"You can stand under my umbrella"
Broker (Hirokazu Koreeda, 2022)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
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Após 20 anos de carreira no Japão, passando de documentarista televisivo a um dos mais respeitados cineastas nipónicos da atualidade, e depois de cumprir com distinção máxima o Festival de Cannes (Palma de Ouro com “Shoplifters”, em 2018), Hirokazu Koreeda utiliza essa experiência como pretexto de embarque em novas geografias. Aqui (França), um realizador estrangeiro perante um elenco de luxo como este facilmente seria “engolido” pelas diferentes manivelas desta indústria ou dos egos profundos dos seus “novos” atores. Koreeda, tão diluído na cultura-mãe, vê-se obrigado a adaptar-se a um novo ambiente, concretizando com este “ La Vérité” (“A Verdade”) o que aparentemente seria o seu filme mais anónimo, numa ode à resistência autoral.
Face ao egocentrismo de Catherine Deneuve num perpétuo jogo de reflexos (existe na sua personagem, não uma autobiografia, mas uma perceção da sua personificação cinematográfica), o nipónico taticamente opera num registo de engodos lançados à ficção. Desengane-se quem pensar que o realizador encontra-se absorvido nos ambientes de glamour da indústria francesa e das suas respetivas lendas vivas, até porque essas características são peões numa tremenda partida à moda de Koreeda. Poderemos percorrer o seu território em dois pontos.
O primeiro, sendo o mais evidente – a família como vetor de toda a trama. Aqui, Juliette Binoche interpreta uma filha que a passos tenta reencontrar-se com a sua mãe (Deneuve), não através da distância física que se encontra exposta nos caminhos paralelos que ambas seguiram (ela vivendo nos EUA, enquanto a progenitora continuava celebrizada como atriz na França), mas pelos afetos negados, negligenciados e sobretudo desencontrados. “ La Vérité” usufruiu dessa aproximação como cadência própria da sua espessura dramática, esta melosa e sorrateira como é habitual no cinema de Koreeda.
O segundo ponto, este mais “tricky”, remete-nos à memória ilustrada que a obra do realizador sempre nos pontuou. Quem se lembra da urgência de registar fotograficamente uma separação em “Like Father, Like Son” (2013)? Ou, ainda mais longínquo, o paraíso hipotético de “After Life” (1998), onde as almas recém-falecidas têm de optar por uma das suas queridas recordações como um eterno loop de “existência” (estas, curiosamente, não seriam autênticas, mas encenações de uma equipa de anjos-cineastas). Pois, é através desse trabalho, ainda inédito em Portugal, que deparamos com os propósitos da persuasão de Koreeda na criação da memória através da imagem replicada. O dispositivo requerido é a rodagem de um filme dentro de um filme e a extração emocional de uma invocação memorialista. É o dedo do cineasta, com cumplicidade de uma Deneuve pronta para desarmar-se das suas “armas de resistência”.
Na “A Verdade” (mata-se aqui dois coelhos duma cajadada só) são esses os dois pontos que nos fazem, enquanto espectadores, aproximar do filme em si, demonstrando que o cinema de Koreeda está mais universal que nunca.
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Depois de uma colheita minimamente dececionante [2017], seguimos para um lote frutado e recheado de cinema diversificado, de temáticas de difícil digestão e até estéticas que primam pelo classicismo e o progressismo. Assim sendo, 2018 foi propicio às trevas que habitam no coração dos homens, aos amores escaldantes nas diversas “juventudes” e até mesmo à Disney como imagem do novo “sonho americano”. Este foi o ano em 10 filmes ...
#10) Jusqu'à la Garde
“Uma histórias de “monstros” que se confundem como figuras paternais durante uma batalha campal. A separação, a custódia e a disputa pelo prémio em forma de primogénito leva-nos a um suposto drama de contornos realistas que transforma-se, à velocidade de um estalar de dedos, num tremendo thriller psicológico. É como se The Shining (o de Kubrick e não os escritos de Stephen King) fosse transportado para a sua “pele” mais mundana. Que rica primeira longa-metragem do ator Xavier Legrand.”
#09) ROMA
“Um filme de detalhes e de ecrãs dentro de ecrãs (e assim sucessivamente) que persiste na vitalidade cénica com que Alfonso Cuáron deseja ser reconhecido. É um choque de classes e de géneros, que ao invés de contrair uma pobreza desencantada como muitos que anseiam filmar a precariedade, encontra no seu rigor estético uma beleza formal de quem deseja salvar estas personagens de um certo vampirismo miserabilista.”
