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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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"Disco Boy", falando com Giacomo Abbruzzese: "a alternativa a escapar do horror é 'dançar com o inimigo.'"

Hugo Gomes, 28.10.24

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Apresentado na edição de 2023 do Festival de Berlim, “Disco Boy” é uma história de identidades desejadas em conflito bélico ou colérico, que une Paris com a Delta de Niger, com a música assumida enquanto força utópica para personas antípodas. Seguimos Alexey (Franz Rogowski), migrante bielorusso que atravessa fronteiras e margens com o objetivo de se juntar à Legião Estrangeira Francesa, o plano é servir a essa tropa com a identidade francesa em vista como maior das recompensas, do outro lado um combatente nigeriano, Jomo (Morr Ndiaye), projecta-se numa outra vida, longe do seu alcance. 

A primeira longa-metragem do italiano Giacomo Abbruzzese, “Disco Boy” é uma produção de multi-esforços europeus como forma a preservar a sua ambição e visão original, uma valsa com a morte e com a vida, com o mesmo ritmo e bailado. Tendo estreado em Portugal no FEST de Espinho, o filme chegou às salas nacionais, prometendo o embate de ideias e o incentivo de uma nova força, a “dança com o inimigo”. Mas quem é verdadeiramente o inimigo?

Conversamos com o realizador sobre o projeto, e as custas dessa visão e como “Disco Boy” se comporta perante a nossa sociedade.  

Sei que algumas destas perguntas já foram feitas desde a estreia do filme no Festival de Berlim de 2023, porém, sabendo que este filme foi feito ao longo de 10 anos, gostaria de questionar o que aconteceu durante esse período? O que mudou desde a ideia inicial até ao filme que temos agora?

Na verdade, o cerne do filme não mudou muito. Desde o início, era sempre sobre Alexey, um bielorrusso ilegalmente chega à França com o intuito de se juntar à Legião Estrangeira. Depois havia esta outra linha narrativa— a história de Jomo, que envolvia um grupo de revolucionários ou ecoterroristas, dependendo da perspetiva. No Delta do Níger, essas duas histórias entrelaçavam-se. O conceito central e até a estrutura permaneceram os mesmos. Lembro-me de fazer uma exibição privada na Berlinale, onde um amigo meu, um argumentista do Reino Unido, esteve presente. Ele disse: “É incrível—li o esboço para este projeto há dez anos, e continua a ser esse filme!

Mas, ao mesmo tempo, escrevi 25 versões diferentes do guião. Por um lado, isto era sobre adaptar a ambição e o alcance do projeto para encaixar num orçamento viável. Trabalhei em tudo—nos diálogos, as personagens, na transição de uma cena para a outra—em busca de uma precisa atmosfera e desenvolvendo o filme ao longo do processo. Artisticamente, esta transformação não teria demorado dez anos em circunstâncias diferentes, especialmente se o financiamento para ele tivesse sido mais acessível.

Nas condições de hoje, um projeto como este poderia ter levado cinco anos. Mas o processo foi demorado porque, embora tentássemos torná-lo viável, continuava a ser um filme com, pelo menos, um orçamento de 3 milhões de euros. No cinema independente atual, continuavam a dizer-me: “Já não fazemos filmes assim. É impossível ter este orçamento para uma longa-metragem de estreia, a menos que haja uma grande estrela associada.” Queria trabalhar com o [Franz] Rogowski, que, naquela altura, ainda não era uma estrela …

Mas hoje, é uma das caras mais presentes do cinema europeu!

Absolutamente. Agora o é, mas naquela altura, o Rogowski não era um nome que pudesse ajudar a angariar o orçamento—bem pelo contrário. Alguns até hesitaram por causa dele. Tive de defender a minha escolha de Rogowski às redes de televisão ou a alguns produtores, que estavam a pressionar por nomes mais sonantes, mas sabia que ele era a melhor escolha. Esta decisão foi, principalmente, uma escolha artística.

Depois, havia a dura realidade de assegurar financiamento, que envolvia a aplicação constante, a troca de produtores e a navegação por contratempos. Em determinado momento, estava a trabalhar com um produtor que disse: “Acho que conseguimos angariar um máximo de 1,5 milhões de euros, mas vais precisar de cortar todas as cenas africanas e manter um elenco francês.” Para mim, isso mataria a essência do filme. Então, arrisquei e disse-lhe que, sob essas condições, não poderia prosseguir. Exortei-o a vender o projeto, e, eventualmente, novos produtores, mais jovens até, entraram a bordo. Como eu, eles tinham tido sucesso no formato da curta-metragem, e seriam a primeira vez que iriam abordar uma longa-metragem. Tinham uma postura fresca e colaborativa, o que foi revigorante.

Incrivelmente, em poucos meses, duplicámos o orçamento. Muitos que inicialmente disseram que “não” acabariam para o “sim”. Acho que, no final, isso fez toda a diferença.

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É impressionante que esta seja a sua primeira longa-metragem, porque é um filme bastante ambicioso para um primeiro projeto desse formato.

Acredito que as minhas curtas-metragens já eram bastante ambiciosas. As histórias que queria contar eram complexas e longe de serem simples. Sabia que precisava de criar esta narrativa de cowboy e encontrar um orçamento mínimo para capturar a essência que pretendia. No final, estou satisfeito com o que conseguimos alcançar.

No cinema, é preciso adaptar-se sempre às circunstâncias e às realidades que enfrentamos; não se pode dar ao luxo de ser rígido na sua visão. Considerando as condições desafiadoras que tivemos—especialmente o facto de termos apenas 32 dias para filmar, o que é muito apertado para um filme—estou contente com o resultado. Conseguimos criar algo que ressoa com a visão que tinha em mente. Acredito que é fiel à alma e à experiência que ansiava transmitir.

De onde veio este interesse na Legião Estrangeira?

A ideia central para o personagem de Alexey surgiu de forma inesperada. Estava numa discoteca na Apúlia [sul de Itália], a minha região natal, quando conheci um dançarino que tinha sido soldado. Fiquei intrigado com a forma como a mesma pessoa podia encarnar estes dois mundos opostos. Comecei a ver pontos de comunicação entre eles, como um sentido de coreografia, disciplina e uma força comum que culminam numa confrontação física.

No entanto, esta pessoa era italiana, e não queria retratar o exército italiano; era algo que não me interessava enquanto ponto de partida. De imediato, pensei na Legião Estrangeira Francesa, mais icónica e com uma tela mais ampla para explorar temas como a migração, a burocracia e o colonialismo. Estes temas tornaram-se uma perspetiva significativa para mim, especialmente porque vivi em Paris nos últimos 15 anos. Isso frequentemente me fazia questionar, como italiano em França, que perspetiva única poderia trazer à história que um realizador francês talvez não conseguisse.

A Legião Estrangeira pareceu-me interessante até porque existem relativamente poucos filmes sobre ela, especialmente considerando a sua importância para as forças armadas francesas, assim como o cinema americano explora frequentemente os seus Marines.

Assim de repente recordo o da Claire Denis (“Beau Travail”, 1999) e um com o Jean-Claude VanDamme (“Legionnaire”, 1998) …

Sim, são dois exemplos. Embora existam alguns bons filmes e alguns maus, realmente não há muitos que se concentrem na questão central que pretendia explorar: o facto de que um estrangeiro deve dar cinco anos da sua vida para obter um passaporte. Muitas das pessoas que se juntam à Legião Estrangeira são indocumentadas, à procura de uma segunda oportunidade na vida. Claro, também há nacionais franceses e europeus com documentos que escolhem alistar-se, mas a grande maioria são aqueles que vão lá pela promessa de um estatuto legal.

Fiquei fascinado pela dura realidade de sacrificar esses anos pela esperança de um futuro melhor. O filme é estruturado para refletir esta ideia de sacrifício. Também queria criar um filme de guerra que, pela primeira vez, permitisse ao 'outro' existir não meramente como uma vítima ou um antagonista por alguns breves momentos, mas como um personagem de uma história densa e complexa.

