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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Falando com Rui Simões: "Qualquer realizador é político"

Hugo Gomes, 22.05.24

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Rui Simões

Falou-se numa maldição, um tormento trazido pelo filme “Bom Povo Português” (1980), um documentário sobre as promessas da Revolução com um grau de decepção ao PREC, que colocou Rui Simões de “castigo” nessa questão de subsídios e apoios à realização por mais de 20 anos. Tal “punição” é reavivada através da estreia de “Primeira Obra” (2023), a primeira e única longa-metragem de ficção concretizada pelo realizador de 80 anos, que depositou neste filme-cosmos as suas dores, pensamentos e reflexões acerca de um mundo que está a ultrapassar. O próprio assume durante a nossa conversa que decorreu nos escritórios da sua produtora Real Ficção, em Lisboa, ainda antes das comemorações dos 50 do 25 de Abril, data essa que estreará não só esta sua nova obra, com a enganadora enumeração no título, como também traria de volta às salas o seu “Bom Povo Português”, o tal filme-carrasco, mas que mesmo o seu orgulho cinematográfico. 

Nesta conversa com o Cinematograficamente Falando …, falamos abertamente do novo como do velho, da ficção como do documental, dos arquivos e das cerejas, de Revoluções a Cavernas de Platão. Rui Simões abriu as portas do seu mundo, sentamos e ouvimos.

Começo esta conversa com a questão sobre a génese de “Primeira Obra”. Como surgiu a ideia para este projeto?

Não sei se me lembro exatamente como surgiu a ideia, mas surgiu em reação ao facto de nunca ter sido aprovado em projetos de ficção no Instituto de Cinema, seja no ICA, no IPC, ou no ICAM. Em 40 anos de candidaturas que fiz sucessivamente todos os anos, chegando a fazer até duas por ano, o facto de nunca ter conseguido obter apoio levou-me, ao fim destes anos todos, a um sentimento de desânimo. Ao chegarmos a este período de comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, pensei: “estou farto disto!”. Então, decidi escrever uma história relacionada comigo, porque, no fundo, já não tenho mais nada para contar, nem vale a pena tentar. Impediram-me de contar todas as histórias que queria realmente contar. Portanto, vou avançar um pouco da minha própria história. Nunca quis fazer um filme autobiográfico, sempre gostei de contar histórias sobre outros, mas sobre mim nunca pensei tal ‘coisa’. Nem memórias, nem nada do género. Mas, ao seguir por esse caminho, juntamente com a pessoa com quem trabalho regularmente na escrita, optámos por essa direção e com isso analisamos um pouco o meu percurso, os meus filmes, e o meu passado.

Escrevemos uma história inspirada num facto real: há uns anos, um jovem estudante de cinema na Sorbonne, descendente de portugueses, pediu-me para consultar os meus dossiês, os meus papéis, falar comigo, em suma, preparar o seu doutoramento em cinema. Achei interessante, pois já tinham sido feitos vários estudos sobre o meu trabalho, mas nenhum com essa perspetiva. Ele veio, instalou-se aqui, esteve durante muito tempo, depois foi embora, mas voltou. 

A partir desta história, inventámos outra, baseada na relação de um jovem [Zé Bernardino] que procura um velho cineasta da Revolução [António Fonseca], porque está interessado no cinema militante, comprometido, de causas. Esta é a sua especialidade, e é sobre isso que quer fazer o seu doutoramento, pelo que vem ter comigo para obter material para trabalhar e estudar. Ele escreveu uns textos que foram publicados, de que gostei bastante, e acabámos por construir esta história a partir da sua chegada a Portugal, onde procura o velho realizador que já não mora em Lisboa. E depois, numa sucessão de circunstâncias que misturam a realidade que vivemos hoje em Portugal, o meu próprio passado e a minha história, o jovem desvia-se enquanto faz este trabalho, apaixona-se por uma jovem de origem africana [Ulé Baldé], uma ativista ambiental que lhe mostra e faz descobrir o Rio Tejo, onde, de certa maneira, me refugiei após sair de Lisboa devido às situações difíceis, como o caso da ordem de despejo na produtora, as rendas muito altas, enfim, toda esta situação contribui para a construção de uma história.

O filme é a minha primeira obra autobiográfica. Ainda é estranho para mim, ainda não consigo assimilar bem o que fiz, mas está feito, e agora é seguir em frente.

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Primeira Obra (2023)

Vamos fazer algumas curvas e contracurvas até regressarmos novamente ao filme propriamente dito. Uma coisa curiosa nos créditos finais é que se encontra expresso que o argumento é da autoria de Sabrina D. Marques - realizadora de "Os Fotocines" (2021), filme que você produziu - com a ideia de Rui Simões e algum improviso. Poderia explicar-me isso?

É uma ideia minha, como normalmente são os trabalhos que faço com a Sabrina. A ideia é minha e depois passo para ela a tarefa de escrever o que quero. E ela faz isso muito bem. Gosto muito do trabalho dela, entendemo-nos muito bem, não é o primeiro filme que escrevemos juntos. Estamos a trabalhar num novo projeto que ela está a escrever neste momento, também baseado numa ideia minha. Assim como foi com o "No País da Alice" (2021), ideia da minha autoria que ela desenvolveu. No fundo, a Sabrina tem uma capacidade que eu não tenho, que é a de dialogar com os outros que leem. E essa capacidade é talvez a solução para o meu problema. Ela é como a minha médica de família. Consegue salvar-me da minha dificuldade em comunicar com quem analisa os projetos.

