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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Todo o homem é uma ilha ...

Hugo Gomes, 08.11.24

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Antonina Obrador, aqui na sua primeira longa-metragem, referiu como influências demarcadas uma rota cinematográfica que vai desde a naturalidade sobrenatural de Apichatpong Weerasethakul ao tempo esculpido com laivos de realismo mágico de Tarkovsky, referências essas, que convergem como uma tendência crescente entre os “nuestros hermanos” nomeadamente o cinema galego com Lois Patiño na lide e Oliver Laxe sempre à espreita. Mas “Quest” é uma obra oceânica que vê em terra firme o Mal, não de um jeito maniqueista induzido pelo fabulismo, mas como elemento da loucura dos homens, isto renegado pelo próprio barqueiro que conduz o nosso protagonista (Enric Auquer) para aquela remota ilha de nome Quest

“O meu lugar é o mar”, referiu esse lobo-marinho perante a questão do seu passageiro quanto às margens detonadas no horizonte. Debruçado nesta local insular, a fauna e a flora detém um tom de mistério para o nosso, e trágico, aventureiro determinado em decifrar, enquanto lida com os espectros do seu passado e alguns truques pregados pela sua mente (supostamente). Nessa sua solidão voluntária, procura por entre frutos silvestres ou plantas de duna, uma flor avermelhada, que segundo as lendas que lhe chegam, florescem apenas uma vez na vida, como prenúncio de uma Lua Vermelha (coincidente com o tal Lois Patiño?), e por sua vez, apontando para uma gruta mágica, novamente constando, uma fonte de água fresca que sacia o arrependimento e condena para toda a eternidade a sede daqueles que não se filiam a tais sentimentos. 

Obrador faz desta terra, deste protagonista, desta história, deste testemunho de tempo infinito num recreio de “faz-de-conta” e conduz sobretudo o olhar do espectador à sua descrença, confrontando-a, desafiando-a e a relegando-a para segundo plano. “Quest” faz parte desses filmes que aproveitam o seu espaço e o seu cenário [a povoada ilha de Maiorca] como uma outra realidade, uma mágica intenção de visionar, procurando presenças onde elas parecem não existir. Faz isso, sem recurso ao facilitismo das técnicas em vigor do mercado e das indústrias, respeitando, claramente que sim, a interpretação do espectador, a sua imaginação e a sua inteligência, porque convém ressaltar, expandir a sua razão para o elo fantasioso é uma marca dessa capacidade sapiente. 

É um “know how” entendido e de misticismo aguçado, e igualmente compreensivo, ou talvez cúmplice desse isolamento vertiginosamente degradante, nesses termos existe uma lição  — nunca afirmada como tal — de Jean-Daniel Pollet (1936 - 2004), cineasta francês que tão bem condensou esse sentimento de soledade, e o trabalho nessa solidão e as suas consequências mentais com reflexo à fisicalidade dos seus agentes (“La Horla”, “Tu imagines Robinson”). Obrador soube tratar desses ensinamentos como ninguém e com as lições todas "estudadazinhas", a existência dos solitários como uma presença cristalizada, de suspensão à sua própria vivência ("Pode-se estar vivo sem estar vivo? Existir sem mudar ou morrer?"). Sabendo que o ser humano é naturalmente um ser só, é mau presságio para o conceito de sociedade. 

 

“Quest” está disponível na Filmin de dia 07 de novembro a 07 de dezembro, o filme integra a programação do festival online Atlàntida Mallorca Film Festival

Até ao último golpe ...

Hugo Gomes, 21.08.24

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"Scorched Earth" (2024)

Há qualquer ‘coisa’ de antiquado nestas duas obras da prometida trilogia de Trojan. Uma antiguidade trazida até nós sob um rol de lágrimas de saudade, ou como os italianos proclamam, nostalgia. Já não existem thrillers com este ADN! Estão praticamente extintos, e até mesmo - com base na sua constante comparação - Michael Mann, parece ter esquecido de como os fazer. 

Chega a Portugal, através da The Stone and the Plot, uma estreia quase simultânea dos dois primeiros capítulos de Thomas Arslan, realizador alemão que no circuito da distribuição portuguesa o conhecemos nas paradas do false-western com Nina Ross incluída (“Gold”, 2013), em tempos que se prosseguia enquanto “musa” de Christian Petzold (o “colega” de Arslan, que juntamente com Angela Shellac, compõem uma imposta vaga cinematográfica alemã - “A Nova Escola de Berlim”).

Mas voltando a Trojan … Mas quem é esse “Cavalo de Troia”? Apenas basta contemplar os primeiros minutos de “In the Shadows” ("Nas Sombras", 2010), e refiro em contemplar, porque é isso mesmo que exercemos neste thriller. Deixamo-nos cercados pela ambiência daquela Berlim noturna, quase deserta e deixada ao “Deus-dará”, e apercebemos através de uma “infiltração”, que Trojan não é mais que um engenhoso artesão do crime, o indivíduo predileto para qualquer golpe, e aí, após sair da prisão, persegue quem lhe deve e avança no estratagema seguinte. Interpretado por Misel Maticevic, Trojan soa-nos uma figura retirada da caderneta de Mann, uma mistura de James Caan com um Robert De Niro amargurado. Homem de poucas palavras, ação economizadora, detido por um código de honra apenas equiparado à sua sobre-precaução. A liberdade não é sinónima de redenção, portanto, é procurar um novo “trabalho”, algo que lhe proporciona vida sem conduta alguma, sem compromissos sociais nem calabouços afetivos. 

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"In the Shadows" (2010)

Arslan é apaixonado pelo cinema de género norte-americano, não apenas o western do seu ensaio dourado que o evidencia, mas nestas paradas, reportando o romantismo dessa clandestinidade integrada nas personagens num conceito-cápsula de um neo-noir contemporâneo. Essa tal noite que parece abundar, e até mesmo o dia filmado sem nenhuma radiosidade, é a nocturnidade que se vende à soturnidade, e por si só ao laconismo da personagem que mote dá a “In the Shadows”, um autêntico aspersor, espalhando a sua aura ao longo da narrativa. Filme de fugas, de calculismos e de cauções. Crime manniano que nos oferece um pontapé de arranque para uma história de homens frios e desadequados.

