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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Edgar Ferreira e o "Coro" da Gulbenkian: "Este filme é meu, mas não deixa de ser nosso."

Hugo Gomes, 03.04.25

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Depois da Orquestra da Gulbenkian, 60 anos em 60 minutos, regressamos à Fundação e ao realizador Edgar Ferreira, agora noutra vertente artística, ou melhor, noutra joia da coroa gulbenkiana: o Coro. Desta vez, sem a ditadura do tempo, seguimos as vozes consolidadas deste coletivo que brilha nos palcos e faz da sonoridade a sua mais mestra linguagem. Aqui, em “Coro” o tempo é uma força contestada, enquanto se parte individualmente pelos indivíduos, das suas resistências quotidianas em pertencerem a algo maior do que eles próprios. Serem peça imprescindível de uma partitura, de uma melodia, de uma música com História esmagadora nos seus ombros. Serem essa criatura coral, de mil e uma cabeças, ainda mais de vozes, em um harmónico e volátil uníssono. 

Novamente, 60 anos—com Edgar Ferreira a transformar essa efeméride num documentário coral e de coralidades. Música, maestro! As cordas vocais já estão aquecidas.

"Coro" encontra-se nas salas de cinema.

Já tínhamos conversado anteriormente sobre este projeto, mas agora que vi o filme, gostava de perguntar sobre a abordagem que escolheu. No seu documentário anterior, havia uma lógica mais formal e uma rigidez temporal, enquanto aqui a abordagem parece mais humanizada. Não se trata apenas da cronologia do coro, mas também da resiliência destas pessoas [coristas] em conciliar a sua paixão com a vida pessoal. Como pensou na abordagem para este filme?

Agora que estabeleceu essa relação entre os dois filmes, vejo que este começa exatamente onde o outro terminou, em termos emocionais. O documentário anterior, sobre a orquestra, tinha uma história que precisava de ser bem contada. Já no "Coro", senti menos essa ansiedade de narrar uma história específica e interessei-me mais pela particularidade, menos conhecida, de que estes músicos têm outras vidas, e, ao terem-nas, como é que isso se manifesta na sua criação artística coletiva?

Exatamente! O filme não se limita a documentar a história do coro de forma enciclopédica, ele mergulha nestas vivências e permite-nos ver o coro a partir do olhar dos coralistas, e não o contrário. Gostava de saber como selecionou as pessoas que entrevistou. Como foi o processo de decidir quem faria parte do documentário?

Posso dizer que foi um desafio. Defini que o documentário teria um olhar de dentro para fora. Tudo o que aprendemos sobre o Coro Gulbenkian ao longo dos 86 minutos vem diretamente dos coralistas. São eles que dão voz ao documentário. Para contar a história, precisava de encontrar as pessoas certas para representar os diferentes aspetos que queria abordar: a história do coro, as audições, a voz, o canto, a interpretação, o esforço diário...

A terapeuta da fala, Mariana Moldão, aparece quando falamos sobre o trabalho vocal. A Sara, atriz, reflete sobre a interpretação. O José Bruto da Costa, musicólogo, contextualiza historicamente o Coro Gulbenkian. Todos eles trouxeram algo muito particular para o documentário. Depois, há participantes que representam um coletivo maior. O Jaime, por exemplo, é atleta, e há muitos atletas no coro, portanto ele representa essa presença. O mesmo acontece com as mães, há muitas dentro do coro e uma delas representa essa realidade. O processo foi bastante orgânico. O coro tem entre 70 e 100 elementos e, para os conhecer melhor, fizemos questionários com perguntas focadas na perspetiva que queríamos para o documentário – uma abordagem mais pessoal e profissional, fora do coro.

Com base nesses questionários, realizámos entrevistas e, ao longo do tempo, desenvolvemos relações de proximidade. Como o filme é filmado de forma muito próxima – em ensaios, estamos praticamente em cima das pessoas –, era essencial criar um ambiente de confiança. Para evitar desconforto, foi preciso estabelecer uma relação de cumplicidade, algo que aconteceu naturalmente. O documentário não é apenas sobre receber histórias, mas também sobre partilhá-las.