Nunca fiz um filme, seja documentário ou ficção, que não tivesse alguma forma de improviso. Embora numa longa-metragem tenhamos uma equipa muito grande, um plano de trabalho rigoroso e custos elevados, para mim fazer cinema não é propriamente seguir regras estipuladas. O improviso é fundamental, tanto na construção do filme como no trabalho com os atores. Todos os atores sabiam que tinham um guião, diálogos e uma história, mas aceitava e encorajava o improviso. Eles podiam transformar o que estava escrito com base nas suas próprias interpretações e experiências. Fiz isso com o Zé Mário Branco e com outros projetos também. Dou sempre espaço aos outros para contribuir com as suas ideias, desde que não sejam completamente contrárias ao espírito do projeto.

Os atores prepararam-se, estudaram o argumento, falaram comigo e até fizemos uma pequena residência na casa do Ribatejo, onde parte do filme seria rodado. A partir daí, o improviso era total. Eles não tinham obrigatoriamente de seguir os diálogos à letra. Podiam respeitá-los ou não, desde que capturassem a essência de cada cena. Algumas vezes, seguiam o texto, outras vezes usavam-no como inspiração para adicionar algo pessoal, e outras vezes, eu próprio sugeria alterações. O improviso foi uma constante durante todo o processo, até ao fim. E mesmo agora, ainda estamos a improvisar porque nunca estou totalmente satisfeito, estou sempre à procura de algo mais.

Já existe o cognome da "maldição do Bom Povo Português". Inclusive, na entrevista que deu à Esquerda.net, você expressou um desejo de não falar muito sobre isso. No entanto, durante a antestreia na Cinemateca, na primeira fila da sala Félix Ribeiro, onde estava sentado, encontrava-se ao meu lado, nada mais nada menos, que Fernando Matos Silva, um realizador contemporâneo seu que, durante muito tempo, também esteve, de certa forma, esquecido e a quem a Cinemateca dedicou um ciclo integral em janeiro deste ano, que esperamos que seja finalmente revisto. Tendo em conta este filme, a sua “Primeira Obra”, faço esta pergunta, um pouco direta: deseja, de certa forma, ser resgatado do esquecimento, se é que existe esse lado de esquecimento?

Eu acho que me fizeram um favor, porque sou muito positivo, normalmente, em tudo e na vida. Já passei por muitas coisas e, se não tivesse este espírito tão positivo, teria-me dado mal na vida. O que eu acho é o seguinte: o que me aconteceu é evidente que não foi bom. Mas também vejo isso como um prémio, um grande prémio. Como é possível alguém castigar-me desta maneira pelo mal que fiz, que foi fazer os meus filmes? Para mim, é uma medalha. Porque quiseram eliminar-me por receio daquilo que poderia vir a fazer. Portanto, para mim, é um prémio enorme. E é assim que compenso, porque, se não compensar assim, vou sofrer muito mais. E eu não quero, porque tenho a certeza que o trabalho que fiz foi honesto, exprimi aquilo que pensava, olhei para o que aconteceu em Portugal com o máximo de transparência e independência dentro do quadro que estávamos a viver, com as minhas opções também muito claras, sem as esconder. E tendo o poder tanto receio de me deixar continuar a pensar sobre o meu país, vejo isso como uma medalha muito grande, que me diz que, “quando fores velho, serás compensado por esta tua grande virtude, que foi resistires a todo o mal que te fizemos”.

Por isso, de certa maneira, acho que sou um cineasta feliz. A verdade é essa. Apesar de ter passado muitos momentos infelizes, devido ao facto de não ter trabalho e ter vivido de uma maneira muito dura todos estes anos. É evidente que isso paga-se com o corpo, com a família, com os filhos. Enfim, é uma vida de facto difícil economicamente, difícil sobreviver dessa maneira. Mas, em termos criativos, em termos profissionais, em termos de realizador, não. E aquilo que não consegui fazer como realizador na ficção, acho que consegui fazer como documentarista. E, além disso, consegui ser produtor, o que é um sucesso. A Real Ficção é uma produtora que se tem mantido ao longo de quase 40 anos de vida. Não é uma produtora gigante, mas é uma produtora que tem uma linha coerente e que vai fazendo aquilo que acha que deve ser feito. E, nesse aspecto, não nos podemos queixar, porque a produtora tem bastante mais sucesso, talvez, do que eu em termos de funcionamento. Damos oportunidade a muitos jovens, que é algo que gosto também. Temos a nossa linha de trabalhar com os países de língua portuguesa e desenvolver as relações com esses países.

Extraindo do seu personagem alter-ego em “Primeira Obra”, considera-se um cineasta da Revolução? 

Sim.

still22028129-1.jpgPrimeira Obra (2023)

No filme, o jovem “pupilo” em conversa com o cineasta “mestre”, este último afirma afirma que todo o cinema é político, inclusive as grandes produções. O entretenimento é também uma política ao serviço da produção.

