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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Os Melhores Filmes de 2024, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 23.12.24

… era uma vez, um episódio verídico …

Cheguei ao trabalho e, durante o render do turno, notei que o meu colega manejava no computador da empresa um ficheiro Excel enquanto, na sua secretária, ecoava o som de diálogos em português do Brasil entrelaçados com motores enfurecidos de carros de Fórmula 1. "Isso é a nova série do Ayrton Senna?", perguntei. "É sim!", a naturalidade da resposta me levou à seguinte e precisa pergunta, "e porque é que não a vês?". "Hã, eu já conheço a história, não é preciso vê-la." A resposta fez-me barafustar sobre o sucedido. As imagens tornaram-se banais, sem significado, portanto para quê defender a democratização das mesmas, as tais plataformas de streaming a rodos, se depois não são vistas nem apreciadas devidamente?

Elaborar tops, convém, não é só juntar um dezena de filmes que nos “tocaram no coração”, é também atribuir a essa totalidade um statement, - e tendo em conta os tempos e a sua gradual aceleração (cada vez mais), esta ofensiva contra a vulgarização imagética, ao sacrilégio do gosto do espectador (merece ser subvertido, sair do seu próprio umbiguismo), contra as esquadrias e as mensagens / storytelling como unilateralidade das produções audiovisuais -, um ato político. Por isso, não vos vou mentir, existir algo politizado aqui, uma marcha contra a inevitabilidade de um lufa lufa social. 

 

#10) The Teachers’ Lounge

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Çatak constrói uma fábula sobre essa designação de Poder e de todas as suas consoantes [populismo, corrupção, panópticos, autoridade, repreensão, institucionalização], sem com isto sair da turma.” Ler crítica

 

#09) Bowling Saturne

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“Esta é uma história de predadores, com rostos humanos e sorrisos maliciosos, que ora nos repugnam, ora nos fazem ferver o sangue. Se este último estado se manifestar, não se preocupem; Patricia Mazuy sabe bem onde tocar nos nossos nervos.” Ler crítica

 

#08) Evil Does Not Exist

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Hamaguchi fez tudo isso, apenas movimentando brisas e se poupando nas palavras, rodou uma ópera rural, com espiritualidades bastantes para permanecerem como nativos. No fim, olhamos para o céu, novamente, o mesmo movimento, o mesmo plano, só que a perspetiva, essa, encontra-se alterada. Digamos mutada. Um belíssimo filme de uma natureza estoica e lacónica.” Ler crítica

 

#07) Megalopolis

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Megalopolis” não estabelece qualquer arrojo na sua política forma de hablar — ou talvez sejamos nós demasiado cínicos ou comprometedores para compreendermos esta sua mensagem, ou que fazer com ela. O que mais irrequieta em “Megalopolis” é a sua tremenda ambição, um projeto idealizado anos e anos, embrionário desde os tempos em que Coppola invejava a sua ideia de “Cinema Ao Vivo” e do fracasso ruinoso que “One From the Heart” (1981) se tornaria. Aí era uma “semetezinha”, sobretudo conceptual.” Ler crítica

 

#06) La Chimera

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“Esse caminho, o qual descansamos a vista, é a persistência pela redenção, pela epifania, e pelo entendimento, Arthur é o ser exato para essas modalidades, um “Martin Eden” desengonçado (Pietro Marcello que havia trabalhado com a realizadora em “Futura” faz aqui uma perna no argumento), em busca do seu final de fábula. “La Chimera” é somente a sua Caverna de Platão!” Ler crítica

 

#05) Ryuichi Sakamoto / Opus

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“De "Aqua" a "Last Emperor", passando por "The Sheltering Sky", e soando réquiem, a partitura que o catapultou ao seu merecido estatuto: "Merry Christmas Mr. Lawrence", tema da obra de Nagisa Oshima, o qual o próprio compositor contracenou ao lado de David Bowie (até ao fim dos seus dias arrependendo de não ter tido "melhor relação"), que por sua vez, contou com uma despedida coincidente, em forma de álbum, "Black Star", provando a música divina que os moribundos produzem no seu aproximar com o Fim. No caso de Sakamoto, a Ordem é a estrutura da sua arte, e com esse estandarte musicado lançamos-nos a uma última performance, os créditos finais, mesmo que necessários, poluem a tela, aquela figura que toca a música que nos acompanhará até à saída da sala.” Ler crítica

 

