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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Uma "ereção violenta" de Cinema

Hugo Gomes, 17.09.24

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A odisseia de um homem que escapa pela rota do Oriente da mulher considerada "a mais teimosa do Mundo" configura um casamento que, movido por uma determinação inabalável, sugere ao semi-protagonista, Edward (interpretado por Gonçalo Waddington), uma sensação de aprisionamento. Esta premissa, aparentemente absurda, dilui-se rapidamente numa alegoria cinematográfica, pois a ideia, independentemente de qual seja, é transcendida, temida e, de certa forma, recusada como passível de negociação. O que seria das aventuras humanas se estas fossem, de alguma maneira, domesticadas?

Não se deve interpretar "Grand Tour" como um mero pesadelo matrimonial, mas antes como uma reflexão sobre os múltiplos simbolismos que o casamento, ou a mera possibilidade deste, acarreta. Esta instituição é aqui retratada como um "macguffin" inquieto, encarnado por Crista Alfaiate, que traz consigo o mais “irritante” dos tiques. Tal alusão ao conformismo ameaça as fantasias humanas, matéria com a qual o cinema frequentemente dialoga, e essas mesmas, apresentadas como relatos de terras distantes e exóticas, são aquilo que nutre o cinema de Miguel Gomes. Há nelas uma violência latente, uma vontade de as capturar, moldar e expor como troféus. 

Miguel Gomes navega nesta densa selva semiótica com plena consciência do seu papel enquanto realizador, mas não para revisitar histórias de colonizações ou evocar memórias do colonizador. Antes disso, é a imagética dos caminhos das especiarias, do exotismo que escapa ao nosso quotidiano, que se torna o verdadeiro estandarte da sua cinematografia. Para Gomes, o cinema permanece como uma janela aberta para o mundo — seja geográfica, intelectual, social, alegórica ou politicamente. É neste território que o realizador se move, onde a busca onírica pelo exotismo inalcançável se entrelaça com o sonho e a pretensão, elementos indissociáveis da linguagem cinematográfica. De certa forma, esta exploração da fantasia humana desde os seus primórdios sapientes confunde-se com a própria essência do cinema, inscrito num mesmo processo evolutivo. Já havia dito que paralelismos causavam-lhe vertigens, tonturas desgarradas nas apresentações da trilogia “As Mil e uma Noites” (2015), contudo, é essa subjugação ao seu mal-estar que Gomes se expõe em tela. 

Um dos momentos de maior destaque em “Grand Tour” ocorre quando Edward, em plena fuga de comboio em direção a Saigão, é envolvido pelos sons imersivos e indecifráveis da floresta. De súbito, uma "ereção violenta" o detém, algo que não vemos, mas que nos é comunicado por um narrador omnisciente e omnipresente. A cena, contudo, apenas nos mostra a perspetiva traseira da carruagem, com os carris que se prolongam infinitamente e um horizonte que se desvanece, preenchido por lugares inexplorados. O narrador informa-nos que Edward adormece, e, assim, o sonho começa por breves instantes. Curiosamente, “Grand Tour”, embora distante da estética murnauiana de “Tabu” (2012), evoca um certo encantamento dos maneirismos do cinema mudo (sente-se mais Dreyer aqui). Existe um "primitivismo" deliberado, uma invocação de uma época em que o cinema surpreendia não apenas pelas suas possibilidades técnicas, mas pelo seu poder de "faz de conta" e lirismo. Todavia, o sonho aqui é a cores, realista e contemporâneo, acima de tudo documental — o expoente máximo do cinema moderno. Uma bela alegoria: o cinema a preto e branco que sonha em cores, o cinema do passado que sonha com o futuro, o cinema fabulista que sonha com o real.

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É possível que Miguel Gomes, com o seu passado de crítico de cinema, esteja constantemente a falar sobre a própria arte nos seus filmes. Mais do que utilizar narrativas lineares ou transmitir mensagens explícitas, “Grand Tour”, a sua quinta longa-metragem a solo (se considerarmos “As Mil e uma Noites” como uma única obra), funciona como um espelho do Cinema e do seu Cinema, não apenas o referenciado, mas também o que pratica. Nesta "demanda", o espectador é convidado a ver as costuras do filme, identificando nelas os "tiques e manias" que marcam as suas obras anteriores: o cruzamento de tempos, memórias e naturezas, todos condensados num único espaço, tal como a narrativa, que se divide em dois atos, alternando conforme a perspetiva do seu eventual protagonista. Havia feito, salientemente, com “A Cara que Mereces” (2004) e com “Tabu”. Esse salto ao eixo. Se Edward prossegue a sua jornada pela Ásia Oriental como uma comédia de acasos, fisicamente débil, já Molly (Alfaiate) encarna uma tragicomédia de uma determinação implacável até à exaustão. E é através de Molly — novamente com uma interpretação exuberante de Alfaiate — que sentimos o fado desta arte, do Cinema propriamente dito e sem hesitações, na ilusão do seu happy ending idealizado, e nunca materializado, esperado o trágico com que a existência da determinação se afunda nas sua próprias projeções. 

“Grand Tour” é Miguel Gomes sendo Miguel Gomes, sendo a Molly, corajosa e irrefutável, que persegue o seu Edward, por mais avisos que lhe dirigem. A isso, chamamos de autor … 

Alba Baptista entre "Warrior Nun" e "Patrick". Uma conversa com a estrela internacional de coração português.