Seguindo com “Scorched Earth” ("Terra Queimada"), Arslan mantém-se na palavra definidora da “prequela”, noite e ação sem grandes estrilhos. Nesta segunda parte, catorze anos depois (e isso nota-se na personagem de Trojan), continua-se como porto-seguro para os elementos que enraizaram em “In the Shadows”. Se procuram crime frenético ou do estiloso encanto, podem esquecer automaticamente. O que vemos, e o que se preserva é a sua contemplatividade. Trojan feito para mais um “heist” relatado sob paciente cadência e sem espectáculos gratuitos, confidencia-se para com o espectador essa aliança sombria. Tornamo-nos cúmplices, não em pactuar com o “criminoso”, mas em nunca encorajar a sua retirada em cena. 

O filme prende nesse tom, a tonalidade de um último golpe … talvez? Como também são as “fisgas” para que seja bem sucedido num “trabalho de quadros” com antagónicas trafulhices que funcionarão como conflitos. Por sua vez, é o filme em que Arslan cede, ou encaminha a audiência a tentar descodificar a humanidade por trás de Trojan, apontando constantes fugas para aquela fura-vida a que chama de existência. Sem “falinhas mansas” ou floreados morais, a noite novamente como manto de segredos e de atos de discreta violência, ao segundo filme se continua romântico na forma como este mundo nos colide.

Aguardemos o terceiro, e possível, final desta demanda sombria …

 

* "Nas Sombras" está disponível na plataforma Filmin [ver aqui], enquanto que "Terra Queimada" encontra-se em exibição nos cinema selecionados [consulte aqui].

Porque estacionar em Lisboa é uma *bitch*

Hugo Gomes, 20.09.23

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Indiscutivelmente, (tentar) estacionar no bairro de Campo de Ourique é um pesadelo que por si só adquire contornos burlescos. Em “Vórtice”, curta-metragem de Guilherme Branquinho, é quase uma instalação dessa situação quase dantesca, uma escadaria de Penrose, em que numa noite qualquer, o descanso 'merecido' é adiado por um constante rodopio quarteirão acima, quarteirão abaixo. Trata-se de um exercício que condiz com a sua duração (15 minutos e chega bem), onde o espanto conduz de forma fluída, nunca 'escondendo' o jogo, nem nunca revelando o baralho na sua totalidade, mas entendendo do que está em cima da mesa, e com isso mantendo refém a atenção do espectador num artifício de fácil codificação e difícil explicação. Metafísica, quântica, ou somente a 'piada' recorrente transformada em episódio “Twilight Zone”, expondo um know-how convincente, se não fossem também as peças devidamente encaixadas.

Narrativamente estamos conversados, quanto à atmosfera nem há para muito discutir, é um desespero paranoico, ensurdecedor perante o silêncio habitual da madrugada naquela 'witching hour' (julgo que por cá chamamos “hora da bruxa”, não tenho a certeza), e no seu centro, ou melhor, vórtice, Cristóvão Campos, ator que nos últimos tempos tem tão bem exposto uma angústia vertiginosa sem perder um pio ao identificável (fora do Pôr-do-Sol”, devidamente satírico, há que espreitá-lo em “Revolta” de Tiago R. Santos para perceber do que falo).

Quanto à curta, poderão vê-la na Filmin aqui.

O "bom" populista?

Hugo Gomes, 31.03.23

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Após a saída do visionamento de imprensa de “La Straneza”, decidi rever aquele que é possivelmente mais interessante dos filmes de Roberto Andó, realizador italiano de altos e baixos, mas que se mantém coerentemente numa certa tradição de crónica política. O filme em questão intitula-se “Viva La Libertà”, apresentado em 2013 (e com honras de abrir a Festa do Cinema Italiano do seguinte ano), era na altura vista como uma comédia de farsas e dotado de tamanha ingenuidade, porém, esse dito lado inocente adquiriu ao longo destes anos um outro tom, até porque “populismo” entrou fortemente no nosso vocabulário e hoje é uma reflexão sem causa nem efeito.

Viva La Libertà" aposta numa dupla interpretação de Toni Servillo (o ator celebrado sob a luz de Paolo Sorrentino, e que pouco a pouco se lançava em projetos díspares a esse mesmo universo, muitas vezes trazendo resquícios destes consigo), aqui encabeça gémeos, de um lado, um líder político vencido por uma crise existencial, e por outro, um filósofo delirante recém-saído de um hospício. Quando o primeiro “desaparece”, possivelmente em “busca” da sua “Grande Beleza”, o segundo toma o seu lugar, e a sua imprevisível natureza eleva o seu partido, anteriormente em estado de decadência, num dos fortes candidatos a governo em Itália. Isto porque o "irmão louco” faz política de afetos, de “verdades” e lança de cabeça para a consensualidade do seu eleitor e não o oposto, aqui abandona a ideologia e disfarça esse vazio com o “bem da vontade do povo-freguês". Digamos que por aqui paira uma certa sombra à lá Silvio Berlusconi (curiosamente, Servillo iria ser o incontornável ministro numa falsa-biopic assinado pelo seu "compincha" Sorrentino, em 2018), nessa jogada politizada de aproximação com as populações, recorrendo à incoerência discursiva equivalendo-a gestos humanizados e identificadores.

Ao sabor da sua estreia, “Viva la Libertà” seria encarado como um exercício recorrente à velha fórmula de “troca de papéis" sob um cenário de política (o equivalente italiano e menos simplista de “Dave” de Ivan Reitman), onde facilmente caímos que "nem tordos" na valsa do impostor. Hoje, com tantos peões populistas a acenarem à liderança da contemporaneidade do discurso político, prometendo fundos e mundos em diálogos vazios, aquelas “verdades” que muitos juram ouvir e que não passam de delírios provenientes de um “povo” cansado dos mesmos truques, acabando por “cair” em outros velhos truques, "lobos em vestes de cordeiro". Contudo, talvez influenciado por estas mudanças repentinas na esfera política, Roberto Andó inconscientemente incentivou o debate: será que existem bons populistas, ou tudo se resumo no fruto das nossas próprias convicções?

