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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Andrea Segre: "hoje, a direita sente que pode ir mais longe, ultrapassar os limites, porque a esquerda já não representa uma força radical, já não se opõe com firmeza"

Hugo Gomes, 11.06.25

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Berlinguer: La grande ambizione (2024)

A biopic enquanto motivação política, aliás, de políticas, o realizador Andrea Segre não se distancia no seu processo de idealização e concretização fílmica, assentando na máxima de “tudo é politizado”, basta saber interpretar.

Com anos e anos dedicados a obras sobre migração e imigrantes (muitos desses filmes ainda inéditos no nosso panorama) regressa aos cinemas portugueses com um retrato de Enrico Berlinguer, o carismático secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCI), desde o seu perfil humano, capaz de conquistar eleitores, passando pela ruptura ideológica para com os ideais vindos do Leste. O filme atravessa ainda o sequestro e assassinato do primeiro-ministro Aldo Moro (aqui interpretado por Roberto Citran), ferida ainda aberta na sociedade italiana e momento-charneira na descrença crescente nos aparelhos da esquerda.

Berlinguer: La grande ambizione” responde às questões sem nunca, enquanto filme, subir sozinho a um palanque para se manifestar. É a biopic enquanto filme político e os seus prognósticos de final de jogo. Como celebração da estreia nas nossas salas, o Cinematograficamente Falando… conversou com o realizador sobre a obra e tudo o que nela gravita. Tudo… já sabem: político.

A minha primeira pergunta prende-se com a génesis do projeto, mas gostaria de saber num ponto de vista enquanto idealização do projeto. O que esperava extrair da história de Enrico Berlinguer num mundo como este que nos deparamos?

Quando comecei a pensar neste filme, foi no final de 2020. O mundo era bastante diferente daquele que vemos. Por exemplo, ainda não havia a guerra na Ucrânia, nem esta escalada do conflito de Gaza, nem Giorgia Meloni estava no governo em Itália, nem sequer Donald Trump ainda havia reconquistado a presidência dos EUA. Portanto, o contexto global era outro.

A ideia surgiu-me por duas razões principais. Primeiro, porque me parecia uma grande lacuna no cinema italiano o facto de nunca ter sido feito um filme, não apenas sobre Enrico Berlinguer, como também sobre a comunidade do Partido Comunista Italiano (PCI) e o papel fundamental que esse partido teve na história e sociedade italiana e até no contexto europeu e mundial. O PCI desempenhou um papel muito relevante, sobretudo nos anos 70, e é surpreendente que nunca tenha havido um filme que explorasse essa dimensão. Não é uma história pequena … estamos a falar de uma enorme comunidade: cerca de dois milhões de membros e cerca de doze milhões de eleitores.

A segunda razão tem a ver com o presente. Tive a sensação de que essa história — a história dessa enorme participação coletiva, dessa grande ambição política — podia dialogar com a crise atual da participação política e da democracia. Ao acompanhar a história de uma comunidade inteira que acreditava num sonho e lutava por ele, dedicando tempo e paixão a uma ambição coletiva, podemos refletir sobre como essa forma de participação política se foi perdendo no mundo de hoje. Entretanto, enquanto estávamos a desenvolver o filme, o contexto político ia mudando. O crescimento da extrema-direita, a diminuição da participação nas eleições, a crise da democracia como sistema, tudo isso, agravado por conflitos armados, tornou ainda mais evidente a relevância e a atualidade dessa história.

O sucesso do filme em Itália, e agora também a nível internacional (pois já foi vendido para mais de 25 países), parece confirmar essa ligação entre a memória histórica e a situação atual. Acho também muito interessante que muitos jovens tenham ido ver o filme: em Itália tivemos cerca de 700 mil espectadores nas salas de cinema, e um terço deles tinham menos de 30 anos. Isso mostra que há curiosidade, há interesse e especialmente entre os mais jovens, por esse tipo de reflexão.

Uma coincidência é que o filme vai estrear em Portugal num momento em que tivemos uma eleições legislativas recentes e que o resultado revelou uma dizimação da esquerda em todas as frentes e uma subida acrescida da extrema-direita e do populismo. Mas o que aconteceu em Portugal é um reflexo do que está a acontecer na Europa, e não só, de um distanciamento dos eleitores com a esquerda. Acredita, e tendo em conta o tempo retratado no seu filme, que essa queda é um sintoma da perda identitária da esquerda política? 

A esquerda política, não só na Europa, mas especialmente na Europa, está hoje a enfrentar uma clara crise de identidade. Originalmente, a identidade da esquerda europeia, particularmente da Europa latina, estava fortemente ligada à ideia de construir uma sociedade não capitalista. Mas, durante os anos 80 e 90, essa esquerda decidiu abandonar a proposta de um sistema alternativo ao capitalismo. Ao invés disso, integrou-se no próprio sistema capitalista, passando a propor apenas uma moderação dos efeitos do mercado na sociedade. Fê-lo, no entanto, sem apresentar uma posição verdadeiramente alternativa ou um modelo claro de transformação. Isto levou os eleitores, os cidadãos, a questionarem-se: “onde está a diferença?” Se a esquerda já não representa uma proposta distinta, é natural que as pessoas deixem de votar ou escolham votar em quem defende, de forma mais clara, o sistema capitalista e a sua segurança e estabilidade.

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Andrea Segre e o ator Elio Germano

O que estamos a viver hoje é, em muitos países, uma radicalização da direita. A extrema-direita encontrou espaço para crescer justamente porque a esquerda deixou esse espaço vazio, porque deixou de afirmar uma posição firme, clara e alternativa. Neste contexto, a ausência de fronteiras ideológicas bem definidas abre caminho à radicalização: hoje, a direita sente que pode ir mais longe, ultrapassar os limites, porque a esquerda já não representa uma força radical, já não se opõe com firmeza. E isso é um problema.

Gostaria que me falasse do seu Enrico, mais concretamente Elio Germano, ator cada vez mais presente na indústria italiana (isto na perspetiva portuguesa das produções que nos chegam é claro), e de que forma foi essencial para humanizar a personagem.

Ele foi a segunda pessoa com quem falei sobre o projeto. A primeira foi Michele Pettenello, o meu co-argumentista. Depois disso, falei diretamente com o Elio [Germano], ainda antes de apresentar a ideia à produtora. Conhecia-o pessoalmente e, além disso, tínhamos estado juntos em várias lutas sociopolíticas em Itália, enquanto militantes. Nunca tínhamos trabalhado juntos, no entanto. Por isso, liguei-lhe e contei-lhe a ideia, porque tinha a certeza, antes de mais, do seu talento artístico extraordinário.

Mas também acreditava que o corpo dele podia ser o corpo de Berlinguer. Uma das características mais marcantes de Berlinguer é que, embora fosse um líder, era uma figura muito frágil enquanto ser humano: magro, pequeno, discreto. Não era fisicamente imponente, nem provocador na forma como se apresentava. Se pensarmos, por exemplo, em figuras como Mussolini ou Fidel Castro, Berlinguer era exatamente o oposto.

Pois, Mussolini é um bom exemplo, ele impunha uma grandeza e autoridade pela postura. Por exemplo, ele discursava sempre com a cabeça ligeiramente levantada com jeito de altivez. 

Sim, porque do outro lado do espectro político, figuras como Stalin e Fidel Castro encarnavam um corpo demagógico: uma presença física marcada por força e autoridade. Berlinguer era o oposto disso. Ele era frágil, silencioso, de certa forma até reservado, fechado. E foi precisamente por isso que achei que o corpo de Elio seria o certo para o papel graças à sua delicadeza física. Mas havia também uma terceira razão. Sabia que podia envolver o Elio num filme que não fosse apenas sobre Berlinguer, ou seja, não apenas sobre uma figura heroica da história, mas sim sobre um homem que dedicou a sua vida a uma comunidade, ao sonho coletivo dessa comunidade.

O objetivo era fazer um filme com Berlinguer no centro, sim, mas com a alma e o corpo dessa comunidade presentes, e de facto, embora o Elio esteja no núcleo do filme, este está rodeado de pessoas: temos 50 atores e milhares de pessoas comuns, tanto em cenas de ficção como em imagens de arquivo. É um filme sobre um pedaço do povo italiano e sobre o seu sonho. Sabia perfeitamente que o Elio seria capaz de encontrar uma forma de não tornar Berlinguer uma figura isolada, mas sim de o colocar no seio dessa comunidade e de o tornar parte dela.

Talvez já saiba a resposta desta pergunta, mas necessito-a de uma confirmação para avançar com a seguinte. “Berlinguer: La grande ambizione”, mesmo sendo uma biopic na taxonomia fílmica, é um gesto político?

Sim, claramente é um filme político.

Certo. A narrativa do filme é intercalado com imagens de arquivo. Nesse sentido, gostava de perguntar: como é que estas imagens, enquanto matéria histórica e emocional, contribuem para a intenção política do filme?

A dimensão política do filme está intimamente ligada à sua linguagem cinematográfica. Acredito verdadeiramente no poder do cinema imersivo. Acho que o cinema tem essa capacidade única de te levar a um lugar onde, de outro modo, não poderias estar. Para ativar esse mecanismo de imersão, preciso de uma câmara — e de uma forma de a usar — que seja ela própria imersiva. É por isso que convidei Benoît Dervaux, o diretor de fotografia de vários trabalhos dos Dardenne, para ser o DOP deste filme. Ele é um mestre em usar a câmara para te transportar para dentro do mundo que está a filmar.

Também preciso de atores capazes de entrar nessa realidade, de a habitar, mental e fisicamente, como fez o Elio [Germano], e como fizeram também os outros. E, por fim, preciso de trabalhar na fronteira entre a ficção e a realidade. Essa fronteira é perigosa porque, se nos afastamos demasiado para um dos lados, podemos perder o equilíbrio. Mas, ao mesmo tempo, é uma fronteira criativa, se soubermos como habitar esse espaço intermédio. O objetivo não é criar ambiguidade, e ao mesmo tempo gerar uma confusão emocional produtiva, onde a transição entre ficção e realidade seja contínua e envolvente.

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Berlinguer: La grande ambizione (2024)

No filme, é claro que há imagens de arquivo: não estou a escondê-las. É o meu filme. Mas na montagem trabalhámos para que a fluidez entre a ficção e a realidade fosse emocionalmente contínua. Não queríamos uma estrutura em que a realidade explica algo e depois a ficção encena esse algo. Queríamos que tudo fosse vivido de forma integrada, como uma experiência imersiva, ao mesmo tempo dramática e realista, onde as duas dimensões cooperam. Foi um processo longo. Desde o início da escrita do guião, tive comigo um pesquisador de arquivo. Vi muitas imagens com o Marco, o co-argumentista, mas não só com ele: mostrámos arquivos aos atores, ao designer de produção, ao figurinista, ao diretor de fotografia... Durante a preparação, todos assistimos juntos a muito material de arquivo. E depois, claro, trabalhámos intensamente sobre essas imagens na sala de montagem. Diria que, pelo menos 70% do tempo de edição foi dedicado a encontrar o equilíbrio certo entre o que criámos e o que herdámos dos arquivos.

