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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Os Melhores Filmes de 2022, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 28.12.22

Em 2022 pude constatar a queda anunciada do cinema norte-americano, por mais que se tente rechear as nossas salas comerciais com produções à lá Hollywood, pouco ou nada saem deles para além de fórmulas, refilmagens sob selos de novidades, produtos direcionados ao streaming e super-heróis com fartura (demonstrando a sua regra equacional a servirem para universos partilhados).

Num ano em que “Avatar” chega com a soberba atitude de experiência de sala, um “Top Gun”, outra aguardada sequela, abre caminho por via do físico a possibilidade sensorial em sala, isto num ano em que a Academia decidiu promover um filme de streaming (“CODA”, que num estalar de dedos caiu no esquecimento). Se existe filme de Hollywood a merecer destaque neste ano, então Maverick e Tom Cruise (de difícil desassociação) levam a medalha. Porém, também foi o ano em que Michelle Yeoh pode finalmente brilhar nas terra-yankee graças ao frenesim entre o parvo e de genial que fora “Everything Everywhere All at Once” de Dan Kwan e Daniel Scheinert, ou das memórias cinéfilas de Spielberg em “The Fabelmans”, ou do terror de mãos dadas para com o seu legado cinematográfico - “Nope”, de Jordan Peele e “X” de Ti West

Mas este 2022 a congregação de 10 filmes foram para mim difíceis, o que automaticamente me deixa agradado com o turbilhão de novas vozes e novos movimentos que florescem por este Mundo fora, do Japão ao Irão, da França à Suíça, da Noruega ao México, da Coreia do Sul a Portugal. E falando em território nacional, destaco 12 meses recheadas em variadas e diversificadas produções; o rural novamente motor de inspiração ("Alma Viva”, “Restos do Vento), um João Botelho livre e fluido (“Um Filme em Forma de Assim”) e uma surpresa na realização (“Revolta”), já em temática de festivais [ainda sem estreia comercial], as questões identitárias e geracionais com deslumbre encanto ("Périphérique Nord”, “Super Natural”, "Frágil", “A Visita e um Jardim Secreto”, “O Que Podem as Palavras"), mas apesar desse leque de possibilidades, a minha escolha nacional cedeu à melancolia, à incerteza, ao fim da juventude retratado no misterioso “28 ½” de Adriano Mendes

Segue os dez filmes do ano, segundo o Cinematograficamente Falando e respeitando o calendário de estreias nacionais (sala ou plataforma de streaming):

 

#10) 28 ½

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“Doloroso, é verdade, de igual forma que deparamos com a nossa impotência perante o “mundo em cacos” o qual tentamos ignorar - a sequência do comboio, o momento mais hitchcockiano que o nosso cinema português já produziu (e não por decorrer no interior de uma carruagem, mas pelo trabalhado “suspense” oferecido a um espectador com conhecimento suficiente, por exemplo, de que a personagem de Anabela Caetano tem destreza física e experiência para lidar com tão incomoda situação). E são estas constatações, este peso concentrado que nos faz duvidar de tudo e de todos. Perdemos a inocência, fiquemos só a aguardar pelo inesperado, com a fé de este “incógnito” resgate-nos deste estado de existencialismo passivo.” Ler crítica

 

#09) La Civil

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“Por entre guerras de cartéis, Mihai espelha uma descida infernal de uma “inocente”, um mero dano colateral, que cuja contaminação com este ambiente a transforma numa espécie de impiedoso anjo da vingança. Tudo isto lido entrelinhas, de câmara à mão, orbitando de volta à ação e sugerindo mais do que expondo. “La Civil” escapa dos lugares-comuns pela sua imposição de poder, descortinando as vozes silenciadas de uma disputa moral.” Ler crítica

 