Este foi um filme feito em conjunto. Os muitos meios só foram acessíveis graças aos coralistas: filmámos no Hospital de Cascais porque o Luís Miguel fez a ponte com a administração para que pudéssemos filmar a cena na piscina, o Jaime ajudou-nos a encontrar um local adequado, etc. Houve uma colaboração genuína de todos.

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Edgar Ferreira

Digamos, usando o trocadilho óbvio, este é um filme coral.

Sim, e isso reflete-se também na sua construção. Em determinado momento do documentário, alguém diz que, quando trabalhamos artisticamente em conjunto, tudo corre melhor e penso que isso se aplica ao próprio filme. O processo de realização espelha o funcionamento do Coro Gulbenkian: aproximação, contacto, trabalho coletivo. A meta do coro é que todos cheguem à mesma frequência – e a construção do documentário seguiu a mesma lógica.

Gostava de falar sobre esse lado coletivo, pois há dois momentos em que parece querer sair da estrutura do filme coral. Um deles é a inserção de um certo toque de cinéma vérité, quando a narrativa constantemente pontua presença de alguém nos bastidores, organizando cassetes e nomeando ficheiros de concertos, como fosse a própria a pesquisa a ser feita diante dos nossos olhos para este filme. Sente que esse momento reflete a sua presença dentro do filme?

Na verdade, essa pessoa não sou eu. É um ator [risos].

Mas há ali uma representação sua, do realizador.

É mais a representação de um investigador do que do realizador. Não sei se me revejo naquela personagem, mas a sua função era introduzir as imagens de arquivo de uma forma que fizesse sentido na narrativa. Ao longo do filme, estamos sempre à espera de ver o coro atuar, mas só o vemos através de imagens de arquivo. Nunca vemos a atuação filmada diretamente para o documentário.

E a inserção dessa personagem, de certa forma, representa um alter ego seu - o papel do investigador dentro do filme?

Sim, mas mais como um investigador do que como realizador. No final do filme, há um momento em que essa personagem desliga a luz da cabine, momentos antes do fim da narrativa. Isso simboliza o fim desta história e o começo de um novo filme – um ciclo contínuo.

Então há uma certa metalinguagem nesse... Vou chamá-lo andaime, porque é o documentário a ser realizado perante os nossos olhos.

Digamos que sim, mas acho que essa será mais... Ou seja, a ser meta, sim, concordo, mas é mais superficial. Acho que, para mim, o verdadeiro estado meta do filme é, efetivamente, a forma como ele é construído, que é de uma forma coletiva, como objeto do seu estudo. O coro que constrói o som é produzido coletivamente. Esta atenção à respiração do outro... Estamos aqui neste nível, e é aqui que temos que estar para que a coisa se funda, haja esta fusão de vozes e nesse sentido acho que o filme é meta. Também se constroi dessa forma coletiva.

O outro ponto que estava a referir acontece no início, em que vemos o nosso corista no corredor. E há aqui entra um trabalho conjunto de encenação e de sonoridade, e esta última está presente aqui num tom operático antes de entrarmos para o documentário em si. Gostava que também falássemos um pouco desta abordagem inicial. Por que começar o filme desta maneira? E o porquê de ser com esta personagem de todo o elenco de coristas?

Mais uma vez, o que me interessava destacar eram os indivíduos, ou seja, o coro tem este resultado de trazer o anonimato aos indivíduos que fazem o conjunto. Valem pelo conjunto, pelo todo e queria ter a atenção ao individual. Precisamente, a primeira metade do documentário é muito focada no individual e, gradualmente, vai-se fundindo nesse coletivo. Tanto que houve a preocupação também de que cada um tivesse quase um arco narrativo próprio, que depois, de alguma forma, são revelados no final, onde tudo flui para criar maior intensidade. 

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Fernando Eldoro

O início começa com uma coisa muito simples, que é a respiração. A respiração está na base do canto, é a base da voz. A primeira contração do diafragma resulta em respiração. Depois tem que haver a intervenção das cordas vocais para só ouvir a voz, e depois a voz-canto, e depois o canto-interpretação. O ponto de partida fez-me sentir que era a respiração por onde deveria focar. Também indicia logo uma luta. Não é uma luta contra o tempo, mas uma vontade de chegar ao fim, uma persistência, militância, resiliência, que depois, de alguma forma, está presente em vários momentos do documentário.