Decidimos que o material de arquivo devia estar cheio de rostos, de gente. Nunca os contei exatamente, mas devem ser entre 400 e 500 rostos diferentes nas imagens de arquivo. Porque queríamos transmitir a ideia de que aquela grande ambição não era a ambição de um único indivíduo, mas sim um sonho verdadeiramente coletivo.

Existem vários filmes que abordam o incidente de Aldo Moro, nem seja no propósito de contexto temporal. O seu filme, porém, o retrata como aquilo que verdadeiramente é na sociedade italiana, uma ferida, um trauma, e avança com as sequelas desse ato. esse acontecimento marcou o início do declínio da esquerda em Itália, a sua evaporação no campo das ideias, abrindo caminho ao avanço de forças conservadoras, populistas e até extremistas, como as que dominaram o cenário político nos anos 90, com figuras como Berlusconi e idem?

Uma das questões problemáticas da esquerda, e talvez uma das razões pelas quais fiz este filme, tem a ver com a forma como contamos a história do caso Aldo Moro. Um dos objetivos do filme foi também abordar essa história a partir do ponto de vista de Berlinguer e do Partido Comunista Italiano. É quase um lapsus freudiano coletivo o facto de nunca termos contado essa perspetiva. Fez-se muitos filmes sobre o caso Moro — filmes excelentes, realizados por cineastas importantes como Marco Bellocchio, só para dar um exemplo. Não tenho absolutamente nada contra esses filmes. Mas é de notar que, em todos eles, o ponto de vista de Berlinguer e do PCI esteja ausente.

E no entanto, o rapto e o assassinato de Aldo Moro foi um dos acontecimentos políticos mais extraordinários do século XX na Europa - raptar e assassinar um primeiro-ministro é algo extremamente raro, tem um peso histórico imenso. O que aconteceu é que esse assassinato serviu, claramente, para travar o avanço de Berlinguer e do PCI. Formalmente, o rapto foi levado a cabo pelas Brigadas Vermelhas. Mas até hoje não é claro quem as ajudou a fazê-lo. Se perguntares a qualquer italiano quem matou Aldo Moro, todos te dirão: “As Brigadas Vermelhas… com a ajuda de alguém”, e esse alguém nunca foi identificado. Porque é evidente que as Brigadas Vermelhas não teriam conseguido levar a cabo uma operação tão complexa sem ajuda de dentro do sistema … de alguém com poder se me entendes.

E o porquê dessa ajuda? Porque assassinar Aldo Moro foi uma forma de travar o projeto de abertura democrática que ele estava a tentar concretizar com Berlinguer. É muito claro, e, no entanto, nunca fizemos um filme que chegue ao caso Moro vindo “de trás”, dos cinco anos anteriores, que são fundamentais para entender por que razão ele foi raptado. Se quisermos realmente compreender esse acontecimento, temos de começar em 1973, com o golpe no Chile e a morte de Salvador Allende. A partir daí, percebe-se o significado histórico do que se passou com Moro.

Quando Moro foi assassinado, o projeto político de Berlinguer morreu com ele. Berlinguer ainda viveu mais cinco anos e tentou relançar a sua proposta, com um novo conceito chamado “Alternativa Democrática”: um projeto politicamente e intelectualmente interessante, mas que não teve o mesmo peso, a mesma força, que os cinco anos anteriores. Foram esses cinco anos que o filme tenta contar — os anos em que havia uma verdadeira possibilidade de mudança do poder numa democracia ocidental. O PCI tinha a maioria, administrava todas as grandes cidades, de Milão a Palermo, de Nápoles a Veneza. Era a maioria na sociedade, e, por isso, era legítimo que participasse no governo.

Mas isso não foi possível, por causa das estruturas invisíveis de poder - os chamados “Palácios do Poder, tanto em Itália como a nível internacional, e essa é uma enorme questão democrática. Hoje, compreendemos muito bem o que significa viver com problemas de democracia, quando há interesses que interferem nas escolhas legítimas dos povos. E é também por isso que este filme quer ligar a memória de Berlinguer ao presente.

No circuito português, conhecemo-lo sobretudo por “Io Sono Li” (2011), a história de uma imigrante que venceu a Competição da Festa do Cinema Italiano em Lisboa e estreou comercialmente nos nossos cinemas. Desde então passaram-se 13 anos até à estreia de “Berlinguer: La grande ambizione”, o seu segundo filme a estrear em sala em Portugal. Durante esse hiato, realizou vários outros filmes, muitos deles centrados na questão da migração. Hoje, esse tema tornou-se altamente politizado e central em várias eleições. O que continua a ver, tanto do ponto de vista cinematográfico como político, nesse tópico, para persistir enquanto foco recorrente do seu trabalho?

Fiz muitos documentários e filmes de ficção sobre migrações, e muitos jornalistas perguntam-me: “Por que estás tão interessado no tema da imigração?” Tenho duas respostas simples para isso.

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Io Sono Li (2011)

Primeiro: foi precisamente através do tema da migração que cheguei ao cinema. Eu não estudei cinema formalmente, o meu percurso académico é em sociologia. Tenho um doutoramento em Sociologia dos Processos Culturais, e o meu tema de investigação era a relação entre comunicação social e migração. Comecei, portanto, como sociólogo e foi nesse contexto que comecei a usar o cinema como ferramenta para contar as histórias das pessoas com quem fui-me cruzando no trabalho de campo. Ou seja, o cinema entrou na minha vida por causa do meu interesse pelas migrações.

Segundo: sempre senti que a migração era o grande tema que estava a transformar o mundo, e então… por que motivo não haveria de falar sobre isso? A migração é uma questão que está a mudar os equilíbrios dentro das democracias, dentro das sociedades.

Hoje isso é mais claro do que nunca: a extrema-direita está a conquistar poder em muitos países, usando a migração como arma política. Estão a apontar o dedo aos estrangeiros pobres, ao invés de responsabilizar os seus próprios membros ricos e privilegiados.

E quanto a novos projetos? Voltará ao tema da imigração?

Neste momento, ainda estou a pensar no que farei a seguir, mas, para ser sincero, não tenho nada decidido. Ainda estou muito envolvido com a distribuição de “Berlinguer: La grande ambizione”, que, como referi, está a correr muito bem a nível internacional. O meu cérebro ainda está bastante ocupado com este filme. O que posso partilhar, no entanto, é que estamos a considerar montar um documentário sobre o impacto do próprio filme na sociedade italiana. Durante a distribuição em Itália, levei comigo a minha equipa — o diretor de som, o comentador — e gravámos várias discussões, encontros e situações ligadas à exibição do filme.

Nestes dias tenho andado a rever essas imagens, e talvez possamos montar um documentário a partir disso: um filme sobre as reações, sobretudo dos jovens, e sobre a relação entre esta memória (a de Berlinguer e do PCI) e o presente. Portanto, talvez o meu próximo filme seja esse: um documentário sobre o efeito que Berlinguer teve. Ainda está em aberto, mas é uma possibilidade muito real.

Giulia Louise Steigerwalt entre Moana, Cicciolina e a revolução que o desejo não salvou: “Esse é o meu cinema. É aí que está o meu olhar."

Hugo Gomes, 24.05.25

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A constelação de divas que uma visão proporcionou fez do entretenimento algo mais do que uma simples passagem ou um instantâneo escapismo. Digamos, é na fantasia — essa que se esconde para não ser rastreada pelos julgamentos da praça pública — que reside numa forma de liberdade, individual e, consequentemente, sexual

Riccardo Schicchi foi um desses impulsionadores. Fundador da Diva Futura, produtora de filmes pornográficos dos anos 80, estendeu uma passadeira vermelha de estrelas numa Itália ainda em conturbação com os seus desejos. Moana, Cicciolina, Eva Henger, entre outras, corpos entregues ao manifesto, preenchendo o libido dos espectadores, os sonhos mais íntimos e húmidos dos seus fãs. Porém, é nessa ligação com Schicchi que a maldição se desenrola. À imagem de todos os ciclos, existe um fim …  mas antes disso, uma decadência: começa pela moral, segue-se a estética e, rapidamente, proclama-se como a mais corrosiva das quedas.

Não se falou apenas de uma agência. Falou-se de um golpe num movimento livre, transgressor e antipuritano. Como lidar com o choque?

Diva Futura” assume-se parcialmente como uma biopic de Schicchi, concentrando-se na sua “pegada” (ou, diríamos melhor, no seu legado) e na órbita de beldades que ambicionavam sair das suas poses de simples pin-up. O filme, estreado no Festival de Veneza e com direito a encerrar a Festa do Cinema Italiano, chega agora às salas comerciais portuguesas com a promessa de libertar as mentes dos aprisionados, ou... conduzi-las a imagens desta envergadura.

O Cinematograficamente Falando … conversou com a realizadora Giulia Louise Steigerwalt sobre divas, pornografia, olhares, desejos e Schicchi como o herói traído pela perversão que acidentalmente criou.

Pergunta simples e, acredito, já bastante repetida: porquê este filme, e porquê Riccardo Schicchi?

Essa pergunta pode parecer repetitiva, mas para mim não é. Tudo começou quando li o romance da Deborah Attanasio [“Non dite alla mamma che faccio la segretaria”], e o que encontrei ali foi completamente diferente do que esperava daquele mundo. Depois tive a oportunidade de conhecer algumas das personagens reais e de aprofundar os acontecimentos, e devo dizer que continuei a ser surpreendida. Tudo foi muito inesperado!

Dentro daquele universo, descobri uma história profundamente comovente e, até certo ponto, romântica. Além disso, tratava-se de um recorte muito interessante dos costumes italianos, algo que ainda não tinha sido contado, mas com um lado muito encantatório. E mais: havia temas que continuam extremamente atuais. A narrativa cobre desde os anos 70 até os 90, estendendo-se até 2012, com a morte do próprio Schicchi, e mesmo assim, continua a dialogar com questões muito presentes nos dias de hoje: o que significa, afinal, ser uma família? Para além das definições rígidas, eles eram realmente uma grande família.