#08) A Hero

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“Através deste “regalo”, somos induzidos a um confronto entre razões e uma proposta de desconstrução arquitetónica (cada com a sua perspetiva) à definição de “herói”, o indivíduo máximo da moralidade na sociedade. O retorno ao Irão é propício a esses dilemas, uma sociedade “estranha” aos olhos ocidentais opera como uma distopia possível sobre as mais variadas questões morais e éticas. Como tal, “A Hero” é uma “caixinha” de tópicos para um debate pós-sessão, e Farhadi feliz para que isso aconteça.” Ler crítica

 

#07) In Front of your Face

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“E aí está o trunfo deste enésimo filme, um Hong Sang-soo amadurecido, elegante e delicado na sua estética (sem com isso ceder a “makeovers” radicais), que nos fala sobre vida, morte e promessas vencidas e embebidas em álcool, por sua vez de “pinga envelhecida", sem nunca descrer da sensibilidade desses mesmos temas, com quem encara o encerramento já visível do outro lado da esquina. Deste lado o cético que testemunhou um milagre, pequeno mas que basta, num cinema que sempre fora mais preocupado em alimentar o seu culto do que verdadeiramente interrogar as suas próprias emoções.” Ler crítica

 

#06) Onoda, 10 000 nuits dans la jungle

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O Cinema é também memória, não em jeito memorialista e intimista, mas antes de uma lembrança do que esta arte foi e do percurso percorrido até à sua presente forma. Embora “Onoda” seja uma produção atual, é um filme hoje impraticável pelas mais diferentes razões. Não se trata de resumir ou mencionar gestos de outros e de distantes tempos, Arthur Harari persiste numa vinheta histórica para aludir ao “coração das trevas”, abraçando a selva como a mais eterna inimiga dos Homens. Tropicalismo? Exotismo? Nada disso, esta floresta que albergará os últimos resíduo de uma Guerra desvanecida assume-se como uma armadilha, um labiríntico cativeiro, onde o tempo estagnou num cruel sigilo e a carne está predestinada à sua regressão natural. Harari cumpriu, onde muitos falharam, o de trazer de volta um Cinema físico, protetor da sua herança e com ela a possibilidade de avançar “mato a dentro”. 

 

#05) Azor 

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““Azor”, primeira longa-metragem do suíço Andreas Fontana, marcou presença na edição de 2021 da Berlinale na secção Encounters, um thriller assombroso que tece um universo que bem poderia ser extraído dos enésimos “filmes sobre Máfia” ou dos gestos calculados e maturados de Costa-Gavras. Aqui, nesta Argentina dos anos 80, sem nunca condicionar a um evento histórico preciso, o silêncio é de ouro e a meticulosidade poderá garantir a nossa sobrevivência nesta descida ao inferno capital.” Ler entrevista ao realizador

 

#04) Un Monde

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“Não olhemos para as crianças como um poço de inocência, mas antes como “peregrinos” que desbravam “novos mundo”, claramente “novos” diante dos seus respectivos olhos, e é esse “mundo, a palavra transportada do título original (“Un Monde”) que Laura Wandel concretiza um tratado experiencial num biótopo a nós familiar, e igualmente distante.” Ler entrevista com a realizadora

 

#03) Vortex

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O tempo destrói tudo”. Gaspar Noé "pavoneou" esse lema ao longo da sua filmografia, todas elas indiciadas no ato de provocar. Enfim, o tempo ameaçou destruir, até porque Noé, perante uma  hemorragia cerebral que o quase levou às “portas da morte”, desliga-se dos aspectos xamânicos e místicos, ou da crueldade exaltante em ira, que testemunhamos nos seus filme para se partir numa claustrofobia formal e existencial. Protagonizado por Dario Argento, demonstrando-se decadência física (ontem, um “maestro” do terror, hoje, uma vítima do terror pendular da sua expirável “carcaça”), “Vortex” veste-se de negrume desumano, discreto, e acutilante a um quotidiano vencido, corpos arrastam-se e mentes dilaceram perante o voraz apetite do tempo. Em jeito de “split-screen”, amantes que depois do seu coro distanciam, mais e mais, até que os vestígios do seu último sopro temporariamente instalam-se nos lençóis usados. Morte, fim, nada de digno, nada de romântico, Gaspar Noé parece saber do que fala.