#08) The Project Florida
“Um anti-filme da Disney filmado às portas do tão omnipresente “parque encantado”, com as personagens marginalizadas por esses “autênticos” contos de fadas a obter os seus respetivos holofotes. O realizador Sean Baker parte para o naturalismo deste mesmo leque que goza da sua pitoresca paisagem de motéis e lojas XXL, um reino fantástico aos olhos das crianças que anseiam perder na Terra do Nunca para se afastarem da irresponsabilidade dos adultos. A juntar à equação, um Willem Dafoe que se camufla com este ambiente de náufragos.”
#07) Hereditary
“O terror é hereditário. Está no sangue daqueles que são marcados desde a nascença e que não conseguem escapar aos desígnios do género. Ari Aster é um desses “amaldiçoados”, pelo que consegue nesta sua primeira longa-metragem executar um dos ensaios mais estetizados, sinistros e atmosféricos que este território tem para nos oferecer nos seus mais recentes anos. E não é todos os dias que evidenciamos uma Toni Collette explosiva que (literalmente) sobe as paredes.”
#06) Shoplifters
“A subtileza quase melosa é a arma furtiva para que as personagens se submetam aos ditos experimentos … e o espectador também. Depois seguimos na pista de outros “lugares-comuns” do cinema de Koreeda, entre as quais a inclusão social que já se encontrava presente no seu primordial Maboroshi (1995) ou as constantes críticas ao sistema judicial e prisional nipónico visto e revisto em Air Doll (Boneca Insuflável, 2009) e The Third Murder (O Terceiro Assassinato, 2017). Elementos para racionalizar e sobretudo sentir com a sensibilidade de alguém que sobressaiu do formato reportagem e documental, evidenciando com isso o detalhe da tendência observacional de Koreeda pelo seu redor e do invisível.”
#05) Happy End
“Meticulosamente, Haneke vai construído o seu ambiente, uma atmosfera de iminente catástrofe. Sentimos isso, essa faca aguçada que nos ameaça. Somente ameaça. E é então que chegamos às festas; a primeira ao som de um angelical violino e um discurso de boas-vindas pela nossa Isabelle Huppert; somos convidados a um cruzar de olhares, a um clima de suspeita, ao nascer de um "monstro", a relações proibidas secretamente vividas no ar, às conversas soltas que nos confundem mais e mais. Saímos a meio, e partimos para outro festejo. O caos já é elevado, as consequências são fatais, fazemos corar as implantações de Luis Buñuel, os burgueses "estão em maus lençóis".”
#04) Cold War
“Se Ida era considerado um filme frívolo, Cold War vai além da sua designação; é a extração do calor no gélido panorama. Apaixonamo-nos por estes atores (Joanna Kulig, Tomasz Kot), amamos esta dupla, o simbolismo friccionado nesta relação, a química que nos aquece em frios planos.”
#03) Der Hauptmann
“Não se trata de hora marcada com a raiz do mal, a farda não descreve o nazismo fechado a conceito implantado (mesmo que fascínio entre uniformes e alemães seja algo mais interiorizado e já citado no Cinema, a ter em conta O Último dos Homens, de F.W. Murnau). Sim, as divisas de capitão funcionam como o mais recente acordo do demónio Mefistófeles, oriundo do romance de Goethe. A sua escapatória e, ao mesmo tempo, a agendada descida aos infernos existencialistas, o animalesco da sua própria vivência.”
#02) Call Me By Your Name
“Não se trata de um “somente” filme queer, mas sim de um amor de verão adjacente a um certo bucolismo, jovial e proustiano que se atenta nos desempenhos naturalistas dos seus atores (um promissor Timothée Chalamet e um sedutor Armie Hammer). Apesar de centrar nas paixonetas de um adolescente na descoberta da sua sexualidade, é um joguete maduro por parte de um realizador versátil, que por sua vez procura o seu próprio gesto autoral. Uma obra que não merece de todo ser desprezada.”
#01) First Reformed
“Enquanto que Taxi Driver resumia aos grunhos e ao seu ativismo algo anárquico, esta nova chance de Paul Schrader remete-nos ao ativismo dos sábios. Impulsores divergentes, causas percorridas em iguais pisadas. É na descrença que a verdadeira fé é atingida, poderemos contar com isto num filme religioso, mas a crença não se baseia em teologias fundamentalistas, First Reformed olha para o mundo deixado por Taxi Driver, e o atualiza, refletindo-o numa dolorosa agonia. É a política, sob as agendas anti-trumpistas, fervorosamente renegando outras politizadas tarefas, como o ambientalismo a fugir dos panfletismos Al Gore (possivelmente, e em certa parte, o mais sóbrio dos filmes ecológicos).”
