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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Falando com Giuseppe Garau: "fazer filmes é uma doença e não consigo superá-la"

Hugo Gomes, 19.02.24

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Giuseppe Garau e a atriz Giulia Mazzarino durante a rodagem de "L'Incident" (2023)

Vencedor do Grande Prémio de Júri da última edição do Slamdance, “L’Incident é um filme convite mas cujo dito convite é venenoso, colocando o espectador nos dias negros de Marcella, mãe divorciada que após um acidente rodoviário entra em vertiginosa queda livre qunato à sua (não) estabilizada vida. Encontra trabalho - precário e de risco - como “reboqueira” na cidade de Turim, recorrendo a métodos pouco éticos e nada ortodoxos para que possa sobreviver numa selva de asfalto preenchida por predadores de toda a espécie. Giuseppe Garau ordena-nos a sentar no lugar de pendura ao lado deste desespero humano, numa primeira longa-metragem que, para além de conquistar público e júri do referido festival, se entende como a possibilidade de estarmos perante um futuro nome do cinema italiano.

O realizador e argumentista, aceitando o convite (um convite por outro convite) do Cinematograficamente Falando…, aborda-nos sobre o processo de criação e de rodagem desta história, e da sua doença que responde pelo nome de Cinema.

Começo com a questão geral de qualquer entrevista, como surgiu a ideia para este filme?

Há alguns anos, estava a conduzir com a minha família e um camião chocou contra nós. Poucos momentos depois, estávamos rodeados de reboques. Mais tarde, percebi que tinham como método prometer dinheiro às pessoas que testemunhavam acidentes e os chamavam de imediato. Comecei a interessar-me por este mundo sombrio, fiz pesquisa, passei algum tempo com eles e comecei a imaginar uma história ambientada nesse mesmo meio.

É sabido que “L’Incidente” foi filmado em película, como primeira longa-metragem é um desafio hercúleo e cada vez mais raro. Pergunto os desafios que teve com esta decisão e o gesto, o que significa ou qual a reivindicação?

Foi muito desafiante, também porque filmamos sem um monitor, por isso não podíamos ver o enquadramento previamente e não podíamos rever as filmagens, tínhamos apenas de confiar no processo. Mas tenho de dizer que também foi uma ótima oportunidade para nos concentrarmos mais no que acontecia à frente da câmara ao invés de passar tempo a olhar para um ecrã LCD. Desta forma, todos nós estávamos realmente a viver o momento e as performances dos atores, foi uma experiência especial.

Gostaria que me falasse sobre a escolha de Giulia Mazzarino para o protagonismo, e sobre o trabalho em construir esta Marcella. O que tinha em mente e o que acabou por resultar?

Já trabalhei com Giulia Mazzarino antes, por isso sabia muito bem o talento que ela tem e escolhê-la para o papel principal foi uma decisão natural. Ela estava extremamente ocupada a trabalhar em teatros antes das filmagens, por isso não tivemos muita oportunidade de trabalhar na construção do papel ou de ensaiar. Apenas lemos o guião uma vez, juntos e depois ela estava no set, todos os dias, em todas as cenas, com o seu incrível talento e dedicação. Para construir a personagem, inspirou-se na minha personalidade, mas também tirou muito da sua própria. No final do dia, foi uma questão de confiança. Eu confiava nela e ela confiava em mim. Foi um ótimo exemplo de trabalhar juntos na arte. Confiamos um no outro e ambos estamos muito felizes com o resultado dessa união.

“L’Incidente” segue narrativamente uma perspetiva de lugar de pendura, sentimo-nos reduzidos aquele lugar, e tendo em conta a passividade da protagonista, ficamos impotentes para com os incidentes que acontecem no ecrã.

Concordo, somos forçados a partilhar o mesmo sentido de isolamento e passividade de Marcella. Mas também, dado o facto de a vermos mas não nos mostrarem o que acontece à sua frente, o público também é livre para imaginar o mundo ao seu redor. Portanto, estamos conscientemente limitados, mas como o filme não mostra tudo com imagens porque estamos presos a um olhar, o nosso inconsciente também é capaz de correr livremente através da nossa imaginação.

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"L'Incident" (2023)

Há um acidente que marca um radical abanão na vida de Marcella, a partir dali ela estará em queda livre na sua consciência moral, primeiro pelo trabalho que arranja, em busca de acidentes e sinistralidades e os métodos com que efetua tal cargo. Sinto que através desse percurso, somos levados a uma representação da sociopolítica de Itália? 