Claro, tudo é político. Qualquer gesto, qualquer ação que envolva financiamentos, concessões, contrapartidas, responsabilidades, atitudes, expressões artísticas, tudo isso é político. Qualquer realizador é político. Não considero que os realizadores sejam ignorantes. Considero que sabem exatamente o que estão a fazer. Uns optam por fazer apenas entretenimento porque é isso que gostam e que os satisfaz. Outros escolhem temas mais preocupados com a sociedade, outros ainda se dedicam à vida animal e à ecologia. Enfim, acho que tudo é sempre político. Mesmo quando algo não parece político, é político. É como quem não vota: ao não votar, também está a fazer uma escolha política.

Como em “American Pastoral” do Philip Roth: “tudo é político, até lavar os dentes é político.

Exatamente, depende de que escova se usa, com que produto se lava e de que maneira se faz a limpeza. E ainda resta saber se tem dentes ou não. [risos]

Aproveitando isso, como o relançamento de "Bom Povo Português" no dia 25 de abril, que carga simbólica espera trazer nesses 50 anos de comemoração?

Quer dizer, a minha decisão de revisitar o "Bom Povo Português" e reprogramá-lo para o dia 25 de abril foi planeada e pensada, assim como igualmente a “Primeira Obra” no 25 de Abril. Embora o filme esteja pronto há um ano, pois teve uma apresentação pública numa sessão especial no IndieLisboa. Na verdade, para mim, aquele filme comemora os meus 80 anos. Foi filmado antes de os ter, mas já tem 80 velas na ficção, embora, na realidade, ainda não os tivesse completado. Mas é um filme de ficção, e gosto destes cruzamentos entre a realidade e a ficção. Gostava que este filme estreasse quando já tivesse 80 anos e estivesse a comemorar, tal como comemorei na Cinemateca, com a antestreia. Portanto, tudo isso faz parte do meu pacote: 25 de abril, 50 anos de carreira e 80 de vida. E a partir daqui, mesmo que não faça mais nada, já posso me dar por satisfeito. Mas, claro, não estou satisfeito. [risos]

Noto no “Bom Povo Português” um lado de decepção com o caminho da Revolução.

Sim, é o oposto de “Deus, Pátria, Autoridade” (1976), que é um filme que ainda tenta integrar-se, ser útil ou contribuir para que a Revolução vá mais longe. As revoluções são períodos momentâneos, nunca duram muito tempo. As revoluções duram o tempo que cada povo é capaz de fazer rodar a esfera, mas ela para em dado momento e começa outra rotação. Mas a rotação da revolução, eu já sabia que tinha um prazo. Não sabia qual, não conseguia prever, mas a minha distância, por viver na Bélgica e estar exilado lá há muitos anos, permitia-me olhar para este país com grande distanciamento. Quando voltei, achei tudo fantástico, mas não acreditei completamente. Nunca acreditei. Só que não podia partir desse ponto de vista; tinha que partir do ponto de vista de que ia contribuir para que as coisas acontecessem.

Por isso, "Deus, Pátria, Autoridade" é um filme muito militante, muito didático. Eu até lhe chamo primário, de certa maneira, mas é um filme...

… muito otimista também.

Sim. É um filme que ainda vai a tempo, porque ainda cria situações muito fortes de ruptura. Lembro-me das greves que foram feitas para que "Deus, Pátria e Autoridade" passasse na televisão. Por exemplo, a Sorefame [Sociedades Reunidas de Fabricações Metálicas] e a Lisnave pararam simbolicamente de trabalhar para pressionar a exibição do filme. No entanto, não conseguiram, porque o Governo não autorizou. Apelaram ao Presidente da República, que na altura também achou que não devia ser exibido, e a RTP também não autorizou. Mas o facto de não terem conseguido não significa que não tenham lutado. O filme continuou em movimento.

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Bom Povo Português (1980) / Foto.: Memoriale Cinema Português

Posso afirmar que "Deus, Pátria e Autoridade" é o meu maior sucesso enquanto realizador. Embora "Bom Povo Português" seja o meu filme mais importante, "Deus, Pátria e Autoridade" foi o mais bem-sucedido. Foi visto em todo o país, em todo o lado, até em pequenas aldeias, projetado nos muros das igrejas, nas paredes das igrejas, e sei lá onde mais. Havia imensas cópias a circular. Beneficiei dos circuitos militantes da altura, que se aproveitaram para mostrar o filme e fazer o seu trabalho militante, fosse qual fosse o partido.

O filme situa-se numa espécie de fronteira e não rompe com nenhum partido político de esquerda. Todos os partidos marxistas estavam, de certa maneira, a coabitar com o que está em "Deus, Pátria e Autoridade". Até o Partido Socialista não se opunha, era tolerante. Talvez, por esse motivo, o filme perca em termos criativos, mas ganha em termos militantes. E essa era a minha intenção. Queria perder o lado de autor para ganhar no lado militante e ativista, e ainda conseguir contribuir para que a Revolução fosse mais lógica. Acho que "Deus, Pátria e Autoridade" foi muito útil, apesar de só ter estreado em 1975, quando a Revolução, aparentemente, já tinha terminado. Mas não é verdade, ela continuou até definhar, até as pessoas se marginalizarem e realizarem que estavam numa nova era.

