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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Só sei que "Já Nada Sei" ...

Hugo Gomes, 11.12.22

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A história do “casal mais feliz do Mundo” revelou-se num embuste. Ele, Ricardo (Duarte Pinto), deseja uma mudança na sua relação, porém, sem a coragem ou, melhor, oportunidade, para o decretar. Com isto, mantém secretamente a determinação, dependendo da confidência a amigos que divergem nos conselhos e prescrições. 

Um deles avança, figurativamente, que o caso relembra-lhe certos filmes de ficção científica em que alienígenas conquistam um planeta e após esgotados os seus recursos naturais partem para um outro “habitat” deixando o seu anterior “lar” em difícil fase de recuperação. Gostaria de utilizar esta mesma comparação para especificar o processo produtivo em que Luís Diogo, já com a sua terceira longa-metragem, mantém ativo, o de esgotar “recursos” de onde vai filmar. No “manifesto” que fora “Pecado Fatal” (2014), teve Paços de Ferreira como alvo, em “Uma Vida Sublime” (2018), esse thriller em desbarato, utilizou Castelo Branco como experimento propagandístico e aqui, observamos impotentes a Oliveira de Azeméis como a nova "vítima" para uma terminável excursão pela cidade, “picando” os seus maneirismos culturais e regionais e convertendo cenários em meros convites à exploração (neste caso, existe uma segunda cidade a servir de descarada montagem, Santo Tirso, sem usos para a narrativa). Na realidade, podemos afirmar que Luís Diogo não faz filmes, quer dizer, faz filmes, mas publicitários, campanhas turísticas oportunistas. A trama é só o disfarce, aliás, como a felicidade do seu casal-protagonista, uma capa para propósitos ocultos. 

Todavia, o dito enredo também tem muito que se diga, e nem refiro ao deplorável ritmo, nem sequer aos diálogos escritos com os pés debitados por atores que apenas correspondem aos mínimos requeridos (com excepção de Ana Aleixo Lopes, cujas capacidades estão acima desta obra, e parece saber exatamente isso), e sim, a das armadilhas poeirentas de quem julga dissecar relações numa perspectiva amoral e longe de convenções cristãs (aliás, acaba por ceder inconscientemente à última ao transformar tudo em desígnios de amores perfeitos, ou lá que o que seja). Nesse termo poderia ter aprendido com a cineasta brasileira Laís Bodanzky, em “Como Nossos Pais”, na incessante busca pela imperfeição, o bovarismo crónico que nos é realmente soa garantido numa felicidade artificialmente decretada. Mas Luís Diogo não possui essa astúcia, o seu cíclico conjunto desmonta-se em nunca conseguir lidar com as suas avenças. A mensagem perde-se e muito na sua transmissão. 

Dito isto, desta vez sem tentativas de suicídios literalmente “deitadas ao lixo” [“Pecado Fatal”] e nem “barbas postiças" [“Uma Vida Sublime”], “Já Nada Sei” falha até nesse campeonato trash cujos anteriores conquistaram (“o The Room português”, pode-se ler em alguns comentários da Letterboxd) ao inconscientemente invocar. 

Nos trópicos da memória ...

Hugo Gomes, 27.01.19

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"Boni Bonita", a segunda longa-metragem de Daniel Barosa [a primeira ficção em tal formato], é um episódio de (des)união que remete a um hedonismo fabulista, uma fantasia que desvanece perante a necessidade de compromisso e que encontra lugar num Brasil que sonha com oásis remotos. Beatriz e Rogério são dois seres sem nada em comum para além das suas vidas fracassadas, o veio no qual se submetem a uma relação supostamente livre, refém dos acordes de “Boni Bonita”, dos calores da luxúria e do tropicalismo das suas pretensões. Mas até mesmo essa simbiose não sobrevive perante a ambição de ambos; ele, músico de 30 anos que espera pela sua oportunidade de fama, e ela, argentina radicada que tenta afastar-se do mundo que sempre conhecera e que desmorona perante a tragédia.