#04) Joker: Folie à Deux

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“(...) é de igual registo, chega-nos como um cinema infiltrado, resultar em outra pária, talvez no prolongado das alegorias do populismo viscoso e desesperante - alimentado pelo sensacionalismo do espectáculo que os medias se converteram - na busca de agentes de caos que possam conduzir-nos a um “Novo Mundo”. Joker de Phoenix continua como esse 'messias' fabricável, mas no fundo é um miserável que procura a empatia do qual sempre lhe fora negado.” Ler crítica

 

#03) All we Imagine as Light

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“Mas, sem falar abertamente sobre isso, “All We Imagine as Light” é, na verdade, um filme sobre cinema, porque a luz imaginária não poderia ser outra senão aquela libertada pelo projetor em direção à tela. A outra realidade, a única possível para aquela gente, Kapadia sabe disso e, generosamente, entregou-a. O tal segundo cenário, o campo delineado pelo mar, por sua vez, é o outro lado da tela.” Ler critica

 

#02) Fallen Leaves

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“Um solipsismo a ser abatido, até porque este romance aparentemente simples e pragmático é um convite kaurismakiano para que avancemos na nossa vida, agarrando esperanças, não vindas do outro lado (até porque o exodus solicitado é diferente da habitual geografia), mas da compaixão pelo outro, pelo próximo e pelo supostamente perdido, sem complexidades, direto e encaixado (que sonho seria que tudo fosse assim). De mãos dadas segue-se para o horizonte fora. Só as folhas de Outono nos contemplam. Como os melhores contos de Kaurismäki, é no avançar que a história encerra.” Ler crítica

 

#01) C'est pas moi

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““C'est pas moi” são 40 minutos de imagens, sejam retalhados, sejam de origem, em colisão com as imagens banais do nosso redor, prescreve-se como um antídoto mas não se assume totalmente essa responsabilidade supra. Carax, por mais identificável que seja essa ‘viagem’, ele não fala para nós, e notamos isso, porque ao longo destes 40 minutos, a sua voz dita cavernosa aborda uma espécie de auto-psicanálise, há nele o pairar de uma presença paternal, de um “pai ausente” porventura. “O cinema é o lugar dos pais mortos”, da autoria de Serge Daney, e para Carax, o seu fantasma … um pouco banal até. Mas quem não o é nos dias de hoje?” Ler crítica

 

Menções honrosas: Via Norte, Trap, Rapito, A Flor do Buriti, Le procès Goldman, Manga d´Terra

Esta vem do coração ...

Hugo Gomes, 29.10.24

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One From the Heart” é uma daquelas obras-primas desvalorizadas pelos nefastos ares do seu tempo, e mesmo com aquele discutível final com suplícios ao Happy Ending de “boa” Hollywood, torci para que Teri Garr conhecesse os trópicos que tanto desejava e fantasiava. Nada de mal em sair das suas raízes e ir ao encontro daquilo que o Mundo (ainda) tem para oferecer, uma mulher que após a sua efêmera libertação ecoa no libertário da sua emoção. É previsível que seja este o Papel de Teri Garr, a da rapariga de mala pronta, e estrada afora ao encontro da sua luz, como disseram e repetem desalmadamente, “this one’s from the heart”, e é … Contudo, não poderia fechar este “texto-homenagem” (ou lá o que seja) com a invocação da sua perdição numa Nova-Iorque fora-de-horas em “After Hours” de Scorsese, outra daquelas obras-primas dificilmente relembradas. 

Teri Garr (1944 - 2024)

Coppola sonha, a obra nasce ... como amar ou odiar "Megalopolis"?

Hugo Gomes, 16.10.24

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Coppola, a eterna ‘criança’ …

É um realizador em constante experimento, e como tal, em terras de Hollywood sob a lei da bala e da indústria, os ventos não lhe sopram favoravelmente. Francis Ford Coppola, hoje uma figura tanto magnânima quanto marginalizada  — seja pelo seu desalinhamento com o sistema vigente, seja pela falta de imediatismo com que se relaciona com os novos cinéfilos - tornou-se ao longo destes anos num seminário-vivo para com a formação das nossas cinefilias, quer pelos seus trunfos em jeito de risco ou dos seus riscos que somam trunfos. De “The Godfather” a “Apocalypse Now”, consensos hoje tidos o qual se encostam “Drácula de Bram Stoker” e o ainda pouco referido “The Conversation”, escolas filmadas em película que primaram e estabeleceram um código interno de sério filme de prestígio dentro dessa linha de montagem hollywoodiana. 