 

#02) The Worst Person in the World

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The Worst Person in the World” é de uma manobra arriscada em pleno século XXI que é o de dar uma oportunidade a estas mesmas personagens de recontar as suas vivências, e demonstrar que ainda há espaço para elas, sem as glorificar ou as vitimar. No fundo, aquela pessoa “horrível”, a “culpa europeia branca sentada no sofá”, é um fruto social que revolta-se silenciosamente contra esses parâmetros. Ler crítica

 

#01) Drive My Car

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“Poderíamos dizer tanta “coisa” sobre “Drive My Car”, poderia e posso, mas é ao terceiro visionamento que percebo, emocionalmente, a cerne de toda aquela palavra (Hamaguchi contou-me o quanto a palavra se tornou no motor do seu Cinema) não está na conquista dos sentimentos, mas as tréguas para com as nossas mágoas, aquilo que nos endurece perante um “mundo em chamas”. Talvez o meu "refúgio de cartão” esteja no Cinema, como disse em tempos, este parece comunicar comigo, ou é somente a manifestação do seu lado zeitgeist, e nós não somos tão “especiais” assim. Conforme seja a verdade absolutista, um facto é que “Drive My Car” vive entre nós, é um filme do nosso tempo projetado para quem olha para ele com desconfiança.” Ler Texto

 

Outras menções: Everything Everywhere All at Once, Nope, Top Gun: Maverick, Memory Box, Flee, The Girl and the Spider

O caos é bailado para Diabo sentir

Hugo Gomes, 07.02.19

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Estrategicamente, os provocadores conseguem ser melhores publicistas que os próprios na indústria cinematográfica e a verdade é que, uma vez invocando a provocação, sempre se será refém de tal postura. Tal acontece a cineastas como Lars Von Trier, possivelmente o mais gratificante e mediático deste ramo, mas uns degraus abaixo surge outro “exemplar”: Gaspar Noé.

Indivíduo caricato, de um certo sorriso malicioso, Noé ficou célebre pela debandada de espectadores que saiam furiosamente da projeção oficial de “Irreversible” em Cannes. O momento encheu as manchetes e a imprensa esfregava as mãos quanto ao episódio. Assim, a sua fama como enfant terrible se construía. Foram precisos sete anos para regressar aos grandes ecrãs sob uma inventividade narrativa [“Enter the Void”] que não conheceu o mesmo histerismo, apesar de condensá-lo a um certo estatuto de culto. Com “Love”, em 2015, sob as promessas da pornografia ingressada num enredo semi-autobiográfico, o cineasta regressou às luzes da ribalta e, novamente em estreia no festival da Riviera Francesa, conquistou o “prémio” de mediatismo-choque.

Gaspar Noé retornou assim ao ambiente ao qual está familiarizado, mas ao invés da Seleção Oficial, encontrou lugar na 50ª edição da Quinzena de Realizadores, um sinal de que o seu estatuto autoral foi reafirmado e relançado para circuitos mais visíveis da cinefilia. Mesmo num evento paralelo, o realizador teve a proeza de “roubar” algum do público destinado ao glamour do Palais, incentivando a imprensa para mais uma provocação à lá Noé. “Tu desprezaste I Stand Alone. Tu odiaste Irreversível. Tu espezinhaste Enter the Void. Tu amaldiçoaste Love. Agora experimenta Climax.”. Foi este o recado deixado pelo realizador aos jornalistas e críticos na véspera da estreia oficial, um filme na altura ainda mantido em perpétuo mistério (apenas era conhecida a protagonista, Sofia Boutella), que gerou um hype que movimentou centenas de curiosos.