No plano pessoal, o Schicchi criou uma família muito bonita. Também havia a questão do amor: o que significa amar alguém e, ao mesmo tempo, deixá-lo ser livre? E qual a importância do consentimento quando falamos de sexualidade? Essa ideia estava na base da filosofia de Schicchi. Tudo isso me levou a querer contar esta história, que embora pertença ao passado, senti que ainda era incrivelmente viva e atual — sobretudo se contada do ponto de vista de uma mulher de hoje.

Sobre o elenco: como chegou a Pietro Castellitto para interpretar Riccardo Schicchi? E, sobretudo, como foi o processo de seleção das atrizes que interpretam as estrelas porno retratadas no filme? Refiro-me, claro, a figuras como Moana Pozzi e Cicciolina. Houve uma preocupação em reproduzir fielmente a sua imagética, os seus corpos?

Em relação ao Pietro Castellitto, ele foi o primeiro nome que me surgiu. Desde o início, queria muito trabalhar com ele. Tinha um grande apreço pelo seu trabalho e achava mesmo que era a pessoa mais adequada para dar vida ao Schicchi. É um ator extremamente talentoso e, embora já tivesse expectativas altas, ele conseguiu surpreender-me ainda mais. O Pietro tem aquela mistura que procurava: um olhar sonhador, uma certa ingenuidade, mas também uma faísca, uma energia quase mágica, algo quase de duende, diria [risos]. Fiquei muito feliz com o resultado, e trabalhar com ele foi verdadeiramente um prazer.

Quanto à escolha das atrizes para interpretar figuras tão icónicas como Moana Pozzi, Cicciolina ou Eva Henger, confesso que me preocupava bastante. São mulheres que fazem parte do imaginário coletivo italiano, ícones reais, e claro que havia a questão da semelhança física, da presença, dos corpos... mas, para mim, o mais importante era a capacidade interpretativa. Queria atrizes que conseguissem transmitir emoção, empatia, que fossem capazes de nos transportar verdadeiramente para dentro da história. Todas as que escolhemos são atrizes muito talentosas, muito preparadas, e sim, também são todas bonitas, mas o critério principal foi mesmo o talento.

No fim, aquilo que inicialmente me parecia um grande desafio — este processo de casting — acabou por se tornar algo mais simples, graças à qualidade das atrizes. O foco foi sempre na força emocional do filme, e creio que conseguimos manter isso como prioridade.

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Pietro Castellitto, Giulia Louise Steigerwalt e Barbara Ronchi no Festival de Veneza

O seu filme apresenta Riccardo Schicchi quase como uma figura beatificada, um visionário ingénuo e incompreendido. Não teme que esta abordagem, pouco crítica e algo adocicada, acabe por desresponsabilizá-lo das dinâmicas de poder e exploração que marcaram o universo pornográfico da época?

Compreendo essa leitura, mas para mim não se trata de uma abordagem acrítica. Antes de mais, é importante sublinhar que Schicchi não tinha qualquer atitude agressiva em relação às mulheres. Ele foi o primeiro a trazer a pornografia para Itália, e mais tarde arrependeu-se do que isso se tornou. Há uma clara distinção entre a visão inicial que ele tinha e o rumo que a indústria acabou por seguir.

Se olharmos para os filmes que ele realizava, conseguimos perceber um certo olhar artístico, há uma dimensão quase de conto de fadas, são trabalhos encantados, lúdicos, nunca agressivos. Há, aliás, uma intenção artística visível. Todas as pessoas que o conheceram, mesmo aquelas que hoje fazem parte de mundos completamente diferentes, dizem-me: “Finalmente alguém fez justiça à imagem dele.” Muitos deles viam-no como realizador e fotógrafo, mais do que como produtor, e não esperavam que a pessoa que trouxe a pornografia para Itália fosse tão... humana.

O que me interessou, precisamente, foi esse contraste: uma personagem quase infantil, ingénua, com uma visão muito própria sobre a sexualidade. Schicchi sempre se posicionou contra qualquer forma de encenação de violência nos filmes pornográficos. Ele não conseguia aceitar a associação entre sexualidade e violência: especialmente violência contra a mulher. Dizia: “Porque é que temos de ensinar às pessoas que podem excitar-se com a agressão a uma mulher?

Hoje, infelizmente, 95% da pornografia mainstream é violenta e isso exige que o espectador (muitas vezes muito jovem, estamos a falar de crianças de 12 anos a acederem a esse conteúdo) se identifique com essa violência. Há um momento catártico em qualquer narrativa, e a pornografia acaba por pedir ao espectador que se identifique com atos violentos. É assustador!

Neste contexto, a abordagem de Schicchi pareceu-me quase feminista. Mesmo sendo ele quem iniciou a exploração do corpo feminino na pornografia, havia nele um profundo respeito e uma consciência ética, e, mais tarde, um arrependimento verdadeiro. Ele percebeu que, uma vez aberta a “caixa de Pandora”, não se podia controlar o que os outros fariam com essa liberdade. Por isso, não encaro a minha abordagem como acrítica. Vejo-a como fiel ao que recolhi em tantos testemunhos. Esta figura contraditória — criador e crítico, idealista e arrependido — é precisamente o que me fascinou. É por isso que acredito que a sua história, e o debate em torno dela, continuam tão atuais.

Não achas que também contribuímos para isto tudo?”, pergunta Debora Attanasio (interpretada por Barbara Ronchi) num momento do filme que marca a transição para uma pornografia mais violenta e misógina — em contraste com a fantasia idealizada por Riccardo Schicchi. Como vê a evolução da pornografia até aos dias de hoje? O que mudou? E o trabalho de Schicchi tinha mesmo esse valor fantasioso, ou, no fundo, era apenas a mesma coisa, mas com outra estética?

Essa questão é muito importante. A verdade é que, a partir de certo momento, a pornografia começou a associar-se, de forma estrutural, à violência e isso tem consequências profundas, sobretudo hoje, com a disseminação massiva de conteúdo pela internet. O acesso é praticamente ilimitado, transversal, e começa muito cedo: as estatísticas indicam que muitos jovens têm o primeiro contacto com pornografia aos 12 anos.

O problema é que, em muitos casos, a pornografia tornou-se uma espécie de “educação sexual silenciosa”, feita fora de qualquer contexto crítico ou afetivo. Isso molda o imaginário das novas gerações de forma altamente manipuladora, e quando 95% dos conteúdos pornográficos são violentos — especialmente para com as mulheres — estamos perante um problema cultural gravíssimo.

No passado, muitas culturas representaram o erotismo ou o desejo, mas não necessariamente com essa carga de violência. Isso é algo específico da nossa época. No caso do Schicchi, o seu trabalho tinha, de facto, uma abordagem diferente. Encontrámos mais de 300 storyboards desenhados à mão por ele, alguns até foram usados no filme. Ele pensava visualmente, como um artista. Havia ali uma tentativa, talvez ingénua, de fazer algo com valor estético. Uma espécie de fantasia, sim … mas com respeito.

Desde muito jovem, ainda criança, Schicchi tinha uma enorme curiosidade pelo corpo feminino. Era algo quase sem pudor, mas não no sentido agressivo: ele olhava com fascínio, com uma curiosidade quase clássica, como a dos gregos antigos. Não havia violência no seu olhar, havia apenas desejo e admiração. No entanto, mesmo com essa abordagem, ele acabou por contribuir — involuntariamente — para a mercantilização do corpo da mulher. O que começou como um movimento de amor livre, herdeiro da contracultura dos anos 70, acabou por alimentar uma cultura de exploração que se tornou dominante.

Schicchi e Cicciolina foram, à sua maneira, revolucionários. Chegaram até ao Parlamento, quebraram tabus, enfrentaram o conservadorismo com provocações políticas e estéticas. Mas, ao mesmo tempo, abriram uma porta que não conseguiram fechar, e ele sabia disso. No final da sua vida, confessou a várias pessoas que se arrependia, não da pornografia em si, mas daquilo que, sem querer, acabou por desencadear.

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Há uma sequência do filme de que gosto particularmente — ao som de “Break My Body” de Hanne Hukkelberg — em que Eva Henger (interpretada por Tesa Litvan, com quem já trabalhou em “Settembre”) reentra na indústria pornográfica, num estúdio em Budapeste, e percebe a sua decadência. O filme sugere que essa decadência é resultado da sobreprodução pornográfica. Acha que essa "sobrepornografia", tão presente nos dias digitais de hoje, contribui não só para a banalização da pornografia, mas também para a vulgarização da fantasia?

Essa sequência foi realmente importante para mim. Mostra o momento em que Eva entra num circuito completamente diferente daquele que conhecia — um ambiente frio, impessoal, onde as mulheres são tratadas com enorme desrespeito. Ela percebe ali a brutalidade daquela nova realidade, marcada por um tipo de pornografia que já não tem qualquer preocupação estética ou emocional.

Concordo que há um fenómeno de sobreprodução, sim — uma quantidade absurda de conteúdos produzidos em série, sem cuidado, sem ética, quase sem humanidade. Mas, mais do que a quantidade, o que me preocupa é o tipo de abordagem que se tornou dominante: uma abordagem muitas vezes violenta, desrespeitosa e completamente alheia ao consentimento. As mulheres são frequentemente tratadas como objetos descartáveis. Muitas das atrizes com quem falámos durante a pesquisa relataram experiências profundamente traumáticas e é importante dizer: só porque uma mulher escolhe ser atriz pornográfica, isso não significa que o seu consentimento está garantido em todas as situações. Isso precisa de ser respeitado a cada momento, em cada cena.

E é aqui que, para mim, Riccardo Schicchi se destaca. Ele tinha uma sensibilidade diferente. Muitas vezes acolheu atrizes que vinham de experiências traumáticas noutros contextos e ofereceu-lhes alternativas: punha-as a trabalhar noutros setores, fora das filmagens, dava-lhes tempo, ou mesmo sugeria que parassem se percebia que estavam mal. Ele não compreendia como era possível filmar com alguém que estava em sofrimento. Para ele, isso era impensável.

Portanto, mais do que a quantidade de pornografia, o verdadeiro problema está na forma como se olha para a mulher, e como se trata a atriz que está ali, a desempenhar um papel. O respeito, o cuidado, o consentimento: são esses os pilares que se perderam ao longo do tempo. E é isso que a sequência em Budapeste tenta mostrar com tanta força.

Muito se discute hoje sobre o male gaze, o “olhar masculino”, e segundo muitos teóricos, aquilo que não faltava na indústria pornográfica dos anos 70 e 80 era precisamente essa glamourização do olhar masculino. Tenho curiosidade em saber: ao olhar para esse universo, sentiu a necessidade de mimetizar esse olhar ou tentou desconstruí-lo?