Hugo Gomes, 27.07.20

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Patrick (Gonçalo Waddington, 2019)

Os holofotes estão apontados para Alba Baptista, a portuguesa que conseguiu quebrar fronteiras tornando-se na protagonista na série de ação sobrenatural "Warrior Nun", da Netflix.

Porém, o cinéfilo mais atento já tinha reparado que a jovem atriz andava a conquistar o seu espaço desde que se destacou como a menina obsessiva da curta “Miami”, de Simão Cayatte, trabalhado posteriormente com realizadores como Edgar Pêra (“Caminhos Magnétykos”), Justin Amorim (“Leviano”) e Ivo Ferreira (“Equinócio”).

Agora na primeira longa-metragem assinada pelo também ator Gonçalo Waddington "Patrick", que chega esta semana aos cinemas portugueses, ela é Marta, uma jovem com a missão de recuperar o Mário que conheceu e que espera ainda existir em Patrick, rapaz detido em Paris e que se vem a descobrir tratar-se de uma criança portuguesa desaparecida há vários anos (papel de Hugo Fernandes).

Tendo o papel crucial de expor este confronto identitário, Alba Baptista orgulha-se da sua prestação e do filme, manifestando o desejo de permanecer ativa na produção portuguesa apesar do reconhecimento internacional que lhe trouxe "Warrior Nun".

Antes de tudo, gostaria que me falasse sobre a sua integração neste projeto e o trabalho de desenvolvimento em relação à sua personagem.

Fui chamada para casting, como qualquer outra atriz. Foram três, se não estou em erro. A escolha final demorou algum tempo, mas sim, tive que demonstrar o meu valor ao realizador. Quanto à personagem, o Gonçalo [Waddington] trabalhou connosco durante a nossa estadia numa residencial artística na Sertã, onde filmamos. Portanto, isto aconteceu antes da rodagem, ou seja, estivemos uma semana juntos, a conhecer-nos melhor, a ensaiar e a criar cenários hipotéticos no passado destas personagens. E é então que, quando arrancou a rodagem, já estávamos todos conectados uns com os outros e bastante entranhados nas nossas respetivas personagens.

Em “Patrick” notamos um constante confronto identitário e existencial, não só do protagonista, mas de outros personagens. Não pude deixar de notar que é, na sua forma geral, um filme preenchido por silêncios, olhares e (não)olhares, e nesse sentido, a sua personagem é a que mais fala, tentando resgatar o Mário em Patrick. Sentiu essa importância no guião?

Sim, sem dúvida que senti. Esta personagem é um tipo de luz para a vida (muito) densa que ele leva, assim como para a jornada em si. Uma lufada de ar fresco. E o facto de esta personagem possuir bastante falas em comparação com as outras, é um sinal do quanto descomprometida está com a vida em geral, e sem filtros. É por essa razão que ela é a única personagem que não julga o Mário à partida, não possui qualquer tipo de preconceito. Encarei isso como uma personagem muito especial.

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Patrick (Gonçalo Waddington, 2019)

E, no entanto, ela, provavelmente, será a pessoa que mais sofrerá com a resistência intrínseca de Patrick.

Ela funciona como um mártir. É um pouco uma metáfora em relação a tudo da sua vida [Patrick]. Ele é incapaz de relacionar algo positivo ou amoroso na sua vida.

Sabendo que este filme já se encontrava pronto desde o ano passado, tendo estreado no Festival de San Sebastián, e ter atingido a fama em 2020 com “Warrior Nun”, como insere este “Patrick” no estado atual da sua carreira?

É um assunto complicado falar de um filme que já fizemos há mais de um ano, mas nunca é uma má altura para inserir mais um no nosso currículo e tenho muito orgulho neste “Patrick”. Acho que é neste tipo de assinatura que desejo criar nos próximos anos, em futuros projetos, e com realizadores de cinema de autor genuínos. Por isso fico muito feliz que o filme esteja a estrear na mesma altura que a série. Obviamente que, em termos de comparação, são dois pólos extremos – algo comercial e outro … bom, não comercial de todo, e mais pesado de certa maneira. É um filme especial, até porque está a representar o marco da reabertura dos nossos cinemas [após o fecho por causa da COVID-19], e por isso e muito mais, esta é uma razão para que os portugueses possam retornar novamente às salas.

Para um português, a intriga do filme invoca-nos o caso Rui Pedro [a criança desaparecida em Lousada em 1998]. Acha que foi inspiração para “Patrick”?

Sem dúvida que é uma inspiração para a personagem do Mário, mas atenção, o Gonçalo trabalhou neste guião com tanto perfeccionismo e sensibilidade para que não fosse ofensivo para ninguém, e, como qualquer outra coisa do filme, fosse só uma personagem. Sim, é um filme que demora a digerir, mas falo por mim, que gosto de sair do cinema com uma sensação quase desconcertante que me deixa a remoer e refletir durante algum tempo.

Além disso, é um filme que desafia a nossa perceção de maternidade/paternidade.

Sim, sem dúvida. E é um tópico que não se fala muito no cinema português. Pelo que me lembro, não existe nenhum filme do nosso panorama com esta abordagem. Por isso, acho que estamos bem encaminhados com a assinatura do Gonçalo. É sensível, claro que sim, mas é um tipo de filme que vale a pena vê-lo para poder discutir. “Patrick” é rico em termos de discussões, argumentações e trocas de ideias. E gosto disso no cinema. Desafia-nos.

