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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Hollywood cantaria se soubesse cantar ... "One From the Heart", o sonho incompreendido

Hugo Gomes, 05.07.24

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If I could sing, I'd sing. I can't sing, Frannie!

Há uma pequena cena, daquelas que importância alguma têm para com o filme ou para com o seu discurso interior, na qual Hank (Frederic Forrest) lamenta ao seu comparsa de todos os sarilhos, Moe (Harry Dean Stanton), de que as “mulheres verdadeiramente não compreendem os homens”, enquanto vagueia pelas movimentadas ruas deste oásis babilónico que é Las Vegas, à procura da sua mais recente tentação. Parte dessa citação encontra-se na “mulher” indicada na confissão como uma entidade vaga, sem sexo nem orientação, e no homem, aquele com "h" pequeno para não se confundir com a espécie, premonição de um “homem incompreendido”, que se dá pelo nome de Francis Ford Coppola. O filme, para quem ainda não o conhece - a sequência retratada nada esclarece - é “One from the Heart”, hoje descrito pelo desastre que o envolveu, historiografado incessantemente até se tornar numa lenda, uma profecia amaldiçoada.

Julgo não valer a pena descrever esse mito de fiasco, lágrimas e desesperos, sonhos empobrecidos, daí dar origem a esse homem que poucos ou ninguém compreende. Mas cá vai um pouco de contexto: “One from the Heart” foi uma visão declarada do autor, um cineasta convencido de estar na penúria com o seu anterior “Apocalypse Now” - crónica febril da Guerra do Vietname com Joseph Conrad no coração, cuja rodagem, também lendária, custou caro a Coppola, mas foi minimamente compensada pelos elogios da crítica e prémios, como a Palma de Ouro no Festival de Cannes [ex aequo com “The Tin Drum” de Volker Schlöndorff], e alguns Óscares, nomeadamente o de Fotografia com Vittorio Storaro, que também teria um papel fundamental neste “Coração” … mas já lá vamos - adquire os velhos Hollywood General Studio e funda a sua Zoetrope, um delírio em trazer consigo a antiga glória dessa indústria, ou pelo menos uma sequela dessa, contrariando o percurso trazido pela chamada Nova Hollywood auto-declararia o seu óbito em 1980 com o estrondoso fracasso de “Heaven’s Gate” de Michael Cimino.

Tentou-se então o revitalizar o cinema de estúdio, estendendo um convite caloroso a cineastas de todo o mundo (temos conhecimento da também fracassada produção de “Hammet” de Wim Wenders), porém, a ideia de Coppola era impor um novo tipo de cinema, uma experiência que ele próprio auto-intitulou de “Cinema ao Vivo” (bem documentado no seu livro “Cinema ao Vivo e as suas Técnicas”, a tese que ‘sobreviveu’), cujo conceito envolveria a captação e transmissão simultânea das performances em tempo real, através de múltiplas câmaras e edição ao vivo, o que levaria a uma abordagem distinta e narrativa nessas mesmas histórias. 

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Um sonho idealizado, esmagado à primeira tentativa de Storaro - “Francis, porque temos de filmar com tantas câmaras? É tão difícil para mim iluminar. Se usássemos uma só câmara, podia ser muito mais rápido.” [tradução de Luís Lima e Alexandra João Martins]. Acabou por ceder, quebrando completamente a projeção deste “Cinema ao Vivo”, o qual restou apenas um esqueleto sem tendões dessa mesma ideia, o que convém salientar, é belíssimo essa sua “estrutura”.

One from the Heart” não caiu no goto nem da crítica, nem do público, “afundando” espetacularmente e conduzindo, aí sim, à ruína o projeto que era Zoetrope (600 mil dólares rendidos em território americano para 26 milhões em orçamento), um sonho lindo mas agora acordado. O filme, ao longo dos anos, tem sido revisitado e reavaliado até aos dias de hoje, agora sob o signo de “Reprise” (versão editada por Coppola, que pouco difere do original, exceto pelo seu ritmo nos primeiros momentos de filme), do qual é agraciado por uma tremenda consensualidade. Não vou para aqui desfazer consensos alguns, até porque a partilha apaixonada por este refúgio vem a mim desde os tempos de TV genérica, num encontro acidental. 

