Hui So-Ying, a eterna Ah Ying numa Hong Kong em mudança: "Viver é representar, e representar é viver."

Ah Ying (Allen Fong, 1983)
Uma jovem corta e amanha peixe num mercado em Hong Kong. Pela sua expressão, não é tarefa que lhe agrade, mas pouco pode reclamar. Ao seu lado, o olhar quase ditatorial da mãe, proprietária daquela banca de peixeira, impõe-se silenciosamente. Depois do trabalho, regressam ao asilo doméstico, abafado pela família numerosa, onde o espaço é mais requisitado do que o apartamento pode oferecer. É uma vida lotada e igualmente limitada. A jovem, que momentos antes esquartejava o possível jantar de alguém, suspira por uma alternativa, aquela que poderá ter encontrado nas aulas de interpretação, lecionadas pelo seu professor invisual, 'brinde' pelo trabalho no centro filmíco. Entre ambos nasce uma forte ligação, erguida sobre a performatividade, a mesma em que a peixeira, já agora de nome Ah Ying, deposita a esperança de um futuro sem o odor do peixe.
Não, não é o vosso típico “ascensão de uma estrela”, esse género que se formalizou por si só, feito para suspirar e inspirar espectadores, embriagados pelas frases motivacionais e histórias-modelo de veneração à resiliência e à determinação. Em “Ah Ying”, de Allen Fong (1983), somos conduzidos a um retrato quase social, e por vezes premonitório, de Hong Kong dos anos 80, num registo cinematográfico distante daquilo que a indústria local da época dava como garantido: dos policiais aos cineastas emergentes, muitos deles saídos do Hong Kong Film and Culture Centre, aqui a servir de cenário para o progresso dramático da protagonista.
Aliás, ela (a tal peixeira contrariada), Hui So-Ying, era também uma rapariga de mercado. Afiava facas como as testava nos peixes comprados pelo freguês e, à noite, seguia para as aulas de interpretação, com o desafio de ser atriz na mente, como entendia que devia ser. Sim, a história é dela, com um pseudónimo pelo meio, um docudrama, como a própria gosta de o definir. Peça importante na cinematografia hongkonguense, o filme enquadra uma época, uma geração, e os movimentos que fervilhavam e reivindicavam uma juventude inquieta — uma juventude em plena renúncia aos passos dos seus progenitores, desejosa de romper com a maldição social, afastar-se do precário e abraçar o artístico. O Cinema, como janela de fuga.
E foi também daí que nasceu uma atriz — Hui So-Ying — que nunca mais se libertou dessa personagem. Viu-se vencida pelas maldições da sua própria encarnação, regressando anos depois com pequenos papéis, passo a passo, até voltar ao protagonismo. Sempre será a nossa rabugenta Ah Yin! Foi com a 2ª Mostra de Cinema de Hong Kong em Lisboa (25 a 28 de setembro) que voltou a ser lembrada assim. Os dois filmes mais recentes trazidos para o evento só comprovam que se mantém activa, firme no ofício. Se terá sucesso ou não, pouco lhe importa, como expressou abertamente, porque saberá sempre como cortar o peixe. Aquela jovem de rebeldias silenciosas ainda vive nela.
O Cinematograficamente Falando … conversou com a actriz a poucos dias da apresentação da sua Ah Ying no Cinema Ideal [28/09], praticamente inédita em solo português. O diálogo decorreu sob a sombra desse trabalho, revisitando outros desempenho, rindo no final diante do futuro “endeusado” que poderá surgir.
Podemos resumir que “Ah Ying”, cuja sua popularidade foi bastante alavancada nos festivais internacionais e de ter deliciado a crítica de cinema na altura, continua pouco referido no Ocidente, principalmente quando se aborda a história do Cinema de Hong Kong dos anos 80. Acredito que isso deve-se ao facto de “Ah Ying” ser um produto, não apenas da sua geração, mas da sua geração local?
Basicamente, acho que muitos críticos no Ocidente (ou quem não conhece bem o cinema e a história de Hong Kong) não souberam interpretar o filme. Não têm noção da sociedade, das tradições e da realidade de Hong Kong naquela altura. Especialmente os valores familiares tradicionais. Por exemplo, porque é que ela tinha de ir ao mercado? E o mercado cinematográfico, naquela altura, era muito diferente do que é hoje.
“Ah Ying”, não era um cinema muito… virado para o entretenimento, digamos assim. Na verdade, o cinema de Hong Kong era muito ambicioso. Havia muito apoio ao cinema local. Na década de 80, alguns realizadores da Nova Vaga fizeram filmes muito realistas. Claro que alguns foram bem recebidos e outros não.
Por exemplo, “Ah Ying”, sendo sobre uma jovem mulher e tendo algumas associações a certas políticas de esquerda, não recebeu grande atenção na altura. Isso, e porque não era um filme de entretenimento comum na linha das produções de acção que se fazia naqueles tempos.
Mesmo assim acredita que o “Ah Ying” tem lugar na história do cinema de Hong Kong?