Andreas Fontana: "A violência do “Azor” está fora do campo do filme. Distanciado, sim, só que não ausente."

Hugo Gomes, 24.11.22

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"Azor" (2021)

Na gíria bancária, “azor” significa “cuidado com o que dizes”, é uma palavra embalada num castrador silêncio funcionando simultaneamente como um aviso e ameaça perante as aventuras em territórios obscuros. E é com “azor” na mente e secretamente mencionado por quem bem ou mal lhe deseja, que Yvan De Wiel (Fabrizio Rongione, ator ambientado ao cinema dos Dardennes), um banqueiro privado genebrino, parte para Buenos Aires, Argentina, no trilho deixado pelo seu misteriosamente desaparecido colega, a fim de reconectar as ligações e os negócios estabelecidos com os seus clientes. Aí “mergulhará” num mundo de promiscuidades onde os vários poderes encontram-se diluídos num só monopólio. O dinheiro e o poder são religiões monoteístas, e a ignorância é uma bênção em climas ditatoriais. 

Azor”, primeira longa-metragem do suíço Andreas Fontana, marcou presença na edição de 2021 da Berlinale na secção Encounters, um thriller assombroso que tece um universo que bem poderia ser extraído dos enésimos “filmes sobre Máfia” ou dos gestos calculados e maturados de Costa-Gavras. Aqui, nesta Argentina dos anos 80, sem nunca condicionar a um evento histórico preciso, o silêncio é de ouro e a meticulosidade poderá garantir a nossa sobrevivência nesta descida ao inferno capital. 

Ao sabor da estreia mundial no festival berlinense, conversei com o realizador sobre esta sua obra e o que mais o fascinou neste território desconhecido e “conquistado”. Fontana falou das suas raízes como incentivo à concepção de “Azor” e também de uma violência que, como tudo no filme, goza da ausência. 

Curioso, que a sua anterior obra [a curta-metragem “Pedro M. 1981”] lidava com a busca de um “personagem” desaparecido. Volta com “Azor” com o mesmo registo, no trilho de alguém em parte incerta, estamos perante a sua “imagem de marca”?

O “Pedro M, 1981” como o “Azor” lidam com a ausência de pessoas como motor narrativo, é o elo de ligação entre ambas as obras, apesar do desaparecimento no “Azor” ter uma ressonância política. Trata-se de um recurso que me agrada, essa, da personagem-ausente, que é verdadeiramente estimulante porque o espectador acaba por projetar nessa ausência uma imagem idealizada, ao contrário da mecânica da personagem em questão, qualquer uma poderia preencher aquele "desaparecimento". No caso do Azor, aquele banqueiro é uma personagem invariável, a sua ausência surge de maneira distinta para qualquer personagem, resultado da adaptação do mesmo aos desejos dos demais, tornando difícil a sua decifração. Por outro lado, essa ferramenta é um íman ao interesse do espectador, porque esta identidade desconhecida alimenta a curiosidade do mesmo, logo é sinónimo de fidelidade para com a narrativa. 

Nas suas notas de intenção refere “Azor” como uma alusão a história de “Conquistadores”, bem sabendo que a descolonização é uma discussão recorrente nos dias de hoje, gostaria que me explicasse o uso desse termo ao indicar a sua obra. Temos uma alegoria ao colonialismo moderno? Já agora, tendo em conta o seu filme, continuamos [nós europeus] a olhar para o Novo Mundo numa perspetiva colonial?

Primeiro, devo dizer que não sou um teórico nem acadêmico para aprofundar a questão colonialista. Referia ao termo “Conquistador” num prisma literário. Obviamente que se é uma figura de forte conotação política e histórica, mas também reserva uma aura literária fortíssima. Os “conquistadores” deixavam diários sobre as suas conquistas, o qual tracei paralelo com os do banqueiro e as suas determinantes viagens. Suponho que eles, nas suas saídas profissionais, têm como objetivo “conquistar” um terreno, uma pessoa, uma posse, sejam “territórios virgens" ou propriedades de outros. Esses banqueiros a que refiro não são aqueles que se encontram sentados num balcão aguardando o depósito dos clientes. Nada disso, para estes banqueiros, esse estilo de vida é ofensivo, eles viajam de forma a angariar clientes e fundos, daí o termo “conquistadores”. 

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Andreas Fontana

Quanto ao colonialismo em si, há um grande debate, porém, na Suíça existe uma realidade bem distinta, um mundo de bancos e alta-finança que partem por este mundo fora ao encontro dos mais cobiçados clientes. Julgo que temos aqui uma espécie de neo-colonialismo, porque muitas destas “instituições” possuem ligações ou financiamento a organizações militares que desbravam novos territórios para si. Na Argentina, encontramos muitos sectores que pertencem a investidores que não são argentinos, muitos deles são ingleses ou até mesmo suíços. Em questão de energia nuclear ou farmacêutica são principalmente suíços. 

É sabido que o seu avô foi banqueiro privado, ou seja, direta ou indiretamente está habituado a este universo. Foi daí que surgiu a inspiração para este “Azor” e até diria, interesse?

Para dizer a verdade, não sei se o meu interesse por esta história vem com as minhas raízes, como bem disseste, o facto do meu avô ter sido banqueiro privado, ou de que com este "background" me sentia legitimado para abordar e materializar este universo no grande ecrã, visto ser um tema complexo, ambicioso e difícil. Não creio na questão de sangue, mas sim na questão de herança, diria até simbolicamente nesse sentido. E a herança não é só apenas dinheiro e direito, é também toda uma temática do “não-dito”. Sinto, como muitos da minha geração, uma vontade de falar sobre ‘coisas’ que simplesmente não nos queriam falar. 