"Deus, Pátria e Autoridade" tem essa forma, enquanto o "Bom Povo Português" é diferente. Foram feitos ao mesmo tempo, mas cada um com um propósito distinto. O propósito de "Bom Povo Português" não surgiu logo de imediato, mas, perante o que estava a sentir e a realidade que estava a filmar, achei que havia uma ideia na cabeça das pessoas, na nossa cabeça. A prova é o 1º de Maio de 1974, com aquela massa humana de milhões de pessoas.

Bem representada em “As Armas e o Povo” (1975) … 

Exatamente, está bem explícito nesse documentário a unidade e união das pessoas que se libertaram do fascismo e dessa prisão totalitária, e que estavam todos juntos com uma ideia em mente. O que eu quis fazer foi mostrar que havia uma ideia na cabeça dos portugueses, especialmente nas correntes mais politizadas e nas pessoas mais conscientes da política. Queria mostrar que essa ideia começou a crescer, crescer, crescer, e depois, em dado momento, morreu. Para mim, em determinado momento, consegui sintetizar e dizer: isto é o nascimento, crescimento e morte de uma ideia.

Demorou tempo até chegar lá. Comecei o filme de uma maneira caótica, como mostro na “Primeira Obra”. A primeira sequência que montei chamava-se "Caos", porque eu não sabia como pegar no filme, não sabia o que ia agarrar. Portanto, tive que construir uma história de ficção, no fundo. Estes filmes documentários, quando se fala que o “Rui Simões não pode fazer ficção porque é documentarista”, não faz sentido. Eu não fiz documentários, fiz 30 ficções com aspectos documentais, porque ninguém sabe se a revolução é do "Bom Povo Português" ou de outra coisa qualquer.

Esta é que ficou, mas ninguém pode dizer que construiu, em cinema, a História da Revolução ao vivo. Tudo o que há são fragmentos. "1º de Maio" é um fragmento de um dia. O filme é um fragmento desse dia. Outros filmes são fragmentos de lutas, seja nas fábricas, seja nas ruas, seja onde for …

… “Torre Bela” (1977)?

Torre Bela” é um fragmento, é uma ocupação muito específica. O filme é construído e montado desde o princípio até o fim pelas pessoas que estavam lá a filmar, a organizar, pela minha equipa. Não é uma equipe que vem 50 anos depois de fazer um filme sobre o 25 de Abril. Não é isso. Quando vejo esses filmes, vejo-me porque me acho ridículo em tudo isso, o que nos leva a ter cuidado com o que se faz.

Por isso, para mim, não me custa nada ser considerado o cineasta da Revolução. Assumo isso perfeitamente. Paguei o preço, é verdade, porque acho que isso tem um preço, mas também esse preço me permite dizer exatamente isso. Sim, fui um cineasta da Revolução!

Há ironia no título “Bom Povo Português”?

Sim, exatamente. O título "Bom Povo Português" é irónico e encerra em si muitos significados. António de Spínola utilizou-o de uma maneira específica, e eu utilizo-o de outra. Busquei essa frase de Spínola num discurso que ele fez no Alentejo, onde, de certa forma, tentava comunicar com o povo, chamando-o de "bom". Mas é evidente que o que ele estava tentando fazer era mobilizar as pessoas para a sua causa. Portanto, quando eles chamam o povo de "bom", as coisas ficam caricatas na boca deles, inclusive. E ao pegar nesse título, há toda a ironia que se pode imaginar, mesmo sem ver o filme. 

E faz um paralelismo com a Caverna de Platão nesse seu filme …

Para que o “bom povo português” possa deixar de ser o “bom povo português” e se tornar apenas o povo português, ele precisa justamente de ser iluminado por essa luz que é o conhecimento, o saber, de forma ser capaz de evoluir. Com isso sair do fundo da caverna da escuridão e, ao chegar cá acima, não ficar encadeado e evoluir. É todo um jogo que não sou capaz de explicar como me surgiu. Os filmes constroem-se de uma maneira muito complexa e muitas vezes não sabemos por que é que vamos buscar este ou aquele elemento. Não sei se na altura, por alguma razão, estava a ler Platão; penso que não. Não sou propriamente apaixonado por Platão nem um estudioso, mas talvez tenha pensado naquilo ao lado do mito, por alguma razão, por alguma dúvida, por alguma coisa que tinha ali uma solução para poder explorar ou procurar essa solução.

Os mitos também servem para alguma coisa, porque fazem parte da nossa cultura. E este mito é muito forte, e Platão é um filósofo muito forte, com a sua maneira de pensar e de exprimir o seu pensamento. E isto partia da ideia também de que achava que o povo português era pouco... Não é cego, mas que não conseguia ver além de uma certa situação. Portanto, aquela representação do cego também ajudava a transmitir o mito da caverna e a dar esta ideia de que era preciso ir mais longe para poder ter mais cultura, mais informação, mais educação, mais saber, para poder fazer uma revolução mais completa e não ser enganado, que é o que acontece nestas revoluções. Estas revoluções, no fundo, param porque o povo está cansado daquele modo de vida; é cansativo estar sempre em revolução. O povo também tem direito a descansar um pouco e a olhar para a televisão. E por isso, se calhar, aquela ideia surgiu-me para dar certo impulso às pessoas, para que estas possam fazer um esforço e entender na plenitude da sua realidade. Penso que é isso.