Em relação a novos projetos, gostaria que me falasse de “Nothing Ever Happened", de Gonçalo Galvão-Teles [“Gelo”], e sobre a sua experiência com o ator Filipe Duarte, que também integra o elenco e possivelmente este seja o seu último papel.

Em relação ao papel do Filipe Duarte vou deixar para os espectadores descobrirem. Mas é um papel muito bonito, e ele representou brilhantemente. Não contracenei diretamente com ele, mas nos momentos em que nos cruzavam, o Filipe partilhava muita luz. Ele era uma pessoa muito luminosa. A minha personagem lida com o existencialismo da vida e que se identifica com mais dois colegas e amigos, que acabam por desenvolver uma relação, cujo trio, na verdade, confronta estas questões filosóficas do que representa a vida para eles, do que é o amor … Lá está, também é uma assinatura dedicada, muito sensível e identificável.

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 Leviano (Justin Amorim, 2018)

Quanto à nova obra de João Mário Grilo [“Os Olhos da Ásia”], “Campos de Sangue”? Segundo consta, a sua personagem chama-se apenas de “Loira 1”.

Sim. [Risos] É a adaptação de um livro que bem se poderia resumir desta maneira, um homem que encontra uma jovem loira por quem se apaixona perdidamente. Fica obcecado, sendo que esta rapariga loira se materializa em mulheres diferentes. E pronto, sou uma delas. [risos]

Confesso que sou um defensor de “Leviano”, outro filme em que participou. Veremos uma nova colaboração com o realizador Justin Amorim?

Bem, o “Leviano” levantou muita discussão também. Também sou uma defensora eterna do filme, é uma raridade ter um tipo de obra como essa no nosso cinema. Por isso, sem dúvida que queremos voltar a trabalhar juntos. Para já as nossas agendas estão totalmente opostas, mas … estamos a criar algo juntos. Como somos bastante próximos na vida real, é só juntar o útil e agradável, e o facto ser ambos criativos e discutirmos o que ele gostaria de realizar e o que eu gostaria de representar e portanto conceber um projeto especial para os dois.

Quer partilhar como foi a experiência numa produção de outra escala como “Warrior Nun”, da Netflix?

Foi fantástico, uma experiência diferente de tudo aquilo que já vivi em Portugal em termos profissionais. É uma equipa abismal, muito grande, foi também um processo muito diferente. Nunca lidei com tanta pressão na minha vida, mas tendo em conta o resultado, acho que compensou. Foram os melhores anos da minha vida. Agora, em termos de produção, os EUA estão bastante mais evoluídos do que nós, mas chegaremos lá com o nosso tempo e à nossa maneira.

Vai prosseguir numa carreira internacional?

Sim, é o foco neste momento. Sem nunca querer perder o pé aqui em Portugal. Vou querer chegar a esse meio-termo e juntar-me a projetos em Portugal por querer e não por ter que fazer. Nunca desvalorizando o meu país, nem a nossa cultura.

Gonçalo Waddington: "Sou mais um num conjunto muito forte a fazer cinema."

Hugo Gomes, 24.07.20

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Gonçalo Waddington

Selecionado para a secção competitiva do Festival de San Sebastián do ano passado, "Patrick" remete-nos a um enredo de confrontos existenciais e identitários de um jovem português que regressa a casa, após ter sido raptado e levado para França enquanto criança. Aí nasce a dicotomia que servirá de conflito interno, sob a assinatura constante de Patrick / Mário (interpretado com intensidade pelo ator Hugo Fernandes).

Como realizador e argumentista, por detrás do filme está Gonçalo Waddington, que pode muito ser um dos atores portugueses mais reconhecidos pelo grande público, mas o que indicia esta sua estreia como realizador e argumentista nas longa-metragens é que se poderá tornar num dos futuros signatários do cinema nacional.

Falei com o célebre ator de produções como “O Capitão Falcão” e “As Mil e Uma Noites”, e a série “O Último a Sair”, sobre este passo emancipado na esfera autoral e aquilo que tanto deseja contribuir no nosso panorama cinematográfico.

Gostaria de começar com a questão de onde surgiu a ideia para este filme e também mencionar a invocação que a muitos de nós irá suscitar – o trágico caso Rui Pedro. Houve inspiração?

A primeira imagem que posso associar foi extraída de uma notícia que saiu por volta de ‘94 e ’95, sobre uma menina que fugiu de uma casa de alterne no norte de Espanha e que foi encontrada. Por volta das cinco da manhã, à beira da estrada e já com os pés ensanguentados. No dia seguinte a polícia percebeu que ela tinha fugido de uma casa de alterne, e que lá se encontravam mais raparigas que foram raptadas. Bem, mas isto é somente a imagem – alguém a fugir de uma situação de terror – e o que terá levado a rapariga até aquele momento. Na altura não tinha maturidade suficiente para escrever.

Depois de alguns anos, aconteceu o caso do Rui Pedro, do qual muitos filmes foram feitos a partir desse tema ou semelhante, como foi o caso de “Alice” [filme de Marco Martins, em 2005], em que participei e expunha o ponto de vista dos pais da criança desaparecida.  Nessa altura já questionava o que poderia pensar o outro lado, o da criança. Que processos físicos e psicológicos estariam numa situação de sequestro/rapto? Mais do que isso, quais as consequências se tal estado fosse prolongado?