Após a visualização, a crítica yankee (não só) teceu alguns elogios ao novo trabalho de Noé, algo inesperado que levou o próprio realizador a comentar a sua admiração e, de certa maneira, uma deceção aos seus projetados objetivos. Até porque a dita provocação dissipou-se, já não existe mais repugna, o que restou foi cumplicidade. Mas afinal o que aconteceu? O que levou um dos enfants terribles a ser um homem em reavaliação pela crítica que outrora tanto o desprezara? Para responder a isso, temos que ter em conta que “Climax” apresenta-se numa nova etapa na carreira de Noé, a do “clímax” propriamente dito, só que ao invés da força dramática ou trágica contida nas lições dos três simples narrativos, é o vazio na criatividade do realizador, ou seja, o seu dom de “irritar”. E para esse dom, Noé precisava de arquitetar melhor a forma de chocar o seu público, mas o resultado embicou noutra direção. Mesmo com a provocação pensada ao milímetro, o seu mentor demonstrou uma falta contextualização para com as suscetibilidades das suas vítimas.

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Assim, caímos de paraquedas num filme de dança, breakdance e toda a cultura alicerçada. Um projeto recreativo que se torna num pesadelo após alguém (whoddunit) ter sabotado uma sangria destinada à celebração, colocando LSD. A festa preparada converte-se num tormento sincronizado, corpos imperativos que revelam  violência depositada em cada cápsula carnal, convivendo com uma (ir)realidade alucinogénia que se figuram como “monstros” nesta bad trip coletiva. Tudo isto agita-se num prolongado plano sequência que limita um suposto filme de cerco minado com as marcas pelo qual Gaspar Noé contaminou, chamando-o desde então de seu Cinema.

A estética néon que compromete-se com uma câmara em estado de ecstasy, que nos sugere um repugnante point–of–view emocional, os tais fade outs que esquartejam diálogos e planos de maneira a inserir-se em falsos-raccords. É um filme à Noé com certeza, não há dúvidas, porém, até nisso, nos deparamos no desleixo. Enquanto as personagens se introduzem, literalmente, sob um cenário vintage de uma televisão anacrónica, capas de VHS estão expostas para fins decorativos. Mas os títulos aí evidentes revelam as marcadas influências deste projeto. De “Querelle” e “O Direito do Mais Forte à Liberdade” (“Faustrecht der Freiheit”), ambos de Fassbinder, a “Possession “de Zulawski, passando por “Salò” de Pasolini e “Um Cão Andaluz” de Buñuel (nota-se ainda espectros do apogeu dos filmes de cerco, “O Anjo Exterminador”), são os passos pelo qual este longo bailado se dança. Estranhamente, perdemos o jogo das referências após esse início, até porque os truques foram todos exibidos em pós-stage.

O que restou aqui foi apenas o movimento, o gesto e os corpos que apontam para a saída. Basta Gaspar Noé segui-la, a provocação precisa de ser afinada ou redefinida. A sua câmara súplica por essas novas aventuras. O filme, por sua vez, só pede um clímax … somente um clímax

Gaspar Noé: "a depilação pertence à indústria pornográfica e não à vida real"

Hugo Gomes, 11.06.16

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Love (2015)

Depois de ter silenciado Cannes duas vezes, uma em 2002 com “Irreversible” e em 2009 com “Enter the Void”, Gaspar Noé voltou a fazer das suas em terras francesas com “Love”, uma história de amor, sexo e obsessão que prometeu alterar para sempre a maneira de se encenar o sexo no grande ecrã. Depois de uma estreia mediática no Festival, “Love” chega por fim a Portugal no âmbito do Indielisboa. Tive a oportunidade de falar com o realizador argentino radicado na França, numa conversa descontraída em que disseca a sua obra, aborda a vida que o cineasta pode nunca mais reaver, e o seu trabalho com “caras” desconhecidas.

Como foi concluir o seu “projeto de sonho”?