Nesta era de propaganda de guerra total, o mundo está proliferando com narrativas que frequentemente negam a possibilidade de entender as perspectivas dos outros. Todos acreditam na sua própria justiça, o que perpetua o conflito. O cinema oferece uma oportunidade única de ver o mundo pelos olhos de outra pessoa—alguém muito diferente de nós, seja em termos de género, estilo de vida ou etnia. Este é um dos aspectos mágicos do filme: permite-nos entrar numa outra perspetiva, o que acredito ser crucial para transmitir complexidade.

É por isso que a estrutura deste filme é tão importante. No início, somos apresentados a uma perspetiva; depois, cerca de um terço do caminho, começamos a ver as coisas do ponto de vista de Alexey. Quando a luta começa, o espectador fica incerto sobre a quem apoiar. Em muitas obras, há um protagonista claro, e é incentivado a alinhar-se com ele, mesmo que a sua moralidade seja questionável. Mas neste filme, testemunhamos o contexto mais amplo do conflito, percebendo que nenhum dos lados é totalmente monstruoso ou justificado.

Tanto Alexey quanto Jomo, o ecoterrorista, não são simplesmente vítimas das circunstâncias; são indivíduos que sonham em melhorar as suas vidas. Para eles, o único caminho para essa melhoria envolve envolver-se na violência. Alexey sente-se compelido a alistar-se para garantir um passaporte europeu, lutando por interesses que não são os seus. Ele torna-se um mercenário, mas mesmo assim tem camadas de complexidade.

Da mesma forma, Jomo, que vemos de uma perspetiva diferente, é rotulado como ecoterrorista. Mas novamente, há profundidade no seu personagem. Hoje em dia, quando falamos em matar um terrorista, muitas vezes usamos eufemismos como “neutralizar”, o que desumaniza ainda mais o indivíduo. Esta linguagem remove a sua humanidade e nega-lhes a oportunidade de serem vistos como pessoas reais com as suas próprias histórias.

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Giacomo Abbruzzese

O que está a dizer é que a designação “terrorista” existe enquanto propaganda governamental? É um conceito político?

Especialmente em conflitos geopolíticos, os rótulos que atribuímos aos lados opostos podem ser drasticamente diferentes. Por exemplo, os russos podem ver os ucranianos como terroristas, enquanto os ucranianos podem rotular os russos como terroristas. A situação é ainda mais pronunciada no conflito Israel-Palestina, onde a terminologia muda dependendo da perspetiva.

É surpreendente como classificamos ações como terrorismo para um grupo, mas não para outro. Esta disparidade muitas vezes se resume ao valor que atribuímos às vidas; algumas vidas são vistas como mais valiosas do que outras. Isso, para mim, é inaceitável. Cada vida tem o mesmo valor, e por trás de cada morte há uma história única que merece ser ouvida. Se realmente entendêssemos as histórias do 'outro', poderíamos reduzir o conflito e a divisão.

No entanto, se continuarmos a focar apenas nas narrativas que ressoam connosco—particularmente no mundo ocidental— a nossa capacidade de empatizar com os outros diminuirá. Corremos o risco de reduzir as pessoas a meros números, em vez de reconhecer a sua humanidade. Este problema existe em ambos os lados de qualquer conflito.

Gostaria de mencionar Israel-Palestina visto que antes de virar cineasta foi fotógrafo do conflito por muitos anos. Essa sua experiência influenciou a visão para deste filme?

Absolutamente. Nunca teria concebido a ideia para este filme sem as minhas experiências em Israel e na Palestina. Mudou fundamentalmente a minha vida. Reformulou a minha perspetiva sobre o mundo, a política e até mesmo a realização de filmes. Aprofundou a minha compreensão do que queria expressar e despertou uma curiosidade em sair das zonas de conforto sobre como os medias e os políticos representam as questões. Não há respostas fáceis.

Como artistas, jornalistas e cidadãos, temos a responsabilidade de nos esforçar para compreender as realidades em que vivemos. As situações terríveis que enfrentamos muitas vezes decorrem da nossa incapacidade de desafiar as narrativas que ditam como as coisas devem ser. Dizem-nos que não temos escolha senão estar em guerra ou alocar mais fundos para a defesa. Mas isso não é apenas o que temos; é o mundo que estamos ativamente a construir. É ingênuo pensar em nós mesmos como os bons e os outros como os vilões.

Durante o meu tempo na região, fui profundamente impactado pelo nível de humanidade e complexidade do outro lado, algo que considero ausente na cobertura dos meios de comunicação ocidental mainstream sobre a Palestina. Embora haja escritores e artistas dessa área a ganhar reconhecimento, muitas vezes conhecemos todos os detalhes sobre figuras políticas, mas permanecemos ignorantes em relação às vozes de civis e artistas. Isso cria um efeito desumanizador. Se mostrássemos mais artistas e as suas perspetivas, entenderíamos que existe sensibilidade e complexidade nessa narrativa além da mera propaganda.

Esta complexidade é uma razão significativa pela qual queria criar um filme como este. O cinema opera no reino do imaginário, e pretendia construir uma narrativa de guerra que chegasse através de uma lente diferente—não apenas pela crueldade das imagens gráficas, que somos inundados em todo o lado. Queria abordá-lo de forma diferente.

Por exemplo, na luta entre Jomo e Alexey, o som desempenha um papel crucial, criando uma profundidade emocional que contrasta com a imagética. As imagens em si evocam uma sensação de dança e conexão entre os dois, formando um vórtice que puxa o filme para uma experiência mais psicadélica e xamânica na sua segunda metade. Isso cria uma espécie de buraco negro que muda a direção do filme, convidando os espectadores a explorar uma compreensão diferente do conflito.

Algo que interpreto no seu filme é que nenhum destes personagens quer estar onde inicialmente está. Alexey, um bielorusso que atravessa fronteiras, junta-se à Legião Estrangeira para mudar de identidade. Jomo na Nigéria, quando perguntam sobre os seus desejos, ele responde com a fantasia de ter nascido em um outro lugar. Então, nenhuma destas personagens quer ser quem são. Somos pessoas insatisfeitas neste mundo. Nascemos cronicamente insatisfeitas com as nossas identidades.

Não sei, mas é interessante aquilo que dizes. Não vi o filme exatamente dessa forma porque, para mim, por exemplo, o Jomo é alguém que não se move. Ele está a projetar-se de alguma forma, o que é normal nas pessoas, mas na verdade a sua escolha o faz ficar. A irmã dele quer partir, mas ele quer ficar. O Alexei quer ir embora, é o seu desejo. Isso é normal para um ser humano projetar-se com esperança. É por isso que estamos num momento muito, digamos, trágico para a Humanidade, é muito complicado para nós projetarmos um futuro melhor. Algumas pessoas aceitam ter uma vida muito complicada e difícil porque têm esperança para os seus filhos. Aceitam o seu fado: "Vou trabalhar arduamente porque, pelo menos para os meus filhos, vai ser melhor."

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A crise ambiental, a insegurança social, a divisão cada vez mais agravada entre classes está a aumentar cada vez mais, tudo isso faz com que a sociedade esteja a atomizar-se. O sociedade deveria ser antes era um pacto entre pessoas que decidem não se matar umas às outras e respeitar-se mutuamente, pois concordamos que, se ficarmos juntos, somos mais fortes. Esta seria a maneira como tudo funcionaria. 

Só que, como disse, a sociedade está a atomizar-se devido à avareza de alguns ou devido a um sistema impraticável e infuncional, sem promessas de proteção e trabalho para todos, criamos uma sociedade onde corremos o risco de, digamos, um outsider que chega e destroi tudo. Só que o outsider vem de dentro da sociedade. O problema é a sociedade. Por exemplo, penso no que aconteceu no Bataclan, Paris.

Não acredito que os problemas que enfrentamos sejam externos à sociedade francesa. As questões manifestam-se dentro da própria sociedade. Se algo trágico ocorre em Paris, há razões subjacentes específicas a esse contexto. Não vejo estes eventos como uma simples oposição entre “nós” e “eles”. Muitos dos indivíduos envolvidos nasceram e cresceram na França, fazendo parte do próprio tecido social. Quando uma sociedade deixa de funcionar de forma coesa, cria uma disfunção que pode, em última análise, destruir-nos a todos. Esta cegueira é perigosa, e é por isso que devemos reavaliar constantemente como coexistimos.