Afirmativamente, de certa forma. Não se pode negar que, nos anos 80, a história do cinema de Hong Kong apoiava muito os realizadores da Nova Vaga hongkonguense. Havia vontade de investir em filmes realistas, não comerciais e não centrados na questão do entretenimento.

Hui So-Ying na apresentação de "Ah Ying" no Cinema Ideal / Foto.: Gonçalo Castelo Soares
Achas que o gosto do público de Hong Kong mudou desde então?
Mudou, sim. Hoje em dia é mais fácil estudar em Hong Kong. O nível de conhecimento e o nível académico melhoraram muito. Por isso, as pessoas não querem apenas ver filmes de entretenimento, também gostam de ver filmes mais profundos. Isso elevou o pensamento e o gosto do público no geral.
Se hoje “Ah Ying” fosse feito, seria bem recebido em Hong Kong?
Mesmo hoje em dia, não vejo muitos filmes de Hong Kong feitos daquela maneira. Filmes assim, tipo docudrama, praticamente não existem. Este ano, em 2025, tivemos algumas exibições especiais em Hong Kong e a reação foi muito positiva. Mas claro, não é o mesmo que a exibição regular, com várias sessões por dia … nesse caso, não sei se haveria assim tantas pessoas a ver. Não tenho a certeza. Mas em sessões especiais, nota-se que as pessoas gostam.
É descrito que “Ah Ying” tem como base muito da sua experiência pessoal. Como isso contribuiu para concepção para jornada vivente desta Ah Ying, e o que há nela de real à sua pessoa e vivência?
Não é uma obra totalmente dramática. Como é que digo? Não é só ficção. Mas se fosse apenas o meu registo pessoal, não funcionaria, porque não haveria esperança [risos]. Então foram acrescentadas coisas ficcionais nela. Por isso é que se pode chamar de docudrama: metade real e metade não. No filme, a minha família é mesmo a minha família: o meu pai, a minha mãe e a minha irmã. Só o meu irmão mais novo e a minha cunhada não são reais. O resto são mesmo os meus familiares.
E o mercado era o mesmo?
O mercado não é exatamente o mesmo, porque era difícil filmar lá. Encontrámos outro mercado para rodar o filme.
De peixeira a aspirante a actriz, a jornada de “Ah Ying” não é tanto de ascensão no meio artístico, mas a sua luta em evadir uma vida precária. Em um momento a mãe de Ah Ying perante o anúncio de uma nova audição da filha diz que ela deveria se dedicar ao mercado. O filme lida com essa visão pejorativa da classe trabalhadora para com a classe artística dos anos 80, hoje o cenário é o mesmo, ou existiu alterações?
Na verdade, quem vende peixe continua a vender peixe. A minha situação era muito específica, por isso o realizador pediu-me para contar a minha história. Em classes sociais diferentes, as pessoas não têm muito contacto com o cinema, nem vão as vezes que pretendiam às salas. Então, a diferença entre os anos 80 e hoje? Diria que é quase igual. Quanto à luta retratada no filme, também não mudou muito. Vender peixe até dá mais dinheiro do que muitos outros trabalhos.
Mas a sua personagem quis escapar dessa vida, como a Hui So Ying …
Pode-se dizer que sim, mas a principal razão para ter feito este filme foi o meu professor de interpretação ter falecido. Então pensei que devia fazer algo para o homenagear. Ele ensinou-me representação, e quando soube que tinha morrido, senti que precisava de fazer alguma coisa.
Se me perguntares se queria sair daquela vida, não consigo dizer concretamente. O meu principal objetivo era homenageá-lo. Vendia peixe porque os meus pais eram muito trabalhadores, e simplesmente queria ajudá-los. Essa era a razão de estar no mercado… e a razão pela qual entrei no cinema foi o facto do meu professor ter morrido.
Vender peixe é mais admirável do que ser atriz?
Não posso dizer isso. [risos] Não. São coisas diferentes. No meu caso, sempre gostei de representar. Por isso vendia peixe durante o dia, e à noite ia ao Hong Kong Film Culture. No filme consegues ver isso representado de alguma forma.
E acerca disso. A Ah Ying tem aulas de interpretação no Film Culture Centre, que foi um centro de formação importante para a vinda de uma nova vaga de cineastas de Hong Kong, o filme antecipa esses nomes e estilos, ou foi pensado para incentivar esse crescimento artístico?
O Hong Kong Film and Culture Centre ajudou muita gente com interesse em cinema. Essas pessoas trabalhavam durante o dia e iam estudar à noite. Na altura, não havia assim tantas oportunidades para aprender técnicas de cinema. O Fruit Chan, por exemplo, foi uma das pessoas que frequentou o centro. A Ann Hui, com a qual vim a trabalhar em “A Simple Life” (2011), aprendeu lá e entrou na indústria.