Foi um dos meus projetos de sonho. Eu escrevi o primeiro rascunho do guião após escrever o Enter the Void e depois de escrever uma curta sinopse do Irreversível. Como não consegui arranjar financiamento para o “Enter the Void” após a minha primeira longa-metragem, então optei por um projeto de baixo-orçamento que pudesse filmar e produzir em Paris. Escrevi um rascunho deste filme, que na altura intitulava-se “Danger”, e conheci o Vincent Cassel num clube o qual perguntou-me o que estava a preparar. Disse-lhe que estava à espera de financiamento para o “Enter the Void”, mas que encontrava-se a preparar uma história de amor, bastante erótica, em Paris, e que estava interessado em que a Monica Bellucci entrasse.

Então encontrei-me com produtores que anunciaram que tinham o dinheiro para este projeto com o Vincent Cassel e a Monica Bellucci, e foi então que apercebi-me que a maneira que pretendia filmar poderia comprometer o trabalho destes atores. Mas apresentei na mesma a minha ideia e eles simplesmente disseram “Não”. Foi então que sugeri, como estava livre nesse verão e o produtor também, fazer um outro projeto rápido e foi assim que concretizei o Irreversível. Nós o fizemos e tornou-se num grande êxito. Desde então fiquei com a esperança de improvisar o projeto, mas entretanto o meu outro projeto foi aceite. É que depois do “Irreversível”, tive o desejo de filmar o “Enter the Void”.

Depois de estrear o “Enter the Void”, avancei com este filme, porque eu sempre havia me dedicado a este projeto, que era algo tão próximo de mim, tão próximo da minha própria vida. Mesmo que não fosse uma autobiografia, era como fosse a vida que os meus amigos tinham e na qual estava integrado. A vida dos 25 anos, com festas, noites, drogas, o amor desesperado, daquela maneira estranha dos fracassos, o qual tornaram este projeto muito afetivo.

Foi então que optou por atores desconhecidos para “Love”? Como os escolheu?

Há pessoas que têm carisma e outras não. Quando nós dirigimos atores descobrimos que alguns têm maior aptidão para decorar as deixas, lembrar longos diálogos. Noutros tens talentos interpretativos, facilmente choram, e outros desempenham uma personagem desenvolvida por eles. Mas quando descobrimos pessoas carismáticas, não precisamos de atores… basta que tenham boas capacidades de improvisação, visto que eu faço muita edição. Depois de Vincent Cassel e Monica Bellucci terem recusado, decidi apostar em rostos desconhecidos. No entanto, apesar de ter uma grande admiração por bons atores, também gosto de ver filmes, caras que não conheço, visto que trazem consigo algo novo.

Isso está ligado com o facto de não associarmos essas caras com outras personagens?

Sim, mas atenção, eu não conseguiria fazer o “Irreversível” sem a Monica e o Vincent, porém, não poderia ser radical com eles devido às suas respectivas carreiras e sucessos anteriores. Neste caso, para um filme destes, pretendia atores mais jovens, e que não estivessem ligados a filmes anteriores.

Por exemplo, quando eu vejo o filme “The Dreamers” [Bernardo Bertolucci], a representação de Michael Pitt é perfeita. No entanto, eu não poderia tê-lo no meu filme, porque o espectador iria associar de imediato com “The Dreamers” ou outros dos seus anteriores filmes, e o mesmo iria acontecer com a rapariga. Além disso, o ator está demasiado velho para o papel. Quando comecei os castings, a minha grande preocupação era encontrar um rapaz ou uma rapariga que se sentissem confortáveis com os “corpos de outra pessoa” … e com a sua nudez. Para muitos atores profissionais, este papel poderia ser considerado como um risco, por causa dos seus planos de carreira, fãs e o facto de se exporem desta maneira.