Foi uma questão que me coloquei desde o início. Contar uma história que nasce dentro da indústria pornográfica inevitavelmente obriga-nos a pensar sobre o olhar, e sobre como representar o corpo feminino. Sabia que teria de lidar com a nudez, com o erotismo, com a exposição do corpo. Mas como fazê-lo sem replicar o male gaze?

A resposta que encontrei foi seguir a emotividade das personagens. Não quis fazer disso um manifesto explícito nem uma desconstrução forçada. O que fiz foi colocar o meu próprio olhar: um olhar profundamente empático, natural, e, acima de tudo, feminino. Para as personagens retratadas, o corpo nu era algo natural, desprovido de escândalo. Quis respeitar isso.

Por isso, não me preocupei em mimetizar o olhar masculino, nem em desconstruí-lo sistematicamente. Simplesmente adotei o meu. Um olhar que procura estar com as personagens, sentir com elas. Por exemplo, naquela sequência da Eva Henger ao som de “Break My Body”, o meu instinto foi ficar com ela, com a sua dor, com a sua experiência naquele set pornográfico moderno, frio e desumanizado. Todo o resto (o cenário, os outros, a ação à volta) está desfocado, quase fora de campo. Porque o foco, para mim, era a sua vivência interior, a sua desilusão, a sua vulnerabilidade.

Esse é o meu cinema. É aí que está o meu olhar.

No final do filme, fica-se com a sensação de que a Itália vive um ambiente puritano-moralista, quase castrador das fantasias — tanto masculinas como femininas. No seu entender, Riccardo Schicchi pode ser visto como um visionário dessa transgressão, que talvez não tenha conseguido levar até ao fim? Ou será antes um cúmplice da própria ambiência moral e política que se vive hoje?

A Itália é um país cheio de contradições. O peso da Igreja é uma presença constante e isto não é uma crítica à Igreja, mas sim uma constatação de um facto cultural: há uma forma muito italiana de lidar com o que é considerado “pecado”. Ou seja, tudo o que permanece escondido, silencioso, quase subterrâneo, é tolerado. Mas quando alguém tenta trazer isso à luz do dia, torna-se alvo de julgamento e moralismo. Riccardo Schicchi foi, nesse sentido, um verdadeiro anticonformista. Ele quis fazer uma revolução de costumes e, de certa forma, conseguiu. Mas não conseguiu completá-la. O seu objetivo era tornar tudo isto mainstream, visível, legítimo aos olhos da sociedade. E foi precisamente por isso que foi silenciado.

Curiosamente, aqueles que continuaram a explorar a sexualidade nas sombras (em clubes noturnos, em contextos marginais) nunca foram tão atacados quanto ele. Com Schicchi houve uma espécie de “perseguição” porque ele queria essa revolução à luz do sol. Na cultura italiana, ainda hoje, isso é algo dificilmente aceite. Portanto, não o vejo como culpado. Vejo-o como alguém que tentou desafiar uma estrutura profundamente moralista, mas que acabou tragado pelas contradições do próprio país. No fundo, essa é também a contradição central da história italiana: a convivência entre um desejo de liberdade e uma estrutura cultural que permanentemente a limita.

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Hoje em dia, tanto Moana Pozzi como Cicciolina são vistas mais como figuras icónicas do que como atrizes pornográficas no sentido estrito. Em Portugal, por exemplo, praticamente toda a gente sabe quem é Cicciolina — mesmo que muitos nunca tenham visto um único filme protagonizado por ela. Podemos então considerar figuras como elas ao nível de uma popstar ou rockstar? Ou talvez algo mais?

Sem dúvida, Moana e Cicciolina foram verdadeiras divas do universo pornográfico, mas mais do que isso. Tornaram-se ícones culturais de uma época e é importante dizer que esse tipo de fenómeno, tal como aconteceu com elas, seria impossível de repetir hoje.

Naqueles anos, elas não eram apenas figuras do cinema adulto. Estavam em todo o lado. Participavam regularmente nos programas de televisão mais populares, integravam o imaginário coletivo. No filme, incluí até algumas dessas participações. Eva Henger, por exemplo, apresentou o “Paperissima”, um programa de grande audiência, e bateu recordes de telespectadores. Moana e Cicciolina chegaram até ao Parlamento italiano, eleitas. Isso hoje seria impensável. Elas simbolizavam uma verdadeira revolução dos costumes. Por isso, sim … eram como popstars. Tornaram-se parte integrante da cultura pop, do debate cultural e político do seu tempo. Cicciolina, por exemplo, é conhecida em todo o mundo não apenas pelos filmes, mas por ter casado com Jeff Koons e por ter sido parte da sua obra artística. Ela transcendeu completamente o rótulo de atriz porno.

Moana, por sua vez, tinha a ambição de se reinventar, de reformular a sua imagem. O filme fala disso. Queria explorar outros papéis, mas foi-lhe negado esse direito. A sociedade não permitiu. Em vida, foi constantemente reduzida à sua identidade pornográfica. Só depois da sua morte foi reconhecida como uma mulher elegante, inteligente e uma figura de culto.

O que aconteceu com elas foi um fenómeno muito particular. Foram desejadas e idolatradas... mas também condenadas. A sociedade queria-as, mas simultaneamente empurrava-as para a margem. E isso, mais uma vez, revela aquela velha contradição italiana de que falávamos antes: um país entre o desejo de liberdade e um moralismo persistente.

Uma das resistências mais marcantes de Moana — e isso está bem retratado em “Diva Futura” — é a sua vontade de se emancipar do universo que a consagrou. Mas, infelizmente, parece nunca ter conseguido vingar noutros espaços. Em várias entrevistas, que o filme reproduz, Moana afirma que ser atriz pornográfica é uma espécie de maldição — uma vez dentro, nunca se sai. Concorda com essa visão?

Sim, na verdade, essa pergunta liga-se diretamente à anterior. Moana — como muitas outras — escolheu entrar na pornografia porque, naquele momento, não sentia estar a fazer algo “errado”. Havia uma naturalidade na relação com o corpo, com o desejo. Mas também havia o sonho de usar aquele caminho como trampolim para algo maior, para o estrelato, para o cinema convencional. Ela queria, de facto, ser atriz. Fez testes, tentou entrar noutros circuitos. Mas, como ela própria dizia, uma vez atriz pornográfica, para sempre atriz pornográfica. É como uma marca que nunca desaparece. Uma espécie de letra escarlate que a sociedade impõe.

E o mais paradoxal nisto tudo é que essa mesma sociedade que a condena... é também a que mais a deseja. É essa duplicidade que o filme tenta expor: a hipocrisia em que se consome com entusiasmo, mas se rejeita com moralismo. Eva Henger diz isso muito bem numa entrevista: elas não tinham as ferramentas para compreender completamente o que estavam a fazer, especialmente se tinham sonhos além da pornografia. A ilusão era de que podiam sair quando quisessem. Mas não podiam.

E mais ainda: há um duplo padrão muito claro. Os homens raramente são julgados com a mesma severidade. As atrizes são mais estigmatizadas, mais silenciadas. Foi algo que quis iluminar: essa diferença de tratamento, essa injustiça profundamente enraizada.

Com "Diva Futura", teve alguma reação dos familiares de Schicchi — refiro-me aos filhos, a Eva Henger, ou até mesmo à Cicciolina?

Sim. Recebi algumas reações dos familiares de Schicchi, como os filhos, a própria Eva Henger, e o atual marido dela, Massimiliano, além da Débora, do marido de Moana, Antonio, e muitas outras pessoas que colaboraram na agência naquele tempo. Eles participaram bastante, contaram muitas histórias e ajudaram-me a construir o filme.

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Quanto à Cicciolina, infelizmente não conseguimos estabelecer contacto com ela, também pelo desenvolvimento do filme. A reação dos que participaram foi muito positiva. Por exemplo, todos eles estiveram na estreia do filme no Festival de Veneza, no ano passado, e ficaram muito felizes e emocionados.

A Eva disse que, em muitos momentos, voltou a sentir o Ricardo ali, e o Pietro Castellitto, fez um trabalho impressionante estudando os vídeos, a forma de falar e os gestos do Riccardo [Schicchi], para capturar também a parte emotiva da personagem. Os filhos, a Eva, o Massimiliano, demonstraram-se muito emocionados e satisfeitos com o resultado. A Débora contou que, ao rever o filme, sentiu que estava a reviver aqueles anos, que foram alguns dos mais divertidos das suas vidas.

A cena no mar, no final do filme, é uma memória real, e eles se reconheceram completamente naquele retrato. Para mim, isso foi o mais importante: que eles sentissem que a história escolhida respeitou e refletiu realmente quem eles são e o que viveram.

E para finalizar, quanto a novos projetos?

Em relação a novos projetos, estou a tentar perceber o que fazer. Não quero parecer misteriosa, mas ainda estou a explorar possibilidades, por isso, e por enquanto, não tenho nada de concreto para partilhar.

Quando o "pai é meu" vira filme emancipado!

Hugo Gomes, 22.04.25

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"Primeiro a Vida, Depois o Cinema". Francesca Comencini refuta os ensinamentos do pai, o cineasta Luigi Comencini, vigorando uma releitura da sua vida numa espécie de "Cinema Paraíso" dos privilegiados, e talvez seja assim que "Il Tempo Che Ci Vuole" se revela tão sonhador, fabulista e repleto de amor-próprio quanto atravessado por uma vaidade inerente às egotrips dessa autoficção. Uma juventude conturbada, de uma realizadora que, ao tentar desprender-se da sombra paterna, parece apenas alimentar-se desse mesmo vulto.

Há sempre um certo grau de miopia com que Francesca entra em cena enquanto Francesca. O pai (maravilhosamente representado por Fabrizio Gifuni) manifesta-se como maestro da arte popular, em contraste com a cineasta das vanguardas, da autognose transformada em dor cinematográfica. É um duelo sem sangue o que opõe estas duas gerações: o primeiro, alicerçado no mundo e no seu afecto pela humanidade; a segunda, ancorada numa visão mais ensimesmada do cinema. Luigi é mais ternurento para com a grande tela. Vê os filmes como janelas — escapes — uma fuga da realidade sombria e do tempo que, parafraseando Gaspar Noé, "destrói tudo". Já Francesca (Romana Maggiora Vergano, uma das atrizes em destaque no sucesso “C'è ancora domani”), ao falar de si própria e ao repescar as memórias como matéria fílmica, faz do cinema um divã, uma psicanálise, uma terapia. Um palco onde se fala de si como uma escritora que transforma a câmara na pena da sua criatividade.