A sociopolítica não foi o meu foco principal enquanto escrevia o guião, mas sou influenciado por tudo o que acontece à minha volta, tudo o que leio ou me preocupo. Não foi intencional, mas não posso negar que é um retrato de como é viver e trabalhar no nosso país. É um lugar bonito mas também muito confuso onde não há meritocracia e é sempre necessário encontrar uma forma criativa de sobreviver, como Marcella faz no filme.

Marcella é constantemente intimidada por figuras desconhecidas que tentam impedi-la de trabalhar, uma espécie de 'máfia'. Pergunto se houve inspirações na realidade e se estes movimentos ilícitos operam nas ruas?

Essas personagens são para mim uma representação divertida de um problema real italiano que é o crime organizado. A indústria dos reboques não tem uma ligação direta com a máfia (pelo menos que eu saiba), mas a maioria das coisas no filme são verdadeiras: realmente deixam cartões em cruzamentos prometendo dinheiro se os chamarem se virem um acidente e realmente queimam reboques dos concorrentes. Durante as filmagens do filme, queimaram cerca de cinco reboques na nossa cidade.

Depois de “L’Incidente” estava realmente preocupado com a saúde e consciência de Marcella. Questionando de forma um pouco abstrata, ela ficará bem? O que o levou a escrever e dirigir uma personagem que se humilha tanto ao longo do filme?

Não a escrevi pensando em humilhação, queria ver o que aconteceria se colocasse uma personagem de coração gentil num mundo violento, sombrio e competitivo. É interessante ver como a vida pode ser difícil se não fores um predador mas sim gentil e bondoso. Mas acredito que o mundo te recompensa no final. Passámos tempo com a Marcella durante os seus dias mais negros, mas acredito que ela ficará bem. Ela sempre encontra uma forma de sobreviver.

Quanto a novos projetos?

Estou de momento a desfrutar da corrida de festivais de “L’Incidente”, mas no fundo da minha mente uma nova história está a surgir e a ganhar forma. Sinto que ainda tenho muito a dizer, mas esta indústria é tão difícil que não sei se encontrarei a energia e o dinheiro para fazer um novo filme. O que sei é que provavelmente farei tudo o que puder para o fazer, porque fazer filmes é uma doença e não consigo superá-la, mesmo que por vezes gostasse de encontrar um emprego normal.

Takes Slamdance 2024: com os problemas dos outros, bem eu fico

Hugo Gomes, 24.01.24

Look at Me

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O que têm em comum depressões com ansiedades, distúrbios da ordem psicológica (com agravante alimentar) e até a "simples" melancolia é encarar esse sofrimento não só como único, mas também como o mais 'pesado' do mundo. "Look at Me", a segunda longa-metragem de Taylor Olson, é um filme dessa ordem, do íntimo, do "eu", do terapêutico, em que o realizador assumidamente ator, assumidamente personagem e assumidamente inspiração, confronta-se numa sociedade ditada pelo estético e cuja ânsia de vencer (em ser e acreditar ser um “contender”) numa indústria igualmente competitiva (a do audiovisual) o guia por um tormento de bulimia e autodestruição.

Do mesmo prisma que Ari Aster enfatizou os seus demónios num prolongado "Beau is Afraid" (2023), Olson parte de si e da sua própria experimentação, incutindo um jeito "videoclipeiro" para representar um fado interiorizado e monstruoso, e ‘brinca' com a resolução do seu mundo [leia-se tela], comprimindo como sufoco ou alargando como libertação ou simples folgamento, recordando as semelhantes manobras de Xavier Dolan no aperto sentimental de "Mommy" (2014). É um projeto arriscado enquanto segunda obra, essa autognose pitada com um pouco de egocentrismo, cujo diálogo de si para si parece restringir tudo à sua volta, desde os secundários às eventuais figurações, recolhidos a uma mera subserviência narrativa. 

Porém, Taylor Olson detém genica em conseguir envernizar um filme com claras carências de recursos e "mão de obra", e numa eventual indústria, esses dotes serão ferramentas para um futuro... quem sabe.

Secção: 2024 Unstoppable Features

 

All I've Got & Then Some

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Uma história "underdog", daquelas que Hollywood tanto gosta de se encantar, com inspirações autobiográficas: "All I've Got & Then Some" acompanha Rasheed Stephens a ser, ele mesmo, Rasheed Stephens, rapaz de sonhos e ambições. Entre a comédia de stand-up e a atuação, vive na sua viatura e corre contra o ditado tempo para conseguir o seu "momento". Rasheed é igualmente o realizador, argumentista e produtor, ao lado de Tehben Dean, numa longa-metragem que, tal como o protagonista, anseia atingir essa emancipação artística. Porém, mesmo cedendo a algumas rasteiras de "obra de principiante" (como aquela montagem musical sob fragrâncias de vitória antecipada), existe um gesto algo transgressivo à própria noção do seu realismo imediato, assim como um reality show e as suas vertentes televisivas.