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Gaspar Noé e eu, durante o Indielisboa 2016

Para estes casos, as pessoas estão sempre mais alertas. Além do mais, é mais fácil para um homem mostrar o seu pénis, erecto ou não ereto, do que uma mulher expor-se em situações sexuais. Tudo isto porque vivemos num mundo dominado por homens, onde um pai não se iria importar que este tipo de papéis fossem vistos pelos seus próprios filhos. No caso da mulher, no mundo em que vivemos, ela facilmente seria julgada.

Como os preparou para as cenas sexuais?

A ideia principal é que os atores fossem tangíveis, ousados e que soubessem o tipo de filme que estavam a fazer. Teriam que conhecer o tema e para isso debatíamos muito. Pedi aos atores para terem em conta, nestas cenas, que não se poderiam depilar, visto que para mim era esteticamente não-natural e eu pretendia algo vintage. Fico sempre chocado com esta nova moda das raparigas depilarem as suas “partes baixas” … acho feio! Para alguns homens é excitante mas para mim a depilação pertence à indústria pornográfica e não à vida real.

Mas não pretendia fazer um filme pornográfico?

Não, eu estava simplesmente à procura de algo real. Não queria copiar nenhum dos filmes, nem sequências eróticas que tivesse visto, muito menos cenas explícitas que são tudo menos eróticas, mas sim reproduzir a maneira como beijamos e fazemos sexo quando estamos apaixonados por alguém.

Como surgiu o 3D para este filme?

Eu já tirava fotos em 3D, tinha uma câmara própria para o efeito. Numa altura difícil, na qual a minha mãe estava a morrer, eu tirei várias fotos com essa câmara para ter a possibilidade de me recordar dela. Via essas fotografias num pequeno monitor.

Eu recebi um subsídio em França, através do Centro Nacional de Cinema (CNC), para ajudar a desenvolver novas tecnologias. Um mês depois de começar a filmar, pensei em usufruir do subsídio, mas não o pude fazer, porque teria que aguardar mais quatro meses antes de avançar no projeto. Mas como estava a filmar há já um mês, eles colocaram o meu projeto no topo da “pilha”, duas semanas depois começamos a filmar com tais câmaras [3D]. Tive imensa sorte em participar neste tipo de indústria.

Ao filmar em 3D, não tornei este projeto mais caro, mas ficou incluindo na categoria dos filmes de “grande orçamento”. Além disso, o filmamos em 5 semanas.

Automaticamente associamos “Love” a si. Não pelo seu nome aparecer nos créditos, mas sim por ser um filme cheio de referências das suas obras anteriores. Cheio de easter eggs.

Mais uma vez, este filme não é uma autobiografia mas sim o retrato de uma vida que eu e os meus amigos conhecemos. São esses os elementos do filme. Tentei filmar o jovem ator como se de um irmão mais novo tratasse, um tipo que estuda cinema, fez uma curta-metragem e que não sabe se vingará na indústria. A personagem é um rapaz fixe, descontraído, mas um verdadeiro fracasso, como um amigo fracassado.

Na sua carreira, existe uma frase que o persegue – “O tempo destrói tudo” – e “Love” não é excepção.

Sim, o tempo apaga tudo, mas penso que isto é mais a memória apaga o passado e como a vida consegue destruir os teus ideais. Como pequenos acidentes podem alterar os seus projetos de vida. Por exemplo, no filme, quando o protagonista engravida a rapariga, trata-se de um acidente, de uma quebra. Aliás, são os acidentes que mudam o percurso das personagens nos meus filmes.

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Love (2015)

E quanto a novos projetos?

Não sei exatamente aquilo que eu vou fazer, mas estou a pensar em diferentes projetos.

Quer falar sobre esses projetos?

Simplesmente porque de momento não estou a preparar nenhum filme. Mas estou a considerar projetos diferentes.

Radiante por ver o seu filme a circular depois da mostra de Cannes?

Eu mudei um pouco, penso que agora a duração esteja com menos um minuto, visto que retirei três minutos do filme e acrescentei dois no final e mudei algumas músicas. O filme atualmente está mais perfeito do que a versão vista em Cannes, cuja música era provisória assim como os créditos. Que não estavam concluídos.