Voltando à nossa discussão anterior, esforço-me por criar personagens que possuem desejos; eles não se veem como vítimas. Querem melhorar as suas vidas e avançar. No entanto, esse desejo pode levá-los a situações perigosas. Por exemplo, tanto Jomo quanto Alexey entram numa espiral que pode levar à sua destruição.

Ainda assim, há um vislumbre de esperança no final deste filme, mesmo que seja retratado de uma forma sonhadora e utópica. Culmina numa afirmação poética: a alternativa a escapar do horror é 'dançar com o inimigo.' Acho essa frase— dançar com o inimigo —particularmente poderosa.

Só uma última pergunta. Gostaria que me falasse sobre a sua colaboração com a diretora de fotografia Hélène Louvart, e como surgiu a ideia desta atmosfera onírica para “Disco Boy”?

Hélène foi a minha primeira escolha. Entrei em contato com ela há quase dez anos. Leu o argumento e como era fã das minhas curtas aceitou de imediato. Ao longo da minha luta para conseguir financiamento, ela esteve sempre ao meu lado, como uma presença orientadora. Chegou um momento em que finalmente consegui o orçamento e comecei a planear a rodagem, apenas para ser desviado pelo COVID.

Hélène tem uma agenda tão ocupada quanto a do Presidente da República; todos querem trabalhar com ela. É muito requisitada por muitos realizadores de nome que estão a fazer os seus primeiros filmes, e eu, desde o início que era um admirador do seu trabalho. O que mais admiro enela é a sua disposição para correr riscos— não se esquiva de projetos desafiantes nem se acomoda numa zona de conforto. O seu profissionalismo, paixão e compromisso para com a sua arte são inspirações.

Infelizmente, perdi-a temporariamente quando a programação do meu filme foi adiada. Quando finalmente estive pronto para reiniciar, ela já estava reservada. Senti-me à deriva durante esse período, pois tinha opções limitadas devido à pandemia.

Enquanto continuei a fazer casting e a explorar outros diretores de fotografia, Hélène permaneceu como uma presença solidária. Conversávamos muitas vezes à noite; ajudava-me a encontrar soluções para o filme, mesmo enquanto trabalhava em outros projetos. Embora não fôssemos extremamente próximos ainda, ela realmente se importava com o filme, e senti profundamente esse seu apoio.

Então, em modo serendipidade, tive uma sorte quando o outro filme que devia fazer foi adiado devido à saída de um ator principal do projeto. Isso aconteceu apenas seis a oito meses antes da nossa filmagem programada, e como ainda não tinha encontrado um DOP com o qual estivesse satisfeito. Felizmente, Hélène ficou novamente disponível, o que foi uma sorte.

Quando finalmente colaboramos, a experiência foi incrivelmente orgânica. Sou alguém que está muito envolvido nos aspectos visuais do meu trabalho, como se pode verificar nas minhas anteriores curtas. Com Hélène, a comunicação fluiu sem esforço. Ela é aberta e respeitosa; se discorda de uma linha de diálogo, expressa as suas preocupações de forma ponderada.

As filmagens em si foram uma experiência extenuante. Ao longo de 32 dias, perdi sete quilos devido ao imenso stress. Não posso entrar em todos os detalhes, mas foi incrivelmente desafiador. No entanto, ter alguém como Hélène ao meu lado fez uma diferença significativa. Ver ela às seis da manhã trouxe-me conforto, e partilhávamos uma visão comum sobre o que queríamos alcançar.

Foi uma colaboração linda; acredito verdadeiramente que estamos perante uma rainha na sua arte.

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Malditos domingos! O que fazer com vocês e com as vossas criaturas?

Hugo Gomes, 20.07.24

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Arthur Mersault, a emblemática personagem do romance de Albert Camus - “O Estrangeiro” - constantemente declarava a sua irritação, ou melhor, ódio, pelo domingo. A somente existência provocava a sua celeuma, uma quase maldição, que coincidindo com a sua natureza algo passiva, “abraçava” no tormento da sua inevitabilidade. 

Simpatizo com essas dores, até porque os domingos me tornam igualmente numa pessoa inconsolável, um sintoma quase patológico, e previsivelmente ao deparar com um filme que se apropria do pior cenário possível - um domingo eterno. Mas calma, não é nenhum “Groundhog Day”, nem uma variante dessas narrativas de dias em loop, pudera, porque imaginar a convivềncia de um domingo para o resto das nossas eternidades seria um pesadelo, autêntico e desesperante. É sim, uma primeira obra com o apadrinhamento de Wim Wenders sobre três jovens que vivem à luz da sua inconsequência, o domingo permanece como o dia sem programa, longo a sua deambulação ou improviso. 

Una sterminata domenica” é o seu título, Alain Parroni o seu realizador - e estranhem-se, um dos três argumentistas - deste, do qual é descrito, um choque geracional e confronto rural e citadino, com Roma, a cidade eterna, ali ao lado, e o campo decadente do outro, sem bucolismos é verdade, só ruína, física como moral. É uma daquelas histórias de juventudes traídas, defraudadas pelo destino e portanto longe da empatia, só que com isso posso eu bem, de jovens longe das nossas sensibilidades o cinema é pleno. Os zero em comportamentos da vida deram-nos saltos formais e de linguagem cinematograficamente incríveis [“400 Coups”, de François Truffaut, a “Kids”, de Larry Clark, é só escolher], ou até despertaram em nós um certo sabor proustiano, seja o ‘gozo’ do último dia de aulas [“Dazed and Confused”, de Richard Linklater], seja da fuga enquanto sonho húmido a tresandar pelo lascivo [“American Honey”, de Andrea Arnold] e depois existe o vazio, não a demonstração do vazio nessas existências (Harmony Korine sabe fazer isso bem e de bom grado), mas o vácuo seja estético, narrativo ou até naquilo que “Una sterminata domenica” fornece de mão cheia, “maliquices” carregadas de hiperatividade videoclippeira, ou … visto os tempos serem outros, a linguagem despojada do caseirismo que as redes sociais nos trouxe com afinco nesta sociedade em serviência.

Depois a fornalha: estes jovens sem alma, encarregados de estabelecerem-se enquanto figuras-choque, funcionais vítimas de um futuro incerto, de um passado besta e de um presente recheado de decepções em todos os seus esporos, mas também são elas, as personagens fúteis onde a sua futilidade não é de todo uma crítica construtiva (o filme não tem esse miolo), mas um factor do seu embelezamento. Vencedor da secção Horizontes do Festival de Veneza, Alain Parroni demonstra que sabe filmar o céu num determinado plano picado, mas que não sabe de todo o que fazer com esta juventude de meio tostão. É o recorrer ao realismo simulacro, com um efeito encantatório que o envenena, e esquecer do seu cenário, do seu contexto sócio-político, ou outro elemento que não traria esta “viagem” em vão.  

Tal como os domingos, meios-dias de um raio que têm um efeito doentio sobre mim, este filme parece condensar algumas dessas propriedades com vigor. 

Sandro Veronesi, de "Colibri" a "Comandante": "escrever não é sobre controlo"

Hugo Gomes, 14.06.24

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Comandante (Edoardo De Angelis, 2023)

Un italiano vero”, o realizador Edoardo De Angelis avança neste episódio ambientado da Segunda Guerra Mundial, no seio do turbilhão geopolítico em águas internacionais com a história de Salvador Todaro, capitão do submarino Cappellini, que após uma investida a um navio belga, acabou por resgatar os 26 tripulantes do mesmo, da morte certa. Por que o fez? A “Lei do Mar”, pregada por Todaro, seguida pela exaltação dos valores italianos, foram a resposta.

Comandante” (que estreia agora nas salas portuguesas) promete ser um filme de guerra à sua moda antiga, de submarinos e tripulantes restringidos ao Oceano e ao cerco do couraçado. De nossa mente chegam-nos clássicos do subgénero como “Das Boot” ou “K-19”, mas o que encontramos verdadeiramente é uma obra com forte vertente ecuménica, humanista, para relembrar da nossa solidariedade e a sua “cegueira” perante facções, ideologias e divergências.

