A terra que os une
Vilarinho das Furnas (António Campos, 1971)
No auditório da Moagem, em plena reta final dos Encontros Cinematográficos do Fundão, com Raul Domingues a apresentar a sua segunda longa-metragem - “Terra que Marca” (2022), um rugoso e bruto poema bucólico sobre o vínculo gradualmente perdido entre carne [Homem] e terra [Natureza] - e como é “tradição” nestes eventos, é posteriormente proposto um debate após a projeção. Nesse diálogo entre o realizador e o público, dois nomes são constantemente proclamados, citados em forma de comparação, ou simplesmente uma referência a uma herança, quer no olhar cinematográfico, quer na incessante procura neste meio. Os nomes eram Manuela Serra e António Campos, que de tudo têm e nada o possuem, excepto uma ruralidade captada e até mesmo tremeluzidas no progresso o qual muitos vincam, ou desejam vincar.
Domingues abertamente falou dos seus avós como inspirações, os "objetos" de uma resistência em transformar o espaço, a terra neste caso, das suas sujidades convertidas em purezas fabricadas. É a agricultura como domesticação do selvagem, a imprevisibilidade da Natureza, de certa forma cíclica, como uma teimosia por eles decretada. Do outro lado da "barricada", a persistência nunca comovida, com consequências na decadência das mãos ou das pernas marcadas por feridas há muito infligidas, daqueles que enfrentam o esforço contínuo como "trabalhadores de solo". A idade aqui é representada como um iminente fim, não apenas das vidas que a câmara segue em planos pormenorizados, num tremor que se disfarça na naturalidade do seu dia-a-dia, mas também na função de "trabalhar a terra", termo mencionado várias vezes por Domingues.
Na chegada a Manuela Serra, a inspiração das inspirações modernas no que se trata do regresso ao campo, às tradições e ao rural num exotismo cultivado, e como a terra aí desvendada é trabalhada. A realizadora e o seu único filme "O Movimento das Coisas" (1985) serviram de bandeira, incentivo ou a 'palmadinha' nas costas para as seguintes gerações, com câmara em punho e histórias de infância, ou a partir daqueles avós "marginalizados" nos enésimos confins do mundo, desenterrando as raízes da sua portugalidade. A relação Domingues - Serra advém dessa intenção para com a terra e as pessoas que a marcam, no entanto, é entre Serra e Campos que o elo, não aparente, surge-me. “O Movimento das Coisas”, a partida da realizadora à aldeia de Lanheses, em Viana do Castelo, resultou numa cápsula temporal; de pessoas, quotidianos, costumes, tradições ou relevos, à beira da sua extinção, ou meramente ultrapassados, ideia reforçada por aquele plano final no qual Serra lutou para que no filme integrasse. Aí “contemplamos” uma fábrica, a indústria figurada como modernidade, o epílogo de todas aquelas imagens, desde a, hoje quase impraticável, festa da desfolhada.
Terra que Marca (Raul Domingues, 2022)
Campos, por outro lado, dedicou uma parte da sua vida em etnografias estudadas por Jorge Dias (apesar de desviar-se de qualquer designação de “cine-etnógrafo”), na procura destas especificidades, não só remetentes à portugalidade, mas aventurando num país “obscuro”, ora vivacio em praias em ilhas inexistentes [“A Almadraba Atuneira”, 1961], ora em territórios quase inacessíveis do qual se formaram reinos à parte [“Falamos de Rio de Onor”, 1974], ou como é aqui o caso mais evidente, o captar da extinção de um lugar - o “não-lugar” - e consequentemente uma identidade. Realizador de poucos meios - esquecido, sendo nos últimos tempos recuperado (a descatar os esforços da iniciativa a FILMar, promovida pela Cinemateca), e elevado a autor trágico, igualmente único nestas nossas bandas (e não só …) - Campos prosseguiu ao Gerês, em direção a Vilarinho Da Furna, aldeia comunitária secular, atualmente “submersa” na barragem de Vilarinho das Furnas (o plural, por si apropriado pelo título do filme, é entendido como um carrasco a esta identidade). Após ter conhecimento do local e do seu povoado através dos estudos de Dias, o realizador permaneceu um ano na aldeia, sob constante resistência e agressividade, contou ele, por parte dos habitantes que o encaravam como um “infiltrado” do Estado. Ao longo desse período, e tentando conquistar a “boa graça” dos iminentes despejados, registou os costumes e os cantos que futuramente [um ano após a rodagem] seriam “afogados” pelas próprias águas que um dia geraram Vilarinho da Furna. Como se pôde ler na última legenda da obra - “Morreu Vilarinho da Furna sob o manto que lhe deu vida” - enquanto é “contemplado” o paredão cinza e verticalmente sem fim à vista da barragem aí sonhada, projetada e materializada. Este último plano dialoga com o dito plano final da (tal) ambição de Serra, de igual espírito com que a água une os dois documentos - com 14 de anos de diferença entre si.
Em “O Movimento das Coisas” seguimos o fluxo do Rio Lima ao encontro do “paraíso perdido”, enquanto em “Vilarinho das Furnas”, sob a narração do seu trovador local [que eventualmente nos surge no mesmo nível de olhar para com a câmara, subscrevendo a intenção de Campos em nunca superiorizar-se aos demais], somos aludidos à primeira e pequena porção de água gerada pelas figurativas “pedras parideiras” (que pariram Homens e não outros minerais como o fenómeno de Arouca). Aqui estão as rochas que preencheram o cenário que anteriormente albergava a comunidade, paisagens essas, desaparecidas.
O Movimento das Coisas (Manuela Serra, 1985)
Vilarinho das Furnas (António Campos, 1971)
O Movimento das Coisas (Manuela Serra, 1985)
Vilarinho das Furnas (António Campos, 1971)
Campos voluntariou-se em conhecer o local e os respetivos habitantes, sem saber que o seu ato iria preservar para a posterioridade a sua cerimónia fúnebre (a procissão aí desfilada surge-nos como uma coincidência terrível), “acidentalmente” (aspas porque não acreditamos que fora totalmente”) persiste na negociação (invasivas e abusivas) entre o Governador civil e os “furnenses”, estes últimos conscientes do “roubo” que ali estava ser executado. Trocas de palavras em vão, mas visualmente ditadas como sentenças, recortadas pelo quotidiano filmado e emanado por Campos como um urgente testamento (era necessário “arquivar” aquilo de alguma maneira). Hoje Vilarinho da Furna “sobrevive” na memória dos “poucos” que ainda restam entre nós, e sobretudo neste trabalho cinematográfico, os seus vestígios de existência são as ruínas que numa eventualidade ou outra se revelam ao “mundo” em ares mais áridos e tórridos, os fantasmas permanecem como que acorrentados a um “não-lugar”, a uma assombração, recusando abandoná-las para um descanso, digamos eterno, pairando no definitivo esquecimento.
Furna de Campos está desaparecida, Lanheses de Serra está alterada, distorcida e irreconhecível [ver o regresso da realizadora ao local décadas depois “35 Anos Depois, O Movimento das Coisas” de Mário Fernandes e José Oliveira] e quanto a Domingues, até um dia aquele seu ambiente desintegrará com o tempo. Como o próprio indicou no contacto do público, é só uma questão dos seus avós … já sabem, não é preciso especificar.
Encontro-debate entre o realizador Raul Domingues ("Terra que Marca") e o professor e investigador Manuel Guerra, com moderação de José Oliveira, na A Moagem - Cidade do Engenho e das Artes