Filmado em 16mm de forma a condensar uma atmosfera igualmente misteriosa e íntima, “Boni Bonita” é acima do seu drama algo existencialista, um desejo de reconciliação com um país de outrora, imaculado perante os seus imperativos desejos, uns anos 80 refletidos num novo milénio assim como indica o artista Ney Matogrosso (aqui sob um especial cameo). Hoje, perante as atuais manchetes, deparamos com um pedido de retrocesso, um voltar atrás com um claro receio pelo futuro. Porém, este simbolismo encartado é somente fruto de um timing subversivo (o mesmo se aplica à coprodução de forma a devolver uma arte moribunda o seu grau subsistência).

Sentimos o grão anacrónico da imagem, o invocar de espectros de um cinema underground, intuitivo e sobretudo carnal, uma atitude que realça a derivação existencial pelo qual Daniel Barosa se perde. E nessa perdição, os seus atores principais, Ailín Salas e Caco Ciocler, tentam rasgar os seus peões do destino e emanar um química diversas vezes castrada por este olhar demasiado horizontal, força inversa à proposta de um filme, voluntariamente, limitado ao seu cerco.

Um thriller da loja dos 300's

Hugo Gomes, 27.04.18

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No cinema português existem vários pecados; os autores passivos que esperam pelo financiamento fácil, os realizadores convertidos à indústria e com isso uma evidente perda de identidade cinematográfica e no caso de Luís Diogo uma recusa pelo legado da nossa cinematografia em prol de uma folha de rascunho.

Não é ao acaso a utilização da palavra pecado aqui, Luís Diogo para além de ter na consciência a maldição que foi o argumento de “A Bomba”, de Leonel Vieira (aquela obra que se tornou num assombrado “mito urbano”), experimentou a realização-a-solo e sob autodidatismo empreendedor (dou graças a isso) com “Pecado Fatal”, onde cometeu o seu primeiro grande erro – uma promoção sobretudo ignorante (“um filme para quem não gosta de cinema português”) – tendo resultado num produto amador aos mais diferentes níveis. Mas apesar do equívoco, um realizador não se faz de um filme apenas, sendo que é com algum entusiasmo que sigo em frente para uma segunda longa da sua autoria, com a esperança de assistir aperfeiçoamento e sim … redenção.

Mas é com tristeza que saio deste “Uma Vida Sublime”, até porque Luís Diogo demonstra alguma ocasionalidade nas suas ideias (basta recordar o seu contributo no “Gelo”, do pai e filho Galvão-Teles). Todavia, aquilo que acabo de presenciar é uma falta de talento e de garra em conduzir um filme para o seu propósito de Cinema. Existe uma cena em particular que demonstra exatamente isso: um plano conjunto onde uma família reúne para consumir a sua refeição matinal. Aqui encontram-se concentradas várias ações distribuídas por quatro personagens, cada uma delas operando por si próprias mas com um foco principal no cansaço do casal (pai e mãe), tendo como representação um episódio envolvendo uma “taça de cereais”. Existe muita informação aqui, o propósito desta mesma cena é evidente e nisso estamos de acordo com a visão do realizador, porém, algo de errado se passa. O plano não obtém a profundidade necessária, a câmara é incapaz disso e a ação principal, que poderia manipular a nossa atenção com um cuidado quase “velasqueano” (o segundo plano jogado como o primeiro), é simplificado à mão de semear pelo espectador deixando o resto da ação (o pedinchar de um telemóvel por uma das filhas do casal) num total desaproveitamento.

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A nível técnico estamos esclarecidos, passamos agora para o interpretativo e nesse termo confrontamos com uma agravante. Luís Diogo é incapaz de se comportar como um director de atores, é insciente a captar e incentivar nos seus colaboradores desempenhos verdadeiramente convincentes, e a cena referida anteriormente é contagiada por esse mesmo mal. Esse, que nos leva a outro – os diálogos – a somente ponta do iceberg para a escrita do filme. Se deparamos uma ideia ou outra inserida com convicção, no seu todo somos atingidos por um argumento costurado com tiques e manias dos “rodriguinhos” do género de terror (um Saw à Portuguesa, resumidamente), onde não faltam pseudo-filosofias de autoajuda como moralismos quase propagandísticos e ditatoriais. Ainda temos os diversos absurdos, mas não vale ser drama queen nesse sentido.

Sim, “Uma Vida Sublime” é um objeto longe da sublimidade prometida, a milhas da perfeição o qual esperava ser colhido e sobretudo do dito ativismo contra o Cinema Português no geral (hipocrisia, visto que Luís Diogo pertence a essa “comunidade”, quer queira, quer não) que estes filmes tendem em evidenciar. Está uns quantos “passos” acima de “Pecado Fatal”, mas sem grande efeito e significância.