"Il Tempo Che Ci Vuole" é mais precioso enquanto homenagem ao pai do que como retrato da realizadora. E daí, surgem questões em torno da sua própria seriedade e do intuito de coleccionar e bracejar por entre essas recordações. Onde estão as restantes irmãs — Paola, Eleonore e Cristina? E a mãe? Porquê a sua ausência? É mesmo necessário um filme para mostrar um pai a demonstrar orgulho pela filha. “Estás num bom caminho!”? Há, talvez, um certo sentimento de oportunismo nesta história e na maneira como é contada. Por que fazer desta biografia, escanzelada na reflexão dos seus medos, uma alegoria onde a baleia de Pinóquio — evocada recorrentemente — surge como medo materializado, como pseudo-epifania, longe de se comportar no confronto da pequenez humana que Béla Tarr incitou no seu "Werckmeister Harmonies"?

Será este filme verdadeiramente verdadeiro — no sentido das suas intenções — para que possamos acolher o seu gesto com credibilidade? "Il Tempo Che Ci Vuole" percorre o tempo, sim, mas com algumas e evidentes malhas.

Patriarcas à deriva e outras criaturas alpinas

Hugo Gomes, 17.04.25

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Sobre “Vermiglio”, a questão não reside no seu formalismo de falso “filme de montanha”, ambientado nos últimos suspiros da segunda guerra, nem nas extensas ramificações familiares, inscritas numa espécie de “casa da pradaria” em versão italo-alpina. O que sinto — e talvez seja esse o ponto que mais me afastou daquilo que poderia ser o caminho de Maura Delpero ao trazer à luz a sua rica sensibilidade fílmica numa terceira longa-metragem — prende-se, sobretudo, com a forma algo tangencial com que aborda o sistema patriarcal. O patriarcado, longe dos discursos simplistas, posiciona não nos homens como cúmplices directos, mas antes como vítimas cooptadas — sujeitos igualmente capturados por uma lógica que os instrumentaliza, consome e, por vezes, transfigura em figuras monstruosas, moldadas pelos ideais hegemónicos de masculinidade normativa.

Mas vamos por partes. É um facto: a palavra “patriarcado” afasta, desde logo, muitos espectadores das encostas dos respectivos filmes, muitas vezes por estar associado a obras marcadas por um discurso inflamado ou por uma urgência de mudar o mundo com um estalar de dedos. “Vermiglio” não se inscreve nessas revoltas, ou, antes disso, há nele um certo carinho pelos homens, esses, patriarcas professorais, ‘vítimas’ da sua própria precariedade (entra-se classe social nestas montanhas austeras), mas cuja resposta às adversidades desperta esse lado maturado do sistema com que nasceram, sejam elas provindas do ambiente, do foro emocional, ou provocadas por jovens objetores da sua própria vida, ao invés do sacrifício bélico, como também aquele que falha em ser “homem” perante a constante exigência e aprovação do pai.

A polivalente feminista Virginie Despentes [de escritora a cineasta] no seu publicado manifesto, “A Teoria de King Kong” ("King Kong Théorie"), num daqueles parágrafos que esperneia até contra o já chamado senso-comum do feminismo capitalista (o promovida pelas ‘celebridades’ ou por ‘ativistas de redes sociais’), defende que, neste sistema ultra-patriarcal, a vida das mulheres não lhes pertence, pois são concebidas como propriedade estrutural desse mesmo sistema. No entanto, Despentes observa que, para os homens, a ‘sorte’ não lhes abona totalmente, os seus corpos pertencem “à produção, em tempo de paz, e ao Estado, em tempo de guerra".

Dito isto, e recusando a dicotomia simplista do “homem enquanto inimigo comum”, há a proposta de que também este é vítima dessa trituração. “Vermiglio” sugere esse olhar compassivo sobre o universo masculino desta comunidade, impregnados pelo dever de um patriarcado intrínseco. Nascem e crescem sob o conceito de “ser homem”, e assim se tornam. Nesse discurso resulta no melhor da obra, atribuindo-lhe uma visão ampla para mais do que uma mera denúncia por via de um contexto histórico. O seu ponto fraco, no entanto, emerge da negligência em desenvolver os subenredos masculinos, que, embora sugeridos, não chegam a consolidar-se como elementos narrativos autónomos, focando-se apenas no trio de mulheres jovens: a inocente, a pecaminosa e a talentosa. 

São decisões — e o cinema, na sua arte, vivem dessas decisões — que deixam antever um quadro cinematográfico composto, em que o frio — físico e emocional — actua como fissura dramaticamente simbólica. É um cinema do “não-dito”, que encontra na ausência, na contenção e na sugestão a sua forma privilegiada de expressão.

O velho Ulisses ...

Hugo Gomes, 16.04.25

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Enquanto vem e não vem a tal “Odisseia” de Christopher Nolan, “contentamo-nos” com este “The Return”, um regresso de Ulisses à ilha de Ítaca, num tratado desencantado e seco, o que por momentos o seu realizador - Uberto Pasolini - fazendo uso do seu apelido sem associações ao incontornável conterrâneo (Pier Paolo Pasolini, como é óbvio), incute uma secura estranha, quase incómoda, e um quê de realismo sobre a obra de Homero.

Contudo, o seu holofote, vendido como tal, está em outros regressos: o de Ralph Fiennes e Juliette Binoche (28 anos depois do oscarizado “The English Patient”). Ambos são, de facto, um filme à parte dentro das desbravuras desta barbaridade entre homens, numa mitologia lírica que se materializa pela graça da luz, e é precisamente nesses olhares e ressentimentos dos veteranos que a obra sobressai, face a um elenco disperso, entre a incapacidade ou o registo de teatrinho das palavras — sem o Verbo concretamente polido. “The Return”, ou “O Regresso de Ulisses”, na instância do bom português, constrói-se como arco e flecha: na constante destreza de manter uma adaptação literal sem se esquivar à treloucação da alegoria, enquanto isso mesmo, alegoria, e é aí que a tal modernização — aquela que adivinhamos que Nolan incutirá no seu all-star filme de estúdio — está ausente, num depurado projeto sui generis, porém condenado pelo desequilíbrio de forças.

Nem todos são Ulisses. Nem todos são Fiennes, nem sequer Binoche. E muito menos, nenhum deles é Homero. Mas também não nos exaltamos com o supra-saudosismo da fantochada. Se a dita dissonância impera aqui, há que fazer dela o nosso elixir dos deuses. Uma tentativa desigual de arcaísmo cinematográfico.

"Chiara mia, come possiamo affrontare un mondo senza Marcello?"

Hugo Gomes, 15.04.25

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Christophe Honoré deve, como muitos de nós, ter olhado para a face da sua colaboradora Chiara Mastroianni e notado, naquele seu rosto, as semelhanças ditadas pela sua genética — nomeadamente a do pai, Marcello Mastroianni — a fazer-se sentir e  confluir naqueles traços de mulher. Supondo isto, terá-lhe proposto um dispositivo carnavalesco: biografar o actor numa panóplia metamorfósica, quase metalinguística, sem nunca esconder o lado farsola. Chiara é Chiara, esmagada pelas constantes comparações da sua árvore genealógica, “e que tal seres mais Mastroianni do que Deneuve?”, deixando-se engolir por esse parentesco como um confortável distúrbio identitário.

Portanto, veste-se como o pai numa incursão (ou digressão) de Fellini, vive as “Le Notti Bianche” de Visconti (esse magnífico e, por vezes, esquecido filme em que uma estranha partiu o coração ao nosso galã… imperdoável), e regressa à Roma de “La Dolce Vita”, faltando apenas levitar sob o vento balnear. “Marcello Mio” faz questão de nos pontuar com essa vaidade da máscara, da imitação como forma de homenagem, não no processo ou na via de, mas na protagonista sujeita a esse propósito. Talvez se sinta aqui uma constante inversão: a da veneração e, igualmente, a do privilégio. Porque, no fundo, há uma camada que anseia sobressair face às revestidas e encarapaçadas diretrizes do tributo: o de Chiara. E onde está Chiara nisto tudo? A resposta, óbvia, está em todo o lado. Ela é o centro da jornada, mais do que o fantasma que incorpora como num ritual de candomblé. Fala-se de Marcello para se falar de Chiara, mas Honoré confunde o espectador com as suas constantes piscadelas: “olha aqui Scola, olha aqui Visconti, olha aqui Fellini … e sempre haverá Fellini entre nós”.

Talvez seja o ímpeto de desejar algo mais furtivo nesse campo da persona, em vez de se perder nas memórias retiradas do bolso da frente em prol do pai. Mas, se o caminho era esse, “Marcello Mio” funciona como esse passeio pelas assombrações e pelos romances fora-de-tempo (invocando a passagem de Melvil Poupaud, ao referir que “os actores vivem para interpretar os amantes dos outros e os fantasmas”). Contudo, não existe nada de verdadeiramente felliniano aqui! Dizer que sim é recorrer à via fácil do adjetivo, apenas porque Marcello e Federico eram (e são) duas dimensões indissociáveis. Presta-se, sim, à vontade de o ser, mas nunca à verdadeira catarse do estilo. Fellini é Fellini, Marcello é Marcello, e Chiara… bem, Chiara ainda se está a descobrir. Se é mesmo Mastroianni ou Deneuve, ou algo novo, gerado dessas duas “forças". Mas ainda tem muito por onde caminhar…

Daniele Luchetti: "cresci com um cinema em que era preciso discutir para completar a experiência."

Hugo Gomes, 16.03.25

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Daniele Luchetti retoma as páginas de Starnone e, através de “Confidenza”, resolve tratar o espectador não como passageiro, mas como cúmplice de uma estratégia de suspense, hoje quase obsoleta pela fome desvairada do público por respostas exactas. Por isso mesmo, encontra-se nessa sugestão a sua ponta de inovação. Thriller que revolve um casal que, para manter a confiança mútua, decide segredar o seu mais escabroso segredo. O resultado é um constante jogo de bluff e suspeita, num clima adensado pela banda sonora de Thom Yorke [Radiohead] — e, dessa feita, um sucesso de bilheteira em solo italiano. Por cá, antes da sua revelação em Roterdão de 2024, fechou a 17ª Festa do Cinema Italiano e, quase um ano depois, chega às salas com um desafio aos espectadores portugueses: estarão aptos a sentir uma narrativa, ao invés de apenas conhecê-la?

O Cinematograficamente Falando … trocou umas breves palavras com o realizador sobre os pontos fulcrais desta sua obra, com o ator Elio Germano ao leme deste vertigo.

O que o fascinou neste livro de Domenico Starnone para proceder à sua adaptação?