Anos passaram, agora tendo em conta que foram “a passo de corrida”, e uma característica da obra persistiu na minha memória cinéfila até à sua “desvirginação” em grande ecrã: o de como cada plano se metamorfoseia noutro, ao invés de dar lugar ao sucedido, e como as ações, que têm tanto de terreno como de onírico, partilham a tela numa posição utópica para com a compreensão do espectador. Por um lado, esses são os resquícios do dito “Cinema ao Vivo”, a história a acontecer organicamente, a narrativa a trabalhar como uma espécie de “cadáver esquisito” do momento. E com “Reprise”, explorei a fundo essa memória já longínqua e reencontrei esse filme que não é um filme, mas um truque de ilusão no seu sentido hipnótico e até acercado à nossa consciência.

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One from the Heart” é a simplicidade unida à sua complexidade, uma contradição pois, mas deixem-me explicar: esse simples termo que é o seu enredo, um casal enfadado (o já mencionado Frederic Forrest e Teri Garr, atores reduzidos a estatutos de secundários, mas que com Coppola têm a oportunidade de brilhar) num subúrbio próximo da Cidade do Pecado, a.k.a Las Vegas, cujos néons, a sonoridade constante, os letreiros luminosos com indicação ao vício, paisagens de horizonte apenas opostas ao deserto de saguaros que o rodeia nos seus cantos e recantos. Ele, um mecânico que deseja instalar-se na confortabilidade de uma eventual vida familiar, ela, trabalhando numa agência de viagens, suspira por Bora Bora como outro lugar do mundo. Duas almas dessincronizadas quanto aos seus desejos que se deparam com a cidade que os chama incessantemente enquanto tentação. 

Cada um deles encontrará o seu personalizado carrasco: Raul Julia (ator que deixa saudades, é certo) a servir de bilhete de ida ao paraíso tropical, e Nastassja Kinski, a luxúria com o seu quê de inocência, a “mulher dos desejos” brindado com um lado circense (“If you wanna get rid of a circus girl, all you've gotta do is close your eyes.”). O galã mefistotélico e a sedutora de luxo, perfis vilânicos, porém, a nossa empatia por eles é conquistada. Portanto, é uma história de desencontros, de separação e, por fim, reconciliação, a mais convencional dos enredos hollywoodescos, jornadas pelo coração adentro mantendo-se a grande das epopeias, só que é na sua esquadria, a estética, o pensamento por detrás dela que este musical, com vista ao legado pesado do seu género, se depara com a sua complexa arquitetura. 

Passo, com um suspiro de admiração, pelos cenários de estúdio, em serviência à sua tradição, ergue-se uma Las Vegas replicada, com a sua plasticidade a entender-se com características à sua reprodução. Cenários para fascinar, com cores a condizer e em passagem convidativa, mas é essa estética que funciona como alicerce à narração, por entre raccords a improvisados split-screens, ou sobreimpressões de ações em paralelo, projetado com a funcionalidade do seu cenário ou do espontaneidade, um filme de artesãos e artesanatos, a capacidade de trazer os favoráveis tributos do teatro para essa peça de quotidianos fragmentados e do 4 de Julho faustosamente celebrado. A vida é uma festa, ou melhor, um carnaval, cuja festividade só amplia esse amor, algo saudosista, em trazer o artifício de uma Hollywood, até na altura já entendida como miragem.

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E é através desse “embrulho” que algo que nos soa tão comum, a separação de um casal, adquire o seu tom de espetáculo. A espetacularidade que a trata como o maior conflito humano, até porque como canta a dupla Tom Waits e Crystal Gayle (narradores musicais): “This One’s from the heart” … e é mesmo!

Uma ‘coisa’ que Hollywood nos ensinou é que até as suas derrotas conseguem ser encantadoras.

Cinematograficamente Falando ... 11 anos de vida!

