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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O "vai ficar tudo bem" pariu confinamento burguês

Hugo Gomes, 08.02.21

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A grande falha de “Locked Down”, e possivelmente o obstáculo para uma potencial vaga de filmes sobre o confinamento, é o de tentar convencer-nos de que nos mostra realmente o confinamento.

O logo à partida desatualizado novo e mais experimental filme de Doug Liman (“The Bourne Identity”, “Mr. e Mrs. Smith”, "Edge of Tomorrow") sofre para tentar encontrar essa credibilidade, apesar de recorrer a elementos reconhecíveis pelos espectadores, das aplicações de videoconferência até às “paneladas” em louvor dos operacionais de saúde na linha da frente ao combate da COVID-19.

Há uns anos, Abel Ferrara tentou ligar os mesmos elementos para um cenário apocalíptico em “4:44 Last Day on Earth” (2011), que também partilha com este “Locked Down” uma prejudicial artificialidade. Tendo como guionista o muito dramaturgo e prestigiado Steven Knight (do filme “one-man-show” “Locke” e criador da série “Peaky Blinders”), o resultado são diálogos pomposos e os existencialismos de um bando de privilegiados... e se há algo que a pandemia nos ensinou é que realmente não estamos “todos” no mesmo “barco”.

E se a sua falta de noção do que foi (é) o confinamento e a psicologia trazida por este “trauma” afetam a nossa experiência ao ver o filme, “Locked Down” tem ainda a “humildade” de soar como um incompleto e oportunista "brainstorm". Por aqui, as ideias são meros post-its que não se consolidam numa intriga solenemente fluída, a linha narrativa tem perturbações óbvias. A dupla Liman / Knight "pega" em tudo, não conseguindo desenvolver rigorosamente nada e com isto o filme fica numa espécie de estado de esquizofrenia: não sabe se é um drama, um filme de golpe ou uma comédia de enganos e de costumes, e o que poderia ser uma rica e diversificada salada converte-se num pouco trabalhado “fast food”, ditado por exageros e anorexias narrativas.

Talvez seja o próprio confinamento que todos nós vivemos que nos torna mais exigentes quanto às suas representações. E “Locked Down” é exatamente isso, uma espectral representação burguesa.

O elogio lusitano à HBO Portugal

Hugo Gomes, 06.02.21

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Alguns filmes disponíveis no catálogo: “A Religiosa Portuguesa” (à esquerda), “Cartas da Guerra” (ao centro) e “O Fatalista” (à direita)

Sem descurar da Filmin Portugal e a sua progressiva colheita de cinema português, até porque a plataforma é direcionada a uma fasquia de espectadores habituadas a estas andanças, gostaria de salientar o trabalho que a HBO Portugal tem tido na divulgação do nosso burgo cinematográfico. Aqui, entrando numa outra liga de plataformas, daquelas promovidas pelas operadoras e com um catálogo apetecível ao comum dos mortais, o canal criado e denominado de “Made in Portugal” reúne séries de produção nacional e uma pequena mostra da nossa cinematografia. Mesmo que pequena, esta “amostra” é importante para situar e possivelmente criar novas audiências para o nosso universo audiovisual, seja por engano nos seus “binge watchings” ou na instintiva curiosidade.

Se bem que as vozes de desaprovação aos principais streamings dão conta da escassez dos clássicos ou cultos fundamentais na cinefilia (basta verificar a substituição à lá Netflix de muitos dessas histórias por produções próprias completamente alinhadas com a linguagem da empresa), a HBO tem, por sua vez, apostado no tal buffet nacional, o que poderá, a certa altura, ser fundamental para a “reeducação” de públicos (em aspas porque é uma palavra facilmente identificável com causas propagandistas ou lobotomias). E num momento em que a cinefilia bate e debate-se sobre o papel das plataformas na reestruturação dos nossos hábitos de consumo de filmes, a iniciativa à moda portuguesa poderá servir-nos como uma espécie de Cavalo de Tróia, fulcral para criar laços entre os espectadores, até então desligados, para com o cinema “seu”, ou como quiserem – “nosso”.

E não falamos de produção acessíveis, muitas delas integradas a dita ala “cinema comercial” (enquanto nós não ultrapassamos essas duas trincheiras, nunca seremos uma indústria), como as experiências de realização do ator Diogo Morgado (“Malapata”, “Solum), ou os veteranos António-Pedro Vasconcelos (“Parque Mayer”, “Call Girl”), Joaquim Leitão (“A Esperança Está Onde Menos se Espera”) e Luís Galvão-Teles (“Dot.Com”), mas também, a nosso dispor, uma ementa mais requintada e de paladares mais excêntricos.

Recentemente, mais dois se juntaram à coleção, ambas produções de Paulo Branco – “O Fatalista”, de João Botelho, e o reencontro entre a atriz Ana Moreira e a cineasta Teresa Villaverde em “Transe”. E explorando o quadro geral, há muito para (re)descobrir, desde os aclamados e premiados trabalhos de Miguel Gomes e Marco Martins até aos desafios de “A Zona” de Sandro Aguilar, o xamânico “Até ver a Luz” de Basil da Cunha (rodado na Reboleira) ou o eclético “A Religiosa Portuguesa”, de Eugène Green.