Infelizmente nem a fluvialidade é de boas correntes, os fracassos amontoaram numa pilha mais elevada que as flores e os elogios, Coppola, “aluno” das escolas de Corman [“Dementia 13”, 1963], reinventou-se e reinventou-se - não apenas como resposta à sua sobrevivência na indústria que o havia apadrinhado, como também servindo de chocalho para a sua “criança interior”. “Megalopolis”, o seu mais recente produto de “vaidade”, é essa brincadeira: a de alguém que, tal como uma criança, "brinca" com os formatos e as possibilidades, alheio às convenções do mundo em seu redor.

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Utopia megalómana …

Nesse paleio de uma distopia futurista, uma Nova-Iorque possuída pelo anacronismo do Império Romano, que anseia por uma unificador político-sócio-cultural - uma utopia portanto. Marca-se a ingenuidade discursiva de Coppola em querer encontrar uma solução matemática às fragilidades deste mundo, onde classe, poder e populismo formam um triângulo simbiótico cada vez mais predominante. Nota-se aí o seu calcanhar de Aquiles: a de uma inocência quase pragmática que, ao mesmo tempo que tenta consolidar-se, revela-se incapaz de comunicar eficazmente com as novas audiências e até mesmo com as ‘velhas’ embebidas das antigas fragrâncias da ambiguidade de Nova Hollywood, o qual Coppola teve sempre um pé assente e outro num fora inclassificável. 

Megalopolis” não estabelece qualquer arrojo na sua política forma de hablar — ou talvez sejamos nós demasiado cínicos ou comprometedores para compreendermos esta sua mensagem, ou que fazer com ela. O que mais irrequieta em “Megalopolis” é a sua tremenda ambição, um projeto idealizado anos e anos, embrionário desde os tempos em que Coppola invejava a sua ideia de “Cinema Ao Vivo” e do fracasso ruinoso que “One From the Heart” (1981) se tornaria. Aí era uma “semetezinha”, sobretudo conceptual.

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Uma terceira juventude …

Foram precisos outros quantos, e bastante, anos, para que o realizador, empurrado para fora do círculo de confiança da indústria desde o fracasso de “Supernova” (2000) — um filme de ficção científica que recusou assinar —, seguisse para uma nova vida, ou melhor, entrasse numa "Segunda Juventude" (“Youth Without Youth”, 2007), culminando no auge da experimentação com “Twixt” (2011), até que finalmente pudesse concretizar este seu sonho. Como era de esperar, o delírio, se assim o podemos chamar, exigiria centenas de milhões para ser "materializado", e como era igualmente previsível, as majors não arriscariam tal investimento.

Persistência, carolice ou mera paixão, Coppola vendeu grande parte do seu património para que pudesse auto-financiar “Megalopolis”, dando acesso a um elenco mais variado, pelo menos conseguiu recrutar alguns “atores malditos” destas andanças; seja Jon Voight em versão “Trumpiana”, um Shia LaBeouf histriônico e arraçado ou até mesmo um aceno de Dustin Hoffman, com liderança de Adam Driver, um “furacão humano” que tem sido apontado como avatar para projetos megalómanos ou febrilmente desejáveis dos seus criadores (Ferrari”, “The Man Who Killed Don Quixote), ou de uma adocicada Nathalie Emmanuel a servir de “papel de parede”, e sem esquecer da one-woman-show de Audrey Plaza. 

A rodagem, segundo os “relatórios” de imprensa, foi um tremendo caos (como o cineasta não estivesse habituado a isso), o departamento artístico referia Coppola como instável, mas enfim, o porquê de julgá-lo tendo o Poder (leia-se liberdade total) da produção toda na sua mão, contrariando o conceito utópico que o filme propõe. Os boatos, esses que alimentam Hollywood de uma ponta à outra, sendo verdadeiros ou não, comprovaram os constantes atrasos de produção, e após a longa espera, apenas em 2024, “Megalopolis” viu por fim a luz do dia … ou, mais precisamente, a luz do projetor. 

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Mas o que é “Megalopolis”?

Não se trata do que é, nem do que aspira a ser, mas sim do que poderá vir a ser. O Tempo, controlo dotado pela personagem César Catilina de Adam Driver — um arquiteto agraciado pela luz do talento e pelo visionarismo — pára, acelera, metamorfoseia-o ou distorce-o. Um messias de vestes brancas e quase "muskiano", não fosse o seu amor pelo progresso e pela harmonia humana a contradizer o verdadeiro, expressos num discurso à láThe Great Dictator de Chaplin, unindo os anteriores três atos ao Novo Mundo ali "descoberto" numa esquina. Neste sentido, e para quem depende inteiramente do guião da “branquitude a ser atirada vala abaixo” (o filme é mais do que essas questões o qual querem colar), “Megalopolis” afronta o idealismo que as grandes produtoras, em grande parte, assumiram como rota de mercado, nesse aspecto, Coppola induz um filme fora do seu tempo, numa dimensão que vai além daquilo que é meramente visual.