Vislumbres do aluno aplicado

Hugo Gomes, 24.03.18

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O ensino do português não se pode limitar aquilo que chamamos matéria”, como refere o jovem professor Alberto Soares (Jaime Freitas) perante o reitor do Liceu de Évora (João Lagarto), uma pequena lição que poderia ser seguida pela nosso Fernando Vendrell (aqui registando o seu regresso à realização, 12 anos desde “Pele”). Reformulando essa doutrina algo ativista citada pela personagem, o Cinema não se pode limitar aquilo a que chamamos narrativa, visto que no caso de “Aparição”, a adaptação do homónimo livro de Vergílio Ferreira, exista uma clara sede de ir além do seu próprio enredo.

Tal sente-se, numa narrativa descosturada, que desesperadamente liga e interliga situações, figuras e pensamentos que são aqui e ali invocados de maneira despachada. Pena, até porque em termos produtivos, “Aparição” comporta-se como uma lição bem estudada às milésimas estruturas televisivas que se confundem nas grandes telas, porém, para este filme em si ser sobretudo incisivo era preciso não se contentar com a superficialidade e num ato como o de beber e gargarejar por completo os reflexos contidos na obra. O incentivo da criatividade, o existencialismo que desafia a religiosidade de um Portugal (ainda) refém e a subliminar crítica a um país que se vive nas odes das “limitações seguras” (“não é permitido ter mais que a quarta classe ou mais de 300 porcos”), sugestões desaproveitadas em prol de uma narrativa direta que não despreza a intelectualidade do espectador, mas que nunca verdadeiramente a incentiva.

Um caso em que o storytelling não é tudo enquanto não existir uma profunda introspeção à relação à matéria-prima, e que por sua vez, não basta ser “boa adaptação” como se limitasse “aquilo que chamamos matéria”. Entretanto, existe sempre uma luz no fundo disto tudo, da mesma maneira que “Amor Impossível”, de António Pedro-Vasconcelos, usufruiu da sua “força centrífuga": Victoria Guerra releva-se mais uma vez, que mesmo sob pequenas doses, é um dos must do cinema nacional e esperamos que não só dele.

José Pedro Lopes perdido nas florestas que delineiam as limitações do género

Hugo Gomes, 12.10.17

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José Pedro Lopes, produtor e realizador de inúmeras curtas nacionais que povoam o cinema de género, poderia ser mais um a tentar a sorte nos circuitos limitados (não com isto reduzido o valor do formato da curta-metragem), porém, o grande passo para a longa e a sua respetiva estreia comercial nos indica que há horizonte para novas histórias no nosso panorama. Baseando-se em folclore nipónico, A Floresta das Almas Perdidas inscreve-se num meio termo de slasher movie que redefine a normalização da violência que se vive em dias de exaustiva informação.

Existe por estes recantos florestais, ramificações de uma obra plena construida a pouco custos e a um know how a fazer inveja a tanto, dito, “cinema comercial”, mas por enquanto temos modéstia e quem sabe, os contornos para um futuro arranque do tão cobiçado terror à lusitana.

Vamos começar com a pergunta mais básica em relação ao Floresta das Almas Perdidas. Como surgiu a ideia para deste projeto? E o porquê da “apropriação cultural” da Floresta dos Suicídios?

Queria explorar como o mal surge em todo o lado, de forma oportunista. Sempre que há uma calamidade, existe que tira vantagem disso. Ou numa grande perda. Aqui a minha ideia era ter alguém que se alimentava dos sentimentos de um suicida e da sua família de luto. Inspirei-me em filmes como o “Whristcutters” (do Goran Dukić) e o “Audition” (do Takashi Miike).

No que toca a lugares conhecidos pela prática do suicídio existem por todo o mundo, mesmo aqui em Portugal. Claro que a floresta de Aokigahara é uma referência no contexto que criamos – mas estas personagens estão e lidam claramente com problemas portugueses.

O cinema de género é uma raridade em Portugal. Como foi, ou pensa, contornar um desafio tão grande na nossa cinematografia?

Em termos de contexto, ‘A Floresta’ não foi feita para provar nada cá dentro, nem para contrariar ninguém. Quanto muito, como fã do género fantástico, queria contribuir nesse género global. Queria ver histórias portugueses no meio desse grande género que descobre filmes nos quatro cantos do mundo.

