O “preço” da cultura, enquanto Godard é livre
Tempos estranhos que lidamos neste confinamento “(in)voluntário”. Cada dia processa-se uma nova realidade, nomeadamente a nossa relação com a cultura, que gradualmente demonstra a sua faceta esquizofrénica.
Após os encerramentos dos cinemas, não demorou muito para que as distribuidoras, produtoras e até mesmo os próprios realizadores “largassem” os seus filmes na banda larga, com acesso gratuito a todos, bastando apenas iniciativa e curiosidade em (re)descobrir. Se pensarmos bem, toda esta distância social consegue ser uma desculpa mais que necessária para a nossa reinvenção cultural e artística, e para os cinéfilos, o fortalecimento dos seus conhecimentos e o colecionismo “invisível” dos filmes visualizados. Nesse aspeto, não podemos reclamar, tudo na ponta dos nossos dedos, até Jean-Luc Godard, entidade oculta dos nossos olhos, surge num Live no Instagram. A proposta foi uma masterclass que, em certa parte, serviu como um estabelecimento espectral com o mundo tecnológico, aquele a quem o mestre da Nouvelle Vague havia sucumbido.
Nesse episódio memorável, não consigo esconder um certo espanto na correria aos pequeníssimos ecrãs para experienciar um homem que outrora proclamou amor à grande tela. Godard não revelou o segredo da pólvora, ao invés, foram várias, as pertinentes perguntas a que fugiu, como a das redes sociais, onde demonstrou um impasse nestes novos tempos. Mas a sua identidade “godardiana” foi essencial para classificar esta nova normalidade e os dilemas que nos atropelam – será um fruto de aura artística ou a venda de uma imagem como uma marca registada?
Continuando no refúgio dessa mesma sombra, levo ao encontro da, entretanto cancelada, a iniciativa TV Fest, embarcada pelo Ministério da Cultura e instalada nas sedes da RTP com o intuito de apoiar os artistas musicais prejudicados pela crise pandémica que desafia os nossos parâmetros sociais. A abordagem não foi bem recebida e – por entre petições e petições – lá voltamos à “cancel culture” que muitos criticam. Não vou opinar sobre as razões que levaram ao fim de uma ideia sem início, até porque, para além de ideologicamente paradoxal, é sobretudo um tema mais complexo para ser debatido em meras centenas de palavras, mas é triste encararmos com uma espécie de slogan criado nesta luta – “a cultura tem um preço” – como se simbolicamente voltássemos a restringir a cultura às elites e aos possantes. E é aqui que somos confrontados com a atitude “Robin dos Bosques” de Godard. Se o realizador e agora eremita decidiu dar o seu “Olá ao Mundo” por via do acesso fácil para todos, porque é que a cultura deve ter um preço?
Recordamos que há uma década, o mesmo cineasta defendeu a desapropriação intelectual das obras criadas, nisto, contextualizado numa defesa ao fotografo francês James Clement, condenado pela justiça francesa por fazer o download ilegal de músicas. Godard afirmou à Les Inrockuptibles que “não existe essa coisa que chamam de propriedade intelectual“, acrescentando que “um autor não tem direitos. Eu não tenho nenhum, apenas deveres“. O que aqui entra em debate é a eterna questão de dissociar o artista da sua arte, não somente pelas esfera crítica e teórica, mas mesmo a nível financeiro.
Mas voltando ao “preço”, obviamente, que com isto não desvalorizo a importância dos empregos criados no seio cultural de qualquer direção (desde a curadoria, os artistas propriamente ditos até aos técnicos), contudo, como é possível num país onde esse universo, essencial aliás, é tão subsidiado e apoiado (quer diretamente ou indiretamente) se fale agora de “preço”. Um país sem cultura é a equação perfeita para a destruição de ínfimos valores éticos, a diferentes níveis, sejam políticos ou sociais (o despertar do populismo e das ideologias radicais e extremistas sem noção de coexistência). Fala-se de um preço como se estivéssemos novamente a frisar a importância das classes para com essa exposição, deixando de lado um outro leque remetido ao saco de “plebeus”. Porém, há que frisar que o artista, acima de tudo, deve ser pago pela sua contribuição à nossa riqueza cultural e artística e todos os cargos aí associados, nomeadamente a curadoria, também. Mas a arte em si não deveria estar disponível para qualquer um?
As distribuidoras e produtores que hoje disponibilizam as suas obras, fazem-no pelos mais diferentes motivos, seja relembrar ao confinado que o cinema continuará depois do COVID, ou que o cinema está onde quisermos (nesse aspeto, basta olhar para a Godard e a sua aparição repentina). O preço, esse, existir ou não existir, a sua invocação é a premonição de outros símbolos que nos colocarão diante de uma realidade distorcida, onde a cultura é liberal e dispendiosa. As lutas pela subsistência da cultura do nosso país são sempre bem-vindas, o preço como palavra de ordem nesta perpétua batalha campal é mais perigoso do que se pode imaginar, podendo espaçar ainda mais a desigualdade.
Quanto a Godard, é sabido que ele sugeriu um realizador suíço na sua conversa online – Francis Reusser – que infelizmente faleceu recentemente. Era um “velho conhecido” do extinto Festroia, com uma carreira antiga antes das invocações do “velho sábio”. Pena é que o seguidismo para com Godard leve a cinefilia para uma só direção, a tardia, ao invés de desde sempre ampliar o seu olhar.