E daí surgiu a minha ideia para este filme. É fácil e correto associar isto ao Rui Pedro, mas para já era incapaz de aproveitar essa tragédia vivida pelos pais, amigos, etc. Aquilo diz respeito a eles e legalmente deve ser investigado, seja judicialmente ou por meios jornalísticos. Algo que ajude. Mas a fantasia aqui é esta: isto não é inspirado em ninguém. Que eu saiba, estas personagens e situações não existiram nem aconteceram. A questão é o que é que lhe vai acontecer quando for exposto às suas identidades – as duas [Mário/Patrick]? Obviamente que a sua antiga desmorona como uma barragem, possivelmente porque fora mal construída, e como tal é obrigado a confrontar-se com a família, amigos. Que não recorda nem mantém relações afetivas. “Quem é que eu sou?”. Isto resume a minha ideia. Aquela que pretendia explorar para o filme.

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Patrick (2019)

E estamos a falar de um filme, em certa parte, corajoso em colocar essas questões, remexer em identidade e sobretudo desconstruir ideias fixas de maternidade/paternidade, tendo como experiência um hiato.

O que propus/imaginei neste filme foi a imagem de uma criança de 10 anos que se recorda de "coisas" boas que já não tem, como o pai, os seus abraços, da comida, etc. E a um determinado momento, essas mesmas memórias tornar-se-ão dolorosas, por isso devem-se apagar a todo o custo. Esta criança sentir-se-á culpada, por sentir que não fez o que devia, não fugiu quando devia, e a certa altura pensar que os pais já se esqueceram dele – não vieram procurá-lo ou não fizeram o suficiente. Então o pensamento que fica é este: se não tenho, vou fazer por odiar, um processo psicológico (a meu ver). Se aquilo que tenho não o posso mais ter, então é porque não o mereço? Ou é não, porque não quero? O cérebro diz-lhe que ele não quer aquela vida, aquelas "coisas". Por isso, tentei com “Patrick” resolver essa questão.

E como foi trabalhar com o Hugo Fernandes? Construir, juntamente com ele, esta dicotomia de Patrick/Mário.

Ele é muito inteligente e muito intuitivo. Quando lhe explicava estas questões que lhe estou a apresentar, ele entendia-as e imprimia-as numa subtileza que me agradava. Nada vindo dele é exagerado, tudo era transmitido através dos seus olhos como uma verdade absoluta. Nós entendemos-nos muito bem.

Ainda este ano, o Gonçalo assinou o argumento de um dos mais incisivos filmes portugueses recentes – “Mosquito”. Como tal questiono-o, vê-se como uma nova “face” de uma possível futura vaga de cinema português?

Não. [Risos] Apenas vejo-me a fazer unicamente aquilo que julgo ser verdadeiro para mim. Não pretendo agradar os outros, quero fazer aquilo que desejo ver, e aí suscitarão assinaturas que poderão apelar às pessoas. Se tivesse que fazer o que os outros querem ver, não estaria a fazer nada de genuíno, nem sequer de jeito. [risos] Acho que estou cada vez mais perto daquilo que pretendo seguir em matéria de cinema. Quanto às “faces”, temos tantas caras e até mesmo caras mais velhas com trabalhos incríveis. Sou mais um num conjunto muito forte a fazer cinema.

Esta aproximação ao seu desejo é evidente. “Patrick”, em todo o caso, foi fruto de um longo processo de criação já iniciado com as suas duas curtas-metragens [“Sem Nome”, “Imaculado”].

E não só. Também existe nessa equação o meu trabalho de ator, dramaturgo e encenador. Tudo isso está associado à minha experiência e progressão. Mas claro, as minhas duas curtas, assim como o ato de ver filmes ou até mesmo participar neles. Aliás, aprende-se muito nas rodagens. Curiosamente, para quem está de fora, as rodagens são totalmente desinteressantes, mas quando participamos nelas, nem que seja para segurar num cabo, tornamos parte desta e entramos nessa homogenia. Tive a sorte de estar sempre implicado nas rodagens, não apenas como ator, mas também dando apoio à parte técnica desse processo. De momento, quando estou numa rodagem, mesmo como ator, olho ao redor e percebo perfeitamente como aquilo tudo funciona. Consigo descortinar a mecânica.

Então, veremos no futuro mais deste autor Gonçalo Waddington?

Sim, mas é um pouco como as peças de teatro. Enquanto ator, gosto de contar as minhas histórias, escrevê-las e projectando-as. No cinema também. É normal acontecer.

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Capitão Falcão (João Leitão, 2015)

Fora “Patrick”, há uma pergunta que muitos anseiam que seja respondida. Para quando o confronto entre Capitão Falcão [personagem que Gonçalo Waddington interpretou no homónimo filme de 2015] e o antagónico Flamingo?

Isso não depende de mim. Isso, única e exclusivamente, depende do João Leitão [realizador do “Capitão Falcão”], ele é que se tem que chegar à frente. De certeza absoluta que eu, o David Chan Cordeiro [que interpreta o “Puto Perdiz”] e a pessoa que vai fazer de Flamingo, concordaríamos na hora. Era já! Uma das minhas vontades enquanto ator era de voltar a esse papel, não só ao filme, mas ao projeto inicial, à série. Tive a felicidade de fazer aquele episódio-piloto e de ter conhecimento e lido os muitos episódios que daí viriam [para a RTP]. E aquilo… bem… deveria ter sido feito.