E o facto de ter um avô banqueiro também facilitou a minha entrada neste mundo e na minha pesquisa sobre bancos suíços e até mesmo em relação à Argentina. É bizarro, mas a Argentina tem um enorme fascínio pela Suíça, país, que segundo eles, é uma representação da perfeição a todos os níveis.

Deixou claro nas suas “notas” de que a Argentina que reconstitui no seu filme, é uma Argentina sem contexto histórico próprio, não inserida em nenhum período concreto. Mesmo a menção da década de ‘80, esta Argentina poderia ser a de ontem como a de quarenta anos atrás. Há algo de “não-lugar” neste retrato de Buenos Aires?

Estou a perceber a lógica e o uso do “não-lugar”, mas não acredito seja o caso deste filme, diria até que este lugar é esfarrapado e distorcido. Vivi em Buenos Aires por vários anos, e quando chegava à cidade tinha uma sensação de entrar numa cidade europeia, dotado de semelhanças evidentes. Contudo, não me sentia genuinamente numa, e esse dilema interno atribuía ao lugar um efeito algo abstracto. É um sentimento difícil de explicar, mas é de que aquele cenário não fosse realmente aquilo que via, era uma miragem, ou até meio embusteira, a de uma cidade europeia que nada de identidade europeia possuía. E não apenas na questão identitária, como também social e política. Tentei mostrar no meu filme todo um universo composto, elitista, bem-educado, e em certo jeito, harmonioso, em oposição a um presente sentimento de violência, como se espreitasse, mas nunca assumisse visualmente. A violência do “Azor” está fora do campo do filme. Distanciado, sim, só que não ausente. 

Para tentar recriar esse sentimento vivido para com a cidade, aventurei-me na concepção de uma cidade minimalista, sempre em contraste e em inconstância. Porém, é bastante difícil posicionar “Azor” num período histórico em concreto.

Nesse constante ambiente de ameaça de que fala, devo sublinhar que a música de Paul Courlet tem um papel fundamental aí.

Sim. O trabalho com a música foi muito intuitivo. No meu último trabalho [“Pedro M. 1981”] não tive essa preocupação, porque pretendia focar no som ambiente e na música em diegese, mas aqui senti a necessidade de criar um ambiente, de instalar o filme num género. Portanto, abordei Paul Courlet, que é um músico que admiro e o qual senti que fosse capaz de transportar “o seu mundo” para um filme, sobre uma possível colaboração … devo dizer que ele não trabalhava para o cinema, “Azor” foi a sua inaugurada experiência no ramo. Pedi simplesmente que me enviasse “coisas”, trabalhos seus e daí tentaria idealizar uma atmosfera, sintonizando um ambiente. Respondeu-me ao pedido, e a partir daí iniciou-se um exercício conjunto de como aquelas partituras musicais pudessem dialogar com o filme ou meramente o oposto. 

Courlet falava de como a música teria que assumir de forma interior em relação ao filme para que não fosse destacadamente notada, assim integraria por completo a obra como um só corpo. Curiosamente, pretendia o contrário, uma música exterior ao filme, como havia falado, que pudesse emanar uma atmosfera e ao mesmo tempo sugerir uma violência que não veríamos, de modo algum, no ecrã. Penso que funcionou às mil maravilhas. 

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"Azor" (2021)

Ao ver “Azor” ficamos com a sensação, e por vários momentos, de estarmos perante a uma variação do género “mob”, gangster ou “filme de máfia”, como quisermos chamar. Diversas vezes o filme declara-se a esses territórios de um forma resistente e inquietante, mas igualmente conduzindo-se nos exatos códigos. E já agora, destaco as comprometedoras gírias e os códigos secretos que este seu mundo é composto, não devendo nada ao tipo de cinema de que falo. Confessa-se um admirador do género?

Sou uma pessoa cinéfila e tenho um especial carinho, não diria de filmes de máfia, mas da temática mistério. Quanto à questão do código, descobri que o banco é uma tradição oral, desta maneira tem o cuidado em não apresentar provas escritas sobre as transações nem do perfil “discreto” dos clientes, nem deixam notas quanto às suas viagens estritamente profissionais. A principal ferramenta do banqueiro é a sua memória, não deixa rasto nem traços. E essa oralidade incentiva rituais e operações secretas, um mundo nas sombras guiado por esses mesmos códigos. Por isso, essa comparação com a máfia não é uma pura coincidência, há uma convergência desses dois territórios. Também devo salientar que este tipo de ambiência e sugestão na Argentina não é despropositada. A política argentina sempre foi encarada por quem vive lá como um extensivo complot. 

E quantos a novos projetos?

Estou a trabalhar num filme sobre diplomáticos em Genebra. Penso que isto tudo faz parte do meu apelo por estes temas, o de gostar trabalhar com “pessoas discretas” [risos]. Já o escritor Stefan Zweig dizia que os diplomatas são “uma espécie de intelectual pouco investigada, mas a mais perigosa que está ao nosso redor”. Tenho muito interesse em delinear e explorar essa sombra que segue o mundo diplomático. 


O filme estreou em Portugal em abril deste ano, com o selo Legendmain Films. Está disponível no catálogo da Filmin Portugal.

Radu Jude em edição Unrated

Hugo Gomes, 31.08.22

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Bad Luck Banging or Loony Porn (Radu Jude, 2021)

Em “Bad Luck Banging or Loony Porn” (“Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”), a questão não se resume a “mau porno”, ao invés disso, como a atualidade transformou-se em “pornografia rasca”. A mais recente longa-metragem de Radu Jude (cineasta que tem dado cartas na pós-vaga romena e realçando um cinema muito crítico à história do seu país) venceu o Festival de Berlim de 2021 (mesmo que virtual) com distinção, provando além de mais estar ao desencontro do dito radicalismo que muitos querem vender perante o seu formalismo algo tosco, é um cinema que fala na contemporaneidade por vias de uma ridicularização cruel.