Como havia mencionado, a ingenuidade discursiva de Coppola em “Megalopolis” joga mais contra do que a seu favor, mas é por aqui que a ‘coisa’ mais banalizada estagna, o restante … coloquem os cintos … é de uma estranheza confrontadora. Portanto, fica a questão, podemos amar a imperfeição, mesmo que a pregação seja o oposto?

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O sentimento ‘megalopolitano’ …

A “criança” em Coppola é então libertada, brinca-se com os visuais, as telas e com os split-screens, encanta-se no CGI que se quer visível e não dissimulado, na montagem delirante, em transe imediato ou nas multi-performances, dentro e fora do ecrã, o cinema imersivo, o cinema interiorizado, o cinema político (o seu ato de existência é … em todo o caso, político) e sobretudo as réstias do seu “cinema ao vivo” (a primeira disputa oratória entre Driver e o seu rival político Giancarlo Esposito expõe o funcionamento desse sistema de captação e performance direta). O resultado soa-nos uma bizarria visual-sonora, mas há nesta entropia uma espécie de cápsula espaço-temporal do cinema de um homem só com o seu legado, os seus pensamentos e a sua relação com esta arte, condensados numa única obra, para que o futuro a possa ver e bem tratar.

Talvez seja precisamente por isso que, enquanto audiências contemporâneas, não conseguimos o amar automaticamente, não estamos preparados para despedir-nos das nossas amarras narrativas, temáticas ou das nossas expectativas sobre o que a arte deve ser e para quem dirigida, como o protagonista, arrogante deveras (mas, por vezes, a humildade esconde uma arrogância maior do que a própria arrogância), que negoceia por um mundo em pleno contacto com todas as suas partes. O adeus a individualismos e identidades destacadas; e um olá ao coletivo humano. Reconheço o quão indigesta essa moral pode ser, visto que, como acredita o cineasta palestino Elia Suleiman, utopias são fabricações, fantasias quase dogmáticas. Somos demasiado egocêntricos e antropocêntricos para nos rendermos a coletividades.

Daqui a uns anos voltaremos a falar de “Megalopolis” … vai uma ‘apostinha’?

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When does an empire die? Does it collapse in one terrible moment? No, no... But there comes a time when its people no longer believe in it."

Estes filmes não são para o público nem para a crítica ... de hoje!

Hugo Gomes, 10.10.24

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A Internet, hoje, é uma ferramenta que amplifica sensações ou transforma-as em campanhas que, por sua vez, se convertem em algoritmos (e autênticas calúnias em forma de reels ou tweets para conduzir uma opinião generalizada). “Joker: Folie à Deux” e “Megalopolis” são vítimas dessas traduções binárias, sendo que um deles é mais afetado que o outro. 

Neste caso, o apelo de um filme no universo dos super-herois não se traduz, de forma alguma, na conversão desses códigos. Inicialmente, isso atraiu milhões de adultos, que, segundo um recente artigo da “The Economist”, progressivamente mais infantilizados pela (não só!) hegemonia da cultura popular (e isso, desculpem, tem como consequências nas respectivas escolhas sócio-políticas), o qual sentem-se “enganados” pela artimanha de Todd Phillips, um realizador que, após esta sequela, merece um lugar terno na cinefilia. Jogou à roleta russa com o público mainstream, subverteu as expectativas que geram consensos e, como um escudo de Perseu, fez com que a Medusa — neste caso, o público-alvo desse tipo de filmes — olhasse para o seu próprio reflexo.

Até mesmo a escolha do musical, que reforça o seu papel fundamental na Hollywood clássica, servindo como um escape à realidade do nosso mundo, é utilizada como um obstáculo ao paladar (o género que ficou obsoleto e o senso comum o maltratou com honras ao preconceito). Este é um filme que requer um desafio, não no sentido de gostar (um conceito binário), mas de o reconhecer e refletir sobre ele. O público possui essa consciência, ou não-consciência, enquanto a crítica de cinema, por outro lado, detém uma responsabilidade diferente: o de não ceder à vontade popular em prol de uma subsistência profissional (o que não tem acontecido). Isso aplica-se igualmente a “Megalopolis”, que não é filme de público, quer dizer não o deste, possivelmente a do futuro, mas possivelmente para o futuro. 

