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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Onde está o lugar no "não-lugar"?

Hugo Gomes, 26.09.24

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Não pintes Mona Lisas onde elas não existem.

De tão estranho tornou-se quase trágico na perspetiva de mercado. Frederico Serpa fazia um pitching deste seu “filme-poema”, como gosta de o apelidar, aos inúmeros investidores e exibidores numa igualmente fatídica edição dos Encontros de Cinema Português, a iniciativa anualmente promovida pela NOS, sempre encerrada com os ilusórios debates sobre o panorama do cinema nacional [este aconteceu em 2020, com pandemia e despacho discriminatório de filmes portugueses para salas vazias]. Na plateia, ouviam-se esporadicamente risos tímidos, balançando com um embaraçoso silêncio, até porque Serpa estava a vender uma ideia e nunca, em momento algum, um filme, no sentido comercial que tanto aqueles “senhores” sentados de perfil sério esperariam. 

Foram quatro anos de rodagem (e filmado entre o handycam, 4K e a película 16mm) que, por fim, culminaram neste projeto intitulado “Arrabalde”. O conceito base é simples: dois amigos lançam-se de mota para os confins da sua cidade, aliás, do subúrbio quase marginalizado onde vivem e de onde desejam sair. Nesse trajeto, encontrarão inúmeras “personagens”, situações aí almejadas como parábolas evidentes da gentrificação e transformação dos nossos centros habitacionais, nomeadamente Lisboa, a qual dialoga sem quase nunca repousar a câmara nos seus quarteirões ou monumentos. 

O que se entende é que o resultado sobressai ao mero paladar do conformismo que o mercado revelou e estabilizou, e, mais do que a denúncia, o poema ou a estratégia, “Arrabalde” é um filme que nos leva a um “não-lugar”, o reconhecível espaçamento nada geográfico que o cinema acolheu como seu. Foge da reconstituição da sua metrópole gravitacional, porque anseia esta distorção. O caminho por essas algibeiras possivelmente não terá o destino como o pretendido, mas é a sua imprevisibilidade que nos magnetiza. 

Para onde quer o filme ir? Para onde vamos? O que vemos? Qual é o “meu” lugar? Desta feita, pergunta o aluno desinteressado a um Luís Miguel Cintra como representante de uma ditadura académica numa sala de aula universitária. Não falam a mesma língua, mas compreendem-se, só que não se percebem. A distância social entre eles define-os. Serpa instala assim um efeito de desestabilização de um sistema, de um formalismo, e porque não de um cânone, e fá-lo por uma via caótica, procurando nos seus destroços um filme, ou um espírito dele. 

O crítico e programador Ricardo Vieira Lisboa, em contexto de “Frágil” de Pedro Henrique, “abocanhando” outros exemplos ‘recentes’, como “O Primeiro Verão”, de Adriano Mendes, e Verão Danado, de Pedro Cabeleira (Serpa foi ator aqui neste ‘lugar’), apelidava de “Geração Whatever” o possivelmente movimento artístico composto por realizadores que afirmam, através dos seus filmes, uma manifestação de existência, acalentando a sensação de despertença da qual fazem parte. 

Arrabalde” provém desse sentimento, reflete-o sobre a cidade e as suas transformações, como igualmente o reveste no investimento da sua produção. “Para onde vamos?” já não é apenas uma pergunta, é um modo vivente e meio desamparado.