No nosso país há uma dificuldade grande em financiar filmes de género, e talvez ainda maior em coloca-lo e distribuí-lo. Mas é um pouco inerente ao género em sim: o terror sempre foi peregrino e sempre assustou. É o tipo de filmes que vemos em adolescente para chatear os pais, e que continuamos a ver em adultos para baralhar os amigos.

Acho que quem faz terror cá ou lá fora não pode muito pensar no mercado local, mas sim no internacional. Todos os anos tens filmes de terror que viajam o mundo com abordagens muito culturais. Esperar conceber um filme para ser um sucesso no mercado nacional é esperar bater o cinema de Hollywood em algo que eles tem toda a vantagem.

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Em A Floresta das Almas Perdidas nota-se uma gradual artificialidade, principalmente no genérico estilizado. Será que aqui influências do cinema de Argento? Esse neo-expressionismo do género?

Apesar de ‘A Floresta’ ser um filme muito estilizado e visual, diria que é mais sobre contenção e sobre implosão. O Dario Argento vejo-o como mais explosivo. As minhas influências foram mais o cinema de realizadores como o Takashi Miike e o Kim Ki-Duk, situado entre o horror e o drama, sem grandes linearidades.

A Floresta’ é sobre a chegada à idade adulta de um assassino, sobre a maturação do mal. Por outro lado, é sobre a tristeza e a fatalidade das vítimas. O terror está mais no coração das personagens do que naquilo que vemos.

Ao contrário de muitas obras do género, principalmente vindo dos EUA, o antagonista não possui um devido motivo para a sua violência. Será que aqui se concentra uma reflexão do fascínio pelo mórbido e violência, normalmente anexada, à juventude de hoje?

Creio que em certa forma a ausência de motivo é o motivo mais comum para quem faz mal aos outros no mundo real. O cinema procura razões e desculpas para o mal para não nos assustar demasiado. Mas a verdade é outra – quem faz mal aos outros faz-lo por uma opção de vida. Tens pessoas que passam por vinte vezes pior e que mesmo assim não faria mal a ninguém.

O lado da juventude é truculento. O filme faz muitos referências às idiossincrasias da juventude atual, das redes sociais e da abordagem superficial das coisas. No entanto, acho que o lado mórbido é desprovido de época. Este tipo de maldade já está connosco à décadas. Acho que também a insensibilidade provocada pelas nossas tecnologias não está só na juventude – existe um hábito de acusar os jovens de viverem muito online e se relacionarem com os seus telemóveis, mas isso é um problema que atinge todas as idades.

Floresta das Almas Perdidas é também um desafio para a pequena produtora Anexo 82. Fale-nos das dificuldades de financiamento e até mesmo de produção.

A Floresta’ foi maioritariamente financiado pela produtora Anexo 82, sendo que contou com um apoio da Fundação GDA e alguns patrocínios privados e apoios. O segredo para fazer o filme com pouco foi pensá-lo de forma a ir de encontro ao que conseguíamos fazer. Foi um sacrifício grande mesmo assim – um que eu não sei se voltaria a fazer.

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Sobre o casting? Como sucedeu a escolha de Daniela Love para o papel de psicopata?

A Daniela já tinha participado numa curta-metragem nossa chamada “Videoclube”. Nela ela era também cheia de referências e irreverência. A Carolina de ‘A Floresta’ é o lado obscuro dessa personagem, e desde muito cedo que a Daniela foi a escolha para o papel.

Como vê o cinema português de hoje, desde os apoios até à variedade estilística.

Creio que não é o meu lugar fazer essa apreciação, nem sou a pessoal ideal para o fazer.

Quanto a novos projetos?

Estamos de momento a terminar uma curta-metragem do Coletivo Creatura, um filme de animação chamado “A Era das Ovelhas”. A seguir a isso vemos analisar o resultado de ‘A Floresta das Almas Perdidas’ e concluir o que fazer a seguir. Temos vários projetos – uns a procura de desenvolvimento ou outros de financiamento – mas só depois de ver o impacto deste é que saberemos o melhor a seguir.