O filme inicia assim como um choque frontal. Pornografia explícita e real frente aos nossos olhos, o dispositivo narrativo que culminará toda esta paródia tragicómica de perspetiva quase apocalíptica. Como tal, seguimos a professora Emi (Katia Pascariu), de uma reputada escola, que irá enfrentar o dia mais desafiante da sua vida. Em plena pandemia, ela será sentenciada por um bando de pais raivosos, com a responsabilidade de ditar o seu futuro. O porquê? Porque a nossa protagonista é estrela de um filme de sexo caseiro com o seu marido, que por obra, ainda desconhecida, “cai” na internet à mercê de qualquer um, principalmente dos seus alunos.

Radu Jude não é um nome praticamente desconhecido para os espectadores portugueses, os seus filmes são presença habitual em festivais nacionais, principalmente o Indielisboa  onde conquistou o Grande Prémio com “Aferim!”, em 2015, e “Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental” não foi excepção nessa mesma tradição, garantindo lugar cativo na programação do festival lisboeta de cinema independente em 2021. Foi nesse período e através desse evento para o qual o contactei para falarmos sobre o seu filme. Dessa conversa nasceu uma troca de ideias que para além da sua nova produção, pandemia, Roménia e até mesmo cinema português eram igualmente mencionados.

[Abaixo segue a entrevista, versão integral e completa da publicada no Sapo]

Gostaria de começar por lhe perguntar de onde surgiu a ideia para este filme e ao mesmo tempo questionar se a pandemia teve um papel fundamental na inspiração do projeto?

Na verdade, a ideia veio antes da pandemia, só que a vinda dela me obrigou a adaptar a tal cenário.

Sendo assim, que desafios trouxe a pandemia ao filme?

Influenciou-se de duas maneiras. A primeira foi a adaptação da história ao contexto pandémico e tivemos de alterar alguns pormenores ali e acolá. A outra, talvez a mais importante, esteve relacionada com a segurança e proteção da equipa e do elenco. Quando estávamos a rodar, no final do Verão do ano passado, os casos de COVID estavam a subir e todos nós estávamos preocupados. Tínhamos alguns atores vulneráveis e que solicitavam mais proteção, por isso tive que mudar. Como se pode ver, no último ato de “Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”, a ação era para decorrer numa sala de aula, mas talvez por razões dramáticas, visto que durante a pandemia tais reuniões em sítios fechados não eram recomendados, alteramos a sequência para o ar livre, com distância social e máscaras. E é isso também, o uso das máscaras, não só entre a equipa, mas no filme. Queria captar aquele momento em que vivíamos, a cidade “vestida” nesse medo pandémico. Como tal, as máscaras não só funcionaram como um método de segurança na rodagem, mas também como um marco temporal para o filme.

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Radu Jude na rodagem de "Bad Luck Banging or Loony Porn" (2021)

Teve que lidar com algum caso de anti-máscara na equipa?

Sim, mas... no caso dos anti-máscaras ou anti-vacinas... compreendo que, para se ser rebelde, tem que se quebrar regras, ser contra as autoridades. Apoio totalmente isso... só que, nestes casos, julgo que vão numa direção oposta. Porque ser contra as máscaras é ser contra o outro, a saúde do próximo. Não usar máscara não é só um risco para quem não quer utilizar, mas para os outros, é como ir na autoestrada a 200 km/h, torna-se um perigo, quer para si como para os outros. Nisso não vejo rebelião alguma, mas sim narcisismo e egoísmo. Expus isto à minha equipa e apenas alguns é que resistiram. Claro que custa fazer um filme ou atuar com máscara, rodamos com tempo caloroso e durante várias horas. É normal que torne o processo ainda mais fatigante. Mas há uma diferença entre esse cansaço e o sacrifício que todos nós fazemos para levar a cabo o projeto. Ou seja, todos, de alguma maneira, cedem para pertencer a uma equipa.

No terceiro e último ato do seu “Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”, aquela reunião entre pais e a professora, foi quase como olhar para a atualidade das nossas redes sociais. Ouvimos teorias da conspiração, antissemitismo, racismo, misoginia, homofobia, um conservadorismo prejudicial, entre as outras barbaridades, é como se o Facebook ganhasse um corpo e rosto.

É verdade. Houve um crítico romeno, Andrei Gorzo, que escreveu que se assemelhava a um conflito de Facebook. Penso que têm razão porque baseei-me realmente no tipo de interações e no dito "barulho" de como saltamos de tópico em tópico nas nossas discussões no espaço virtual. É por isso que tento artificializar essa mesma discussão, tratando-a como uma "sitcom" ou uma comédia de arte, afastando do realismo e abraçando a caricatura. É como Picasso disse uma vez sobre as caricaturas, se não são realistas é porque são verdadeiras.

Para ser sincero, não fiquei convicto que essas figuras fossem totalmente caricaturas, por vezes pareceram-me tão … familiares. 

Sim, claro que juntar todas aquelas vozes no mesmo espaço por mais de meia hora seja meio exagerado. Mas hein? Não é isso que são as redes sociais? Agregadores de discursos díspares? Infelizmente, como bem sentes, aqueles discursos podem ser encontrados exatamente daquela maneira.

Há uma frase que não é literalmente citada no seu filme, mas que parece ser constantemente invocada – “Não há revolução, sem revolução sexual”. Tal que foi vezes sem conta mencionada no clássico jugoslavo de Dusan Makavejev, “WR: Os Mistérios do Organismo” (1971), que acredito que tenha sido uma influência para si, principalmente na forma como a sociedade descrita no seu filme lida com o intimismo e o desejo sexual da Mulher.

Antes de mais, temos que ter em conta que existe uma diferença entre países. O que se passa na Roménia é bem diferente do que ocorre na Alemanha, ou do que ocorre na Holanda, ou até mesmo em Portugal. Não existe bem um senso comum na Europa ou Ocidente, como quisermos chamar.

