“Tu és Milhais, mas vale Milhões”, assim foi batizado Aníbal Augusto Milhais, transmontano que foi um dos combatentes portugueses na Batalha de La Lys, Flandres, durante a Primeira Guerra Mundial. Milhais poderia ser apenas mais um nome entre os incorporados desse batalhão que conheceu tão pesada derrota, mas a sua bravura colocou-o nos anais da História Militar Portuguesa.
Soldado Milhões, o cognome deste humilde militar que após a Guerra foi utilizado pelo regime como imagem de propaganda, o seu ato de bravura converteu-se num exemplo a seguir, diluindo com os próprios conceitos de Deus, Pátria, Família de Salazar.
A história deste homem que não queria ser herói consagrado é adaptada ao cinema pelas mãos de Jorge Paixão da Costa (“O Mistério da Estrada de Sintra”) e Gonçalo Galvão-Teles (“Gelo”), que prometem criar, por fim, o mais bélicos dos bélicos portugueses. Para o papel de Milhais, que no fundo é Milhões, encontramos dois atores que contracenam costa-a-costa – João Arrais e Miguel Borges (o antes e pós Guerra respetivamente).
João Arrais, o jovem ator que conhece por fim o protagonismo neste filme de Guerra à portuguesa, fala-nos sobre a sua preparação e como o Cinema Nacional é desvalorizado face ao talento que contém.
É sabido que foi Miguel Borges que integrou primeiro esta produção. Sendo assim, teve que ser o João a trabalhar na personagem já estabelecida. Como funcionou esse trabalho conjunto na composição da personagem?
Exatamente. Para além de ter entrado primeiro, ele gravou primeiro. Em certa parte tive que me adaptar a ele. Mas por outras palavras, o Miguel Borges é inacreditável e por isso não me importo nada de ter sido guiado ao invés de ser o guia. Tivemos que trabalhar mais num processo de dramaturgia do que somente regermos a uma questão de tiques. Houve uma evolução de energia, tentar traçar os eventos da Primeira Guerra, e que essa energia obtida justificasse a outra face da personagem [Miguel Borges]. Portanto, foi por isso que falamos, mais a questão de energia e de interpretação, do que somente uma mimetização de tiques.
Antes do filme conhecia a História do Soldado Milhões?
Zero! Conhecia a História da Primeira Guerra na perspetiva portuguesa, mas em relação ao Soldado Milhões … nada.
Então como correu o seu trabalho de pesquisa?
Quando soube que ia fazer o casting a primeira coisa que fiz foi telefonar ao meu pai e ao meu avô a perguntar sobre a figura. Como ambos são dois amantes de História fizeram-me uma palestra sobre o Milhões, como estivessem a dirigir a um Grande Auditório numa faculdade [risos]. Sim, explicaram-me alguns factos, mas penso que este desconhecimento quanto à figura em si é uma questão mais geracional, visto que o Soldado Milhões foi utilizado por Salazar como uma propaganda humana. Portanto, era normal que eles conhecessem exatamente quem era e a minha geração nem por isso.
E tiveram preparação militar?
Nós tivemos duas recrutas, sendo que uma delas considerei dura. Uma foi em Alcochete e a outra em Mafra, essa última é que foi dura. Sim, eles olharam para nós do estilo: “olha carne fresca!”. Foi dura mas por um lado agradeço, porque aprendemos o quanto custa e dessa maneira preparamo-nos para a adversidade do campo de batalha. No fundo foi uma experiência divertida, mesmo acordado no dia seguinte com bolhas nos pés.
O João integrou ainda ao elenco das “As Linhas de Wellington”, de Valeria Sarmiento, e mais recentemente “Cartas da Guerra", de Ivo M. Ferreira. De certa forma tem grande parte da História Bélica Portuguesa no seu currículo.
Em relação às “Linhas de Wellington”, não é bem um bélico no sentido mais puro, e sim um filme de invasão. Mas poderemos considerar que sim, esse historial das Forças Armadas portuguesas. Com isto adquiri um certo “know how”, por exemplo, como segurar em armas, etc. O que me ajudou bastante a preparar-me para este papel, sem ter que perder tempo a preocupar-me com como comportar como um militar, visto que já tinha essa experiência comigo.
Para além do físico, como preparou a psicologia e emotividade do Soldado?
Tentei trabalhar o cansaço. Por exemplo, dormia bastante pouco nesses dias para chegar ao set cansado e completamente irritado. Queria mimetizar o stress que aqueles soldados encontravam-se constantemente naquele cenário de Guerra, e para isso o sono era o melhor remédio, sendo que fazia essa preparação em casa, dormindo mal, no chão, desconfortável.
Depois do filme, o que extraiu sobre esta personalidade histórica?
Era uma personalidade inacreditável. Era um herói, mas acima disso era humilde, visto que não pretendia esse estatuto heróico e que sempre fora contra esse mesmo cognome. Mas ele era realmente um herói, bem, vistas as coisas, não é qualquer um que continua a lutar perante um exército de alemães em sua direção, uma batalha perdida, mas ainda assim enfrentou-o com dignidade. O Milhões está de parabéns e merece que lhe dediquem um filme.
Expectativa para o filme?
Muita mesmo. Mas como dizia o João Pinto: “prognósticos só no final do jogo.”
Novos projetos?
Neste momento estou a participar numa telenovela [“Vidas Opostas”], para além disso tenho alguns projetos na mira, mas ainda nada de certo.
Mas pretende continuar a fazer Cinema?
Pretendo sim, seja ele português ou outro qualquer. Pretendo continuar, sobretudo, a fazer bom cinema.
Então ambiciona trabalhar fora do país?
Acho que pelo menos tem que ter. Eu pelo menos eu tenho, gostaria de “navegar por outros mares nunca antes navegados”
Em relação ao Cinema Português? Como o vê?
É um cinema que tem falta de apoio, como toda a gente sabe. Falta dinheiro, mas não vale a pena falar sobre isso. Bem poderíamos fazer uma crítica ou algum ensaio filosófico em relação a tal, porém, não estamos para isso. O Cinema Português é um cinema que eu adoro e que está rodeado de imenso talento … muito mesmo … que só é pena que as pessoas não conhecem ou nem sequer interessam-se em conhecer. Temos nomes que vale a pena espreitar, como o João Pedro Rodrigues, o Ivo M. Ferreira, o Pedro Pinho, o Carlos Conceição que tenho trabalhado diversas vezes, o Salaviza. Muitos talentos internacionais são uma questão de tempo até que as pessoas percebam que … não é só lá fora.