Quanto a novos projetos?

Neste momento estou na fase de escrita de um novo projeto. Não sei quanto tempo demorará até filmar. É impossível dizer, porque são processos que demoram. Espero ter um guião até ao fim do ano e a partir daí, cá estaremos para falar sobre esse novo filme. Como ator, vou trabalhando em alguns outros projetos, tenho uma rodagem em outubro, e em teatro estreio em setembro. Sim, estou sempre atarefado.

O meu nome não é Ninguém! É Patrick!

Hugo Gomes, 23.07.20

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“Patrick” prescreve-se como uma reflexão identitária que, por sua vez, desconstrói ideias estabelecidas de maternidade/paternidade. A longa-metragem de estreia de Gonçalo Waddington é essa tese transcrita num conflito dramático da personagem-título (Hugo Fernandes), jovem parisiense (assim nós cremos) que após ser detido pelas autoridades é confrontado com um trágico e repreensivo passado.

Porque afinal Patrick é Mário, uma criança portuguesa desaparecida que tem, por fim, a oportunidade de reencontrar-se com a sua família “original”. Só que o hiato não foi generoso, enquanto o pai (Adriano Carvalho) prosseguiu com a sua vida, não escondendo o facto ao seu reavido filho, por outro lado, a mãe (Teresa Sobral) é atormentada por essa luta de reconhecimento a um encarado desconhecido. No meio, surge-nos a prima (Alba Baptista), que se assume como uma possível catarse às memórias perdidas de Mário/Patrick e a sua luta existencial que encontra assimilada no desajeitado uso do português – língua obsoleta que oculta o tal representativo Mário.

Mesmo sabendo à partida que a dicotómica persona estabelecerá as duas línguas como armas numa evidenciada batalha de identidades, “Patrick” (o filme) é preenchido, maioritariamente, por silêncios na sua chegada ao território português. Porque a luta é interna, emudecida, e, sobretudo, interpretativa pelas suas contrariedades para com as diferentes causas comuns.

Em Portugal, as “assombrações” do caso Rui Pedro (desaparecido na zona de Lousada, em 1998, até hoje um mistério sem resolução) são invocados como supostas inspirações, valendo a Waddington o trunfo da abordagem psicológica para uma realidade alternativa, e, nesse sentido, transportando as ideias ao campo do afeto e a definição deste em oposição ao tempo e contacto. É um filme provocador, sem com isso insinuar uma aura de delinquência ou anarquia formal, porque “Patrick” coloca o espectador em modo voyeurista, uma passiva e tímida espécie de “curioso” mórbido.

Gonçalo Waddington (que zelosamente foi um dos argumentistas de “Mosquito”, que também desconstrói campos sagrados da identidade portuguesa) avança desde o primeiro momento sorrateiramente à sua intriga, valendo num travelling ondulante, inicialmente rasteiro, que contorna o corpo de Patrick, estabelecendo o inaugural e cuidadoso contacto com o invólucro de carne e osso onde decorrerá a dita psicanálise. Como “comparsas” do “crime”, o ator, agora convertido a autor por inteiro, confia na fotografia do cada vez mais ascendente Vasco Viana (“Um Fim do Mundo”, “Montanha”) para criar um contraste visível entre a Paris luxuriosa e pecaminosa, e sobretudo moderna e “aberta”, para com a ruralidade portuguesa, sombria e “fechada” à mercê do seu constante receio às dúvidas existencialistas que serão impostas.

No fundo, é isto, “Patrick” é um dos episódios (e bem fortalecidos, aliás), de como o cinema português recente deseja rebelar contra as suas próprias idiossincrasias.

"Mosquito": a picada mais forte do cinema português dos últimos anos

Hugo Gomes, 03.03.20

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Eis um dos grandes filmes portugueses da nossa História. Exagero? Talvez não, considerando tanto o seu formalismo como a sua visão, que transgride uma História ensinada e distorcida por valores patrióticos de fala maior. Começando pelo formalismo, é certo que o realizador João Nuno Pinto demorou cerca de oito anos para concluir este “Mosquito”, um retrato anti-bélico e anti-colonialista que descortina o cada vez mais longínquo ano de 1917 e a Primeira Grande Guerra em que Portugal participou (em paralelo tivemos a grande e homónima produção de Sam Mendes, "1917").

O campo de batalha decorre em Moçambique, como o local de preservação do restante império lusitano contra invisíveis invasores. E no seio deste cenário de guerra e inquietude encontramos Zacarias, um jovem soldado com os seus verdes 17 anos, cego pelas lengalengas nacionalistas e do fascínio militarista que, devido a uma doença repentina, se separa do restante batalhão. Determinado em reencontrá-los, Zacarias (uma revelação, João Nunes Monteiro), parte com dois negros para o indomável e selvagem moçambicano, iniciando ele próprio uma jornada de contornos carroleanos com o seu quê de Joseph Conrad (“O Coração das Trevas”).