Porém, é verdade que na Roménia estas atitudes sexistas, misóginas, homofóbicas são mais acentuadas que em outras sociedades como aquelas que mencionei … pelo menos em comparação com a Holanda e Alemanha, nisso tenho a certeza. Claro que o Makavejev foi uma influência para mim, e aqui tentei prestar a sua devida homenagem, não sei se reparou, mas a certa altura é possível ouvir parte da banda sonora do “WR: Os Mistérios do Organismo”. E não só Makavejev, mas uma fatia importante do cinema jugoslavo. No meio deste turbilhão de influências também posso garantir que me baseei na Vaga Francesa, desde Rivette a Godard, e “pitadinhas” de literatura modernista, propícias a esta fragmentação narrativa.

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Katia Pascariu em "Bad Luck Banging or Loony Porn" (2021)

Mantendo a questão da sexualidade, gostaria que me falasse sobre aquela primeira sequência.

O filme porno?

Exatamente.

Foi a única cena filmada antes da pandemia. Um mês antes. Tivemos um ator pornografico e a Katia Pascariu o qual devo-lhe todos os elogios. É uma grande atriz, que tem feito bastante teatro independente e político, e que demonstrou zero complexo para com esta sequência. Aliás,a rodagem desta cena foi bastante cómica, e curiosamente o ator porno mostrou-se mais inibido que a Katia

No segundo ato, intitulado “Pequeno Dicionário de Anedotas, Signos e Maravilhas”, quando chegamos à definição da palavra 'Cinema', somos confrontados com a seguinte ideia: “O cinema reflete os horrores do Mundo, os quais estamos demasiados amedrontados para ver na sua realidade”. Isto, entrando numa metáfora alusiva ao mito de Medusa. Gostaria de confrontar esta mesma definição com o seu cinema.

A citação, em si, do contexto da Medusa e do seu olhar para atribuir significado para com a nossa relação com o cinema, foi retirada do livro “Theory of Film”, de Siegfried Kracauer. É uma frase poética, mas que penso não se enquadrar totalmente com a ideia de cinema. No fundo, gosto desse paralelismo com as imagens visualizadas no ecrã para com a mitologia ateniense de Perseus e o seu escudo espelhado, como única forma de olhar para a monstruosa Medusa. Neste caso para os horrores do mundo que os nossos olhos “a nu” são incapazes de lidar. Colocando dessa maneira, são levantadas mais questões do que respostas. Susan Sontag falou disso no seu livro “Regarding the pain of others” [“Diante da Dor dos Outros”], sobre a complexidade e questionabilidade da realidade. A imagem, em si, é questionada consoante a sua natureza. Por isso mesmo, não tenho com isto uma resposta concreta, nem sequer uma solução para permanentes dúvidas sobre a que imagens deveremos assistir, quais as que devemos rejeitar. Se é eticamente correto vermos imagens de horrores ou se as devemos desprezar. Julgo que nós, enquanto Humanidade, teremos uma resposta absoluta para isto.

Mas no seu filme “I Do Not Care If We Go Down in History as Barbarians” (2018), você exibe essas “imagens de horror” com o propósito de captar as reações a elas. 

Sim, é verdade … por vezes mostro “imagens de horrores”. No filme que mencionas não era bem o ato de mostrar, quer dizer era impossível reconstruir um massacre, mas foi uma tentativa com um propósito. Só que sim, é um problema e um interminável dilema. 

Em muita da sua obra, assim como neste filme, critica a Igreja Ortodoxa ...

Não tanto como queria. [risos] Deixe-me só salientar isto: não tenho problema algum com religião. Claro, desde que não apelem à violência. Nem com os crentes, com a fé em geral. Por mim, as pessoas podem acreditar no que quiserem, até mesmo no horóscopo [risos]. O meu problema com a Igreja, a Ortodoxa neste caso, é ela como instituição, que por diversas vezes se associou a movimentos fascistas. Desde a sua origem turbulenta, que levou à criação daquilo que foi comummente designado como “Ku Klux Klan Ortodoxo”, passando pela ditadura comunista, onde a Igreja fez parte do regime, até posteriormente ligar-se ao poder político e difundir sempre uma mensagem racista, homofóbica e aí fora. É neste sentido que estou contra a Igreja. Quer dizer, se fosse simplesmente para cuidar dos seus fiéis não me oporia, mas pelo facto de se assumir como uma força política com ambição de mudar a sociedade não só para crentes, mas para todos nós... não posso apelar a qualquer simpatia por uma instituição destas.

Tendo em conta o tipo de produção que nos chega, nomeadamente a dita Nova Vaga (Cristian Mungiu, Cristi Puiu, Corneliu Porumboiu ou até mesmo você), na qual o podemos incluir, e até, recentemente, pelo documentário “Colectiv”, ficamos com a sensação de que a Roménia é um país terrível para se viver. [risos].

É uma questão demasiado complexa, e tem, obviamente, uma relação de comparação e perspetiva. Por exemplo, se eu vir os filmes de Pedro Costa, a minha primeira impressão é que Portugal é um país horrível para viver. Mas depois assistimos a um Manoel de Oliveira, ou até mesmo ao “Diamantino”, e já não partilhamos essa ideia. A verdade é que os cenários oferecidos pelo cinema não são 100% coerentes. O que acontece é que nós, romenos, sofremos com a comparação. Comparamo-nos com muitos dos países ocidentais e sentimo-nos mal com essa comparação. Sentimo-nos pobres, incultos ou pequenos. Como referiu, um "terrível país para viver”, com imensos problemas, pobreza e maus políticos. Temos muito para resolver, mas equivalente aos nossos problemas, muita boa gente que forma este país.