Acabou de me dizer uma coisa que agora tenho que perguntar. Tendo em conta também o filme anterior e este, sente que está sempre a lutar contra o tempo nos seus filmes?

Não, mas estou atento à questão do tempo. É algo que me interessa pessoalmente e não como um objeto ... Ou seja, no primeiro filme, isso é muito evidente. Ainda que esteja ao serviço da questão da música clássica, qual é a importância e porque é que ela se mantém até aos dias de hoje? Aqui, a questão do tempo é vista de uma forma muito mais emocional. Mas é um tema que me cruzo diversas vezes e que me qual seja a abordagem, sempre me suscita interesse.

Um dos pontos também centrais do seu documentário é a trindade dos maestros com os quais este ‘corpo’ trabalhou: Michel Corbeau, Fernando Eldoro [falecido em fevereiro de 2025] e Jorge Matta. Este também foi um dos principais focos seus no coro? Também trabalhou com base nestes maestros e nas suas idiossincrasias artísticas, porque cada um tinha um método diferente de trabalhar?

Nstes 60 anos, e daquilo que pude observar e ouvir, a qualidade do som do Coro Gulbenkian advém da interação dessas três pessoas. O Michel Corbeau foi o mestre titular do coro durante 50 anos. Visto estarmos a comemorar 60’, é inédito a nível mundial ter um mestre titular durante meio século no mesmo agrupamento artístico. O mestre Eldoro é uma personagem incrível, com uma dedicação extraordinária à música e ao canto. Já o mestre Jorge Matta, o seu papel na música portuguesa e contemporânea através do Coro Gulbenkian, não tem paralelo. E sim, a interação entre os três forma a identidade daquilo que é o som do Coro Gulbenkian.

Agora gostava de perguntar, tendo já dois documentários sobre a Gulbenkian, você deseja permanecer na Fundação e um terceiro documentário ou deseja aventurar-se por outras “águas”?

Tenho vários projetos que ambiciono fazer. Dito isto, a Fundação Calouste Gulbenkian tem a qualidade de me fazer convites a projetos irrecusáveis e cativantes. Tanto o documentário sobre a Orquestra como o do Coro, não há assim tantos objetos fílmicos feitos sobre esta temática a nível mundial. Numa base inicial, vou à procura de ver o que já foi feito, como é que foi feito, e quais são as abordagens. Sobre coro, não há um único documentário feito sobre o coro: há reportagens e há um filme francês pelo que sei.

Portanto, aventurei-me neste universo. Tem uma história que é uma história linear e de sucesso. Começa aqui, acaba ali, é sempre à direita e cada vez com mais sucessos, mais reputação, mais concertos, mais discos gravados, sempre melhor, mas não há contrariedades, não há obstáculos, não há momentos de adversidade que nos permitam contar uma história de superação, ou seja, em termos de narrativa, seria menos interessante. Por isso, quando o desafio me é colocado, penso: “como é que vou abordar isto? Como é que posso o fazer?”. E é estimulante tentar resolver um tema que se calhar não é assim tão explorado e ver se pode ou não dar um bom filme.

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Pertinentemente, segundo estas propostas que a Gulbenkian faz, e através destas mesmas propostas, você se descobre a si próprio enquanto documentarista ou redefine-se enquanto documentarista? Ou não gosta da palavra "documentarista"? [risos]

É difícil responder a isso [risos]. Inicialmente há um convite e com base nele não me é pedido nenhum tipo de limitação. "Nós queremos fazer isto para esta data com a Orquestra Gulbenkian." Por outras palavras, tenho total liberdade para o fazer e tenho sentido essa mesma liberdade. Tanto no caso da Orquestra como no caso do Coro, houve uma escolha muito deliberada de dar voz a quem efetivamente tem propriedade para falar sobre, mais do que a preocupação de ter um cunho autoral sobre o objeto que estou a fazer. Por isso, nessa medida, também não sei se estas experiências me tornam um melhor documentarista, ou um tipo de documentarista, porque como disse tenho outros projetos que ambiciono fazer e aí, possivelmente, contarão com uma voz mais minha. 