Em “Mosquito” deparamo-nos sobretudo com um filme sensorial, que rés a rés entende-se por xamânico, que se instala num intermédio de real e imaginário. Essa incerteza com que Zacarias é confrontado leva-nos a uma angustiante viagem de estados alterados e consciências tão fragmentadas como a sua narrativa mirabolante. Longe dos rigorismos e do virtuosismo das grandes produções (comparativamente com "A Herdade", também produção de Paulo Branco), “Mosquito” é uma obra centrada nos "travellings" e na quase diluição da câmara à mão com o protagonista. Nesse sentido, funciona como uma exemplar dinâmico à luz de alguns ensaios do cinema europeu, implicitamente realista e frio. A frieza joga a seu favor, enquanto se vai desconstruindo num jeito febril.

Seguindo pela sua temática, o nosso olhar pelos feitos colonialistas (de certa forma relançados durante o Estado Novo em sintonia para com a perfeita fantasia lusitana), o realizador João Nuno Pinto responde com uma (des)fabulação desse mesmo sonho molhado. Esta anti-romantização, da mesma maneira que o fez no universo dos migrantes na sua primeira longa-metragem (“América”), desvenda um papel incómodo dos portugueses numa África em suplício de emancipação. No egocentrismo de Zacarias existe todo um quadro de opressões, crueldades e resquícios da cultura escravocrata que atentam à imagem do “bom colonizador” que, principalmente, o cinema português favoreceu e da qual se tem distanciado nos últimos anos. Frente a essas abordagens, “Mosquito” subversivamente coloca a nu as suas cicatrizes forçadamente saradas, como quem deseja relançar o debate para gerações futuras.

Curiosamente, tal como em “Come and See”, a obra exponente russa de Elem Klimov, no filme de João Nuno Pinto é evidente o sacrifício na personagem de Zacarias, que servirá de testemunho para uma coletânea de horrores, caindo, desgraçadamente, nas pompas da cruel piada do destino. Física e psicologicamente, o transtorno do protagonista revela-se a mais conseguida arma de “Mosquito” como estandarte das sempre ocultadas mazelas de guerra. 

Tudo isto torna "Mosquito" um dos mais corajosos e incisivos filmes da nossa “indústria”.

"O Filme do Bruno Aleixo": uma conversa com os "pais" de um chico-esperto à moda coimbrã

Hugo Gomes, 21.01.20

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O Filme do Bruno Aleixo (2019)

A personagem criada em 2008 dá o seu grande passo para o cinema. João Moreira e Pedro Santo podem  ser dois nomes que nada dizem aos nossos leitores, até porque se escondem detrás de uma das personagens mais caricatas e amadas do nosso seio audiovisual – Bruno Aleixo.

O “Ewok coimbrão” de humor procrastinado saltou da internet para a televisão e criou em dez anos um culto garantido de admiradores. Mas Aleixo não está sozinho neste sucesso de popularidade. Ao seu lado encontramos outras figuras excêntricas, como O Homem do Bussaco, O Busto e Renato, todos eles reunidos na primeira aparição cinematográfica deste universo.

Curiosamente, não foi Moreira nem Santo a procurar este benefício de chegar ao grande ecrã. A oportunidade chegou sob o selo de O Som e a Fúria, a produtora gerida por Luís Urbano e Sandro Aguilar que hoje é tida como a casa de muito do cinema autoral português (Miguel Gomes, Salomé Lamas e João Nicolau são alguns dos exemplos). 

Conversei com a dupla sobre a conceção desta aventura inaugural da personagem nos cinemas. Um diálogo descontraído sobre o passado, o presente e o futuro desta união de criatividade. Um filme que chega para dinamizar a nossa “indústria”, se é que ela existe, mesmo que, segundo as palavras de João Moreira, não seja mais que “um brainstorming de hora e meia“.

Talvez comece com a pergunta base para esta conversa. Vocês trabalham há dez anos na construção desta personagem e do seu universo. Começaram na internet e passaram para a rádio e televisão. O cinema foi o passo que faltava. Estava planeado esse passo ou surgiu por mero acaso de uma proposta?

João Moreira: Um pouco das duas coisas. Era o passo que faltava…

Pedro Santo: Mas isso dá a entender que temos passos para dar, que planeamos todo este percurso.

JM: Os passos para dar, como há pouco falávamos, era o que nos faltava. Existe um número relativamente limitado que ainda não demos.

PS: Não que tenhamos obrigatoriamente que o fazer.

JM: Partindo do princípio que começamos na web e passamos para a televisão, este passo é um dos mais previsíveis, digamos assim, mas surgiu de uma forma concreta através de uma proposta de O Som e a Fúria.

Isso quer dizer que o filme tem um pouco de “baseado em factos verídicos”. [risos]

JM: O filme acaba por refletir a natureza dessa mesma proposta. Foi um pouco “queremos fazer um filme sobre o Bruno Aleixo, por isso deixo ao vosso critério.”. Não havia nenhuma diretriz de como o filme deveria ser feito ou o que deveria conter. Não. Foi um “façam o que vocês quiserem”. Ou seja, tivemos o mesmo dilema que o Bruno Aleixo tem neste filme. Podia ser qualquer coisa, basta ser do Aleixo. Agora, a questão é como iríamos trabalhar esse “qualquer coisa”.

E como trabalharam no argumento, aliás, nesse “qualquer coisa”?