A escrita pertence a Sandro Veronesi, romancista popular e agraciado com os mais diversos elogios, cujas obras encontram uma nova existência na grande tela, seja personificadas por Nanni Moretti numa espera sem hesitações em “Caos Calmo” (Antonello Grimaldi, 2008), seja com Pierfrancesco Favino - que além deste “Comandante” - foi peça pessoal no filme “Il Colibrì” (Francesca Archibugi, 2022), a adaptação do trabalho mais famoso do escritor.

Durante uma das suas passagens por Portugal, mais concretamente durante a Festa do Cinema Italiano, na apresentação do filme, Sandro Veronesi partilhou connosco a sua experiência em argumentos cinematográficos e na escrita, como processo criativo e extensão da sua identidade.

É sabido que estudou arquitectura antes de se iniciar nas lides da escrita. Porquê a decisão? Será que perdemos um bom arquitecto para ganharmos um excelente escritor?

Nunca me considerei um arquitecto. Estudei arquitetura porque a encarei como um campo maravilhoso, e para isso fui para Florença, uma cidade que nos leciona arquitetura apenas caminhando pelas suas ruas. É um lugar onde tudo comunica arquitetura, especialmente no famoso centro da cidade. Embora os meus estudos tenham sido abrangentes e gratificantes, nunca me imaginei como um arquiteto.

Depois de concluí-los e obter o diploma, fugi de Florença para Roma, onde tinha amigos que, como eu, eram jovens e sonhavam em tornar-se poetas ou escritores. Eu também sonhava em tornar-me num, seja poeta ou escritor, imediatamente mudei de rumo e evitei qualquer oportunidade de trabalhar num estúdio de arquitectura ou em empregos relacionados. Depois de terminar os meus estudos, comecei do zero.

Claro que esta decisão foi tomada com o acordo dos meus pais, pois eu não tinha dinheiro, encontrei alguns pequenos trabalhos em Roma para ganhar algum, mas não era suficiente para me sustentar. O meu pai apoiou-me durante mais de um ano, até que finalmente encontrei um editor para o meu primeiro romance. A partir desse momento, a minha vida como escritor começou.

Eu estava incerto, na minha mente pensava: "Ok, deixa-me tentar. É melhor do que ficar em Florença e escrever apenas aos fins de semana. Deixa-me realmente dar uma oportunidade. Se falhar, sempre posso voltar e começar finalmente como arquiteto."

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Sandro Veronesi / Foto.: Matilde Fieschi

E esse risco foi bem-sucedido …

Sim, porque levei isso muito a sério. Mantive a ideia mais para deixar os meus pais confortáveis com o facto de que não viveria como um boémio, mas na realidade estava realmente a pensar em viver como um. Se o fracasso fosse explícito, tudo bem, teria algo para fazer. Eu sabia como me desenrascar num estúdio de arquitetura.

Numa das suas entrevistas sobre o seu livro "Il Colibrì", mencionou que a história começou com uma imagem forte na sua mente, e tentou encontrar significado a essa imagem. Frequentemente ouço que existem dois tipos de pessoas neste Mundo: aquelas cujos pensamentos traduzem em imagens e aquelas que as palavras são os seus pensamentos. No seu caso, parece que a sua formação em arquitectura o influencia a pensar em imagens. Esse pensamento visual serve como ponto de partida para o seu processo criativo na escrita?

A questão não é sobre pensar, porque sou mais guiado por imagens. Não estou a atuar; simplesmente deixo-me levar por essas imagens durante semanas, meses ou até anos. Não sei por que motivo tenho essas imagens ou sequências estruturadas na minha mente. Nunca escolhi pensar nelas; simplesmente acompanham-me, por vezes, tento descobrir onde e o porquê destas imagens formarem este mundo que carrego comigo, mas não as controlo.

Para mim, escrever não é sobre controlo, posso influenciar, embora não completamente, o estilo e a linguagem, escolhendo cada palavra com cuidado. Mas o que escrevo é decidido pelo próprio processo de escrita. Enquanto escrevo, memórias, ideias e invenções surgem enquanto digito, se parar de digitar para refletir, não consigo encontrar o que necessito. Sei que, enquanto digito, compondo uma frase e tentando melhorá-la, algo pode acontecer que revele por que aquela imagem está ali e onde ela pode encaminhar a minha história. Nunca é predefinido. O que posso controlar é a composição, costumo brincar, embora para mim seja uma verdade, que não entendo como os meus colegas escritores conseguem escrever um romance sem ter estudado arquitetura. [risos]

Estudar arquitetura ensinou-me muito sobre composição e a relação entre o homem e o espaço. Para mim, escrever um romance é exatamente isso: composição e a relação entre as pessoas e o espaço, e é nisso que foco a minha atenção, porque acredito que posso controlar uma parte significativa do processo. Mas porque ter estas ideias? É melhor não aprofundar muito nisso, pois seria mais apropriado para uma terapia psicanalítica. [risos]

O que é importante para mim é a confiança de que, ao trabalhar numa frase ou numa página, durante o esforço de escrever um romance, terei a revelação das próximas páginas e capítulos. Sempre foi assim para mim. Inicialmente, foi uma surpresa, mas agora sei: não se pode chamar isto de método porque nada é controlado. Mas existe uma confiança de que, ao fazer o que faço de melhor, torno-me mais sensível ou capaz de captar todos os elementos, sejam eles internos ou externos a mim, que são importantes para expressar o que quero dizer.

Não sei exatamente o que é até ao final do meu processo de escrita.

Em relação àquela imagem poderosa que inicialmente o impressionou, como se sente ao ver a adaptação cinematográfica, como em "Il Colibrì"? Alguma vez pensa: "Isso não foi o que imaginei," ou tem reações semelhantes? Tem algum controlo criativo sobre esses filmes?

Prefiro não me envolver nas adaptações cinematográficas dos meus romances porque acredito que é melhor manter as linguagens separadas. Sou responsável pela forma literária da história e não desejo influenciar o processo de argumento, aqueles que trabalham no filme devem ter completa liberdade para interpretar e adaptar a história como bem achar, sabendo que não podem capturar todos os detalhes que um romance detém na sua totalidade. Por vezes, encontro elementos no filme que não são meus — eles emergem do mundo interior do realizador - nessas situações, reconheço-os como a contribuição do realizador para o seu próprio filme, respeitando as suas experiências e sensibilidades únicas.

Encontrar essas divergências pode ser como encontrar subitamente no exterior estando ainda no seu próprio país — um reconhecimento de algo não originalmente concebido ou escrito durante o processo de criação do romance. No entanto, aprecio quando cineastas trazem as suas próprias ideias, imagens e interpretações para a minha imaginação, que a “contaminam”, que as tornam suas. Nas adaptações para o cinema, assim como nas outras formas de arte, há um diálogo respeitoso entre a obra original e a sua tradução cinematográfica.

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La forza del passato (Piergiorgio Gay, 2001)

Os cineastas possuem todo o direito de introduzir mudanças, e entendo que alterar a linguagem e a expressão no filme inevitavelmente envolve perdas e ganhos. Essa transformação é natural, é semelhante a um pintor retratar uma personagem de um romance — inevitavelmente infundindo a pintura com a sua própria perspectiva e inspiração.

Quando se trata de avaliar as adaptações cinematográficas dos meus romances, foco no impacto emocional, na interpretação, na cinematografia — todas as qualidades específicas que fazem de um filme uma obra distinta em relação ao romance. Inicialmente, fiquei chocado com a adaptação do meu primeiro romance - "La forza del passato" [de Piergiorgio Gay] - especialmente ao ver Bruno Ganz incorporar as minhas palavras no palco principal do Festival de Cinema de Veneza em 2001. Foi uma experiência desconcertante, especialmente enquanto jovem escritor.

Desde então, aprendi a abordar as adaptações cinematográficas com objetividade, tentando vê-las como obras independentes, ao invés de reflexos diretos da minha criação original. Posso gostar ou não de uma adaptação cinematográfica, e se me decepcionar, posso hesitar em expressá-lo ao realizador — talvez esteja a ser demasiado crítico. No entanto, tive experiências principalmente positivas com as adaptações porque, fundamentalmente, tenho um sincero apreço pelo cinema.