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Deus, Pátria, Autoridade (1976)

50 Anos depois: saímos da caverna, ou continuamos nela?

Estamos menos na caverna, isso é um facto. Acho que houve uma evolução muito grande. Os jovens têm hoje em dia uma preparação muito maior do que nós tínhamos na altura; vejo isso pelos meus filhos mais novos, estão muito bem preparados para enfrentarem uma sociedade que é muito mais difícil do que era no passado. Neste momento, é muito mais complicado, tudo é mais complexo, e por isso também estão mais bem preparados, porque precisam de estar para enfrentar estes tempos presentes e os que estão por vir no futuro. De certa maneira, tenho a opinião de que nunca iremos sair totalmente dela, porque haverá sempre este contrapeso. Temos mais formação, sabemos mais, estamos melhor, evoluímos, já não há tantos analfabetos, já não há tantas crianças a morrer, já não há fome, enfim, já não há uma série de coisas nefastas do antigo regime. Mas surgiram novos desafios, por isso acredito que isso nunca terá fim. É tudo relativo. Estamos num estado, os suecos estão noutro, eles construíram a sua própria versão do "bom povo", não será da mesma maneira, nem com os mesmos tipos de atores e personagens.

Se eu tivesse que fazer agora o "Bom Povo Português", não iria buscar as velhinhas do Norte, todas vestidas de preto. Seria outra coisa qualquer. Na verdade, não quero pensar nisso, não quero fazer nada agora.

Na ante-estreia do seu filme na Cinemateca, como também a sua apresentação no IndieLisboa, mencionou, e reforçou aqui nesta entrevista, que não gosta particularmente deste filme [“Primeira Obra”].

Estou proibido de dizer isso [risos]. A minha equipa, os meus amigos, a minha família, todos os meus filhos acham disparatado eu dizer isto. Não é que “não goste” seja a palavra certa. Simplesmente, não estou contente com o que fiz, mas também não sei fazer de outra maneira. Por outro lado, quando vejo, parece-me bem, mas depois fico na dúvida. Nunca antes tinha tido tantas dúvidas em relação a um filme. Por isso, não consigo falar muito sobre ele, porque há pessoas que me dizem coisas como "é o melhor filme da tua vida", outras que não me dizem nada, percebo logo que não gostaram. Sei perfeitamente que outros acham que é um pouco longo, entre outras críticas. E é assim que os filmes são. Acredito que vou enfrentar uma avalanche de críticas, mas não me preocupa. Aliás, a crítica já há muito tempo que nem sequer escreve nada sobre os meus filmes, ou muito pouco, ou são poucos os críticos que ainda me acompanham.

Não estou preocupado com isso. Preocupa-me mais a opinião do público em geral, do público mesmo. Como irão eles olhar para este filme, que não segue a linguagem convencional do cinema? Alguém disse-me: "Gosto muito da forma como o filme começa, pensamos que vamos entrar numa história e de repente já não sabemos onde estamos, estamos por todo o lado e a história que estávamos a seguir já não está lá, torna-se outra coisa". Fiquei assim: "Pois é, é verdade, mas é isso que eu gosto". Outros dizem: "Está sempre a abrir e a fechar coisas, até ao fim é cansativo, parece que está sempre a fechar histórias, e não sei o quê". Cada pessoa vê de maneira diferente, eu acho. E acho que os filmes deste género demoram tempo a ser compreendidos e a ganhar estatuto. Gosto muito mais do filme hoje do que gostei quando o mostrei pela primeira vez [no Indielisboa de 2023]. E a realidade, todos os dias, dá-me mais razão em relação ao filme que fiz. Acredito que, quando estrear, estará no ponto. [risos]

E para finalizar esta conversa, falou-me à pouco de um possível “novo projeto”. Pode-me falar dele?

O novo projeto é um bocadinho inspirado no que está a acontecer hoje no mundo. É uma visão, é um filme de ficção científica, de certa maneira. Portanto, não tem nada a ver com a realidade, é uma construção completamente ficcional. É uma invenção de espaço, um mundo irreal, fabricado, construído em estúdio, com personagens que não são reais também. No fundo, é um submundo, onde as pessoas se isolam, saem da realidade para procurarem no passado e nos arquivos o que falhou para que as coisas não tenham tomado outro rumo. Elas dedicam-se apenas a este estudo, não têm convívio com o exterior, que apenas lhes chega através dos canais televisivos, tudo construído por inteligência artificial. A realidade é este movimento, este grupo de pessoas que vai construindo, sem nenhum contato físico com a realidade, trabalho de pesquisa, de desenvolvimento de ideias, mas que também têm os seus próprios conflitos e têm uma heroína, uma mulher, Vera.

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Primeira Obra (2023)

Sim, ela chama-se Vera, o qual também será o título do filme. Vera de verdade. Vera de veritas, é bom. A construção é muito complexa e tenho muitos arquivos. Sempre foi um sonho meu, o de montá-los, fazer deles um documentário. Este arquivo foi construído maioritariamente nos 22 anos em que não trabalhei, pois além dos 40 de ausência de ficção, houve 22 em que não fiz nada, nem ficção, nem documentário. Estes anos foram mesmo assim, e falo sobre isso no filme, justamente, na primeira hora. 