Muitos deles filmes invulgares nas “modas” de muitas novas gerações. Pessoalmente, a quem me lê deixo algumas sugestões desse mesmo catálogo, o cada vez mais apreciado Linhas Tortas”, de Rita Nunes, que aborda a nossa dependência e necessidade de refúgio nas redes sociais e “Cartas da Guerra”, de Ivo M. Ferreira, que com base nas cartas de António Lobo Antunes vem desmistificar o belicismo de Ultramar.

À HBO, uma continuação desta iniciativa, porque nem sempre o streaming é uma logística de extração.

Steven Soderbergh tenta ultrapassar o bloqueio ... com Meryl Streep e companhia

Hugo Gomes, 11.12.20

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Estamos entre os que defendem que Steven Soderbergh não é um "autor", mantendo-o longe do sentido mais romântico da palavra. Porque o que vemos nele é uma aptidão invulgar para embarcar em qualquer género, estilos e formato (o prolífero realizador até já filmou inteiramente em iPhone). A palavra mais adequada para ele é superdotado. Alguém isento de personalidade, mas nato o suficiente para nunca se reduzir ao anonimato.

Mas deixemos de falar de Soderbergh para nos concentrarmos neste Soderbergh em concreto: rodado em agosto de 2019 com a totalidade dos atores sob improviso constante (o guião era somente composto por esboços), “Let Them All Talk” é quase como um exercício levado da breca aos territórios comuns de um Woody Allen, mas formalmente centrado nos tiques e toques do subgénero "mumblecore".

A história desta escritora com bloqueios criativos e um grupo próximo de pessoas que se banham nas suas inspirações (ou na falta dela), no luxuoso paquete Queen Mary II, parece ter o efeito de um espelho para um realizador em constante experimentação. Talvez uma busca com o objetivo de resolver o seu próprio bloqueio, mas é através desse modus operandi que se vê a particularidade deste seu trabalho: o de fazer mais com menos.

Filme estilisticamente despido, onde os atores se encarregam de demonstrar as suas destrezas e preencher os espaços vazios deixados por um realizador mentalmente hipertensivo, esta "brincadeira" de encenação acaba por separar o “trigo do joio” no elenco.

Por um lado, veteranas como Meryl Streep (três Óscares) ou Dianne Wiest (dois) exibem aquilo pelo qual são reconhecidas – experiência e como usá-la a seu favor –, mas o “verdinho” Lucas Hedges sai prejudicado nesta “fotografia” e, sem conseguir acompanhar as colegas, partem de si alguns embaraços involuntários.

Mas nada disso realmente importa, "Let Them All Talk" é um filme-teste e não uma derradeira prova de fogo. Tal como a protagonista, está apenas de passagem e tem um objetivo, o de recuperar as palavras certas. Esperemos que o cineasta de "Sex, Lies and Videotape", "Haywire" ou "Side Effects" as tenha encontrado para que nos possa entregar algo mais entusiasmante da próxima vez…

Bruxedos, bruxarias e Anne Hathaway

Hugo Gomes, 28.10.20

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O livro infanto-juvenil de Roald Dahl [publicado em 1983] sobre uma convenção de bruxas que dá para o torto obteve uma “célebre” adaptação em 1990 pelas mãos de Nicolas Roeg (“The Witches”), que, habituado a um peculiar cinema de género, foi responsável por traumatizar uma geração de crianças eludidas.

Passados 20 anos, e tendo em conta a seca de ideias em Hollywood, a história é refeita para o grande ecrã sob o pretexto de aprimoramentos tecnológicos. Não é por menos que a batuta se encontra nas mãos de Robert Zemeckis, realizador que nos últimos tempos (mesmo com um travão suscitado por um tremendo fiasco como foi "Welcome to Marwen", com Steve Carell) tem apostado numa relação orgânica entre os efeitos especiais com a narrativa ("Back to the Future", "Who Framed Roger Rabbit?", "Forrest Gump", "Polar Express", etc.). Previsivelmente, “Roald Dahl’s The Witches” é tudo aquilo que esperávamos numa revisão contemporânea, um festim de CGI mal emaranhado, uma agreste redução no tom negro da anterior versão e uma tentativa (algo questionável aqui devido à sua leveza) de tecer um contexto social.

Os ingredientes não resultam em nenhum elixir de juventude e a fermentação converte tudo numa poção requentada, monstruosamente despida de personalidade, mesmo que possamos assumir que o início é esteticamente prometedor (com uma narração própria de Chris Rock, a fazer recordar a sua bem-sucedida série “Everybody Hates Chris”). Aqui, onde nem um gato escapa ao domínio das imagens computorizadas (dificilmente os seus visuais sobreviverão num espaço curto de tempo), é Anne Hathaway que vemos como o núcleo esforçado, numa correspondência artificial ao legado deixado por Anjelica Huston, que com "The Witches" se tornou na infame bruxa-mãe de ínfimos pesadelos infanto-juvenis.