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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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América, o Império inexistente

Hugo Gomes, 01.02.21

Nomadland-008 Linda May & Frances McDormand c.jpg

Com três longas-metragens no currículo, é de constatar que o grande fascínio da realizadora Chloé Zhao se centra na geografia imensa da América, filmando os seus prados, aparentemente longínquos, que se desvanecem num horizonte incógnito como um adorno paisagístico. Convém afirmar que o seu cinema, que inclui "Songs My Brothers Taught Me" (2015) e "The Rider" (2017), ambos inéditos nos cinemas portugueses, enquanto se aguarda para perceber o que será o seu "Eternals" para o Universo Cinematográfico Marvel, se aproxima a passos largos do registo documental e da sua crueza, um dispositivo natural que nos encaminha para o grande cliché da “alma dos EUA”. Uma frase-feita com conotações político-sociais em que alguns se apoiam, dando a entender (cenário que se agravou desde a última eleição presidencial) que a utopia que une as duas Américas é um projeto cada vez mais distante, vindo de sonhadores alucinados.

Nomadland” é um pouco isso, uma América idealizada distinta daquilo que habitualmente nos vendem, um país que reúne marginalizados, os traídos pelo capitalismo predatório ou pelo “sonho americano” que lhes é induzido desde “pequenos” em jeito de lobotomia. Este é um filme que carrega alternativas para serem testadas (“cientificamente”, aliás), um modo de vida oposto, sem dependências nem afetos que os acorrentam. O nomadismo como estandarte de uma liberdade nunca vivenciada, um conceito a que esta personagem de Frances McDormand se agarra com grande convicção após perder quase tudo no colapso económico americano de 2008-2009, preparando a sua carrinha e partindo pela estrada.

Inspirado no livro “Nomadland: Surviving America in the 21st Century”, de Jessica Bruder, Chloé Zhao marca a sua posição, quer na definição de realismo, separando qualquer simulacro "hollywoodesco" e submetendo McDormand, bem como outros atores, a um convívio de constante aprendizagem com não-atores, as tais pessoas de carne-e-osso que tanto procuramos nos filmes. Trata-se de um processo de criação que funde ficção em território documental e o híbrido daí gerado percorre os trilhos de um "império" deixado ao abandono. Império que aqui não é citado por acaso: remete para a ironia do destino, em que a cidade Empire onde vivia a protagonista, outrora industrializada e habitada, se tornou um endereço postal inexistente.

O que sucedeu aos que lá viviam? Aliás, no que realmente se tornaram em termos identitários? Assim nascem os nómadas, segundo o ponto de vista da protagonista, errantes sem eira nem beira, oriundos de um “não-lugar”, o que não é mais reconhecível, quer a nível civilizacional, quer a nível geográfico. Que vivem de trabalhos temporários em quintas, fábricas ou armazéns da Amazon. Tornaram-se peregrinos, rumando por um “não-lugar”, ou melhor, um conjunto deles. A América com a qual já não se conseguem identificar. A realizadora filma e integra o inóspito da Natureza, das florestas de pedras, dessas que testemunharam o início dos tempos, às pradarias solarengas e ao deserto que guarda memórias de épocas de maior abundância.

Esse “fetiche” que acompanha o percurso ainda verde e promissor da realizadora torna-se um cúmplice emocional da nossa “sem-abrigo”. Em tom de provocação (visto ser o sumo do cinema autoral norte-americano), trata-se da apropriação da América silvestre, que já fora "sequestrada" por Terrence Malick, mas "Nomadland” oferece-nos uma versão feliz desse realizador que anda perdido nas suas indecifráveis montagens e tendenciosos maneirismos.

Chloé Zhao não compete por esse espaço. Ela, através desse olhar, conquistou a sua América. Mas... que América é esta? “Nomadland” fala-nos de marginalizados, dos “invisíveis” que não desejam integrar a sociedade por serem nómadas e da mesma sociedade que não os quer precisamente por causa desse estilo de vida. À luz de eventos recentes, parece-nos que poderia ser uma América que votaria em massa em Donald J. Trump. Poderia e talvez seja. Mas esta também é a América de Obama, aquele país que se autoelogiou de progressista, mas que, por debaixo do seu “tapete”, esconde “impurezas” indesejadas. Esta é a América desprezada e desiludida que levou à guerra "incivil" que hoje vemos naquele país e de que falou Joe Biden no seu primeiro discurso como Presidente.

Nomadland” talvez seja um dos filmes que verdadeiramente retratam esta situação porque não dá espaço a dramaturgias baratas, sejam a da exaltação do "white trash" [lixo branco] ou de panfletos liberais até às suas costuras, mas sim aos excluídos que costumam ser usados de forma demagógica para "lavar" a moral dos outros.

Born in the USA

Hugo Gomes, 24.11.20

Nomadland1.jpg

“Nomadland” ilude-nos à partida, é um retrato da América (essa frase cliché). Mas a questão é saber qual América? Através de uma Frances McDormand despida de qualquer manto ficcional percorremos o profundo do país dos “Pais Fundadores”, escutando relatos de desespero ou de propostas alternativas à escravatura capitalista e observando paisagens inóspitas, outras por vezes abandonadas, em busca de um lugar a quem se possa chamar Lar, esse Império (=Empire) transformado em não-lugar. Esta América, esta mesmo, que caminhamos sem eira nem beira, por trabalhos temporários, na subsistência e dependência da solidariedade dos outros, é a América de Obama. Revelando aqui, subversivamente, o que antecedeu ao triunfo de Trump em 2016. O que fez seguir até o radicalismo. Só que soluções nem vê-las, nem mesmo tal pode acontecer, até por que a postura nómada da personagem de McDormand é uma liberdade insuflada, uma ilusão vendida para crentes.