JM: Neste caso, acabamos por ter outra versão, mas a versão que usamos era precisamente colocar a estas personagens o mesmo dilema que nos foi colocado. Como é que elas iriam desenvolver um filme? Obviamente que o nosso Aleixo iria fazer as “coisas” em cima do joelho, ter péssimas e absurdas ideias e roubar as sugestões dos outros, tornando-as dele. Como seria de esperar.

PS: O Aleixo não é uma “pessoa” do meio, logo, era assim que imaginaríamos como iria reagir a esta situação, da mesma forma como na sua passagem na televisão.

JM: Sim, aqueles programas todos mal executados…

AS: Mais a falta de respeito pelos telespectadores, pelo colega, aquelas rubricas estranhíssimas. Era um sujeito que sabia por alto como funcionava um talk show, mas a execução era péssima. No cinema, é a mesma ‘coisa’; ideias básicas e comprometedoras, depois com um desenrolar que é ainda mais básico. É praticamente isto: “pessoas” que não são do meio, que lá sabem como fazem as coisas, e dão sugestões para um filme com base naquilo que já conhecem e o que querem ver.

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Pedro Santo e João Moreira no Festival do Rio

Em certa parte, este “salta-pocinhas” entre géneros resume-se ao audiovisual que vocês conhecem?

PS: Sim, é muito do cinema com que crescemos. Porém, devemos salientar que estas personagens não correspondem à nossa idade, são mais velhas, são de uma geração anterior à nossa, da idade dos nossos pais. Os nossos pais viam os mesmos filmes que nós, por isso, não existe muita diferença. Tentamos resumir essas preferências na versão fílmica do Bussaco: um buddie cop movie com ninjas, mexican standoff, tem os zooms à lá Leone. Ou seja, era uma mistura de ‘coisas’ que iam apanhando, sem ter a capacidade de interpretar aquilo, um pouco como nós enquanto jovens: víamos mas não percebíamos o alcance daquilo e as suas dinâmicas.

Devido ao facto de desde sempre terem a liberdade nas aventuras e desventuras desta personagem, quer na internet, quer na televisão, e agora, como vocês confirmam, no cinema, podemos considerar “O Filme do Bruno Aleixo cinema” de autor? E quando falo de autor, refiro toda a sua conotação criativa…

PS: Não diria autor com a carga com que normalmente associamos, mas autor porque nós somos os autores e permanecemos autores desta passagem.

JM: O cinema de autor tem uma conotação de que é mais arte que os outros filmes.

PS: À partida é mais artístico, não segue uma linguagem tão convencional / mainstream…

JM: Neste caso, diria que não.

PS: Quer dizer, tem uma marca autoral. A dinâmica e a linguagem do filme não são propriamente usuais no cinema. Há ali uma desconstrução constante, uma falta de respeito para com a magia do cinema.

De alguma maneira, esta oscilação de géneros e a desconstrução não são, no fundo, uma forma de fomentar uma crítica quanto à nossa indústria cinematográfica e televisiva?

JM: Não diria “criticar”. Como dizemos, a nossa intenção era pegar no mainstream de ideias e sintetizar o conhecimento geral daquelas personagens, assim como pessoas fora do meio, pelo audiovisual.

Quanto à escolha dos atores, gostaria que me falassem sobre o vosso leque, que vai desde Rogério Samora e Adriano Luz até ao nosso zeitgeist do cinema português, Manuel Mozos.

PS: Muitos deles pensamos desde início…

JM: Alguns até já estavam no guião...

PS:… Ou por causa da figura…

JM: Ou das conotações sociais que têm. O filme falha um pouco no Brasil exatamente por isso, porque tu olhas para o Rogério Samora e automaticamente o associas à sua figura. Assim como o Fernando Alvim, que é uma personalidade pop.

PS: Lembro-me perfeitamente de virar-me para o João e dizer que para o Aleixo tem que ser o Adriano Luz [risos]. Aquela expressão de desprezo, neutro, sem estar entusiasmado com alguma coisa. E para além disso tudo, o carisma. Alguns desses atores, com quem desejávamos trabalhar, eram fáceis de chegar, visto que trabalhavam com O Som e a Fúria. Já o Manuel Mozos foi sugestão da produtora. Ele interpreta uma personagem muito em aberto, o Aires. Até brincamos no genérico, que ao invés de Mozo era o Aires.

E como é que o filme está a sair-se no Brasil, visto que é de um “chico-espertismo” muito português, um humor muito nosso, muito profundo da nossa cultura?

JM: Lá é “mais” nicho. Acabou por estrear em 18 salas, o mesmo que aqui. Só que o Brasil é um território enorme, e percentualmente terá mais gente.

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Gonçalo Waddington, Fernando Alvim, Manuel Mozos, João Lagarto e José Raposo em "O Filme do Bruno Aleixo" (2019)

Para onde irá o Aleixo depois do filme?

JM: Ainda não temos nada pensado. Para já continuamos com o Aleixo.FM até ao final do ano

PS: Mas lá está, nunca pensamos nas coisas a médio prazo. Não é terreno novo.

JM: A recibos verdes, um tipo tem que aproveitar até quando der. Temos tido algumas reuniões para se tentar apurar o futuro, mas de momento não temos nada pensado.

PS: Também queremos esperar pela aceitação do público, de como sairá o filme nas salas de cinema.

E existe uma possibilidade de streaming? Não falo da Netflix, porque o nosso mercado é demasiado pequeno, mas de outras plataformas.