Menções honrosas: The Phantom Tread, The Other Side of the Wind, The Isle of Dogs, Girl, A Simple Favor
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Shoplifters (2018)
Foi com uma família de pequenos ladrões que o cineasta japonês Hirokazu Koreeda conquistou a Palma de Ouro no último Festival de Cannes. Durante a sua passagem na Riviera Francesa, a sua mais recente obra foi celebrada por todos que o viram, inclusive Cate Blanchett, a presidente de júri que não conseguiu disfarçar a sua comoção.
Shoplifters é um filme que culmina nos mais diversos e reconhecíveis elementos da carreira de um dos mais citados dos realizadores nipónicos modernos. É o regresso ao conto das “famílias fabricadas”, aos afetos quase inexistentes de uma sociedade aprisionada à solidão e ao individualismo e as pertinentes questões do sistema prisional e judicial.
Tive o prazer de falar com o realizador sobre o seu laureado trabalho e dos seus processos de criatividade.
Quer falar-nos como surgiu esta ideia e se ela tem algo relacionado com a sua experiência? Possivelmente com a sua juventude?
A minha infância foi diferente daquilo que se vê em Shoplifters, de certa maneira. Vivi num apartamento pequeno com a minha família, se bem que baseei a história através da minha perspetiva e observação aos mesmos. Porém, aviso … não éramos “shoplifters” (ladrões de supermercado) [risos].
Com o tempo, a mesma história foi contagiada com diversos eventos que via nos boletins noticiosos. Uma coisa é certa. O Japão tornou-se gradualmente num país de classes maioritariamente médias e altas, mas ainda havia uma camada marginalizada que subsistia do part-time e dos subsídios sociais e outras ajudas do Estado. E por causa disso, o que assistimos no filme – fraudes nas pensões – acontece frequentemente. A família não anuncia a morte dos seus anciões de forma a continuar a receber a pensão, crucial para a sobrevivência. O filme não foi baseado em nenhuma história verídica, mas possivelmente em muitas.
Em Shoplifters deparamos com uma marca sua, o retrato de um coletivo ao invés de se focar numa personagem só.
Penso que o fiz em Air Doll. Curioso é que existem muitos jornalistas que lançam essa questão. Sinceramente não estou muito interessado em elaborar uma personagem central, as histórias que abordo são propícias ao coletivo.
A família é uma boa maneira de contar a história de uma pessoa, porque é através do conceito de família que encontramos tudo o que precisamos para entender e desenvolver a personagem, sobretudo sob uma perspetiva emocional. Por exemplo, gosto muito de trabalhar com personagens femininas, as mulheres criam melhor esses laços afetivos, dentro e fora do circuito familiar. É nesse mesmo que desenvolvo as minhas personagens, num ensaio de união e confraternidade.
Eu e Hirokazu Koreeda
Como muito da sua obra, em Shoplifters tenta sobretudo entender esta família em vez de expressar o seu ponto de vista.
Em termos sociológicos, comecei a minha carreira de cineasta como realizador de documentários para televisão, sendo que, com isso, priorizei uma atitude observacional. Para mim o importante não é a expressão, por mais que diversas vezes queira o fazer, mas sim a descoberta. Tenho em conta que as audiências possuem cada uma delas um ponto de vista e uma perspetiva. Em Shoplifters, a importância era o de observar esta família e aprender através dos seus atos, e faço-o prestando tudo aquilo que descobri no ramo do “storytelling”.
Conheceu alguma família assim nesse processo observacional?
Não conheci nenhuma família de “shoplifters” se é isso que me pergunta, mas fui a diversas casas de acolhimento para crianças e fiz uma intensa pesquisa sobre o sistema, como funciona, como atua e as suas falhas.
Repescando outra marca autoral, tendo em conta o seu “Like Father, Like Son” (“Tal Pai, Tal Filho”) e este ``Shoplifters'', tem abordado sobretudo o conceito de família. Eu, enquanto ocidental, tenho a ideia que no Japão há uma prioridade nos laços sanguíneos, mas Koreeda literalmente diz que a estrutura de toda a família está no afeto?