A História da Eternidade: no Cinema o tempo pára, mas a vida continua …

Hugo Gomes, 06.05.16

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Nos primeiros momentos, a morte toma o seu lugar na inospitalidade do cenário. Aí o tempo parou, mas as histórias entrelaçadas neste funeral anónimo florescem: a vida, seja ela qual, continua, seguindo o seu caminho entre os grãos que descem vagarosamente na sinistrada ampulheta. Nessas primeiras sequências é possível perceber o interesse do realizador Camilo Cavalcante em não ligar-se a estados temporais mas sim a crónicas desencontradas, enredos que encontram refúgio numa aldeia que, por sua vez, encontra-se “congelada” no referido tempo.

A História da Eternidade” é uma parábola a esse mesmo tempo, que destrói tudo e ao mesmo tempo faz renascer nova vida. É nessa vida depois da morte que o filme interage em mais um “conto de faroeste” disfarçado que, em união com o recente Boi Néon (de Gabriel Mascaro), não oculta a rebeldia aos parâmetros estabelecidos da masculinidade. O ambiente religioso e conservador é apenas “sol de pouca dura“, até porque o enredo tem tanto de perverso como de mágico, confiando cegamente na sugestão, na memória, para expelir uma teia de infinidades. Entre espaços é ouvido Fala, cantado por Ney Matogrosso, a confirmar a pureza das artes performativas em consolidação com o másculo do seu teor indisciplinado. A sequência imergida nesta musicalidade invoca outro tributo quanto à narrativa desta história intemporal – o primitivismo – a ligação tenra entre Homem e a Natureza, entre o moderno civilizado e o folclore digno de um ancestral druida.

Camilo Cavalcante, mesmo sob a “cartada” de sugestões, não engana o espectador perante os seus concretizados truques de magia, os planos completamente panorâmicos que rodopiam as suas personagens desmascarando ilusões que, no entretanto, poderiam ser impostas e induzidas. “A História da Eternidade” remete todo esse jogo de misticismo, onde no final, no calor do conflito que cerca entre o grupo de personagens, é novamente o tempo, que é posto em prática, funcionando numa só vez, para apagar o irreversível e embarcar as personagens numa nova oportunidade.

Sim, é tudo uma questão do tempo, que voa ou opta pela imobilidade. Porém, conforme seja o seu “movimento“, o cinema continua a ser feito. Refletindo sobre esses espaços temporais que tão importantes foram para a evolução de uma arte. Simplesmente mágico!

Manifesto à fatalidade de quem deseja NÃO fazer cinema português!

Hugo Gomes, 24.04.14

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Encontra-se de momento a surgir uma nova vaga de cineastas. Cineastas esses que pretendem assumir um papel de messias na exigência do público português e, segundo os seus “bravos” bramidos, resgatar o cinema nacional da “escuridão dos elitistas e puristas intelectuais”. Não os vejo com bons olhos, confesso. 

A questão aqui não é o aparecimento de sangue novo na indústria (ou arte, como quiserem chamar), é o facto desta “juventude” não levar consigo a bagagem necessária para ser um cineasta. Pior, chegam mesmo a ignorar as suas raízes. É triste saber que o cinema português é deixado ao abandono, atacado e renegado vezes sem conta por uma geração que se diz rebelde, mas que quando chega a hora da verdade consegue resultados meramente lastimáveis e inaptos. Mas para compreender o que quero dizer deveremos seguir para a génese do problema, a falta de educação no campo da 7ª Arte (há cada vez mais alunos a ir para cursos de cinema que não veem filmes ou então que se ficam pelo comercial norte-americano sob fórmulas), a ausência de exigência pessoal e a perda da veia artística. Aliás, estamos num país que cada vez salienta e aponta arte como um bem exclusivo para snobs ou presunçosos intelectuais.

Sob esse gesto, o apontar, criticar e acima de tudo abjurar as origens cinematográficas é uma tendência cada vez mais comum nestes “novos” cineastas, que parecem não fazer cinema, mas sim vídeos para mais tarde serem publicados na internet. Não sei se este é o caso do realizador Luís Diogo, mas “Pecado Fatal” é isso, um embuste. Vende-se como algo irreverente, “um filme português para quem não gosta de cinema português” para depois “esbarrar” na maior das fragilidades do nosso cinema: a falta de vontade, principalmente em soltar-se das amarras académicas, ou seja, de seguir uma esquematização de planos agendados, implantados, sem que haja algum rasgo de (des)veneração a esse processo mecânico ou uma visão original. 