Em "Comandante", teve mais influência criativa no filme porque esteve envolvido na escrita do argumento. Como foi a experiência de escrever um argumento em comparação com escrever um romance para si?

Para mim, é simples. Escrever argumentos não é onde a minha criatividade prospera; não é o meu papel principal, e muitas vezes, sinto-me como um outsider nesse processo. A verdadeira fonte de energia inventiva sempre foram os outros, não eu mesmo, isso tornou-se evidente nas versões iniciais dos argumentos. No entanto, as circunstâncias mudaram durante o confinamento e a pandemia de COVID-19, tornando impossível prosseguir com as filmagens. Então, decidi escrever um romance em vez disso.

Ao escrever o romance, encontrei inúmeras ideias, imagens e invenções. Eventos históricos exigiram diálogos e narrativas inventivas, especialmente sobre o que ocorreu a cinquenta metros abaixo do nível do mar — detalhes que precisavam ser inventados. Escrever o romance gerou inúmeras ideias para versões subsequentes dos argumentos. Esse processo iterativo envolveu a transição do guião para o romance e vice-versa várias vezes. Encontrei-me muito mais envolvido criativamente na elaboração do aspecto literário do que nas fases iniciais do argumento. No entanto, escrevê-los não é a minha especialidade; apenas concebi cinco argumentos em quarenta anos — não é o meu foco.

Tenho dificuldade em contribuir plenamente com a minha sensibilidade quando me é solicitado escrever algo desprovido de estilo, o foco não está na eloquência, pois uma escrita funcional é suficiente para a equipa de filmagem: o filme em si será o verdadeiro empreendimento. Como mencionei antes, as ideias vêm a mim enquanto procuro encontrar beleza na minha escrita. Focar na forma permite-me capturar a essência. Por outro lado, acho desafiador libertar a minha criatividade totalmente na escrita de argumentos. Isso, para mim, destaca a diferença fundamental; não sou um argumentista.

Escritores excepcionalmente hábeis tanto na escrita de romances quanto na de argumentos atestarão o contraste acentuado nos processos. Escrever argumentos exige pensamento rápido e distanciamento, afastando-se da influência pessoal, no final das contas, os espectadores são indiferentes ao argumentista ao assistir a um filme — eles envolvem-se com o produto final, não com o seu criador. Em contraste, os leitores escrutinam e avaliam todos os aspetos de um livro, colocando uma pressão imensa sobre o escritor.

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Comandante (Edoardo De Angelis, 2023)

Paradoxalmente, essa pressão aprimora o meu processo criativo. Ela encoraja-me a explorar novas ideias livremente, sem o peso do julgamento que acompanha a escrita de romances. Essa sensação foi palpável não apenas em "Comandante", mas também nos meus outros projetos cinematográficos. Embora tenha contribuído, muitas vezes senti-me dispensável, Edoardo De Angelis poderia facilmente assumir as responsabilidades de argumentista após o romance, mas as minhas ideias mostraram-se inestimáveis na formação das versões subsequentes dos argumentos.

Porquê esta história concretamente?

Esta história é emblemática para a Itália, especialmente durante o verão crítico de 2018. Foi um período político tumultuado marcado por ações do governo e políticas ministeriais que propagaram uma narrativa prejudicial. Esta narrativa sugeriu permitir que migrantes perecessem no Mar Mediterrâneo na sua jornada da África para a Sicília. Esta representação não reflete quem realmente somos. Como italianos, somos melhores do que isso.

Como deixa transparecer no filme: “os Nazis os deixariam no fundo” …

No filme, esse tema é enfatizado, refletindo uma realidade histórica. Naquela época, nós, italianos, éramos retratados por palavras e ações verdadeiramente deploráveis. Eu e os meus amigos — escritores e realizadores — buscávamos maneiras de expressar veementemente a nossa indignação. Criei um grupo no Signal (não no WhatsApp), mas numa plataforma similar, para explorar ações além de meros protestos, mais próximas das nossas profissões como escritores e cineastas.

Edoardo encontrou um artigo no jornal diário italiano Avvenire, publicação da Conferência Episcopal Italiana. O artigo narrava um discurso de um almirante da Guarda Costeira italiana durante o 121º aniversário da fundação. A mensagem foi contundente: ele reconhecia seu dever de obedecer às ordens, mas lembrava às autoridades de suas responsabilidades morais. Naquele momento, as ordens haviam mudado, instruindo a não realizar resgates além das águas territoriais, deixando efetivamente aqueles no mar à deriva.

As palavras do almirante ressoaram profundamente connosco, o seu lembrete da história de Salvatore Todaro — brevemente mencionada no discurso — tocou uma corda sensível. Edoardo entrou em contato com o jornalista que escreveu o artigo, um firme defensor das missões de resgate no mar mesmo diante de ameaças da máfia da Líbia. Decidimos seguir adiante com essa história.

Escrever um romance foi mais fácil do que fazer um filme, dado o significativo custo deste último. Foram necessários cinco anos para que o filme se concretizasse, enfrentando desafios como a COVID-19 e dúvidas pessoais sobre sua viabilidade. Tragédias, como a do último inverno, com a perda de 90 vidas nas águas ao sul da Itália devido à falta de intervenção, destacaram a urgência de nosso projeto.

O exemplo de Salvatore Todaro durante a guerra destacou a primazia do direito marítimo e da solidariedade no mar acima de tudo. É a única garantia que leva as pessoas a se lançarem ao mar. O contraste com a retórica vergonhosa de certos funcionários do governo, negando resgates e ajuda no mar, foi gritante. O exemplo de Todaro foi claro e puro, nos compelindo a trazer essa narrativa à luz.

Após cinco anos de incerteza, finalmente concluímos o filme. A história que ele conta é clara — não é uma história de guerra, mas de homens no mar, defendendo a lei do mar e o imperativo de ajudar aqueles que precisam.

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Il Colibrì (2022)

Com “Il Colibrì” e agora “Comandante”, ficamos com a sensação que o ator Pierfrancesco Favino é a face das adaptações cinematográficas dos seus romances. Já está a preparar o seu próprio papel? [risos]

Atualmente, estou a finalizar um novo romance em que a personagem principal tem 12 anos [risos]. Brinquei com ele, dizendo: "Prepara-te, porque desta vez será difícil voltar aos 12 anos - vai trabalhar muito, vai." [risos] Mas estou realmente emocionado porque ele é um ator verdadeiramente fantástico. Já o conhecia antes, mas foi só depois de "Il Colibrì" que descobri verdadeiramente a sua abordagem.

Uma vez ele apontou para mim: "Nunca descreves diretamente a aparência da personagem principal. Tudo acontece com ele, mas nunca é revelado o rosto dele." Pelo que respondi: "Não, porque não é necessário para mim. Não quero perder tempo a descrever aparências." Ele perguntou: "Mas como eu vou retratá-lo então?" Disse diretamente: "Isso é contigo. Não esperes que eu faça isso."

Depois de algum tempo, ele disse: "Encontrei inspiração em você." Ele especificamente quis usar óculos. Não era uma imitação; ele usou a minha figura como modelo para moldar a sua personagem. Ele explicou que enquanto afirmo não ser Marco Carrera nem um Colibri, já que não dei mais especificações, ele decidiu me incorporar através dos óculos.

Através dessa experiência, entendi melhor o seu processo. Ele pega algo objetivo do exterior e transforma-o numa personagem completamente nova, começando a partir desse ponto. Em "Comandante", houve muitas pistas externas, como um ombro quebrado, para ajudar um ator a encontrar a sua personagem. No entanto, em "Il Colibrì", foi diferente. Ele simplesmente voltou-se para mim e disse: "Você será a minha inspiração."