O romance de Starnone atraiu-me muito por duas razões: uma é o conteúdo existencial, ou seja, a representação de um “homem assustado”, podemos definir assim, e a segunda, por outro lado, foi a proposta de invenção no que requer construir toda a narração em torno de um dito e no não-dito. Foram elementos que depois tive de transpor e transformar num filme. Evidentemente, que não tinha a ferramenta da escrita para poder entrar nos pensamentos da personagem, por isso tive de encontrar uma forma de construir essa tensão, de criar um interesse cinematográfico e igualmente libertar o filme de uma quotidianidade da escrita que era interessante em papel, mas que poderia não funcionar numa transposição direta para o cinema. Desta forma tive que encontrar um estilo, uma chave, e o encontrei sob o registo de thriller. Com isto tudo, devo garantir que o filme e o livro se assemelham pouco.

Mas é a terceira vez que adapta um livro deste autor, recordo “La Scuola” (1995) e “Lacci” (2020). O que tem este escritor de especial que o faz querer adaptar as suas histórias?

Certamente, sempre que leio um livro dele, parece-me que construiu um pedaço da minha biografia. Evidentemente, temos traços de personalidade em comum, uma formação cultural semelhante, mesmo que ele tenha vinte anos a mais do que eu. No entanto, há algo mais profundo, que são os grandes temas das nossas gerações, e, por isso, tenho a sensação que ele me poupa o trabalho de investigar a mim mesmo. Ao investigar a si próprio, no fundo, estou a fazê-lo sobre mim.

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Daniele Luchetti

No filme, nem no livro existe essa revelação do segredo oculto. Não desejo, como muitos jornalistas o fizeram em variadas entrevistas, questionar o que realmente se tratava esse segredo guardado a sete chaves, mas se, durante o processo de escrita e de rodagem deste filme, havia uma ideia, sugerida que fosse, do que seria, e assim construir um filme envolto dessa ideia?

Sim, digamos que passei um ano e meio de escrita em torno dessa questão. A verdade é que foi Francesco Piccolo [co-argumentista] quem me fez manter-me firme na ideia de ser fiel ao conceito do livro, que é o mesmo do filme – criar esse buraco negro. É claro que coloquei algo de meu dentro disso. Por exemplo, não revelei certas coisas aos atores, ao invés disso pedi-lhes que cada um encontrasse, por si só, um ponto de vergonha, um ponto de escândalo no presente. Acredito que eu e os atores estávamos envolvidos nesse elemento do segredo, mas cada um tinha algo diferente em mente.

Porque, na verdade, os atores gostam de fazer um filme sobre ambiguidade, mas querem certezas para poder trabalhar. Querem saber: "O que estou a dizer? O que estou a pensar? O que estou a comunicar ao outro?" Foi aí que pedi a cada um que trouxesse o seu próprio segredo. Não queria um filme que desse um significado fechado, mas um filme que produzisse significado. Não um filme com uma mensagem única, mas um que gerasse possíveis mensagens. Como se fosse um objeto, uma máquina que, dependendo de como a giramos, produz um som ou outro.

Confesso que quando via o seu filme, e não conhecendo o romance original, desejava no meu íntimo que o segredo não fosse revelado, e assim concretizou-se a fantasia. Interpreto que essa vontade de permanecer oculta a confissão serve quase de forma combativa à audiência atual, aquela habituada a plot twists, ao tudo explicado, e, por sua vez, às produções que alimentam esse conformismo. “Confidenza” é a preservação do bom cinema sem resposta?

Estou absolutamente de acordo consigo. O cinema americano e a televisão comercial acostumaram-nos sempre a fechar todas as pontas, como se o público precisasse de alguém que o pegasse pela mão e o ajudasse a chegar a uma conclusão. Mas cresci com um cinema em que, depois do filme, era preciso discutir para completar a experiência.

E há outro elemento: ao longo da minha vida, vi inúmeros filmes em que se anunciava uma grande revelação. Adorava esperar por essa revelação, mas detestava ouvi-la, porque nunca estava à altura das expectativas, por isso, tentei encontrar um modo de eliminar esse problema.

E como conjuga a banda sonora de Thom Yorke na atmosfera do seu filme?

Quando ele leu o guião, revelou-me que sentiu um desconforto durante em toda a sua leitura, como se em cada relação houvesse algo errado, em cada cena de diálogo houvesse algo profundamente desajustado, desequilibrado. Então, fez a sonoridade de forma "errada" para o filme, para evitar que o público se sentisse num estado contínuo de desequilíbrio. E foi por isso que lhe pedi principalmente para trabalhar nos subtextos, na tensão, nas ‘coisas não ditas’, mas de forma sistemática. Sim, a comunicação é que seja vocacional.

Há um desconforto subliminar ao longo deste filme e do protagonista, principalmente na sua relação, enquanto professor de uma aluna, que mais tarde será um casal. Refiro isto porque encontrei inúmeras entrevistas no âmbito deste filme, em que se falou muito de masculinidade tóxica e feminicídio. Perante essas questões que lhe lançaram, pergunto se pensou nestes temas enquanto fazia este filme?

Tenho uma visão, obviamente, democrática, de esquerda, progressista, etc. Porém, também é verdade que essa redefinição da relação homem-mulher não é tão fácil quanto se pensa. Porque, deixando de lado os episódios extremos, como a violência, etc. – essas são reações criminosas, ações criminosas – o problema está exatamente no quotidiano. Ou seja, o problema no quotidiano é para quem vive numa situação democrática, num casal que deveria ser libertado, mas que, pessoalmente, não consegue libertar-se de certos comportamentos automáticos.

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Por exemplo, não aceitar a igualdade num casal, não aceitar a inversão de papéis, não aceitá-la psicologicamente, não nos atos práticos. A inversão a ser feita é psicológica, psíquica, e isso é complicado, porque temos centenas, senão milhares, de anos de literatura, de construção do imaginário, de construção de arquétipos, de construção de... provavelmente das nossas conexões neurológicas, que são culturais, mas que também se tornaram naturais. Inverter tudo isso de uma só vez não é nada fácil.

Desde que “Mio fratello è figlio unico” (2007) estreou, os seus filmes sempre chegaram aos cinemas do nosso país, e posso garantir que existe uma certa cinefilia bastante fascinada pelo seu cinema. Contudo, na altura de fazer uma retrospetiva do cinema italiano atual, sinto que Luchetti é deixado um pouco de lado dos holofotes, e talvez associe isso ao próprio estado do cinema italiano. Portanto lhe pergunto, como vê a indústria atual e como acha que a indústria italiana o vê a si?

Sou exatamente como o resto da indústria. Estamos desorientados porque é um momento de transição bastante importante. Grande parte dos filmes que antigamente seriam adequados para o cinema, hoje também o são para as plataformas, e isso obriga-nos a mudar algo. Muitos dos meus colegas, os da minha idade, entram e saem, fazem um filme para o cinema, um filme para as plataformas, uma série de televisão. E nós ainda estamos a tentar entender esse vaivém, e sobretudo essas mudanças de produção.

Acredito que a narrativa clássica, que antes era feita para o cinema, hoje pode ser feita com bastante satisfação para as plataformas, enquanto no cinema deve haver espaço para algum tipo de experimentação. Devemos reservar para a sala de cinema não o produto clássico, mas o produto de ponta, aquele que busca inovar. Essa é a minha ideia, e a minha tentativa de cinema de hoje em dia.

Confia ...

Hugo Gomes, 11.03.25

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O que impressiona em “Confidenza” não é o seu constante e hercúleo equilíbrio em manter a sua atmosfera de suspeita em notas altas, nem sequer do desespero nunca escondido através do olhar de Elio Germano (um ator notável, diga-se de passagem), e sim, em subverter as expectativas e a recusa de saciar facilmente as fomes dos seus espectadores. 

Em dias como estes, em que notamos uma indiferença naquilo naquilo que o espectador vê ou deixa de ver, exigindo dos seus filmes um cumprimento para a sua própria intelectualidade, ou encará-los como meros puzzles para serem resolvidos com "teorias". O que Daniele Luchetti (“Mio fratello è figlio unico”, “Lacci”) exerce com esta adaptação de um livro de Domenico Starnone é o de manter o seu macguffin, o segredo confessado, ou melhor segredado ao ouvido, como um mistério sem revelação à vista, porque o que move a narrativa não é o que é a realmente a confidência, mas a existência dessa confidência, sempre apoiada pela banda-sonora atmosférica de Thom Yorke. Portanto, ver  “Confidenza” é penetrar num "e se" quanto aquilo que esperamos contrair nas metragens, ao invés de termos a garantia dos seus nós atados e de como tudo se conjuga num final pleno. Não vemos plot twists nem exigências de género num thriller carpinteiro com entrelinhas para serem dissecadas e interpretadas à maneira do freguês. 

Mesmo que a sua especialidade seja uma efêmera curiosidade e pode-se esgotar num visionamento apenas, Luchetti brinca com o espectador, fazendo dele "gato-sapato" e "tripas coração" para com o destino deste tão ambíguo personagem, e mesmo assim a desafiar a nossa empatia. Sim, senhor ...

"Disco Boy", falando com Giacomo Abbruzzese: "a alternativa a escapar do horror é 'dançar com o inimigo.'"

Hugo Gomes, 28.10.24

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Apresentado na edição de 2023 do Festival de Berlim, “Disco Boy” é uma história de identidades desejadas em conflito bélico ou colérico, que une Paris com a Delta de Niger, com a música assumida enquanto força utópica para personas antípodas. Seguimos Alexey (Franz Rogowski), migrante bielorusso que atravessa fronteiras e margens com o objetivo de se juntar à Legião Estrangeira Francesa, o plano é servir a essa tropa com a identidade francesa em vista como maior das recompensas, do outro lado um combatente nigeriano, Jomo (Morr Ndiaye), projecta-se numa outra vida, longe do seu alcance. 

A primeira longa-metragem do italiano Giacomo Abbruzzese, “Disco Boy” é uma produção de multi-esforços europeus como forma a preservar a sua ambição e visão original, uma valsa com a morte e com a vida, com o mesmo ritmo e bailado. Tendo estreado em Portugal no FEST de Espinho, o filme chegou às salas nacionais, prometendo o embate de ideias e o incentivo de uma nova força, a “dança com o inimigo”. Mas quem é verdadeiramente o inimigo?

Conversamos com o realizador sobre o projeto, e as custas dessa visão e como “Disco Boy” se comporta perante a nossa sociedade.  

Sei que algumas destas perguntas já foram feitas desde a estreia do filme no Festival de Berlim de 2023, porém, sabendo que este filme foi feito ao longo de 10 anos, gostaria de questionar o que aconteceu durante esse período? O que mudou desde a ideia inicial até ao filme que temos agora?