Estes 22 de 80 anos vão de 1980 a 2002, onde me vi obrigado a procurar um outro mundo, uma outra vida. Isso levou-me para uma aldeia em Sintra, onde as rendas eram mais baratas, agora são caríssimas, mas na altura eram muito baratas. O Penedo, hoje é luxo, na altura era apenas para miseráveis, para os refugiados da cidade. Há aqui uma certa inspiração deste novo filme, no passado que vivi também, e nesses 22 anos, trabalhei para outros produtores, realizadores, ou com outras pessoas, seja como assistente de realização, por exemplo, de António Pinto Vasconcelos, numa série que ele fez internacionalmente, ou como assistente de realização de um realizador chileno, ou assistente de realização de um belga, que filmava na Lixeira, ali na Amadora.

Tive de trabalhar em lugares subalternos, onde me aceitavam para trabalhar, visto que como realizador não podia. Fui diretor de produção do Animatógrafo durante muitos anos, sobretudo para as produções francesas, aproveitando a vantagem da língua. Depois, também trabalhei como assistente de motorista para uma pessoa americana ligada à família Coppola, em Cascais, era uma função bem paga, devo dizer. Já tinha sido motorista quando era jovem, na escola de cinema, motorista de atores e atrizes, e era uma função que queria voltar a desempenhar. 

Estes anos foram de escritório, mas, apesar de tudo, andava sempre numa caminhada pequena, amadora. E fui filmando coisas. Tenho centenas de horas de gravações. São armários cheios de cassetes. Estão ali cheios [aponta para os armários], cheios, cheios, cheios, cheios, de tudo e mais alguma coisa. Portanto, todo este material eu queria documentar. Fazer algo em relação a esses 22 anos. Apresentei este projeto, intitulou-se "As Imagens são como as Cerejas", mas infelizmente não foi selecionado.

Terra Nostra

Hugo Gomes, 18.05.24

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Olha para baixo.

 Que vês?

Exaustão. Vida, Mitos, Raízes, Memórias. Crimes, Fim, Início. Acumulação. Ruínas. Sal. Escuridão. Vejo-te.

Uma faísca originada dos esforços conjuntos entre os coletivos Grandeza Studio [Amaia Sánchez-Velasco e Jorge Valiente Oriol] e Locument [Romea Muryn e Francisco Lobo],Strata Incognita”, é-nos apresentada como uma “viagem trans-escalar e trans-temporal” tendo como paragem a condição dos solos - das suas propriedades às possessões - termos meramente expostos na carta de manifestação deste projeto. E não poderiam estar mais próximos da experiência alcançada: uma viagem que parte de imagens dronescas (drones everywhere!) e de terras aparentemente inóspitas, erosivas, desertos de cinzas e terras “mortas” onde figuras munidas de fatos de proteção térmica, como exploradores vindos de outros mundos, nos são encaradas como guias de uma prolongada performance video-artística, cruzadas por um ativismo de instalação.

Inicialmente, “Strata Incognita” expõe uma ideia de contra-vazio, demonstrando terrenos aparentemente escassos em vida como paraísos de micro-criaturas, microesferas e biótopos invisíveis ao olho nu (e longe do coração), onde “uma colher de terra colhe mais vida do que todos os humanos existentes na Terra”. À cadência de um videoclipe, viajamos à velocidade do som através dessas relações e inter-relações entre fauna, flora e fungos, Arcas de Noé das quais nos deleitamos ou aterrorizamos através do imaginário desfeito de estarmos sós no ‘baldio’. Contudo, passamos para a próxima paragem, a “Primavera Silenciosa”, onde o solo enquanto propriedade (“uma palavra que o sonho humano alimenta…”, um palpável delírio do nosso liberalismo enviesado num antropocentrismo feroz) e a sua ultra-exploração que destroem, para além da vida, os seus recursos, as suas prosperidades, a fertilidade concebida apenas uma vez, desperdiçando essa terra, dizimando a sua essência, convertendo-a num disputado amontoado de pó. Assim, somos remetidos ao vazio, sem mais líquenes, sem mais lombrigas ou formigas domesticáveis, o que está além da nossa percepção alia-se, por fim, ao austero que o batido e cinzento nos oferece (o filme faz uso das paisagens devastadas pelo vulcão em Las Palmas, nas Ilhas Canárias).

Strata Incognita” persiste numa musicalidade de intervenção ecológica, talvez para apelar às sensibilidades através de um corpo de arte, mas é um filme de texto, ora alarmado, ora abocanhado nas raízes primárias e secundárias do seu problema (voltas e voltas, para nos resumir na nossa auto-extinção), estruturado numa mensagem imagética, artificializada pelo zénite captado pelos inúmeros drones, esse Olho de Deus, julgando a nossa passagem, ou diríamos antes, pegada.

Cantar para os espíritos reunir ...

Hugo Gomes, 20.03.24

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(...) talvez tenha sido o que mais me emocionou, que vocês, tu João e tu Renée, tenham deixado para trás o antropológico, tenham deixado para trás o etnográfico,entregando-nos a condição humana, deixando-nos simplesmente perante a vida, que é observada, que é olhada e também amada.