Só que amanhã, sei-o bem, é sempre longe demais

Hugo Gomes, 11.05.24

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O sucesso que nos foi vendido enquanto publicidade - "o filme italiano que derrotou o fenómeno 'Barbienheimer' no seu país de origem" - chega-nos como uma lição válida de como transformar a História em ficção, sem nos parecer pedagogia institucional. Esta primeira longa-metragem realizada por Paola Cortellesi, "C'è ancora domani" (“Ainda Temos o Amanhã”), é um exemplo feliz de "História viva" em tela, desfrutando das tessituras históricas e insinuando nelas uma ficção passível de se alicerçar num filme de múltiplas camadas (lê-se à luz da historiografia, como também se lê à luz do seu lado novelesco). Ao contrário do seu antígona, a "História morta", como mencionada diversas vezes e que tem ganho uma grande estima pelo público generalizado, gravemente dependente do realismo e dos simulacros da mesma (veja-se o exemplo de "Dunkirk" de Christopher Nolan, onde a rigidez da sua reconstituição está acima da sua capacidade de ficção), a História viva atira os factos históricos como um episódio moldável, sendo o pano de fundo para uma criação narrativa em primeira instância. 

Aqui, Delia (Cortellesi), uma mulher avassalada pela vida conjugal, por um marido tóxico e abusador (Valerio Mastandrea), por uma existência condenada ao labor e laborinhos sem sonho algum de ambição, e a convivência com um sogro parasitário e de má índole (Giorgio Colangeli) que contribui para o condicionamento dos seus dias. Estamos em Itália nos anos 40, Pós-Segunda Grande Guerra, com o anterior regime italiano vencido e humilhado e com militares norte-americanos estrategicamente posicionados nas ruas como perpetuação dos ideais da sua vitória (há um presente soldado afro-americano que tenta criar empatia com a protagonista, uma válida referência a "Paisà" de Roberto Rossellini), trata-se de um ambiente por si esmagador para Delia, não pelo seu abafado individualismo, mas pelo facto dela ser uma mulher num mundo de homens ridículos e ridicularizados. 

Contudo, ela persiste, até porque o ponto de viragem histórico, apenas defraudado por sinopses e textos jornalísticos e críticos incapazes de contornar o destacável facto, é astutamente mantido e distorcido como um clímax e, por sua vez, um plot twist com direito a vinhetas, a sua breve emancipação (a sua história é apenas um, e nunca verdadeiramente excepcional como se apercebe ao longo do desenrolar do terceiro ato). É uma das honras para que o filme de Cortellesi não ceda ao fácil engodo mercantilista, nem sequer a um escancarado panfleto político-feminista como muitos anteciparam; antes disso, brota sensibilidade, uma manobra narrativa de teor classicista, com espaço para um humor à maneira da dita "commedia à italiana", ou seja, gags entrelaçam na crítica social, e é nessa habilidade de driblar as armadilhas temáticas, como a recorrente violência doméstica, que este asseado "Feios, Porcos e Maus" triunfa com destemor. Cortellesi opta pela representação alegórica através de musicalidades, dando alternativa à violência gráfica que o qual se poderia suscitar, preservando mesmo assim uma sugestiva agressividade. 

São exemplos de camadas que nos levam a uma surpresa no dito cinema popular italiano (e em preto-e-branco!), diversas vezes contaminado pelos tiques televisivos e pelas vedetas da socialite. Por fim, apelamos que a não-indústria portuguesa olhe para este "C'è ancora domani" como um experimento feliz do que é fazer cinema para o público em geral sem ser grunho e submisso à dominância televisiva.

Riccardo Scamarcio: "Caravaggio poderia ser definitivamente uma personagem de um filme do Scorsese."

Hugo Gomes, 02.05.24

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Riccardo Scamarcio em L'ombra di Caravaggio (2022)

Ator com um pé em cada geografia: por um lado, na indústria italiana, pequena e familiar, e por outro, nas grandes produções de Hollywood, onde tem ocupado pouco a pouco um espaço mais próximo do holofote, Riccardo Scamarcio é agora Michelangelo Merisi, ou famosamente conhecido somente por Caravaggio, sim, o pintor num dos mais influentes da sua arte como das periferias artísticas. Protagonista deste falso-thriller de investigação e clarificações assinado por um dos realizadores que mais estima - Michele Placido - “L'ombra di Caravaggio” (“A Sombra de Caravaggio”) foge do formato tradicional de cinebiografia e, através da sua narrativa detetivesca, explora os tormentos do artista, de grandes excessos, de grande infernos e de maiores ativismos.

O filme estreia em Portugal, após uma antestreia na Festa do Cinema Italiano com a presença do próprio Riccardo Scamarcio, mas antes dirigiu-se aos jornalistas para uma breve conversa. O Cinematograficamente Falando... conversou com o ator, produtor e argumentista sobre Caravaggio, o cancelamento artístico, a liberdade sob a sua perspectiva e os seus próximos passos, talvez até a possibilidade de assumir a cadeira de realizador.

Como chegou a este papel?

Basicamente, já tinha trabalhado com o realizador, Michele Placido, o qual conhecemo-nos muito bem. Anteriormente, fizemos dois filmes juntos, o “Romanzo Criminale” (2005) e “Il Grande Sogno” (2009), desde então sabia que ele tinha a ambição de levar para o ecrã uma história sobre a vida do pintor Caravaggio. Durante uma chamada telefónica, confessou-me que achava que este era o momento certo para avançar com tal filme, porque o mundo está a caminhar para uma criminalização dos artistas. Quero sublinhar que, por vezes, isso acontece por boas razões, sem desvalorizar a importância de certos movimentos, no entanto, também testemunhamos uma abordagem mais inquisitorial em relação aos artistas de forma geral. Há algo sobre artistas, os seus privilégios e o que eles representam, que nos faz questionar o que realmente estamos a fazer. Este é o meu ponto de vista pessoal e acho que Caravaggio é um ótimo exemplo para refrescar a nossa mente sobre o que poderá acontecer se não tivermos cuidado. Definitivamente, não queremos que um artista seja silenciado pelo Poder apenas por estar a dizer coisas que vão contra o que o Poder dominante deseja.

Normalmente o caso Caravaggio é um dos exemplos usados para defender, ou criticar a “cultura do cancelamento” nos dias de hoje. É constantemente mencionado esse episódio do homicídio e a feroz perseguição para o silenciar.

O objetivo principal por trás da criminalização de Caravaggio foi uma desculpa para “calá-lo” por causa das suas ideias controversas. Vamos considerar a época em que ele viveu e produziu sua arte, nos anos 1500, o período em que o filme se baseia. Nessa época, não havia cinema, fotografia, música, rádio, televisão, nem informação como a conhecemos hoje. A única forma de produzir imagens e comunicar ideias era através da pintura, o que a tornava uma arte muito importante. A Igreja e o Vaticano detinham grande poder e influência, controlando não apenas o discurso religioso, mas também o imaginário das pessoas. Era comum usar pinturas para transmitir conceitos como a imagem de Jesus, o Paraíso, o Diabo, o Mal.

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Michele Placido, Louis Garrel e Riccardo Scamarcio em L'ombra di Caravaggio (2022) / Foto.: Luisa Carcavale

Caravaggio inovou ao pintar figuras religiosas usando pessoas simples, pobres, para interpretar santos como São Pedro ou Santo Agostinho, e isso para a Igreja foi uma afronta, uma ameaça ao seu controlo ideológico. Se olharmos para as pinturas de Caravaggio, notamos que ele sempre começa com uma tela preta, onde então pinta e coloca suas personagens, usando a escuridão para direcionar a luz de uma forma única. Além disso, retratou santos com rostos de pessoas comuns, como prostitutas e mendigos. A Virgem Maria, por exemplo, foi representada por Lena Antonietti [no filme interpretada por Micaela Ramazzotti], uma prostituta. Era algo completamente blasfemo para a Igreja, mas, ao mesmo tempo, eles não podiam calá-lo completamente porque reconheciam seu inegável talento.

Eu tive a oportunidade de ver um Caravaggio de perto, a uma distância como a que estamos agora [Riccardo Scamarcio aponta para uma parede da sala]. É indescritível a beleza e o talento desse homem. É incrível! Mesmo com todas as controvérsias, o poder da sua arte fala por si, tendo a capacidade de desafiar e inspirar ao mesmo tempo.

Posso imaginar essa grandeza, até porque Caravaggio é dos artistas mais influentes na arte contemporânea, como também no cinema, digamos. 