Na verdade, o cerne do filme não mudou muito. Desde o início, era sempre sobre Alexey, um bielorrusso ilegalmente chega à França com o intuito de se juntar à Legião Estrangeira. Depois havia esta outra linha narrativa— a história de Jomo, que envolvia um grupo de revolucionários ou ecoterroristas, dependendo da perspetiva. No Delta do Níger, essas duas histórias entrelaçavam-se. O conceito central e até a estrutura permaneceram os mesmos. Lembro-me de fazer uma exibição privada na Berlinale, onde um amigo meu, um argumentista do Reino Unido, esteve presente. Ele disse: “É incrível—li o esboço para este projeto há dez anos, e continua a ser esse filme!

Mas, ao mesmo tempo, escrevi 25 versões diferentes do guião. Por um lado, isto era sobre adaptar a ambição e o alcance do projeto para encaixar num orçamento viável. Trabalhei em tudo—nos diálogos, as personagens, na transição de uma cena para a outra—em busca de uma precisa atmosfera e desenvolvendo o filme ao longo do processo. Artisticamente, esta transformação não teria demorado dez anos em circunstâncias diferentes, especialmente se o financiamento para ele tivesse sido mais acessível.

Nas condições de hoje, um projeto como este poderia ter levado cinco anos. Mas o processo foi demorado porque, embora tentássemos torná-lo viável, continuava a ser um filme com, pelo menos, um orçamento de 3 milhões de euros. No cinema independente atual, continuavam a dizer-me: “Já não fazemos filmes assim. É impossível ter este orçamento para uma longa-metragem de estreia, a menos que haja uma grande estrela associada.” Queria trabalhar com o [Franz] Rogowski, que, naquela altura, ainda não era uma estrela …

Mas hoje, é uma das caras mais presentes do cinema europeu!

Absolutamente. Agora o é, mas naquela altura, o Rogowski não era um nome que pudesse ajudar a angariar o orçamento—bem pelo contrário. Alguns até hesitaram por causa dele. Tive de defender a minha escolha de Rogowski às redes de televisão ou a alguns produtores, que estavam a pressionar por nomes mais sonantes, mas sabia que ele era a melhor escolha. Esta decisão foi, principalmente, uma escolha artística.

Depois, havia a dura realidade de assegurar financiamento, que envolvia a aplicação constante, a troca de produtores e a navegação por contratempos. Em determinado momento, estava a trabalhar com um produtor que disse: “Acho que conseguimos angariar um máximo de 1,5 milhões de euros, mas vais precisar de cortar todas as cenas africanas e manter um elenco francês.” Para mim, isso mataria a essência do filme. Então, arrisquei e disse-lhe que, sob essas condições, não poderia prosseguir. Exortei-o a vender o projeto, e, eventualmente, novos produtores, mais jovens até, entraram a bordo. Como eu, eles tinham tido sucesso no formato da curta-metragem, e seriam a primeira vez que iriam abordar uma longa-metragem. Tinham uma postura fresca e colaborativa, o que foi revigorante.

Incrivelmente, em poucos meses, duplicámos o orçamento. Muitos que inicialmente disseram que “não” acabariam para o “sim”. Acho que, no final, isso fez toda a diferença.

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É impressionante que esta seja a sua primeira longa-metragem, porque é um filme bastante ambicioso para um primeiro projeto desse formato.

Acredito que as minhas curtas-metragens já eram bastante ambiciosas. As histórias que queria contar eram complexas e longe de serem simples. Sabia que precisava de criar esta narrativa de cowboy e encontrar um orçamento mínimo para capturar a essência que pretendia. No final, estou satisfeito com o que conseguimos alcançar.

No cinema, é preciso adaptar-se sempre às circunstâncias e às realidades que enfrentamos; não se pode dar ao luxo de ser rígido na sua visão. Considerando as condições desafiadoras que tivemos—especialmente o facto de termos apenas 32 dias para filmar, o que é muito apertado para um filme—estou contente com o resultado. Conseguimos criar algo que ressoa com a visão que tinha em mente. Acredito que é fiel à alma e à experiência que ansiava transmitir.

De onde veio este interesse na Legião Estrangeira?

A ideia central para o personagem de Alexey surgiu de forma inesperada. Estava numa discoteca na Apúlia [sul de Itália], a minha região natal, quando conheci um dançarino que tinha sido soldado. Fiquei intrigado com a forma como a mesma pessoa podia encarnar estes dois mundos opostos. Comecei a ver pontos de comunicação entre eles, como um sentido de coreografia, disciplina e uma força comum que culminam numa confrontação física.

No entanto, esta pessoa era italiana, e não queria retratar o exército italiano; era algo que não me interessava enquanto ponto de partida. De imediato, pensei na Legião Estrangeira Francesa, mais icónica e com uma tela mais ampla para explorar temas como a migração, a burocracia e o colonialismo. Estes temas tornaram-se uma perspetiva significativa para mim, especialmente porque vivi em Paris nos últimos 15 anos. Isso frequentemente me fazia questionar, como italiano em França, que perspetiva única poderia trazer à história que um realizador francês talvez não conseguisse.

A Legião Estrangeira pareceu-me interessante até porque existem relativamente poucos filmes sobre ela, especialmente considerando a sua importância para as forças armadas francesas, assim como o cinema americano explora frequentemente os seus Marines.

Assim de repente recordo o da Claire Denis (“Beau Travail”, 1999) e um com o Jean-Claude VanDamme (“Legionnaire”, 1998) …

Sim, são dois exemplos. Embora existam alguns bons filmes e alguns maus, realmente não há muitos que se concentrem na questão central que pretendia explorar: o facto de que um estrangeiro deve dar cinco anos da sua vida para obter um passaporte. Muitas das pessoas que se juntam à Legião Estrangeira são indocumentadas, à procura de uma segunda oportunidade na vida. Claro, também há nacionais franceses e europeus com documentos que escolhem alistar-se, mas a grande maioria são aqueles que vão lá pela promessa de um estatuto legal.

Fiquei fascinado pela dura realidade de sacrificar esses anos pela esperança de um futuro melhor. O filme é estruturado para refletir esta ideia de sacrifício. Também queria criar um filme de guerra que, pela primeira vez, permitisse ao 'outro' existir não meramente como uma vítima ou um antagonista por alguns breves momentos, mas como um personagem de uma história densa e complexa.

Nesta era de propaganda de guerra total, o mundo está proliferando com narrativas que frequentemente negam a possibilidade de entender as perspectivas dos outros. Todos acreditam na sua própria justiça, o que perpetua o conflito. O cinema oferece uma oportunidade única de ver o mundo pelos olhos de outra pessoa—alguém muito diferente de nós, seja em termos de género, estilo de vida ou etnia. Este é um dos aspectos mágicos do filme: permite-nos entrar numa outra perspetiva, o que acredito ser crucial para transmitir complexidade.

É por isso que a estrutura deste filme é tão importante. No início, somos apresentados a uma perspetiva; depois, cerca de um terço do caminho, começamos a ver as coisas do ponto de vista de Alexey. Quando a luta começa, o espectador fica incerto sobre a quem apoiar. Em muitas obras, há um protagonista claro, e é incentivado a alinhar-se com ele, mesmo que a sua moralidade seja questionável. Mas neste filme, testemunhamos o contexto mais amplo do conflito, percebendo que nenhum dos lados é totalmente monstruoso ou justificado.

Tanto Alexey quanto Jomo, o ecoterrorista, não são simplesmente vítimas das circunstâncias; são indivíduos que sonham em melhorar as suas vidas. Para eles, o único caminho para essa melhoria envolve envolver-se na violência. Alexey sente-se compelido a alistar-se para garantir um passaporte europeu, lutando por interesses que não são os seus. Ele torna-se um mercenário, mas mesmo assim tem camadas de complexidade.

Da mesma forma, Jomo, que vemos de uma perspetiva diferente, é rotulado como ecoterrorista. Mas novamente, há profundidade no seu personagem. Hoje em dia, quando falamos em matar um terrorista, muitas vezes usamos eufemismos como “neutralizar”, o que desumaniza ainda mais o indivíduo. Esta linguagem remove a sua humanidade e nega-lhes a oportunidade de serem vistos como pessoas reais com as suas próprias histórias.

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Giacomo Abbruzzese

O que está a dizer é que a designação “terrorista” existe enquanto propaganda governamental? É um conceito político?

Especialmente em conflitos geopolíticos, os rótulos que atribuímos aos lados opostos podem ser drasticamente diferentes. Por exemplo, os russos podem ver os ucranianos como terroristas, enquanto os ucranianos podem rotular os russos como terroristas. A situação é ainda mais pronunciada no conflito Israel-Palestina, onde a terminologia muda dependendo da perspetiva.

É surpreendente como classificamos ações como terrorismo para um grupo, mas não para outro. Esta disparidade muitas vezes se resume ao valor que atribuímos às vidas; algumas vidas são vistas como mais valiosas do que outras. Isso, para mim, é inaceitável. Cada vida tem o mesmo valor, e por trás de cada morte há uma história única que merece ser ouvida. Se realmente entendêssemos as histórias do 'outro', poderíamos reduzir o conflito e a divisão.

No entanto, se continuarmos a focar apenas nas narrativas que ressoam connosco—particularmente no mundo ocidental— a nossa capacidade de empatizar com os outros diminuirá. Corremos o risco de reduzir as pessoas a meros números, em vez de reconhecer a sua humanidade. Este problema existe em ambos os lados de qualquer conflito.

Gostaria de mencionar Israel-Palestina visto que antes de virar cineasta foi fotógrafo do conflito por muitos anos. Essa sua experiência influenciou a visão para deste filme?

Absolutamente. Nunca teria concebido a ideia para este filme sem as minhas experiências em Israel e na Palestina. Mudou fundamentalmente a minha vida. Reformulou a minha perspetiva sobre o mundo, a política e até mesmo a realização de filmes. Aprofundou a minha compreensão do que queria expressar e despertou uma curiosidade em sair das zonas de conforto sobre como os medias e os políticos representam as questões. Não há respostas fáceis.

Como artistas, jornalistas e cidadãos, temos a responsabilidade de nos esforçar para compreender as realidades em que vivemos. As situações terríveis que enfrentamos muitas vezes decorrem da nossa incapacidade de desafiar as narrativas que ditam como as coisas devem ser. Dizem-nos que não temos escolha senão estar em guerra ou alocar mais fundos para a defesa. Mas isso não é apenas o que temos; é o mundo que estamos ativamente a construir. É ingênuo pensar em nós mesmos como os bons e os outros como os vilões.

Durante o meu tempo na região, fui profundamente impactado pelo nível de humanidade e complexidade do outro lado, algo que considero ausente na cobertura dos meios de comunicação ocidental mainstream sobre a Palestina. Embora haja escritores e artistas dessa área a ganhar reconhecimento, muitas vezes conhecemos todos os detalhes sobre figuras políticas, mas permanecemos ignorantes em relação às vozes de civis e artistas. Isso cria um efeito desumanizador. Se mostrássemos mais artistas e as suas perspetivas, entenderíamos que existe sensibilidade e complexidade nessa narrativa além da mera propaganda.