No entanto, a crítica, principalmente a yankee, reduziu-se a “julgar” os filmes com um primitivismo mercantil. Falta-lhe profundidade de pensamento, limitando-se a percentagens de Rotten Tomatoes ou a classificações que carecem de sentido crítico. Portanto, consensos não fazem parte do meu cardápio e, possivelmente, morrerão daqui há alguns anos. A crítica que sobrevive deverá ser ousada, fundamentada e nunca vergada à dominação da cultura popular, nem que para isso sacrifique o seu imediatismo (“mas quem sou eu para dar lições de moral”, pensarão muitos de vocês).

Com isto afirmo sem medos, são dois grandes e incompreendidos filmes americanos estão a surgir nesta rentrée... e o seu insucesso é um bom sinal para o futuro.

Hollywood cantaria se soubesse cantar ... "One From the Heart", o sonho incompreendido

Hugo Gomes, 05.07.24

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If I could sing, I'd sing. I can't sing, Frannie!

Há uma pequena cena, daquelas que importância alguma têm para com o filme ou para com o seu discurso interior, na qual Hank (Frederic Forrest) lamenta ao seu comparsa de todos os sarilhos, Moe (Harry Dean Stanton), de que as “mulheres verdadeiramente não compreendem os homens”, enquanto vagueia pelas movimentadas ruas deste oásis babilónico que é Las Vegas, à procura da sua mais recente tentação. Parte dessa citação encontra-se na “mulher” indicada na confissão como uma entidade vaga, sem sexo nem orientação, e no homem, aquele com "h" pequeno para não se confundir com a espécie, premonição de um “homem incompreendido”, que se dá pelo nome de Francis Ford Coppola. O filme, para quem ainda não o conhece - a sequência retratada nada esclarece - é “One from the Heart”, hoje descrito pelo desastre que o envolveu, historiografado incessantemente até se tornar numa lenda, uma profecia amaldiçoada.

Julgo não valer a pena descrever esse mito de fiasco, lágrimas e desesperos, sonhos empobrecidos, daí dar origem a esse homem que poucos ou ninguém compreende. Mas cá vai um pouco de contexto: “One from the Heart” foi uma visão declarada do autor, um cineasta convencido de estar na penúria com o seu anterior “Apocalypse Now” - crónica febril da Guerra do Vietname com Joseph Conrad no coração, cuja rodagem, também lendária, custou caro a Coppola, mas foi minimamente compensada pelos elogios da crítica e prémios, como a Palma de Ouro no Festival de Cannes [ex aequo com “The Tin Drum” de Volker Schlöndorff], e alguns Óscares, nomeadamente o de Fotografia com Vittorio Storaro, que também teria um papel fundamental neste “Coração” … mas já lá vamos - adquire os velhos Hollywood General Studio e funda a sua Zoetrope, um delírio em trazer consigo a antiga glória dessa indústria, ou pelo menos uma sequela dessa, contrariando o percurso trazido pela chamada Nova Hollywood auto-declararia o seu óbito em 1980 com o estrondoso fracasso de “Heaven’s Gate” de Michael Cimino.

Tentou-se então o revitalizar o cinema de estúdio, estendendo um convite caloroso a cineastas de todo o mundo (temos conhecimento da também fracassada produção de “Hammet” de Wim Wenders), porém, a ideia de Coppola era impor um novo tipo de cinema, uma experiência que ele próprio auto-intitulou de “Cinema ao Vivo” (bem documentado no seu livro “Cinema ao Vivo e as suas Técnicas”, a tese que ‘sobreviveu’), cujo conceito envolveria a captação e transmissão simultânea das performances em tempo real, através de múltiplas câmaras e edição ao vivo, o que levaria a uma abordagem distinta e narrativa nessas mesmas histórias. 

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Um sonho idealizado, esmagado à primeira tentativa de Storaro - “Francis, porque temos de filmar com tantas câmaras? É tão difícil para mim iluminar. Se usássemos uma só câmara, podia ser muito mais rápido.” [tradução de Luís Lima e Alexandra João Martins]. Acabou por ceder, quebrando completamente a projeção deste “Cinema ao Vivo”, o qual restou apenas um esqueleto sem tendões dessa mesma ideia, o que convém salientar, é belíssimo essa sua “estrutura”.