Só que também é contraditório o que disse, porque também não deixo de sentir uma voz minha nestes projetos, sobretudo na forma como tal é construído, tudo parte de uma escolha minha, a de incluir as pessoas e o trabalho com elas, e, por fim, chegarmos a este ponto de trabalho coletivo. Consigo dizer que há uma distinção gigante entre aquilo que foi fazer a Orquestra e aquilo que foi fazer o Coro, em que, para o bem e para o mal, cantando, cantando pessimamente convenhamos [risos], não deixei de fazer parte deste grupo .

Não me deixei de sentir pertença. É uma forma muito bonita de se trabalhar, de fazer qualquer coisa. E aí ... voltemos à questão da meta: se há qualquer coisa que ganhei neste processo, foi esta forma muito interessante de trabalhar, coletiva e não individual. Este filme é meu, mas não deixa de ser nosso.

O Tempo, trabalho e melodia em "Soma das Partes": falando com o realizador Edgar Ferreira

Hugo Gomes, 23.06.24

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Seis décadas, sessenta minutos de filme, é o que se resume a esta composição documental que se dá pelo nome de “Soma das Partes”, um projeto que vénia faz ao percurso histórico da Orquestra Gulbenkian, salientado as suas importâncias sociais, políticas e artísticas. 

Um trabalho informativamente rico, integrado por dezenas de entrevistados, solistas, maestros, todos juntos com batutas e instrumentos na mão, sonorizando este “tic-tac” - da sua fundação em 1962 por Madalena Perdigão, até à nossa contemporaneidade -, numa pauta de imagens de arquivo e performances em forma de brilharete, um aperitivo para todos aqueles que estão alheios a este universo, e que mesmo assim musicado para todos os públicos. 

Já nos cinemas: “Soma das Partes”, um filme de história e das suas historietas, dirigido por Edgar Ferreira, o condutor – apesar da sua negação – que nos recebeu na própria Fundação Gulbenkian para uma conversa sobre a sua composição e que, adivinhem, terá acompanhamento futuramente…

Questiono-lhe, este filme foi um encomenda ou uma proposta sua à Fundação?

Este filme nasce da necessidade de comemorar os 60 anos daquele que é um dos agrupamentos mais importantes da Instituição e, nessa altura, convidaram-me para fazer o documentário.

E havia alguma estrutura pré-estabelecida pela Gulbenkian?

Não. Não houve uma conversa prévia com o serviço de música. Logo nessa conversa inicial surgiu a ideia de "60 anos, 60 minutos", e tal ficou decidido. Começámos a trabalhar nesse conceito e em como poderíamos fazer um documentário que tivesse paralelismo com a música, sugerindo um determinado ritmo ou compasso, e que conseguisse contar toda a História da Orquestra gulbenkiana, desde o seu início até à formação que se conhece hoje.

E como foi essa gestão de tempo, principalmente nas entrevistas que insere?

O filme é feito em co-argumento com a Andrea Lupi, que fez as entrevistas aos 23 entrevistados. Quando tivemos uma conversa prévia, explicitei a minha proposta de demonstrar o tema do tempo, visto estarmos a comemorar o marco temporal da própria orquestra, e explorar as suas diferentes perspetivas: o tempo da música, o tempo da interpretação, o tempo dos maestros, a própria longevidade do agrupamento ou mesmo o tempo das obras que tocam, que têm entre 200 e 300 anos, e que ainda assim permanecem resistentes à erosão da passagem do tempo.

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Edgar Ferreira / Foto.: Elsa Mónica Alexadrino

Com esta estrutura definida, as perguntas que fizemos seguiram essa ideia. Incluímos, sempre que possível, questões relacionadas com o tempo, para nos dar diferentes perspetivas sobre a temática, que depois espelhámos ao longo da narrativa do documentário.

