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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Giulietta 8 ½

Hugo Gomes, 28.08.20

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No episódio de “Cinema Sem Tempo” (“Cinema senza Tempo”) dedicado a Giulietta Masina, o entrevistador perguntava a certa altura com qual das personagens de Fellini a atriz (e esposa do "mestre") mais se identificava: Gelsomina (de “La Strada”) ou Giulietta, deste “Giulietta degli Spiriti”? A resposta da “menina dos olhos mais sentimentais do Cinema” foi apaziguadora: “um pouco das duas, e até mesmo Cabíria" [referindo-se ao seu outro papel célebre no universo de Fellini, em “Le notti di Cabiria”] .

Durante muito tempo e talvez até hoje, “Giulietta degli spiriti” foi tido como a resposta feminina ao anterior “Fellini 8 1/2”. Este primeiro filme a cores do grande “mentiroso” do cinema [carinhosa alcunha atribuída a Fellini] permanece um objeto fascinante que recolhe as memórias do amor da sua vida, intrometendo-as numa ficção onírica e delirante, algures entre um surrealismo fervilhante ou um carnavalesco desfile. Fellini usufrui das cores para preencher a tela com um festim visual que vai dos décors excêntricos e fantasiosos ao guarda-roupa vanguardista-chique e o constante jogo de luzes e sombras que nunca deixam intacto o rosto de Masina. Todos os planos são trabalhados em prol de uma estrutura desencadeada pelo críptico das suas imagens ou dos simbolismos com que as visões espirituais integram uma narrativa intrinsecamente tempestuosa.

Tal como em "Mrs Dalloway", o romance de Virginia Woolf, a protagonista é confrontada com os seus receios e suspeitas do marido estar a traí-la com uma mulher bem mais nova e um divã que a remete a uma infância de opressão religiosa que reflete a sua… digamos, submissão. A juntar ao tormento está um despertar psíquico que abre portas secretas a entidades de outros mundos, todas apontando para o seu desejo inerente, a vontade de mão dada com uma eventual emancipação, seja amorosa, matrimonial ou sexual.

Em contraste com esta Julieta de costumes brandos está a fantasmagórica vizinha Suzy (Sandra Milo), uma representação algures entre o ilusório e o alusivo de Afrodite, a guia necessária para a levar a lugares até então desconhecidos. Tal como acontece com “La Dolce Vita”, existe aqui uma certa classe hedonista envolvida em absurdismos. Seres integrados na sua festa sem razão, implorando pela atenção da câmara e do espectador.

Tudo isto resulta num espetáculo descoordenado, de falas cortadas ou movimentos inacabados que realçam as veias circenses de Fellini, transformando aristocratas e burgueses e as suas respetivas “loucas e inúteis existências” em arlequins de um filme verdadeiramente pessoal e … feminino. Uma luxuriante dedicatória a Giulietta Masina.

Pela estrada fora ...

Hugo Gomes, 11.08.20

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“Quando nasces. Quando morres. Quem sabe? Não, eu não sei qual é o propósito desta pedra, mas ela deve ter um, porque se esta pedra não tem propósito, então tudo é inútil. Até as estrelas! Pelo menos, acho que sim. E tu também. Tu também tens um propósito.” - O Louco

A Estrada” [“La Strada”] do título não é mais do que um percurso entre duas trágicas figuras que se complementam através do comum das suas inocências. É mais do que uma alusão à vida, como se esta fosse um trilho predestinado, por vezes curto, ou longo, incansável ou movimentado. E é sob esse veio que o destino dos dois farrapos errantes se unem, os de Gelsomina (Giulietta Masina) e Zampanò (Anthony Quinn). Não por amor, mas pela visão que cada um tem dessa mesma... estrada.

Antes de voltarmos ao caminho de malas prontas e de mente determinada em seguir este desconhecido horizonte, devemos contextualizar o seguinte: o realizador Federico Fellini participou de forma ativa na definição e estabilização do movimento neorrealista italiano (a estética da realidade de um ponto de vista ideológico), encorajando-o enquanto argumentista (por exemplo, foi um dos colaboradores de "Roma città aperta"). Com “A Estrada”, Fellini comunicou diretamente com esse jeito de estar e pensar em relação aos seus personagens, criando com isto um filme em constante mudança, e igualmente fiel aos propósitos da estética concebida pelo Neorrealismo.

Esta é uma obra de rua, de marginalizados e de detalhes sociais que pontuam a austera vida do sul italiano (o tal maneirista e suadamente festivo sul), em contraste com o norte comedido e “privilegiado” (que perdura até hoje, mais de 65 anos após a estreia do filme). Mesmo assim, “A Estrada” é também um importante manifesto de uma das marcas de Fellini na sua demanda cinematográfica: a farsa. Seja a encoberta pelos trajes circenses (melhor cenário de ilusões não poderia haver), seja a de tom irónico (aliás, cruelmente irónico) perante os seus peões, obrigados a viver nos parâmetros de uma fábula recontada.

Fellini sonhava com a distância do Neorrealismo que ajudou a criar, mas de pavio curto. Deparou-se com encruzilhadas e desfechos diferentes que o levaram ao encontro de um novo tipo de autor. Foi assim que nasceu o termo "felliniano", que remete para a mentira prolongada e dos contornos bestializados das personagens que encenam num tremendo palco. "A Estrada”, o possível Fellini consensual, é a emotiva e triste moral resolvida nas areias da praia (a praia comumente representado como o fim do drama "felliniano", aqui e nos filmes seguintes).

Contrariando o nosso senso, e inspirado no discurso esfarrapado do Louco (a personagem de Richard Basehart que servirá sacrifício para o anti clímax), há um propósito destas inutilidades, destes vagabundos relacionados pelos seus próprios miserabilismos. "A Estrada" é uma viagem de apenas ida, complementada com a emblemática sonoridade de Nino Rota (o compositor predileto de Fellini), também ele participante desta peregrinação a nenhures. E por fim, os iluminados e tristes olhos de Giuletta Masina, que hipnotizam e nos fazem rever a compaixão destes “inúteis”...

Esses teus lindos e desgostosos olhos

Hugo Gomes, 29.07.20

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Passados estes anos todos, e talvez com uma restauração 4K em cima, os tristes olhos de Giulietta Masina continuam luminosos e sentidos como nunca. "La Strada: A Estrada", o Fellini consensual e nem por isso desmerecedor, regressa aos cinemas portugueses com novas vestes, a partir de 13 de agosto.
 
Continua fantástico e tão ... felliniano! Que bom foi relembrar o meu (primeiro) Fellini!