Ah, sim, ele teve uma grande influência no cinema contemporâneo e em outros pintores. E sabes, foi só recentemente, entre 1925 e 1930, não me lembro bem dos anos, mas foi por volta dessa altura, que começaram, finalmente, a atribuir aquelas pinturas a Caravaggio. Até então, ninguém associava essas obras ao pintor, era como se ele não existisse. A Igreja tentou apagá-lo por completo. Durante séculos, foi como se Caravaggio não tivesse deixado rasto. Mas depois houve uma mudança de atitude, e começaram a reconhecer: "Ok, sim, isto é de Caravaggio, isto também, e aquela pintura, 'La Decollazione di San Giovanni Battista', é definitivamente dele."

Pergunto, visto que pouco ou nada sabemos da personalidade de Caravaggio sem ser as suas pinturas, como compões um personagem histórico desta dimensão?

Bem, fui inspirado por Elvis Presley de uma maneira que me fez pensar: este homem é rock and roll. Quero dizer, ele é uma estrela do rock, mas com um coração sensível e muito emotivo. É como uma explosão de energia, e esta é a minha impressão dele. 

Falando sobre Caravaggio, vemos algo semelhante. Não é fácil, como se pode ver nos filmes, criar essas pinturas enormes. As telas têm cerca de três metros por dois, enormes mesmo. Ele trabalhava com cenógrafos, pessoas, ferramentas, móveis, recriando cenas para depois pintá-las. Havia muito trabalho envolvido, quase como uma produção cinematográfica. Para conseguir fazer isso, era preciso muita energia, e ele parecia estar cheio dela, e sabemos por relatos que realmente era uma pessoa muito energética. É um trabalho cansativo e intenso. Mas, ao mesmo tempo, Caravaggio queria viver uma vida exuberante.

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La Decollazione di San Giovanni Battista

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Isabelle Huppert e Riccardo Scamarcio em L'ombra di Caravaggio (2022) 

Devemos lembrar que Roma, naquela época, era o centro do mundo artístico, principalmente porque a Igreja Católica estava lá e financiava muitos artistas. Além de Roma, outras cidades italianas, como Florença e Veneza, também eram importantes pólos de arte. A Itália era realmente o epicentro da arte naquela época.

Cada pincelada de Caravaggio é político, portanto, como seria o pintor se vivesse nos dias de hoje? Imagina que continuaria político e controverso, ou apenas conformado?

Bem, podemos imaginar. Acho que os poderes teriam tentado silenciá-lo novamente. Não estamos tão distantes desse período e daqueles momentos. Todos dizem: "Sim, mas podes dizer o que quiseres." Sim, é verdade. Todos podem dizer. Posso dizer o que quiser. Mas, espera um segundo. Não é porque podemos dizer o que quisermos que não haja limites.

Mesmo que todos possam dizer o que quiserem, a realidade é diferente. Não é bem assim. É como se o sistema tivesse se tornado tão democrático que virou uma selva. Parece que todos podem dizer o que quiserem, mas, ao mesmo tempo, essa falsa sensação de liberdade, alimentada por ferramentas como telemóveis e redes sociais, não é tão livre quanto parece. É tudo um teatro. Eu nem tenho isso. Nunca tive. É como se existisse um fascismo tecnocrático. Vês o que quero dizer? Estamos a regredir em termos de liberdade. Estamos a viver num momento em que não há uma abordagem pedagógica para ensinar aos jovens o que é liberdade de verdade. Liberdade é empatia, sensibilidade, humanidade. Sabemos que não estamos a viver numa... Estamos a passar por uma fase muito desumana. Tudo está a caminhar na direção oposta ao que deveria ser.

Referiu numa entrevista que Martin Scorsese é o seu realizador preferido, presumo que tenha o desejo de vir a trabalhar com ele?

Sim, obviamente. É um dos meus preferidos. 

Em certa maneira existem dois tipos de personagens scorseseanos, os oriundos dos filmes de gangsters, personagens corrompidas pelo excesso e que ao mesmo tempo tentam prevalecer os seus ideais e morais, e do outro lado, personagens comprometidas à religião, direta ou indiretamente, que resistem para preservar a sua fé em momentos conflituosos. Isto, para lhe perguntar, se viria Caravaggio como uma personagem scorseseana? Porque no filme parece possuir essas propriedades.

Ah, com certeza! Scorsese frequentemente trabalha com dois elementos que são recorrentes nos seus filmes: fé e crime. Ele explora o mundo criminal e os criminosos porque eles vivem no limite. Estão sempre num estado de constante perigo e caos, enfrentando a morte de perto. É esse tipo de tensão que ele procura nas suas histórias. Esta dinâmica, estas personagens que precisam lutar para sobreviver, é algo que o cinema valoriza bastante.

Além disso, Scorsese é nostálgico, tem um toque melancólico no final dos seus filmes, onde deparamos com seres humanos insatisfeitos, que tentam crescer e lutam por uma vida melhor. Por vezes conseguem, outras vezes nem por isso. Compreendes o que quero dizer? Mas isso é uma natureza muito italiana, tenho de admitir, esta vida louca com um toque nostálgico. E ele é um grande cineasta. Acho que Caravaggio poderia ser definitivamente uma personagem de um filme do Scorsese.

Como em Portugal tenho a sensação que o cinema italiano é hoje um círculo muito pequeno e fechado …

Sim, realmente!

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Riccardo Scamarcio em "Race to Glory" (Stefano Mordini, 2024)

Faço esta comparação para destacar a sua expansão para outros campos. Por um lado, foste o vilão em "John Wick 2" e, além disso, trabalhaste num filme dirigido por Kenneth Branagh, ou seja, aos poucos estás a tornar-te uma presença cada vez mais constante no cinema norte-americano...

… terminei um filme com Johnny Depp e Al Pacino, o qual também produzem, “Modigliani”. Um filme sobre a vida do pintor Amedeo Modigliani, e eu o interpreto.

Sim, e além disso, também produz alguns dos seus próprios filmes. No caso do "Race For Glory" [que estreia brevemente em Portugal], além de seres o produtor, também és o autor do argumento. Gostaria de saber mais sobre o processo de produção desse filme. E, por último, podemos esperar ver o Ricardo Scamarcio como realizador no futuro?

Deixa-me começar pela última pergunta. Tenho um projeto como realizador, mas ainda não decidi se quero mesmo realizá-lo. Ser realizador é um trabalho totalmente diferente, devo dizer, tenho estado a produzir filmes desde 2012, já lá vão mais de 12 anos como produtor. Aprendi bastante neste tempo, e agora sei como gerir uma produção com confiança. Já produzi mais de 13 filmes talvez. E, claro, sou basicamente um ator. Então, a questão é: será que quero ser realizador também? Tenho um projeto em mente, talvez um dia me sinta pronto para dar esse passo. Mas, por enquanto, ser produtor e ator já é trabalho suficiente para mim.

Além disso, ser produtor dá-te um certo poder editorial, se tenho um projeto que quero concretizar, posso encontrar um realizador, juntar todas as peças necessárias, e pronto, estamos no caminho. O "Race For Glory" é um grande projeto para mim porque tem um custo de produção superior a oito milhões de euros. Sim, é um filme incrível e muito específico, centrado no mundo dos ralis, tem sequências filmadas em Portugal porque, claro, o vosso país tem uma etapa importante no Campeonato do Mundo de Rali.

A história decorre em 1983, e aborda o grande desafio entre os italianos da Lancia e os alemães da Audi. Acho que este filme vai ser um sucesso.

Roma fora de casa ... e de horas

Hugo Gomes, 28.04.24

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Não fiquemos surpreendidos com as constatações estéticas que este “Adagio” nos apresenta de imediato, tendo em conta que a sua mão assinante é a de Stefano Sollima, realizador que povoa os três mundos; Itália e a sua indústria, Itália para o Mundo por via Netflix e Hollywood (“Sicario: Day of the Soldado”). Com este novo filme, terceira parte de uma possível e não-pensada trilogia, são abocanhados os dois primeiros “mundo” com foco no terceiro, até porque Sollima, perante uma Roma apocalíptica - onde os ventos sopram com notícias de uma incêndio de enormes proporções com o clarão, as cinzas e o odor a queimado servindo como um postal, e pelas intermitentes cortes de energia que lançam o caos escurecido na capital italiana - é uma atmosfera que tem tudo e ao mesmo tempo familiarização pelos diversos panorâmicas em modo drone, é uma periférica comum na nossa atualidade, desde a produção mais rasca até ao grande orçamento. Portanto, as vistas da cidade, tão bem condizem na grande tela como no pequeno ecrã, assim justificando o “N” colorido que dará a vez à “Netflix” na antecipação dos créditos iniciais.