O que vemos aqui é algo semelhante ao que acontece a um mero estudante a realizar um enésimo exercício académico e sob a constante avaliação dos professores. Por outras palavras, o filme não possui a versatilidade de um cinema que o seu marketing tenta descaradamente vender. Ao invés, assistimos à aplicação das matrizes ensinadas e revistas em cursos e licenciaturas de cinema. Não existe um “outside the box“, existe sim a reprodução dos modelos primários e de influências televisivas, o seguir do livro de instruções da planificação para que nos últimos 20 minutos tudo ceda à câmara tremida e nervosa (felizmente com o efeito necessário no espectador, mas não nesse sentido).

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Sim, poderá haver a desculpa de que “Pecado Fatal” é um filme de baixo-orçamento, o qual o realizador pagou inteiramente do seu bolso. Isso sim é um feito louvável que demonstra ousadia na “indústria”, mas nada justifica que o cinema em questão seja por via do amadorismo. Como consequência, temos um argumento (escrito pelo próprio) que não é mais que uma colagem incoerente e involuntariamente risível de diversas intrigas novelescas e a acrescentar a isso há ainda uma incapacidade de gerir uma narrativa e acentuar uma carga dramática. 

Aliás, falando em ênfase dramática, o filme de Luís Diogo parece forçadamente inserir um conflito interno, sem que com isso transpareça nos desempenhos dos seus personagens, vazios e unidimensionais, como os seus respetivos atores, com Sara Barros Leitão a tornar-se na rainha do “overacting” (aqui provando que Luís Diogo chega a ser melhor realizador do que diretor de atores). Por fim, este filme de embaraços é ainda recheado de diálogos infelizes, sem naturalidade e de uma abordagem brusca e demasiado gratuita, com os atores sem a energia necessária para os proferirem.

Em “Pecado Fatal'' não existe aqui algo que se possa chamar verdadeiramente de cinema. É um exercício académico que não faz jus à sua frase propagandista de “(…) para quem não gosta de cinema português”. Podemos até revoltar-nos com os autores conformistas à espera dos subsídios e dos filmes “para amigos”, mas não é com este género de obras que combateremos isso. Aliás, são produtos como estes que me fazem temer pela próxima geração de cineastas, mas isso é outra conversa.

“Toda a gente julga toda a gente”

Uma carta de amor pública!

Hugo Gomes, 17.04.14

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Será possível alcançar os limites do documentário? Existe uma matriz que o define ou uma formula mestra que nos realça a verdadeira essência equacional da sua transfiguração enquanto cinema?

Com Elena de Petra Costa, tais questões surgem e assentam na atmosfera fantasmagórica com que o documentário se funde com a poesia, quer lírica quer visual, a encenação com a realidade dos factos e a emoção técnica com a frieza da narrativa. Todos esses ingredientes contraditórios unem-se para gerar um híbrido, não no sentido abominável, mas no divino da palavra. Um filme que paira entre os diversos cantos da arte, passando pelo teatro primórdio remoto da Grécia Antiga até aos maneirismos do egocentrismo artístico tão claro na Arte Moderna.

Elena é acima de tudo uma carta de amor pública, denunciante aos lugares-comuns e às banalidades da mesma, construindo uma linguagem suportada por um visual digno de barro, inegavelmente moldável e cúmplice para com a sua autora, Petra Costa, que dedica este trabalho à sua falecida irmã, um modelo que seguiu de perto e que viu sucumbir num ápice. Contudo, nunca na sua memória, pelo que Elena (filme) remete-nos à perda e ao medo da solidão, ao espírito decadente que inflige os seus golpes numa narrativa que para além de reforçada com o seu instinto artístico é combatida pelo afecto e pela veneração de uma figura carregada de emoção. É que a autora constrói uma fita tão pessoal que chegamos a sentir-nos culpados em “invadir” este seu Mundo.

Voltando à questão inicial, é possível identificar o esgotamento da veia documental? Por enquanto não nos é permitido garantir uma resposta concreta, sendo assim, Elena demonstra o quão ínfimas são as possibilidades de trazer cinema e torná-lo em algo infinitamente diversificado. Onde muitos viram vídeos caseiros e citações poéticas, Petra Costa viu Arte na sua forma mais pessoal.