Trio de Odemira (IV)
Hans Richter, Sergei Eisenstein e Man Ray, foto de 1929
© Estate Hans Richter
© 2013 Man Ray Trust / Artists Rights Society (ARS), New York / ADAGP, Paris
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Hans Richter, Sergei Eisenstein e Man Ray, foto de 1929
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Rhytmus 21 (Hans Richter, 1921)
“(…) na ficção existe o risco do ator estar associado às práticas totalitárias, dependendo das imagens o qual integram”
Jean-Luc Godard marcou presença no último Festival de Cannes, porém, não fisicamente. Por via de uma transmissão em direto do telemóvel do seu diretor de fotografia, marcou não só a conferência de imprensa anexada ao seu novo filme, apresentado na Riviera Francesa, assim como todo o festival. Os jornalistas afilaram frente ao dispositivo, cada um deles ansiando concretizar a sua respetiva e aguardada questão, entre a qual a da escolha do ensaio audiovisual que o seu “Le Livre d’Images” se inseria em confrontação com o abandono da ficção por parte do anterior realizador de “Pierrot le Fou”.
A resposta do cineasta franco-suíço foi aquela que pode ser lida acima, um discurso em pró-valor das imagens como algo emancipado de um todo [o filme] e o papel dos atores adereçados às ditas. Este mesmo discurso e o manifesto de Hans Richter, separado por 63 anos de The Film as an Original Art Form, têm em comum (mesmo seguindo por objetivas divergentes) os traços quanto à linguagem pretendida do Cinema, proclamando (ou renunciando) o seu cognome de Sétima Arte. Para o alemão Hans Richter, era importante que o cinema se demarcasse das outras artes, e não visto como uma Sétima, endereçada a uma cadeia hierárquica. Citando o realizador português João Botelho, o Cinema é uma “arte vampírica”, tratando-se de uma plataforma que parasitava o já criado.
Para o experimentalista cineasta e autor dessa conclusão [Richter], o Cinema teria que afastar-se desse vínculo o qual denominou de reprodução. Esta, evidenciada na captação do realismo, ou seja, o redor “reproduzido” para a película (proeza paralela com a da fotografia) assim como os atores (devedores da arte de encenação), e a literatura. No caso da encenação, os atores eram vistos como criadores da arte, e não o cineasta como diversas vezes é dirigido. Esse ponto encontra similaridades com a declaração político-ideológica de Godard, a dependência do ator e a imagem anexada cujo sentido poderá ser distorcido por via de um reconhecimento quase iconográfico por parte do espectador. Por fim, a situação da literatura, influência que originará a narrativa – o enredo – um dos pontos fortes do cinema convertido a entretenimento em massas apropriado, sobretudo, por Hollywood.
Hans Richter
Para quebrar este vínculo, Richter propôs, à luz dos “colegas”, uma reivindicação da própria linguagem cinematográfica. Uma incidência pela originalidade criativa e um certo abraço do dadaísmo, movimento inicialmente literário que desprendia de qualquer racionalidade. Poderá ser considerado como uma contradição da originalidade tendo como projeto um ideal da literatura. No caso da sua trilogia “Rhythmus” (21, 23, 25), evidenciou-se o afastamento da relação triádica imposta por anos de desenvolvimento cinematográfico: a recusa pela atuação, a renegação pela narrativa e por fim, o desprezo pelas imagens criadas, requerendo assim, a criação de uma nova imagética. Essa própria que desafiaria os estudos taxonómicos de Gilles Deleuze, como se pode evidenciar no seu Cinema 1: “O todo tornou-se a intensificação propriamente infinita que se libertou de todos os graus, que passou pelo fogo mas apenas para romper as suas ligações sensíveis ao material, ao orgânico e ao humano, para se desprender de todos os estados do passado e assim descobrir a Forma espiritual abstrata do futuro.”
Este abstrato visual, o punho erguido de Richter perante a oligarquia da indústria, tinha como apelo às liberdades cometidas pelos outros artistas de diferentes artes, nomeadamente, segundo o seu próprio manifesto, a pintura, desde os avanços do cubismo neste meio. Para isso, era determinante a fidelidade com a única “linha realística que o artista seguia” – a integridade artística. A qual iria fecundar o chamado Cinema Puro, uma arte independente das outras e independente do seu próprio meio.
Contudo, essa vanguarda, ou diria antes, nova primeira vaga, o qual compunham artistas como Jean Cocteau, Man Ray, Fernand Léger ou Marcel Duchamp, foi marcante num reflexo artístico pós-Primeira Guerra. Contudo, não foi propícia a uma auto-sustentação da sua forma. Tendo como base as palavras de Roger Leenhardt no texto “Le cinéma impur”, presente na sua antologia “Chroniques de Cinéma” [1986], era debatido o papel do Cinema como uma arte industrial ou popular. Para o autor, uma das diferenciações entre a Sétima Arte e as outras respetivas, era sobretudo o facto de ser uma arte mais apeladora ao «homem» do que ao «artista», a capacidade de unir elites às massas e não restringi-las ao esnobismo da “arte pura”. Leenhardt, em jeito de provocação, chamaria mesmo este cinema popular e narrativo como o Cinema Impuro, em oposição aos marcos defendidos pela trupe de Richter: “É preciso acabar definitivamente com o equívoco da imagem, do seu prestígio e da sua primazia”
A verdade é que toda esta busca pela pureza, torna-se imunda, esgotando todo um registo de possibilidades e cedendo à “salada” de influências que as vanguardas por norma expiram. Tendo em cansaço formativo, Richter e os seus congéneres envergaram por um cinema híbrido, o surrealismo que contagiaria as três normas fulcrais do “Cinema Impuro” – narrativa, encenação e imagem (o mise-en-scène propriamente dito). Muitos deles, como é o caso de Jean Cocteau, e até mesmo o próprio Richter, iriam trabalhar no chamado Cinema-Poesia, formalizando a “linguagem poética” incidente na arte de filmar [Pier Paolo Pasolini]. O caso do nosso Richter, esse cinema de tons, a poesia emanada, serviriam como resistências de uma afirmação artista do seu método cinematográfico, quer presente na (re)criação das imagens ou até mesmo nos diálogos-citações que se cometem como alternativas à narrativa visual.
"Descobriste o que podes ver dentro de ti! Sabes o que é que isso significa? Foste promovido. Já não és mais um vagabundo, és um artista” (“Dreams that Money can Buy”, Hans Richter – 1947)
Apesar de adormecido e muito mais, encarado como um fracasso artístico para os demais, tais manifestos e concepções acima da concepção, a vaga de experimentalismo dos anos 20, serviria como base (=inspiração) para um novo movimento. Trata-se do cinema underground que surgiria no seio da comunidade artística nova-iorquina dos anos 60, novamente respondendo como afronta ao modelo imposto pela Hollywood (neste período em decadência formal). Desta mesma avant-garde foi nos dados cineastas como Jonas Meka, Stan Brakhage e o multifacetado Andy Warhol. Este grupo seguiria atentamente as mudanças sociopolíticas ao seu redor, assim como preservando o estatuto quase imaculado do artista.
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