As famílias destes dois filmes são exceções e a imagem que se tem sobre o Japão é quase exata. Nós valorizamos as famílias unidas pelo sangue, e por norma olhamos para as “famílias fabricadas” com uma certa frieza. Porém, estas personagens - que se juntaram - foram abandonadas pela sociedade, tendo em comum a sua marginalidade, apoiando-se e encontrando conforto e afeto em cada um desses elementos. O que pretendo é que as audiências simpatizem com eles, mas acima de tudo, percebam das causas que os levaram a esta união. Demonstro isso através dos sentimentos que nascem nesse mesmo conceito de família.
No seu filme também aborda outra questão que tem sido ligada à condição da sociedade japonesa – a solidão.
Temos uma expressão, que tem sido utilizada cada vez mais nos últimos anos, que significa mais ou menos isto: “fazer as coisas por nós próprios”. Por exemplo, se nós queremos ir a um restaurante, vamos, mesmo que sozinhos.
Julgo que a grande dificuldade da sociedade japonesa é o de lidar com a diversidade. Existe muita pressão para os casais, o casamento é quase visto como uma obrigação do que qualquer outra coisa, e como tal os japoneses mais jovens têm apostado sobretudo no individualismo ou simplesmente na vida como casal, ao invés das numerosas famílias.
Eu não quero impor essa ideia de conceito familiar, mas nas últimas duas décadas o sistema económico entrou em recessão, o que tem providenciado essas tendências. Onde era comum encontrarmos casas habitadas por seis gerações numa família, hoje deparamos com casais ou individualistas.
A única coisa que tenta contrariar essa mesma tendência é o estatuto, mas isso tem impulsionado a ascensão do nacionalismo, o que tem pressionado diversas famílias.
Air Doll (2009)
E quais serão as causas desse nacionalismo?
Quando o sistema económico está em queda, culpamos sobretudo os imigrantes. O nacionalismo é uma raiva direcionada.
Nos seus filmes existe uma certa sensação de improvisação por parte dos atores. Como os dirige? Quais os seus métodos de trabalho neste ramo?
Não existe muita improvisação nos meus filmes, ao contrário do que as pessoas pensam. A questão é que nunca termino os meus argumentos antes de começar as rodagens. Aliás, só começo a filmar quando começo a escrever o argumento. Isso dá-me manobra criativa e perceção para entender que rumo seguir com a história que estou a desenvolver. E em cada dia de filmagens, reforço ou reformulo o guião.
Constantemente procuro algo nos desempenhos dos meus atores, uma matéria orgânica que os envolve juntamente com as personagens e o meu guião. O meu trabalho é sempre mais difícil porque o argumento está em gradual transformação.
Existe uma cena em Shoplifters, onde várias personagens são interrogadas pela polícia em que não preparei os meus atores com nenhuma fala definida. Eles desconheciam as perguntas que a polícia iria fazer. Este é o tipo de improvisação que faço, à procura do momento e do efeito genuíno.
Mas mesmo assim, filma cronologicamente?
O quanto possível.
Nota-se que tem um certo carinho por estas personagens, por esta família.
Eu amo esta família, mas o facto de declarar esse amor não quer automaticamente dizer que concordo com eles em tudo.
Gostaria que falasse da fotografia deste filme. Os tons coloridos mesmo num quotidiano acinzentado.
Julgo que Ryûto Kondô é um dos melhores diretores de fotografia do Japão e foi um prazer trabalhar com ele. Quanto à questão das cores, mesmo em tentar apostar num filme de teor realista, sinto que na observação do quotidiano, procuramos uma certa poesia e o embelezamento trazido por esta pode muito ser representado pelos tons. Debati muito com Kondô e acordamos naquilo que procurávamos. Hoje olho para o filme e apercebo-me do excecional trabalho da sua parte.
Shoplifters (2018)
É habitual fazer esta comparação, mas queria diretamente questionar-lhe. Acha que é o herdeiro legítimo do cinema de Yasujiro Ozu?
Muitos dizem que sou o seu neto, mas posso certificar que não tenho qualquer relacionamento com ele. Ozu é um grande mestre, mas estou sempre a afirmar em entrevistas que conscientemente não o refiro nem o tento imitar nos meus filmes. Porém, essa comparação é um enorme elogio, eu sei e acabo por não resistir.