Então digamos que é um diretor 's cut?

Sinceramente, eu não estava à espera que estivesse pronto para o Festival de Cannes, porque em meados de fevereiro, o filme ainda estava a ser filmado. A meio de abril, antes de anunciar os restantes filmes seleccionados para o festival, perguntaram-me se eu queria estar na Sessão da Meia-Noite de Cannes, aceitei mas antes adverti que o filme não estava completo. Faltavam três semanas para o início do festival, contudo, consegui terminar a tempo, foi o maior stress da minha vida.

O Cinema pessoal em modo “cumshot”

Hugo Gomes, 26.06.15

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Love” é um plano antigo, um projeto de sonho que ousa desafiar as próprias convenções do cinema, aquele que é politicamente aceite, e resgatar muito de um teor, agora reduzido à indústria pornográfica, ao serviço do storytelling. Esta ideia permaneceu em Gaspar Noé anos antes do trabalho que o consagrou como um dos mais irreverentes e controversos cineastas do nosso tempo – “Irreversible”. Aos atores Vincent Cassell e Monica Bellucci foi feita uma proposta para protagonizar este “sexo com sentimento“, como o realizador apelida, numa altura em que ambos constituíam um casal, com probabilidades de auferir uma requisitada intimidade às eventuais perfomances. Porém, a dupla recusou, tendo “Love” ficado residido no limbo cinematográfico.

Limbo, esse, que fora retirado recentemente, mas antes Noé havia experimentado novas formas narrativas e estéticas com o não muito consensual “Enter the Void”. A proposta de uma trip narcótica em mistura com esoterismo tibetano serviu de objecto de estudo e incentivo para o avanço deste projeto (agora protagonizado por desconhecidos) que se revelou muito pessoal. “Love” arranca com uma amostra daquilo que havia sido prometido enquanto produto choque, o que se resumiria vulgarmente de filme pornográfico em 3D. O sexo parece real, de certa forma sujo e “ordinário”, afastando-se de qualquer indicio de encenação. Neste caso, Gaspar Noé consegue o seu “quê” de atenção e supera os limites estéticos estabelecidos pelo cinema erótico.

Mas “Love” é um filme que apresenta mais do que uma simples exploração do foro sexual e do muito publicitado ménage-à-trois, funciona como um romance vinculado a memórias autobiográficas. Sim, leram bem, uma biografia complementada sob uma liberdade criativa e ficcional em concordância com toda uma coleção de fetiches que operam num júbilo masturbatório, para ele e não para o espectador. Noé acaba por abordar a sua veia mais romântica, entregue numa bandeja de perversão para “inglês ver“, até que por fim essa mesma capa dissipa e a lamechice extrema é realçada e desmesurada no seu requinte visual.

Temos uma estética retirada através dos estudos feitos por “Enter the Void” – as suas concepções aqui reaproveitadas em prol de uma nova trama, e a narrativa enxertada por falsas elipses e malabarismo temporal. Aliás, tais referências autorais são assumidas com os inúmeros easter eggs que acompanham o regresso ao passado de Murphy (Karl Glusman), um homem que viveu intensamente uma paixão, cuja ruptura é ainda tida como um dos seus maiores arrependimentos. Electra, nome dessa sua “Vénus“, é novamente ouvida após uma tremenda ausência, abrindo “portas” para emoções e recordações não sentidas há muito tempo.

Gaspar Noé interage com a lei de Murphy (“qualquer coisa que possa correr mal, ocorrerá mal, no pior momento possível“) para basear nesta matriz que vai ao reencontro do seu pessimismo e arrependimento – o tempo destrói tudo de Irreversível – o não retorno emocional e físico das suas personagens e a aura fantasmagórica que permanece no final da sessão. No final, acabamos todos por ser criaturas taradas por experiências, que quando submetidos a uma derradeira fragilidade, julgamos saber amar.