Respondendo especificamente à sua pergunta, com essas entrevistas, havíamos angariado muito material, abrangendo diferentes décadas. Perguntámo-nos se estaríamos a ser demasiado redutores ao restringir-nos a uma estrutura tão rígida que nos obrigava a deixar determinadas partes de fora. O exercício foi: vamos tentar condensar tudo o que queremos dizer num curto período de tempo e perceber se conseguimos fazê-lo ou não.

Fizemos a primeira década, depois passámos para a segunda e assim por diante, mas a dúvida persistia. Houve décadas em que partimos de um pré-argumento com 40 minutos, que tinham que ser concentrados em 10. Como foi feito esse exercício? Na edição, muitas vezes utilizamos a complementaridade do discurso dos entrevistados para conjugar – alguém começa uma frase, outro termina; alguém enuncia um conjunto de obras, outro acrescenta – permitindo que cada entrevistado retomasse o discurso, não se restringindo apenas àquela pequena parte. Respirações, interjeições, tudo o que não era essencial para o entendimento do documentário foi retirado. Adjetivação dupla: "é bonito e elegante", não, basta "elegante". O elegante já contém a beleza, então ficámos apenas com esse adjetivo.

Dessa forma, conseguimos incluir todas as temáticas que nos interessavam em cada uma das décadas. O documentário adquiriu uma cadência e uma rapidez de desenvolvimento inesperadas.

O facto de ter “conduzido” e trabalhado o tempo neste documentário, sente-se com isso próximo dos propósitos de um maestro / condutor?

Não me atrevo a fazer essa comparação porque não tenho domínio suficiente no ato de dirigir uma orquestra. [risos]

Não refiro à arte de dirigir uma orquestra, refiro mesmo a essa ginástica e ensaio de tempo …

Posso dizer algo complementar: a ideia de termos uma marcação de tempo no filme não é nada de novo, já foi feita inúmeras vezes, mas, regra geral, essa marcação de tempo é em contagem decrescente, o que gera ansiedade quanto ao fim. Aqui é o inverso, temos uma contagem crescente, uma soma, não uma subtração. Acrescentamos à história deste agrupamento, não na expectativa de um fim que resolva o filme. Em vez de sentir expectativa ou ansiedade sobre o fim, há um sentimento de crescendo, continuidade e progressão.

Eu tinha dúvidas porque, quando sentimos a passagem do tempo, nem sempre é por um bom motivo; estamos à espera de algo, e isso reflete-se no documentário. Ou seja, para o espectador, ver que o tempo está a passar pode ser prejudicial, mas devido à elevada cadência, o que acontece, ou a sensação que pretendemos obter, é que quando chegamos ao fim de uma nova década, ficamos curiosos por saber o que vem a seguir. O que vamos ouvir a seguir? Isso combina com o momento final que de alguma forma nos transmite o que é comum num movimento de uma orquestra ao longo de 60 anos.

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Maria João Pires em "Soma das Partes" (2023)

Mas essa decisão de colocar um cronómetro no seu filme, não teve medo de transmitir uma ideia contrária ao espectador?

Como estava a dizer, tive essa dúvida. Acho que no resultado final não sinto. Em qualquer momento poderia ter optado por retirar, mas não o fiz porque senti que este cronómetro faz sentido existir no filme. Ao contrário de fechar, esta contagem permanece, é um movimento contínuo.

Quanto aos entrevistados? À sua seleção? Houve alguém que recusou o convite?

Ninguém recusou o convite, houve dificuldades em reunir com alguns deles, seja por motivos de agenda. Estamos a falar de pessoas com agendas muito preenchidas, concertos a nível internacional. No caso dos maestros, dirigem orquestras em todos os cantos do globo, semana após semana. Alguns solistas, como Maria João Pires ou Evgeny Kissin, dão igualmente concertos pelo mundo inteiro com frequência, e reunir todas as entrevistas no mesmo espaço, no Grande Auditório, foi uma tarefa difícil, requerendo alguma logística.

Como funcionou essa abordagem com os entrevistadores?