Esta complexidade é uma razão significativa pela qual queria criar um filme como este. O cinema opera no reino do imaginário, e pretendia construir uma narrativa de guerra que chegasse através de uma lente diferente—não apenas pela crueldade das imagens gráficas, que somos inundados em todo o lado. Queria abordá-lo de forma diferente.

Por exemplo, na luta entre Jomo e Alexey, o som desempenha um papel crucial, criando uma profundidade emocional que contrasta com a imagética. As imagens em si evocam uma sensação de dança e conexão entre os dois, formando um vórtice que puxa o filme para uma experiência mais psicadélica e xamânica na sua segunda metade. Isso cria uma espécie de buraco negro que muda a direção do filme, convidando os espectadores a explorar uma compreensão diferente do conflito.

Algo que interpreto no seu filme é que nenhum destes personagens quer estar onde inicialmente está. Alexey, um bielorusso que atravessa fronteiras, junta-se à Legião Estrangeira para mudar de identidade. Jomo na Nigéria, quando perguntam sobre os seus desejos, ele responde com a fantasia de ter nascido em um outro lugar. Então, nenhuma destas personagens quer ser quem são. Somos pessoas insatisfeitas neste mundo. Nascemos cronicamente insatisfeitas com as nossas identidades.

Não sei, mas é interessante aquilo que dizes. Não vi o filme exatamente dessa forma porque, para mim, por exemplo, o Jomo é alguém que não se move. Ele está a projetar-se de alguma forma, o que é normal nas pessoas, mas na verdade a sua escolha o faz ficar. A irmã dele quer partir, mas ele quer ficar. O Alexei quer ir embora, é o seu desejo. Isso é normal para um ser humano projetar-se com esperança. É por isso que estamos num momento muito, digamos, trágico para a Humanidade, é muito complicado para nós projetarmos um futuro melhor. Algumas pessoas aceitam ter uma vida muito complicada e difícil porque têm esperança para os seus filhos. Aceitam o seu fado: "Vou trabalhar arduamente porque, pelo menos para os meus filhos, vai ser melhor."

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A crise ambiental, a insegurança social, a divisão cada vez mais agravada entre classes está a aumentar cada vez mais, tudo isso faz com que a sociedade esteja a atomizar-se. O sociedade deveria ser antes era um pacto entre pessoas que decidem não se matar umas às outras e respeitar-se mutuamente, pois concordamos que, se ficarmos juntos, somos mais fortes. Esta seria a maneira como tudo funcionaria. 

Só que, como disse, a sociedade está a atomizar-se devido à avareza de alguns ou devido a um sistema impraticável e infuncional, sem promessas de proteção e trabalho para todos, criamos uma sociedade onde corremos o risco de, digamos, um outsider que chega e destroi tudo. Só que o outsider vem de dentro da sociedade. O problema é a sociedade. Por exemplo, penso no que aconteceu no Bataclan, Paris.

Não acredito que os problemas que enfrentamos sejam externos à sociedade francesa. As questões manifestam-se dentro da própria sociedade. Se algo trágico ocorre em Paris, há razões subjacentes específicas a esse contexto. Não vejo estes eventos como uma simples oposição entre “nós” e “eles”. Muitos dos indivíduos envolvidos nasceram e cresceram na França, fazendo parte do próprio tecido social. Quando uma sociedade deixa de funcionar de forma coesa, cria uma disfunção que pode, em última análise, destruir-nos a todos. Esta cegueira é perigosa, e é por isso que devemos reavaliar constantemente como coexistimos.

Voltando à nossa discussão anterior, esforço-me por criar personagens que possuem desejos; eles não se veem como vítimas. Querem melhorar as suas vidas e avançar. No entanto, esse desejo pode levá-los a situações perigosas. Por exemplo, tanto Jomo quanto Alexey entram numa espiral que pode levar à sua destruição.

Ainda assim, há um vislumbre de esperança no final deste filme, mesmo que seja retratado de uma forma sonhadora e utópica. Culmina numa afirmação poética: a alternativa a escapar do horror é 'dançar com o inimigo.' Acho essa frase— dançar com o inimigo —particularmente poderosa.

Só uma última pergunta. Gostaria que me falasse sobre a sua colaboração com a diretora de fotografia Hélène Louvart, e como surgiu a ideia desta atmosfera onírica para “Disco Boy”?

Hélène foi a minha primeira escolha. Entrei em contato com ela há quase dez anos. Leu o argumento e como era fã das minhas curtas aceitou de imediato. Ao longo da minha luta para conseguir financiamento, ela esteve sempre ao meu lado, como uma presença orientadora. Chegou um momento em que finalmente consegui o orçamento e comecei a planear a rodagem, apenas para ser desviado pelo COVID.

Hélène tem uma agenda tão ocupada quanto a do Presidente da República; todos querem trabalhar com ela. É muito requisitada por muitos realizadores de nome que estão a fazer os seus primeiros filmes, e eu, desde o início que era um admirador do seu trabalho. O que mais admiro enela é a sua disposição para correr riscos— não se esquiva de projetos desafiantes nem se acomoda numa zona de conforto. O seu profissionalismo, paixão e compromisso para com a sua arte são inspirações.

Infelizmente, perdi-a temporariamente quando a programação do meu filme foi adiada. Quando finalmente estive pronto para reiniciar, ela já estava reservada. Senti-me à deriva durante esse período, pois tinha opções limitadas devido à pandemia.

Enquanto continuei a fazer casting e a explorar outros diretores de fotografia, Hélène permaneceu como uma presença solidária. Conversávamos muitas vezes à noite; ajudava-me a encontrar soluções para o filme, mesmo enquanto trabalhava em outros projetos. Embora não fôssemos extremamente próximos ainda, ela realmente se importava com o filme, e senti profundamente esse seu apoio.

Então, em modo serendipidade, tive uma sorte quando o outro filme que devia fazer foi adiado devido à saída de um ator principal do projeto. Isso aconteceu apenas seis a oito meses antes da nossa filmagem programada, e como ainda não tinha encontrado um DOP com o qual estivesse satisfeito. Felizmente, Hélène ficou novamente disponível, o que foi uma sorte.

Quando finalmente colaboramos, a experiência foi incrivelmente orgânica. Sou alguém que está muito envolvido nos aspectos visuais do meu trabalho, como se pode verificar nas minhas anteriores curtas. Com Hélène, a comunicação fluiu sem esforço. Ela é aberta e respeitosa; se discorda de uma linha de diálogo, expressa as suas preocupações de forma ponderada.

As filmagens em si foram uma experiência extenuante. Ao longo de 32 dias, perdi sete quilos devido ao imenso stress. Não posso entrar em todos os detalhes, mas foi incrivelmente desafiador. No entanto, ter alguém como Hélène ao meu lado fez uma diferença significativa. Ver ela às seis da manhã trouxe-me conforto, e partilhávamos uma visão comum sobre o que queríamos alcançar.

Foi uma colaboração linda; acredito verdadeiramente que estamos perante uma rainha na sua arte.

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Malditos domingos! O que fazer com vocês e com as vossas criaturas?

Hugo Gomes, 20.07.24

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Arthur Mersault, a emblemática personagem do romance de Albert Camus - “O Estrangeiro” - constantemente declarava a sua irritação, ou melhor, ódio, pelo domingo. A somente existência provocava a sua celeuma, uma quase maldição, que coincidindo com a sua natureza algo passiva, “abraçava” no tormento da sua inevitabilidade. 

Simpatizo com essas dores, até porque os domingos me tornam igualmente numa pessoa inconsolável, um sintoma quase patológico, e previsivelmente ao deparar com um filme que se apropria do pior cenário possível - um domingo eterno. Mas calma, não é nenhum “Groundhog Day”, nem uma variante dessas narrativas de dias em loop, pudera, porque imaginar a convivềncia de um domingo para o resto das nossas eternidades seria um pesadelo, autêntico e desesperante. É sim, uma primeira obra com o apadrinhamento de Wim Wenders sobre três jovens que vivem à luz da sua inconsequência, o domingo permanece como o dia sem programa, longo a sua deambulação ou improviso. 

Una sterminata domenica” é o seu título, Alain Parroni o seu realizador - e estranhem-se, um dos três argumentistas - deste, do qual é descrito, um choque geracional e confronto rural e citadino, com Roma, a cidade eterna, ali ao lado, e o campo decadente do outro, sem bucolismos é verdade, só ruína, física como moral. É uma daquelas histórias de juventudes traídas, defraudadas pelo destino e portanto longe da empatia, só que com isso posso eu bem, de jovens longe das nossas sensibilidades o cinema é pleno. Os zero em comportamentos da vida deram-nos saltos formais e de linguagem cinematograficamente incríveis [“400 Coups”, de François Truffaut, a “Kids”, de Larry Clark, é só escolher], ou até despertaram em nós um certo sabor proustiano, seja o ‘gozo’ do último dia de aulas [“Dazed and Confused”, de Richard Linklater], seja da fuga enquanto sonho húmido a tresandar pelo lascivo [“American Honey”, de Andrea Arnold] e depois existe o vazio, não a demonstração do vazio nessas existências (Harmony Korine sabe fazer isso bem e de bom grado), mas o vácuo seja estético, narrativo ou até naquilo que “Una sterminata domenica” fornece de mão cheia, “maliquices” carregadas de hiperatividade videoclippeira, ou … visto os tempos serem outros, a linguagem despojada do caseirismo que as redes sociais nos trouxe com afinco nesta sociedade em serviência.

Depois a fornalha: estes jovens sem alma, encarregados de estabelecerem-se enquanto figuras-choque, funcionais vítimas de um futuro incerto, de um passado besta e de um presente recheado de decepções em todos os seus esporos, mas também são elas, as personagens fúteis onde a sua futilidade não é de todo uma crítica construtiva (o filme não tem esse miolo), mas um factor do seu embelezamento. Vencedor da secção Horizontes do Festival de Veneza, Alain Parroni demonstra que sabe filmar o céu num determinado plano picado, mas que não sabe de todo o que fazer com esta juventude de meio tostão. É o recorrer ao realismo simulacro, com um efeito encantatório que o envenena, e esquecer do seu cenário, do seu contexto sócio-político, ou outro elemento que não traria esta “viagem” em vão.  

Tal como os domingos, meios-dias de um raio que têm um efeito doentio sobre mim, este filme parece condensar algumas dessas propriedades com vigor.