Nesse aparelho estético, é possível encontrar um elo de ligação do percurso de Rasheed com o formato vencedor da série "Seinfeld". As peripécias, muitas delas a acontecerem frente aos nossos olhos, são figuradas em ensaios de stand-up comédia, aqui num tom confessional e, por vezes, derrotista como separadores capitulares. E tal como o referido ‘Jerry’, é o humor do trágico, é o fracasso na vitória e, quem sabe, a comédia como apaziguação duma dor interna. Rasheed, o nosso jovem, ora cedido à sua melancolia, ora cedido à motivação, em que todos os dias são "os melhores dias da sua vida".

Secção: 2024 Narrative Features

 

L'Incidente

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É sempre no lugar da pendura que acompanhamos "L'Incidente", trabalho inaugural da longa-metragem de ficção de Giuseppe Garau, que literalmente, seguimos a reboque de Marcella (Giulia Mazzarino), uma mulher e mãe solteira desesperada que, após ver a sua vida desmoronar num acidente rodoviário, prossegue num trabalho de assistência a outras sinistralidades. A sua escolha de perspetiva e, com isso, o seu reduto fortalecido, transmite-nos vitalidade a este drama descendente duma protagonista passiva e a caminho da "necrofagia". É um "crash" eventualmente moral, e sobretudo uma tortura com ajuste de contas a esta personagem, "rastejando" perante a chapa acumulada da sua não-reação.

Garau, também argumentista, faz do seu percurso uma crónica da sua contemporaneidade, ilustrando, através dessa tela reduzida à impotência imposta e exercida numa sociedade cada vez menos empática (encontramos estéticas equiparadas ao realismo social dos irmãos Dardenne ou do realismo absorvido de Lucrecia Martel). É o velho enredo a colar à nossa traseira, enquanto nós, espectadores, reduzidos ao “lugar de testemunha”, sentimos-nos impotentes e incomodados pelo constante embaraço e humilhação do filme para com a sua protagonista. Será que o realizador odeia efetivamente a sua personagem? Ao contrário do que soa, a resposta é não. Há um gesto de solidariedade da parte dele em auxiliar uma luz moral, um agradecimento indevido depois de um subsistente gesto antiético, saboreia-se como uma epifania persistente, na esperança de que a sua queda à insignificância não seja total.

Já nós, espectadores, somos ofendidos com a “correria” de ofensas a Marcella. Nada podemos fazer, nem sequer apontar o dedo; a sociedade já nos consome, e demasiado, a nossa paciência.

Secção: 2024 Narrative Features

 

One Bullet Afghanistan

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Tendo dedicado 18 anos ao Afeganistão, imersa nesta guerra prolongada, a oscarizada documentarista Carol Dysinger ("Learning to Skateboard in a Warzone (If You're a Girl)"), apresenta-nos esta abordagem como resultado da sua ligação com o país e das experiências dele decorrentes. O relato inicia-se como um episódio quase kafkiano: um jovem afegão baleado na perna, cujo ferimento o levaria à morte. Antes disso, surgiram acusações de que a autoria da bala era de negligência americana, e o exército americano a negar esses direitos, resultando, burocraticamente, na falta de apoio ao ferido e família.

"One Bullet Afghanistan" retorna à história alguns anos depois, tentando confortar uma família que vive um luto constante, e como cada membro familiar expressa esse mesmo luto de maneiras distintas. Compreendemos o filme como um retrato subtil do conflito, da impotência de um povo enredado nesta situação e da ascensão de um radicalismo anti-ocidentalismo que levou o Afeganistão ao estado atual, marcado por retrocessos civilizacionais e um revanchismo vincadamente talibã.

"One Bullet Afghanistan" é, formalmente, direto e possivelmente imediato; as imagens não o valor que as declarações extraídas, seja das proclamações de uma crença única e não-negociável ou de uma mãe desgostosa que desespera em ser a melhor anfitriã [“coma, coma, (...)]. O seu lado político-social é suscitado nestes diálogos e na observação de um movimento em ascensão, especialmente de uma ideologia anti-mulher que bebe e agrava do seu tradicionalismo vindouro (“No Afeganistão, só és órfão quando o teu pai morre, mesmo que a tua mãe esteja viva”). Carol Dysinger despede-se assim do país que a acompanhou por quase duas décadas e das experiências que transformou em filmes. No entanto, a despedida é triste, pessimista e desprovida de forças para prosseguir. É o Afeganistão de hoje, impelido à barbárie, ao isolamento e ao fanatismo, que "dela boa poesia não traz" [Catherine Nixey].

Filme de abertura