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Colectiv (Alexander Nanau, 2019)

Mas nem tudo é mau, e voltando à comparação, se fizermos com, talvez, uma Albânia ou uma Ucrânia, reparamos que, na Roménia, possuímos algumas liberdades que faltam a esses países. E poderíamos ser grandes com uma boa direção, com os ditos bons políticos. Mas como dizia, são questões complexas e a culpa não é concreta. Pode ser nossa, como pode ser da União Europeia, sei lá, é simplesmente complicado. E nisso, é para mim, um dos grandes problemas com o "Colectiv, porque o filme praticamente nos diz que o problema vem da velha política e sistema, e que isso pode ser resolvido com a entrada de novos políticos. Como Vlad Voiculescu, que se especulava que teria a possibilidade de alterar o cenário se fosse promovido a ministro da Saúde. Como tal, fica “bem” no filme, mas é bastante ingénuo e simplista. Porque isso aconteceu, esse tipo converteu-se no ministro da Saúde num novo governo no ano passado e o que resultou foi um desastre. Não por ser corrupto, ele não é corrupto, mas por ser um incompetente e narcisista. Obviamente, que a culpa não seja só dele, o sistema é demasiado grande e profundo para ser alterado apenas pela vontade de uma só pessoa. É uma ideia ridícula e ridiculamente inocente. E é esse o meu problema com o “Colectiv”, o de dar a ilusão de que o sistema pode ser combatido por apenas uma pessoa.

Referi “Colectiv”, porque o filme teve uma forte expressão aqui em Portugal. 

Atenção, acho o “Colectiv” um bom filme, nada contra e não estou a menosprezar o seu impacto, só que traz a ideia errada de que algo tão entranhado pode ser mudado com a força quer de um político ou de um jornalista, é mais complicado que isso.  

Se grande parte do cinema romeno que atravessa as fronteiras é um cinema político e contra as forças políticas em atividade, como é a sua relação com elas? Existem boicotes, “censuras” ou impedimentos para que esta visão seja transmitida para o mundo fora?

Na Roménia, o cinema é tão insignificante que não se torna cúmplice do poder local e gere como cresce de uma forma independente. Apesar de existirem certos aspetos, estamos satisfeitos com essa independência que nos garante uma certa liberdade que, novamente voltando à comparação, alguns países não possuem. Por exemplo, a Hungria. Claro, que temos alguns jornalistas, políticos, conservadores e 'influencers' que se revoltam contra o nosso cinema, mas, na minha perspetiva, acho isso ótimo [risos].

Quanto a novos projetos? É sabido que apresentou recentemente em Locarno uma curta experimental.

Bem, tenho dois projetos. O que foi apresentado em Locarno [“Caricaturana”], o outro que será em Veneza [“Plastic Semiotic”]. E estou a trabalhar em mais duas curtas, sobre a história da Roménia e da Europa. Acabei de receber financiamento para um novo filme, que espero começar a rodar já para o próximo ano. Tenho reescrito o guião, será um filme bastante simples mas que sempre tive vontade de concretizar e espero conseguir fazê-lo. Será sobre relações entre indivíduos e grandes empresas.

De que maneira a pandemia o afectou, ou afecta, a si enquanto realizador?

Tirando todos os elementos que abordamos, sinceramente não me afetou de todo. Para mim é como se não tivesse tido confinamento [“lockdown”]. Trabalhei neste filme e fiz muita ‘coisa’ online, incluindo casting, encontros e preparações, como também viajei, mesmo que difícil se tenha tornado. Fui à República Checa e ao Luxemburgo para a correção de cor e a edição de som. Depois entrou a Berlinale, de seguida trabalhei nas minhas curtas, tenho ido aos festivais quando consigo. Para mim é como se não tivesse havido uma pandemia, quer dizer, estava ciente e a minha vida social foi afetada, mas a nível profissional continuei a minha jornada como realizador. Nada mudou na trajetória, só os meios. 

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I Do Not Care If We Go Down in History as Barbarians (2018)

Em Portugal, o cinema saiu bastante afetado com pandemia …

Ah sim, os cinemas … Obviamente que sim, aqui na Roménia também muito do nosso cinema foi afectado e as salas de cinemas. Mas o que posso fazer? Apenas continuo o meu trabalho enquanto posso e pelas suas possibilidades. Resistimos e acredito que o cinema resistirá.

Há pouco citou nomes como Oliveira, Pedro Costa e o filme “Diamantino”, segue ou costuma ver Cinema Português?

Oliveira, Costa, Miguel Gomes, Susana Sousa Dias e … bem, agora está-me a faltar o nome … o realizador do “Comédia de Deus”.

João César Monteiro?

Isso. Gosto de cinema português e sigo aquilo que consigo. Mas do que vi encontro muitas parecenças como cinema romeno, não consigo bem explicar, mas deve ser algo de espírito. Mas não é só de cinema, sou um admirador do Fernando Pessoa, amaria visitar a casa dele aí em Lisboa

Nunca veio a Lisboa?

Não, nunca meti os pés em Portugal. [risos]

Mas os seus filmes são “habituèes” dos festivais de cá, principalmente o Indielisboa, onde o seu “Aferim!” ganhou o prémio principal no certame de 2015. 

Eu sei, e nunca faltou oportunidades para ir aí.

 

* O filme está disponível na Filmin Portugal [ver aqui]

Hoje regressei à Praça de Kiev ...

Hugo Gomes, 24.02.22

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A importância de ver filmes em sala é fundamental! Recordo, 2014, Culturgest, em pleno Doclisboa, "vivi" a revolta civil da praça de Kiev através da câmara wisemaniana de Sergei Loznitsa. Não estive lá e ao mesmo tempo estive. Talvez seja "culpa" da minha atração pelo coletivo, esse imaginário trazido pelo cinema revolucionário e propagandista soviético que desde cedo converteu-se no meu signo cinematográfico, que possibilitou as vibrações resultantes daquela massa humana, ou o timbre de "arrepiar a espinha" com que cantavam, em uníssono, o hino ucraniano. Aquela praça nunca mais foi a mesma. O filme, agora revisto, em pequeno ecrã através da Filmin Portugal, não recuperou essa revivência, essa sintonização com aquelas imagens, com aqueles sons, com qual música de rua, popular e com lugar cativo naquela imensidão. Sim, revi porque a atualidade me colocou aquelas imagens novamente na minha mente. Precisava de captar essas sensações, essa experiência, mas não importa, as imagens estão lá, mas 2014 já passou. Vivemos agora 2022 ... com as incertezas que isso traz.
 
Enquanto isso, repesquei também o meu antigo texto sobre "Maidan" de Loznitsa, escrito após a sua estreia festivaleira em Portugal.