Com a Andrea, falávamos previamente sobre a questão do tempo, e depois falávamos antes e durante cada entrevista, tendo algumas perguntas-guia para direcionar os conteúdos que pretendíamos obter, especificamente para aquela área ou para aquilo que aquela pessoa nos poderia dar. Houve esse exercício. A conversa fluía naturalmente e, normalmente, eu e a Andrea discutíamos na entrevista: "Que tal perguntarmos isto também?". E, se houvesse disponibilidade, essa pergunta era feita.

Em relação à investigação?

Tenho trabalhado com a Gulbenkian com alguma regularidade, e é um privilégio poder estar neste meio com os músicos e tudo o que isso envolve. Tendo a oportunidade de trabalhar com o serviço de música, vou conhecendo parte da história. Do diálogo com os músicos e técnicos, vou conhecendo histórias, coisas que aconteceram ou estão a acontecer, momentos importantes que, de alguma forma, marcaram a vida da Orquestra Gulbenkian

Quando comecei o documentário "Soma das Partes", já tinha em mente temas que para mim eram bastante evidentes: a música contemporânea, a Madalena Perdigão, que está na génese dos três agrupamentos da Fundação Calouste Gulbenkian: Orquestra, Coro e Ballet.

À medida que o documentário foi se desenvolvendo, adquiri conhecimento de outros episódios até então desconhecidos para mim, seja por via de pesquisa, seja de menções feitas pelos entrevistados nas nossas conversas. Como as entrevistas foram espaçadas, ao obter uma resposta, permitiu-nos investigar um pouco mais sobre o tema e, se achássemos pertinente o seu desenvolvimento e aprofundamento, fazíamos isso com outro entrevistado a seguir.

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Houve algum episódio dentro desta “Soma de Partes” que o fez repensar na estrutura do documentário? Por exemplo, enquanto espectador, senti curiosidade em saber mais sobre o afastamento de Madalena Perdigão da Fundação.

A Madalena Perdigão merece um trabalho exclusivo sobre ela. Este documentário não é sobre ela, é sobre a Orquestra. Achei importante mencioná-la, porque obviamente está ligada à história da Orquestra, mas houve um momento em que tivemos que deixar essa questão de lado. Estaria mais preocupado, como havia afirmado há pouco, se aqueles dez minutos correspondentes a uma década não fossem suficientes para esquematizar todos os acontecimentos desse período e se tornasse redutor, refém de uma estrutura inicial que nos impedia de atingir todo o potencial prometido. E as décadas foram-se resolvendo, uma a uma, e no final sinto que não ficou nada de fora que eu achasse que deveria estar no documentário.

Mas em relação a esse filme sobre Madalena Perdigão. Seria o realizador indicado para essa tarefa?

Gostava muito, mas ... só o tempo dirá. [risos]

Fale-nos desse outro projeto seu, o “Coro: 60 Anos do Coro Gulbenkian”?

É um projeto que tem um ponto em comum com o filme da Orquestra, que é a passagem por 60 anos de existência …

Ou seja, não terá 60 minutos?

... e as semelhanças terminam aí. O documentário do Coro permitiu-me conceber algo distinto do que fiz com a Orquestra e só faria sentido fazê-lo dessa forma. Isto está relacionado com a forma como abordo cada projeto. Tem que ser desafiante, tem que me propor algo de novo, que não me faça sentir que estou a replicar um modelo ou esquema do que fiz anteriormente. Tendo dois agrupamentos que pertencem à mesma instituição e que estão a comemorar o mesmo arco temporal, achei que tinham que ser dois projetos inteiramente distintos.

Sobre o título “Soma das Partes”? Este é alusivo à composição do documentário, seis décadas a 10 minutos cada, dando no seu total 60 minutos de duração, ou é uma referência à estrutura da orquestra, ela uma formação de vários músicos, talentos, instrumentos e classes musicais?  

É as duas coisas. A resposta está na pergunta. [risos] E daí, sendo natural, que é um nome comum, sempre utilizamos essa expressão "A soma das partes é maior que o todo", e isso não deixa de ser verdade neste caso, tanto nos elementos que compõem uma orquestra, no som que acabam por produzir, na perseguição pela excelência que está na génese da iniciativa da Madalena Perdigão até à formação atual, como também é maior do que o próprio tempo que foi experienciado pela Orquestra.