Hugo Gomes, 27.07.18

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Paris, Texas (Wim Wenders, 1984)

Então, mas este estaminé faz os seus 11 anos de existência e nem celebro dia?!

Bem, sim, passamos a primeira década e continuamos em movimento, mesmo em modo lento. Enfim, mea culpa!

Agradeço a todos que me acompanham e que me ajudaram a tornar o Cinematograficamente Falando … naquilo que é hoje.

Muito obrigado! ;)

Harry Dean Stanton e David Lynch entram num bar …

Hugo Gomes, 01.12.17

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Lucky” metamorfoseou, não durante o seu processo de criação e idealização, mas adaptando locucionariamente o seu discurso para os tempos que o abrangem. E quem o confirma é o próprio realizador, John Carroll Lynch, ator de longa carreira aventurosa na sua primeira longa-metragem. Este concebeu a obra como uma celebração ao ator Harry Dean Stanton, porque em todo ele, uma personagem-tipo, concentrava todos os elementos e aspeto no qual o identificamos acima da ficção, e sobretudo fora da realidade desconhecida, a figura que a cinefilia nos impôs – o Harry Dean Stanton que o cinema criara.

Mas a tragédia bateu à porta do ano 2017. O célebre ator de “Paris, Texas” deixou-nos; uma despedida que transforma o célebre numa melancolia prolongada, a celebração torna-se assim numa homenagem fúnebre, e a personagem-tipo num esboço da memória cinéfila. Provavelmente, com o infortúnio, “Lucky” adquire uma dimensão que o favorece, o “cowboy” solitário que vive a sua rotina como um “safe place” e que perante o primeiro sinal vindo do ceifeiro questiona todo esse ciclo, é agora uma “cuspidela” na cara da “Morte”, um sorriso malicioso perante os desfechos incutidos pela sociedade.

“Haverá vida depois da morte?” Para Lucky a vida é única e sem acréscimos, a Morte é o fim e imperativamente aceite. “The only thing worse than awkward silence: small talk” (Pior que o silêncio constrangedor é a conversa barata). Harry Dean Stanton projeta o seu “eu” num sofrimento invisível, uma espécie de solipsismo que adereça o seu quotidiano, encarado com uma automatização sacra e uma ironia crescente.

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Sentimos que o ator não esmera em criar algo novo na sua partitura interpretativa, nem há sentido para tal, é a memória funcional a insuflar com vida este “farrapo humano”, um homem posicionado entre a sugestão e o segredo, a coragem e o medo, que tende em ceder por entre fissuras em relação à maior das doenças da Humanidade: a velhice, consequencialmente a solidão e o fim de um legado. A personagem é só, mas o filme não acolhe um sentido miserabilista perante a sua pessoa; é só porque assim o espectador o sente, mais do que as palavras proferida ocasionalmente sobre o assunto. “There’s a difference between lonely and being alone” (Há uma diferença entre solidão e estar só), ou dos temas quase paradoxais induzidos num bar de esquina, tendo como “parceiros do crime”, um ressuscitado James Darren e um David Lynch como consolo da tão referida memória.

E em orquestração com essa, o encontro com outro parceiro, Tom Skerritt, 38 anos depois de “Alien”, a invocar a Morte como um vilão pelo qual escaparam e que mesmo assim vivem no receio da eventual riposta. O sorriso aqui aludido que será transmitido nas proximidades do final – a essência que pedíamos após a desintegração completa da rotina vivente. Apela-se à anarquia tardia. Ou será antes rebeldia? O olhar matreiro de Stanton proferindo um último discurso, uma última resposta para o seu fim. Para depois seguir ao seu Paraíso, o leito dos laicos, o deserto que o acolhera no seu apogeu e que tanta vida reminiscente oculta.

Mesmo que Stanton aposte no “realismo” que acabara de definir (“realism is a thing”), e nas verdades entre indivíduos que nunca corresponde uma verdade absoluta, este cantinho transforma-se o seu Éden, prevalecendo memórias e garantido o merecedor descanso eterno. Isto acontece porque o sentido alterou com o contexto, a celebração aos vivos é agora uma dedicada canção para os mortos.