... quando a maior das odisseias nasce dentro de nós.

Hugo Gomes, 14.04.21

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Não se trata aqui da evidência de outra Priscilla, a Rainha do Deserto, mas sim da história de superação (à sua maneira) de Monalisa, aliás, de Iván, dramaturgo e performer chileno que num certo dia partiu para Nova Iorque em busca de um “lugar” que lhe “cabe” por direito.

Mas o porquê de mencionar Iván, visto que o próprio o declara como uma peça do passado longínquo e sem direito, assumindo-se então a fisicalidade e espiritualidade de Monalisa, e com isso resistir para emancipar essa figura como sua fluida identidade? Não será esta invocação do passado, uma desvalorização de todo o ativismo interiorizado da protagonista? Não por uma somente questão de “génese”, nem de afronta à natureza desta, mas foi através do tal heterónimo masculino, repreendido e incompreendido de onde surgiu o arrojo e a coragem para se libertar das amarras sociais que o detém. Para falarmos de Monalisa, devemos abordar e nunca esquecer Iván, e é nele que devo começar por referir, como lagarta antes da crisálida.

O fascínio de Iván pela sua própria identidade, em construção durante a sua vivência no Chile de Pinochet, é o impulsor à sua luta. Entender que não basta dizer-se o que é, há que sê-lo e é no protagonista que deparamos nessa, como parecer soar, excentricidade na constante descoberta do seu ser. E como qualquer excêntrico, a vaidade é um requisito, nesta feita preenchida com a cumplicidade da sua ex-colega de faculdade, Nicole Costa (aqui na sua primeira longa-metragem), que o(a) persegue sob autorização, captando retalhos, confissões e recortes, preenchendo páginas de um diário visual e falado.

Mas se pensam que é a identidade, a transexualidade o tema e o exclusivo tratado desta … digamos viagem … enganam-se, até porque Iván, agora transformada em Monalisa, é um(a) provocador(a) e essa mesma provocação (como todas as provocações dignamente classificadas) não é consensual. Para sermos exatos, Monalisa é uma drag queen convertida ocasionalmente a trabalhadora de sexo, e com isso uma desafiadora do comummente aceite, seja dos ideais defendidos do conservadorismo castrador, seja do muito pensamento libertário (com alas à esquerda em xeque) que continuam a olhar para o território sexual como um manto patriarcal ou um campo de somente desiguais jogos de poder.

Mas como o jugoslavo / sérvio Dusan Makavejev citava no seu (ainda) não consensual “W.R. – Os Mistérios do Organismo” (1971), ecos mais tardes transportados para os recentes trabalhos de José Filipe Costa (“Prazer, Camaradas”) ou do galardoado Radu Jude (“Bad Luck Banging or Loony Porn”), a revolução social não pode acontecer sem a existência de uma revolução sexual. Nesse sentido, e como o sexo ainda é uma disputa na esfera social, política e até cientifica, “A Viagem de Monalisa” valoriza-se pela sua presença em resgatar essas lutas por vias da confiança e expressão do nosso(a/x) protagonista, onde as suas batalhas pessoais (em particularmente contra o sistema binário dos cartões de identidade) são pontos de fuga para que o espectador relacione com os seus dilemas identitários.

E porque há lutas internas a serem desferidas no externo, e assim, vice-versa, esquematizando a maior viagem de todas, a da nossa afirmação, o filme de Nicole Costa parte do intimismo para nos concentrar numa história global. Até certo ponto é a dicotomia Iván / Monalisa, mas no fundo é a universalidade a sua força vectora.

As "canções de amor" de Christophe Honoré ouvem-se do outro lado da rua

Hugo Gomes, 10.06.20

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Ele percorreu 400 quilómetros para chegar a ela. Ele vai atravessar o Canal. Eu, nem consigo atravessar a rua para te ter de volta.”: uma frase de “Welcome – Bem-Vindo”, um filme de Philippe Lioret que passou discretamente nos nossos cinemas em 2009 e lidava com a questão dos migrantes. No centro, estavam os conflitos matrimoniais de uma personagem nativa (Vincent Lindon), que demonstrava admiração pelo rapaz refugiado que a acolhera. Porquê falar desta obra para seguir em frente com o mais recente trabalho de Christophe Honoré? Fácil: em “Chambre 212” é a “pequena” distância, mais relativa do que factual, que se torna no grande antagonista do seu debate interno.

Quando Richard (Benjamin Biolay) descobre que a mulher, Maria (Chiara Mastroianni), tem um caso com um homem bem mais jovem do que ele, o diálogo diplomático é traído com o afastamento. É que Maria saiu de casa e atravessou a rua para ficar hospedada num hotel, um quarto com vista para a sua “vida passada”. A um passo de separar, todo o passado de ambos, por um fenómeno inexplicável, adquire literalmente uma vida própria, confrontando estes dois amantes perdidos no tédio dos 20 anos de matrimónio. É como se o "Conto de Natal" de Charles Dickens encontrasse refúgio nas prosas burguesas de um cinema que tenta desvendar aquilo que as personagens sentem de uma forma intelectualizada.

Por esses toques, “Chambre 212” constrói-se através de um dispositivo fantástico que contagia o enredo e a sua verosimilhança em prol de uma introspecção de relações e tempos precisos. No fim de contas, a distância é novamente protagonista de um desconcerto de corações. Os fantasmas dos amores longínquos (uma ponte feita pelo cada vez mais requisitado Vincent Lacoste), a vontade personificada com sósias de Charles Aznavour e a luxúria materializada nos adúlteros corpos da tentação trazem outra camada a esse dispositivo.

Como fez no seu (ainda imbatível) "Les Chansons d'amour" (2007), Christophe Honoré está de volta ao destino radical como inconvencional noção de felicidade e ao "happy end". Por aqui encontramos os remanescentes do calor artificial desse romantismo parisiense. Um teste para nos fazer acreditar no cinema enquanto ode dos nossos afetos e relações. Ou seja, romantismo à francesa.