One from the Heart” não caiu no goto nem da crítica, nem do público, “afundando” espetacularmente e conduzindo, aí sim, à ruína o projeto que era Zoetrope (600 mil dólares rendidos em território americano para 26 milhões em orçamento), um sonho lindo mas agora acordado. O filme, ao longo dos anos, tem sido revisitado e reavaliado até aos dias de hoje, agora sob o signo de “Reprise” (versão editada por Coppola, que pouco difere do original, exceto pelo seu ritmo nos primeiros momentos de filme), do qual é agraciado por uma tremenda consensualidade. Não vou para aqui desfazer consensos alguns, até porque a partilha apaixonada por este refúgio vem a mim desde os tempos de TV genérica, num encontro acidental. 

Anos passaram, agora tendo em conta que foram “a passo de corrida”, e uma característica da obra persistiu na minha memória cinéfila até à sua “desvirginação” em grande ecrã: o de como cada plano se metamorfoseia noutro, ao invés de dar lugar ao sucedido, e como as ações, que têm tanto de terreno como de onírico, partilham a tela numa posição utópica para com a compreensão do espectador. Por um lado, esses são os resquícios do dito “Cinema ao Vivo”, a história a acontecer organicamente, a narrativa a trabalhar como uma espécie de “cadáver esquisito” do momento. E com “Reprise”, explorei a fundo essa memória já longínqua e reencontrei esse filme que não é um filme, mas um truque de ilusão no seu sentido hipnótico e até acercado à nossa consciência.

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One from the Heart” é a simplicidade unida à sua complexidade, uma contradição pois, mas deixem-me explicar: esse simples termo que é o seu enredo, um casal enfadado (o já mencionado Frederic Forrest e Teri Garr, atores reduzidos a estatutos de secundários, mas que com Coppola têm a oportunidade de brilhar) num subúrbio próximo da Cidade do Pecado, a.k.a Las Vegas, cujos néons, a sonoridade constante, os letreiros luminosos com indicação ao vício, paisagens de horizonte apenas opostas ao deserto de saguaros que o rodeia nos seus cantos e recantos. Ele, um mecânico que deseja instalar-se na confortabilidade de uma eventual vida familiar, ela, trabalhando numa agência de viagens, suspira por Bora Bora como outro lugar do mundo. Duas almas dessincronizadas quanto aos seus desejos que se deparam com a cidade que os chama incessantemente enquanto tentação. 

Cada um deles encontrará o seu personalizado carrasco: Raul Julia (ator que deixa saudades, é certo) a servir de bilhete de ida ao paraíso tropical, e Nastassja Kinski, a luxúria com o seu quê de inocência, a “mulher dos desejos” brindado com um lado circense (“If you wanna get rid of a circus girl, all you've gotta do is close your eyes.”). O galã mefistotélico e a sedutora de luxo, perfis vilânicos, porém, a nossa empatia por eles é conquistada. Portanto, é uma história de desencontros, de separação e, por fim, reconciliação, a mais convencional dos enredos hollywoodescos, jornadas pelo coração adentro mantendo-se a grande das epopeias, só que é na sua esquadria, a estética, o pensamento por detrás dela que este musical, com vista ao legado pesado do seu género, se depara com a sua complexa arquitetura. 

Passo, com um suspiro de admiração, pelos cenários de estúdio, em serviência à sua tradição, ergue-se uma Las Vegas replicada, com a sua plasticidade a entender-se com características à sua reprodução. Cenários para fascinar, com cores a condizer e em passagem convidativa, mas é essa estética que funciona como alicerce à narração, por entre raccords a improvisados split-screens, ou sobreimpressões de ações em paralelo, projetado com a funcionalidade do seu cenário ou do espontaneidade, um filme de artesãos e artesanatos, a capacidade de trazer os favoráveis tributos do teatro para essa peça de quotidianos fragmentados e do 4 de Julho faustosamente celebrado. A vida é uma festa, ou melhor, um carnaval, cuja festividade só amplia esse amor, algo saudosista, em trazer o artifício de uma Hollywood, até na altura já entendida como miragem.

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E é através desse “embrulho” que algo que nos soa tão comum, a separação de um casal, adquire o seu tom de espetáculo. A espetacularidade que a trata como o maior conflito humano, até porque como canta a dupla Tom Waits e Crystal Gayle (narradores musicais): “This One’s from the heart” … e é mesmo!

Uma ‘coisa’ que Hollywood nos ensinou é que até as suas derrotas conseguem ser encantadoras.