JM: Nós temos parceria com a SIC, por isso não sabemos. O que sabemos por agora é que vai existir uma versão em modo série do filme…

PS: Mas isso só será daqui a um ano.

JM: E não serão versões iguais…

PS: Atenção, o filme foi escrito e feito como se fosse um filme. Não pensamos inicialmente na série. São ‘coisas’ distintas.

Fora do Aleixo, há novos projetos?

JM: Nós fomos tendo projetos, mas não em nome próprio.

AS: Empreitadas…

JM: Fiz programação cultural em Coimbra, por isso a nível de cinema ou a nível de televisão, é muito raro fazer algo que saia do território do Aleixo.

AS: Também é o que nos pedem…

JM: Sim, e o que pedem é sempre dentro deste universo.

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O Filme do Bruno Aleixo (2019)

Mas nunca vos passou pela ideia, meter as “botas” do Aleixo de lado e seguir por novos rumos?

JM: Para já é mais fácil explorar o final que existe, por causa do mercado e por quem trabalha connosco. Nunca tivemos a hipótese de ponderar dar um fim ao Aleixo. Quando trabalhávamos em televisão, nunca havia abertura para trabalharmos em outra “coisa”. Aliás, chegou a haver a intenção de trabalhar noutras “coisas”, mas fecharam-nos as portas.

AS: Eles só querem o Aleixo.

JM: Ou seja, o Aleixo ainda tem potencial.

Quando não houver mais potencial, será a hora de matar o Aleixo?

AS: Logo se vê. [risos] Aquelas personagens para nós existem, têm vida própria, têm as suas próprias biografias, não seria fácil. Seria o mesmo que pedir ao Bruno Nogueira para deixar de ser o Bruno Nogueira. Apesar de tudo, ainda acreditamos que o Aleixo tem um leque de coisas ainda por explorar. Assumindo que aquilo é uma persona, sim. Ainda existem cantos que devemos explorar.

E deixar o Aleixo como testemunho para outra “equipa”?

JM: Nunca foi uma ideia. Não nos interessa. Vender o franchise? Não.

AS: Não me parece que venha a acontecer.

Capitão Falcão: "Chamou Sr. Presidente!"

Hugo Gomes, 25.04.15

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Para os mais conservadores, todo este desenrole soa uma pura e simples “palhaçada”, um troçar de tempos difíceis que uma geração passou e ultrapassou, cada uma há sua maneira. Porém, é possível assinalar Capitão Falcão, esse "anti-herói" fascista levado ao grande ecrã pelas mãos de João Leitão, como um filme necessário para o nosso próprio panorama social, o de despir de todos os simbolismos dessa "fonte" denominada por Salazarismo. Toda essa arma de "enterrar" memórias passadas (cada vez mais invocadas nos tempos austeros que vivemos atualmente) é por vias da maior das armas - a comédia - mais precisamente da sátira, tão pouco aproveitada nos nossos meios de entretenimento.

Aqui, a sátira é a combustão para este Portugal influenciado pelo estilo "camp", (as comparações com o Batman, de Adam West, serão inevitáveis), onde reside um "super-herói", isente de qualquer super-poder para além da sua "portugalidade", o tão singular "desenrascar", essa palavra única do vocabulário lusitano que tanto dita o nosso meio vivente. Munido de ideologias facciosas aos "bons valores portugueses", sempre confundidas com conceções fascistas e Salazaristas, e acompanhado pelo seu "calado" sidekick, o Puto Perdiz (David Chan), Capitão Falcão é perito em livrar o seu país das eventuais "escumalha da sociedade"; comunistas, feministas, idealistas e … claro, os Capitães de Abril. Tudo o que soa como uma ameaça ao regime é desde logo abatido pelo nosso Capitão Falcão (Gonçalo Waddington numa prestação altamente maneirista).

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Verdade seja dita, toda esta aventura é apelativa de se ver, João Leitão ostenta uma preocupação visual, um especial cuidado com as cores o qual aufere uma atmosfera característica ao estilo incutido, e depois são todos aqueles "disparos" satíricos, desde os gags físicos aos diálogos, tudo pensado em servir um propósito, o de converter o fascismo numa possível caricatura e assim tecer astúcia suficiente para manter a obra longe do território spoof extremista. Mas se a sátira é a grande inovação em Capitão Falcão, esta também funciona sua fraqueza, a kriptonite, já que estamos numa de heróis de BD. Provavelmente os idealismos incumbidos no nosso protagonista podem ser equivocadamente confundidos com os dos envolvidos, e assim fazer com que o filme de João Leitão seja incompreendida a uma ofensa social e de valores adquiridos por um "povo lutador".

Mesmo que a obra tende em frisar constantemente esse ponto nas proximidades do desfecho, é o intelecto do espectador que sairá como o derradeiro desafio, a missão mais arriscada, deste Capitão Falcão. Contudo, nada que impeça de perdermos a "next big thing" do cinema português, e dentro desse termo de "cinema comercial", temos entre mãos, um dos melhores. Cameos de heróis esquecidos, referências, e muitas, à nossa "portugalidade", humor inteligente e personagens dignas para durar no imaginário lusitano, Capitão Falcão é um must, e tanto, que nos faz esquecer das suas limitações enquanto produto fora do presunçoso conceito de world cinema.