Paz Encina, “Passagens” / Edições Batalha Centro de Cinema

 

Aproveitando a deixa da realizadora paraguaia de “Eami”, assumidamente amiga deste casal-cineasta, lanço-me naquilo que tanto me fascinou neste “A Flor do Buriti”, e que já havia sido sugerido em “Chuva e Cantoria na Aldeia dos Mortos”: o convite e completa submersão num mundo que não é o nosso, sem estranhezas e sem pedagogias de qualquer espécie. Assim, começamos pela noite escura, envolvida numa fogueira sob cânticos ancestrais. Há um chamamento, ou talvez premonição, perto daquela intimista festividade: uma grávida na angústia das suas dores, natural como é assim dito para acalmar a “pobre criatura”. Mais afastado desse círculo, um bando de crianças depara-se com um animal estranho no seu território: um bovino, o símbolo de uma civilização, como os seus integrantes adoram apelidar em prol de uma superioridade modernista, que estes Krahôs pouco ou nada desejam conhecer. Uma praga, ou antes uma espécie invasora anexada a outra com iguais fins. Com este prelúdio, damos de cara à espectralidade que nos aguarda sossegadamente.

A Flor do Buriti”, que conta com a escrita de um dos membros da comunidade indígena (Henrique Ihjãc Krahô), e filmado em 16mm, assume a urgência de um arquivo memorialista, dando palco a estes protagonistas na partilha das suas interações, das suas dores, tragédias com que vivem, ou no medo que os habita. Talvez seja longe do seu costume, mas difícil testemunhamos um sorriso nas suas faces, soam-nos, não “criaturas” tristes, mas indivíduos conformados com a sua fatídica existência no mundo moderno, ora indesejável nestas lides do progresso e das políticas daquele Brasil que declara posse das suas vidas.

E é nessa existência que Salaviza e Messora encaminham invisivelmente, é o tratado do indígena, não uma extração de recordações e de passados que mereciam estar confinados nas profundezas, é o seu simbolismo, como o mundo parece-lhes ou como a fauna e a flora lhes encaram. Resistência e resiliência, transcendências e onirismos terrenos, como os Krahôs acreditam que os seus sonhos são apenas pedestridades da sua alma e como a morte, esse fim, não é mais que uma passagem. Os espíritos permanecem com eles, comunicam e deixam-se ser comunicados, dançam e cantam, a noite torna possível essa tradução, rompendo dimensões e barreiras impostas pela sobrenaturalidade, esse ditame ocidentalizado que coloca numa caixa tudo o que desconhece.

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A Flor do Buriti” bebe dessa naturalidade à sobrenaturalidade, o que já estava indiciado na obra anterior, mas leva-nos mais agreste, mais familiarizado (e pudera). Porém, há um contágio, um resquício nessa civilizacionalidade no percurso destes “índios”. Perante as “portas escancaradas” deixadas pelo Governo de Bolsonaro, o par que se destacou, partindo em direção a Brasília, percorrendo um Brasil contaminado pelos cantos e sermões evangélicos (prova viva de colonização) ou da mentalidade de vaqueiro e tudo o que isso acarreta, manifestando-se por um lugar desapropriado, desfeito, desvinculado, são indígenas de tribos várias, que de punho erguido, solicitam um estatuto deveras naquele país multicultural.

Neste último ato, como havia acontecido no “Chuva’” ("Krahô? Não. O teu nome de Branco?", como nunca esquecer aquele golpe de realismo sob comentário social), Salaviza e Messora lançam “farpas”, consolidam a sua experiência e cometem o seu ativismo possível, o seu gesto político, perfeitamente sincronizado com o zeitgeist e com as vontades desses seus protagonistas, é o retiro da realidade que nos impôs, a realidade dos “Krahô”.

Após a fuga, o tal movimento de protesto, as heroínas no palanque prometendo mundo e fundos numa luta, sem questão, desigual, voltemos ao “mato dos Krahôs”, aos seus rituais, à sua oralidade contada, partilhada envolto de cicatrizes e calos, e deixemos enraizar entre eles. O filme leva-nos a isso, a permanecer com eles, sem com isso nos tornarmos iguais, e por sua vez, sem nunca ceder a um olhar de estranheza, “estrangeiro” acrescentamos àquela comunidade. Não se trata do “selvagem conquistado”, mas antes disso do “espectador amestrado”. Uma viagem para além do terreno, do político, de uma dimensão que nós desconhecemos com força. O olhar dos Krahôs!

 

Um índio preservado em pleno corpo físico

Em todo sólido, todo gás e todo líquido

Em átomos, palavras, alma, cor, em gesto e cheiro

Em sombra, em luz, em som magnífico

Caetano Veloso

O regresso do Festival Internacional de Cinema de Santarém: o cinema enquanto terra que nos marca

Hugo Gomes, 23.05.23

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Após três décadas, Santarém volta a receber de ”braços abertos” o seu Festival Internacional, uma vontade de consolidar os cinéfilos da região e, quem sabe, do restante país e globo. O Internacional descrito no título sugere esse apelo, essa vontade e ambição de arrancar por caminhos há muito atravessados. 2023 marca, por fim, essa idealização, materialização, algo terreno como o tema que o acompanha, a Terra, a nossa, da mesma forma que não existe outra. 

Ao Cinematograficamente Falando …, Rita Correia, Presidente do Cineclube de Santarém e diretora do FICS [Festival Internacional de Cinema de Santarém], “descortinou” a celebratória programação, contando com filmes (que mais?) que conectam com a região, com o espírito e com o futuro. 

O Festival Internacional de Cinema de Santarém decorre de 24 a 28 de maio, quatro dias a “apoderar” o Teatro Sá de Bandeira e transformá-la no pólo cinematográfico scalabis [ver programação completa e mais informações aqui]. 