Por isso digo que o centro ajudou muitos cineastas, e também queriam mostrar que nos anos 80 existia esse espaço. Muitos dos professores eram realizadores e argumentistas da Nova Vaga de Hong Kong. Quando filmámos, voltámos ao centro, todavia, eles já tinham mudado para outro sítio, e ainda não estava renovado. Pedimos ao dono para alugar o espaço para terminar o filme.

Ah Ying (Allen Fong, 1983)
Então, essa cena em que eles destroem o carro pode ser entendida como uma metáfora ao fim do ‘Film Center?
Não exactamente. Eles mudaram-se para outro sítio, mas continuaram em Hong Kong. O espaço é que ficou mais pequeno. Havia menos produção, não havia tantas aulas. A razão principal foi o financiamento limitado.
O centro cultural ainda existe?
Continua a existir, mas é diferente. O nome mudou. Antes era Hong Kong Film Culture Centre, agora é Film Culture Center Hong Kong. Mudou porque houve dinheiro que desapareceu, ou algo assim, não estava muito claro na altura. Portanto, decidiram alterar o nome: puseram “Hong Kong” no fim. [risos]
Com os louros de “Ah Ying”, a sua carreira obteve o devido ‘empurrão’, poderemos considerar este o seu filme crucial? De algum modo ainda é reconhecida ou referida como Ah Ying em Hong Kong?
Na verdade, quem costuma me chamar para representar sabe que eu sou a Ah Ying. Claro, este é o meu filme mais importante. Muito especial na minha carreira.
Agora se a minha carreira ia ter o impulso que devia… estou só a ser sincera: se acontecesse, aconteceu. Se não acontecesse, não aconteceria. Não sou daquelas pessoas que tem de continuar a representar a todo o custo. Isso não faz parte de mim. Se alguém achar que este filme, ou que uma certa personagem, me assenta bem, vem falar comigo. Penso na proposta, leio o guião. Aceitar ou não depende do motivo.
Já disse isto: o meu objetivo principal com este filme era homenagear o meu professor, e tal feito consegui. Não estou aqui para procurar atenção ou outras regalias.
Depois de “Ah Ying” trabalhou em “No Regret” (Herman Yau, 1987), depois dessa obra deu-se um hiato, voltaria ao cinema em 2009. O que terá acontecido por essa ausência e o que motivou esse ressurgimento no Cinema?
Casei. [risos] E quando tive a minha primeira filha, ainda estava a trabalhar como assistente de produção, só que estava sempre a pensar nela. Então senti que tinha de deixar o trabalho para cuidar dela. Depois tive a segunda filha e aí já não dava mesmo para voltar. Só quando elas cresceram é que senti que podia, e estava na altura de regressar.
Nesta Mostra de Cinema de Hong Kong de Lisboa serão exibidos dois filmes com duas interpretações recentes suas, que proveito obtém de uma carreira longa de filmes como “Papa” (Philip Yung Chi-Kwong, 2024) e “All Shall Be Well” (Ray Yeung, 2024)?
Representar é como a vida, e a vida é como representar. Viver é representar, e representar é viver. Por isso, para mim, não há diferença de um filme ou de outro. Mesmo agora, neste momento, também estou a representar. [risos]

All Shall Be Well (Ray Yeung, 2024)
Em “All Shall Be Well” são abordadas questões delicadas, não apenas no contexto de Hong Kong, mas também em relação a outras realidades sociais, como as relações afectivas entre pessoas do mesmo sexo. Na sociedade de Hong Kong, continua a ser um tabu representar estes temas no cinema? Além disso, segundo o filme, essas relações permanecem num vazio ou desprezo jurídico.
Não é tabu nenhum. Só que há pessoas contra. Hoje em dia pode-se falar, está aberto, mas o Governo de Hong Kong ainda não reconhece o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Esse é o ponto principal. Claro que há políticos que são contra. Acho que é um passo atrás, visto que em muitos sítios do mundo já é aceite. Portanto, não ser aceite, ou não ser legal, é injusto para os casais do mesmo sexo.
Pergunto isto porque o filme em si é muito tímido a mostrar a relação entre aquelas duas personagens. Discreto até.
Sim, porque algumas famílias não aceitam. Há famílias que aceitam, claro, mas há outras que não querem ter sequer um vislumbre dessa estrutura familiar. Esse é o problema. Por isso há casais do mesmo sexo, mesmo já com idade, que continuam a ter dificuldade em assumir-se.
O filme está a mostrar uma realidade verdadeira. Talvez na sociedade chinesa ainda não queiramos mesmo enfrentar isso. E a forma como o filme mostra é a forma como é na realidade.
Queria terminar com uma contemplação ao futuro: quanto a novos projetos? E vais voltar a ser a atriz principal nesses próximos trabalhos?
Sim, vou voltar.
Vai?!
Vou sim! Posso adiantar que vou ser uma deusa taoísta. Uma rainha celestial numa curta-metragem. É sobre a realidade, mas usa essa mitologia, essa lenda, para tornar tudo mais delirante.
Um agradecimento especial a Virginia Or, pela tradução do cantonês e pelo auxílio.

