”. O tributo prossegue com “About Endlessness" (Roy Andersson, 2020), “In Transit” (Christian Petzold, 2018), “The Best Years” (Gabriele Muccino, 2020), “Cold War” (Paweł Pawlikowski, 2018), “Thelma” (Joachim Trier, 2017).
Para o Cinematograficamente Falando …, mais uma vez, a programadora Inês Bernardo falou-nos sobre o ciclo que arranca já neste dia 22 de setembro, e sobretudo, sobre a figura homenageada em grande ecrã.
Numa tentativa de resgatar a aura cinéfila de Lisboa, visto que a iniciativa Salão Lisboa incumbia em devolver cinema aos antigos cinemas da cidade, chegou a vez da invocação de um espírito tão querido na nossa comunidade. Quem era verdadeiramente o “Senhor do Adeus”? E o porquê da sua influência na nossa memória lisboeta?
Na verdade, o Senhor do Adeus – ou Senhor do Olá, como ele preferia ser chamado – era o João Manuel Serra, um cinéfilo luminoso com quem todos nós cruzávamos no Saldanha ou no Restelo, a dizer olá a quem passava. Ao contrário do que muitos julgavam, João Manuel Serra era oriundo de uma família abastada e foi um homem com uma vida recheada de viagens e arte. Teve o seu primeiro emprego aos 73 anos, a comentar filmes para o Canal Q e povoa ainda o imaginário de muitos que ainda passam no Saldanha e olham à volta, procurando um sinal do seu adeus. Era um cinéfilo feliz, que amava o cinema enquanto prática semanal, como quem vai ao café. E depois escrevia sobre isso. Claro que não nos lembramos disto (porque muitos não sabem) mas lembramo-nos sim da personagem que nos acenava, a todos, de sorriso genuíno, sem segundas intenções, como se a vida fosse simples. Talvez a memória venha daí, dessa invulgaridade. Terá sido o Senhor do Adeus a última grande personagem do imaginário da cidade? Temos o cinema para discutir isso.
Este ciclo parte de um filme que aclamou [“Tetro” de Francis Ford Coppola] para se seguir numa hipotética escolha de filmes que chegaram depois da sua existência. Quais os riscos que esta seleção traz à sua memória e como procedeu esta mesma escolha? Conseguiram decifrar o gosto de João Manuel Serra através deste ciclo?
Felizmente - através do carinhoso e cuidado trabalho do Filipe Melo e do Tiago Carvalho - as opiniões do João Manuel Serra estão registadas em blog e em livro e podemos, através desses relatos, saber o que ele pensava sobre os filmes mas também sobre muitos outros assuntos. Os filmes eram um pretexto para falar também da sua vida, do que gostava e do que o emocionava. Sim, pensamos que conseguimos uma seleção interessante que o próprio gostaria. Partimos de um filme que ele viu e criticou – “Tetro” – e passamos por filmes que abordam temas que o fascinavam: a segunda guerra mundial – que ele se preocupava muito que caísse no esquecimento – a elegância que ele via nos italianos, o suspense ou terror. Claro que é sempre arriscado programar a pensar em alguém que não está, mas é um desafio, ao mesmo tempo. Era muito mais seguro mostrar apenas filmes sobre os quais ele escreveu, mas pareceu-nos redutor. É muito mais interessante perguntar: como veria João Manuel Serra estes filmes hoje (a partir do que sabemos dele)?
Tetro (Francis Ford Coppola, 2009)
Pergunto se os seus companheiros nas “peregrinações” ao Cinema - Filipe Melo e Tiago Carvalho - auxiliaram, ou contribuíram, de alguma forma, para o ciclo?
Sim, tivemos um diálogo próximo com o Filipe e o Tiago para a criação deste ciclo. Desde logo, foram eles os grandes companheiros do João Manuel Serra aos domingos, quando entravam no Cinema Monumental e escolhiam os filmes. O importante neste ritual não seriam tanto os filmes em si mas a conversa e o convívio entre eles, que se lhes seguia.
Uma questão envolvendo o universo do “Senhor do Adeus”, e tendo em conta que o blog se encontra ainda ativo (porém, sem atividade para além da sua existência), existe alguma possibilidade de recuperação dos seus textos para memória futura? Ou quem sabe, conceber um novo “ciclo” a partir dessas crónicas?
Recuperamos os textos para este ciclo e o Filipe e o Tiago já fizeram um trabalho muito importante na fixação destes textos em livro.
O que este ciclo poderá trazer às novas gerações de cinéfilos, principalmente para aqueles que foram alheios da sua presença?
Resgatar a memória do Senhor do Adeus é, precisamente, pensar nas “novas gerações de cinéfilos”. Por vezes existe a noção que os mais jovens são desinteressados e vivem no seu próprio contexto, mas a nossa experiência no cineclube diz-nos que são dos espectadores mais curiosos e sensíveis, que verdadeiramente aceitam o jogo de descobrir uma personagem que lhes é estranha. Ainda por cima este não era um cinéfilo qualquer. Não era um crítico, ou especialista, ou profissional do meio. Era uma pessoa como todos nós, que tinha a generosidade de nos acenar desde a sua solidão e história. E acenava-nos olá e não adeus. E gostava de histórias bem contadas, de suspense, da beleza e do estilo, da preservação da memória. Conhecer estes filmes pelo olhar do João Serra é uma oportunidade única para todos, nova ou velha geração. Somos todos o Senhor do Adeus.