Após trinta anos de ausência, pergunto o que levou a encarar este como o momento oportuno para o regresso do festival?

Na verdade, estamos a reativar o Festival há cerca de 5 anos. Desde o início da reativação do Cineclube de Santarém, há cerca de 12 anos, percebemos que a cidade queria o Festival de volta; havia uma geração de cinéfilos que ainda tinha memórias dos festivais antigos, e uma nova geração que queria trazer de volta o Festival Internacional de Cinema de Santarém. Criámos um dossier de projeto, que trabalhámos e melhoramos ao longo dos anos, e fomos procurar apoios. Entretanto, os anos de pandemia atrasaram o processo e agora, com o apoio imprescindível da autarquia, foi possível fazer esta 16ª edição do FICS.

O que poderá dizer sobre a programação deste ano, e a importância dos filmes de realizadores scabilitanos na seleção?

Vamos programar 31 filmes, oriundos/produzidos por 21 países. Temos 4 secções: a Competição Internacional, a Competição Nacional, Panorama e Em Foco.

Em Foco vão estar obras dedicadas às agro-poéticas de libertação e às lutas ecológicas. Os filmes propõem uma reflexão sobre a devastação das paisagens naturais e uma visão da história de violência colonial e extrativista em torno das práticas agrícolas de comunidades na Índia, Palestina, Moçambique e Mali. Na secção Panorama propomos uma visão da produção cinematográfica contemporânea, onde destacamos a estreia mundial do filme “Nomadic Island” de Mattia Mura Vannuzzi.

Na competição nacional destacamos os realizadores scalabitanos do coletivo Waves of Youth. Para a equipa do FICS era muito importante dar oportunidade aos jovens realizadores para mostrarem o seu trabalho a um público crítico e cinéfilo, e criámos um prémio especial para o Melhor Filme Regional.

Tendo em conta o período de “hibernação” (chamaremos assim) que desafios encontraram na seleção de filmes a integrar na programação, principalmente os da Competição Nacional, e com que critérios irão abraçar daqui para a frente?

O principal desafio da programação foi o tema do Festival, tínhamos algum receio de não encontrar muitos filmes portugueses dentro da temática. Na competição internacional recebemos muitas inscrições e fizemos também alguns convites a filmes. De um modo geral, a nossa principal preocupação foi criar um diálogo entre obras, e que isso pudesse ser sentido através da programação do festival. Este foi um critério fundamental para nós, e que pretendemos manter daqui para a frente.

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Boca Cava Terra (Luís Campos, 2022)

O tema rural e agro’ revelou-se ao longo da história do festival numa espécie de tradição, tende em manter esse espírito para além da secção Em Foco deste ano ou estabelecer o FICS como um festival especializado a esses territórios? Tendo em vista que a maior parte dos filmes da programação acentuam essas temáticas da relação humana com a natureza.

Desde o início deste projeto foi decidido manter a temática original: agrícola, rural e ambiental e assumimos que o FICS pretende ser um festival especializado nessas temáticas da relação humana com a natureza e o seu meio envolvente.

No início do festival, 1971, a temática foi uma forma inteligente de contornar a censura do regime do estado novo. Ao assumir-se como um Festival de "temática rural", não só estava a valorizar o seu território de origem - o Ribatejo - como lhe permitia uma aceitação que à época seria mais difícil. O que sabemos da história do Festival foi que muitos filmes estrangeiros, especialmente de origem russa, foram possíveis de ser exibidos em Portugal por ter existido uma "permissividade" da censura, que de outra forma não podia ter acontecido.

Este ano, no início do séc.XXI, no meio de uma crise climática, depois de uma pandemia, e em que as questões do impacto do homem sobre o seu meio estão na ordem do dia, foi unânime manter a temática do Festival, e fazê-lo através de obras contemporâneas, que de certa forma captem a urgência de pensar sobre estes temas, sob diversos pontos de vista, usando a linguagem cinematográfica.

Sobre os convidados, o que pode dizer sobre eles? 

Temos vários convidados, nomeadamente os realizadores portugueses José Filipe Costa, Marta Pessoa, Pedro Mourinha, Miguel Canaverde, Tiago Melo Bento, Maria Simões, Luís Campos, Diogo Cardoso, Paulo Antunes e Raúl Domingues. Como convidados internacionais teremos o realizador Mattia Mura Vannuzzi na estreia mundial do seu filme Nomadic Island, a realizadora indiana Radhamohini Prasad do filme “Farmer Collectives of North Bengal” e o bailarino Ramon Lima, participante do filme “Tes Jambes Nues” um filme que funde o trabalho coreográfico e o trabalho agrícola.

Ambições para o festival, resiliência ou expansão? 

A maior ambição é fazer desta edição um sucesso. Queremos que este seja um regresso em grande, e que nos permita alcançar outros apoios para que a próxima edição seja ainda melhor, com mais condições e durante mais dias. Queremos ainda fazer extensões do Festival, tanto a nível local, numa perspectiva de descentralização cultural, levando o FICS às freguesias rurais do concelho, como a nível nacional, nomeadamente através da programação dos Cineclubes. Não nos podemos esquecer que este Festival é organizado por um Cineclube e da importância que isso tem no movimento cineclubista nacional.