Com este filme quis retratar um casal, julgo que por isso sou mais Mikio Naruse que Ozu, e pelo meio desse retrato tentei abordar toda uma sociedade envolta como o Ladybird Ladybird de Ken Loach, que foi um dos filmes que me inspiraram, assim como o Boy, de Nagisa Oshima. Nesse filme damos de caras com uma família disfuncional que atravessa o Japão e que voluntariamente submete-se a atropelamentos para extorquir dinheiro. Vi esse filme no processo de conceção de Shoplifters.
Como costumo dizer, como cineasta levo comigo uma variedade de DNA.
Como vê a indústria de cinema no Japão atualmente?
Está constantemente a piorar. Algo que tenho percebido é que existem cada vez menos participantes japoneses em eventos como Cannes.
Há cinquenta anos atrás existiam mais cineastas independentes e distribuidores que gostariam de trabalhar com eles. Atualmente, os grandes estúdios têm uma visão muito limitada e apostam quase exclusivamente no mercado interno. Olhando para o lado independente, encontramos uma vaga talentosa, mas também ela a decrescer devido a isso mesmo, o pouco interesse no mercado japonês. Julgo que o Japão está a tornar-se cada vez mais fechado e isso é algo que devemos impedir e atuar.
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Na obra de Hirokazu Koreeda assim como no seu recente Shoplifters, em particular, a palavra-chave encontra é LÁGRIMA. Aquele vestígio de sentimento que guardamos com a maior das reservas até ser libertada após as desamarras dos nossos passivos demónios. Uma. Basta apenas uma só, que dita toda uma costura de subtileza e sensibilidade para com o retrato concebido de um Japão fora dos canónicos ficcionais de hoje. E é essa lágrima, tida como dentro [nas personagens] e igualmente de fora [no espectador] que nos encarrega de guardá-la com a maior das confidências.
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Kirin Kiki em "Shoplifters" (Hirokazu Koreeda, 2018)
Kirin Kiki (1943 - 2018)
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O nome de Hirokazu Koreeda transporta-nos diretamente para um termo saudosista da memória do cinema deixado por Ozu, sendo que “Still Walking” (2008) foi a sua grande consolidação com estes efeitos de legado. Contudo, um objeto como "The Third Murder" representa uma espécie de rebelião, uma tendência atípica de descartar as associações do seu nome até então. O que nos é apresentado é um filme de tribunal, com um prefixo de thriller de investigação extremamente sereno e paciente para com a sua própria astúcia, brincando sobretudo com a semiótica das suas situações. Poderia ser um prolongado jogo de dedução, mas Koreeda brinca a outro “santo japonês”, Akira Kurosawa, não no sentido épico shakespeariano que mais uma vez é associado, mas à sua obra “Rashomon” e as bifurcações da chamada verdade, se é que existe essa presunção “totalitarista” que é isso mesmo … a verdade.
Tal como a obra de 1950, onde um julgamento constitui uma narrativa encadeada por relatos, quer os flashbacks pelo qual são constituídos, ou o relato principal que transforma o próprio tribunal num integrado flashback, “The Third Murder” joga com as questões e como elas se confrontam com a realidade jurídica (mais uma vez, realidade, a servir de dilema). O que é a verdade? Ou a verdade para existir deve ser acreditada? Ou defendida? Não esperamos respostas, até porque, tendo como espelho o próprio decorrer do julgamento, Koreeda é engenhoso na implementação dessas mesmas dúvidas, nos debates que poderão ser formados nas “caixas de vidro” que são agora confessionários improvisados. Aliás, os reflexos postos e sobrepostos aludem à própria natureza desta ficção que busca, apesar de tudo, um só propósito: o porquê da Pena de Morte?
Assim como Orson Welles, ciente dos crimes cometidos pelos seus defendidos lançaria numa furtiva resposta ao direito da vida, mesmo esta condenada ao enclausuramento, em “Compulsion” (Richard Fleischer, 1959), Masaharu Fukuyama (que trabalhou com Koreeda em “Like Father, Like Son”) é encarregue de livrar o seu “assassino” da sentenciada morte, especificando através dessa ação os diferentes atos de matar.
Em certo aspeto, “The Third Murder” leva-nos a conhecer um outro sistema jurídico sem as ênfases orquestradas por episódios hollywoodescos. Uma obra curiosa que salienta uma versatilidade incomum num autor como Hirokazu Koreeda, pronto a deixar os seios familiares em prol de uma pertinente essência de verdade parcial e os caminhos traçados por essas divergências perceptivas (assim como é metaforizado na sequência final, as encruzilhadas guiadas pelas nossas convicções).
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