Falar de cinema, com C, hoje em dia, a nível visual, é cada vez mais uma discussão pela desapropriação e deserdação das mesmas categorias grandiloquentes e plenitudes, ou seja aqueles ditos planos unicamente ligados à experiência de sala transladaram para produções caseiras, domesticando essa linguagem como um “ferro a fogo” para com a sua ambição. Sollima entende muito bem isso, essa sensação de grandeza, não prescrita somente à sua linguagem de vista, mas também no pretensiosismo da sua narrativa. ora, confessamos, fiel ao seu espírito “Suburra”, o realizador reveste a cidade e a usufrui como uma personagem à parte, ou, vulgo no verdadeiro protagonista, o testemunho silencioso de um crime e a sua sucessão de malapatas que vão despertar uma organização criminosa há muito entendida como extinta. 

Nesse âmbito, o casting faz as suas maravilhas, entrelaçando os possíveis, três grandes atores da cinematografia italiana da contemporaneidade - Toni Servillo, Valerio Mastandrea e Pierfrancesco Favino (com uma caracterização de meter dó) - estes gigantes trazem consigo uma aura de lenda, mesmo que a sua apagada mitológica seja forçadamente improvisada no seu momento. É nesta trindade que encontramos marcos narrativos que delineiam os seus actos (ou arcos), seja a escuridão de Mastandrea como o pontapé de arranque à trama propriamente dita, a loucura de Servillo como o “adagio” (apropriando-se do título) que o enredo investe e por fim, o pathos de Favino como o clímax. Os três nomes que balançam nos seus respectivos arcos entende-se, são também eles as gárgulas da cidade de Roma, depositando na antiga metrópole a sua personificação. 

Sollima, com este retrato todo, mais uma vez mesclado os seus temas prediletos - corrupção, corrompimento e salvação - gera uma produção requintada (e requentada) com um ritmo que vai do frenético ao pausado, ao calculado ao despedaçado, mas sempre respeitando o paladar de um espectador despreocupado com transgressões ou leituras mais intensificadas. Porque “Adagio” posiciona-se no grande ecrã como no pequeno, sem distinção e sem convicções de um lado que seja.  

O rapto do judeu

Hugo Gomes, 17.04.24

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Forçando o seu lugar enquanto "maestro" do circuito italiano em perpétua reinvenção, Marco Bellocchio instala-se num cinema de dramaturgias clássicas, tecidos delicados que cobrem um dos (muitos) episódios escandalosos que envolveram o papado de Pio IX, regendo Itália num ultraconservadorismo que atraiçoou quem o julgaria na iminência do liberalismo. Esse mesmo "scandal" [1858] desembocou no "rapto" de uma criança judia de Bolonha, Edgardo Mortara (alegadamente batizado “às escondidas” por uma criada), e na sua cativação entre as "saias do Papa". Porém, não fiquemos unicamente pelo retrato histórico, fiquemos por momentos de turbilhões emocionais de velha guarda que Bellocchio capta no seu belo filme de época, desde o tormento da separação até aos reencontros de cortar à faca entre o enfant contra a sua vontade e os progenitores cada vez mais subjugados à sua impotência.

Mas é numa cena específica de “Rapito”, talvez banhada por auras divinas ou um toque de "magia", em que o nosso pequenito Edgardo (Enea Sala) perante o seu dilema teológico, contemplando a sacra imagem de Cristo, moribundo e pregado à sua cruz, decide resgatá-lo da sua martirologia, retirando prego a prego num doce pedido de perdão por pecados alheios. É um judeu a libertar Cristo, o judeu nazareno que afirmou ser Filho de Deus perante os cépticos fariseus que, chocados com tais declarações, o acusaram e entregaram à mão de ferro romana. É a história das histórias, como se estampada numa velha Hollywood, mas não se trata aqui dessa mesma recontagem da subida ao Calvário ou da Páscoa concretizada nesse mesmo instante, é com Edgardo, após o seu gesto de compaixão, que a reconstituição, por efeito de realismo mágico, assenta numa nova ressurreição, a qual o ente divino evade da sua improvisada prisão de madeira, como do santuário fora.

Marco Bellocchio conseguiu um momento em grande, até porque recita as suas glórias imagéticas; o olhar infantil, inocente e ainda envolto em mistério quanto ao desconhecido, aliado ao turbilhão sentimental e identitário do seu percurso (as personificações fora do real quotidiano como parte do seu coming-to-age). Mas as alianças com essas representações, o papel da Mãe, aqui enfaticamente trágica, doente e submetida a uma existência subtraída pelas vontades do Poder dominante, mantém-se como vínculo ao conflito interno (e externo) de Edgardo. É também através desse olhar materno (sofrido e tão bem emanado por Barbara Ronchi) que nutriu amor pelo “rapazito”, que o filme estabelece um sentido de confluência, sendo estes os tópicos ardentes na filmografia de Bellocchio, visto que é através deles que os seus filmes nascem, numa aproximação à sua realidade, numa encostar à sua perda pessoal, refletida em muitas das suas conversões dramáticas. 

Fora isso, "Rapito" é um facto histórico reconstruído como drama portentoso, emocionalmente imenso numa clausura que aperta e aperta, mais e mais, até deixarmos a contenção ser a mais infalível conformação perante o destino. Aconteceu... um menino judeu foi levado dos seus pais em nome da Igreja Católica, por ordem de um Papa com fobia da circuncisão. Aconteceu... como também gerou um belíssimo filme.

Toni Servillo: "discordo desse estatuto de ator político"

Hugo Gomes, 11.05.23

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Toni Servillo em "La Stranezza" (Roberto Andò, 2022) 

O nosso "Jep Gambardella"! Com um charuto entre os lábios e uma expressão descontraída, talvez influenciada pelo clima ameno, antecipando o verão em pleno abril, ele recebeu-me a mim e ao jornalista Roni Nunes na sala de reuniões do Hotel D. Pedro. A sua visita coincidia com a celebração do Festival de Cinema Italiano, onde iria apresentar as sessões do seu mais recente filme - "La Stranezza" - novamente dirigido por Roberto Andó ("Viva La Libertà"), onde interpreta a icónica figura do teatro italiano, Luigi Pirandello, e na do filme que marcadamente fora seu primeiro protagonismo no grande ecrã. Curiosamente, este foi o primeiro trabalho em conjunto com Paolo Sorrentino, numa obra intitulada "L'Uomo in Piu" (2001), que viria a ser o "início de uma bela amizade", para citar Claude Rains num célebre clássico americano.

Toni Servillo tem sido cobiçado desde a primeira edição do festival, e não é para menos, pois é atualmente um dos atores mais requisitados e prestigiados do panorama cinematográfico. Aproveitando o convite, ele presenteou o público do Teatro Maria Matos com uma interpretação de Dante, da autoria de Giuseppe Montesano. Servillo é um homem dividido entre o teatro e o cinema, alcançando grande popularidade com o filme "La Grande Bellezza", onde interpretou o jornalista Jep Gambardella, que nas noites tórridas de Roma buscava o que havia perdido ao longo da sua jornada pela vida. Este filme foi aclamado em Cannes e conquistou o Óscar de Melhor Filme de Língua Estrangeira, tornando-se hoje uma referência na carreira tanto do ator como de Sorrentino. No entanto, gerou amores e ódios, especialmente entre aqueles que o veem como uma pretensiosa aproximação a Fellini.

Mas "La Grande Bellezza" possui um espírito audaz e tumultuoso, moldando Servillo numa espécie de Jep amado e desgastado. Tudo o que se seguiu está de alguma forma enraizado nesse registo, assim como no afastamento desse papel. Depois disso, o ator foi Silvio Berlusconi num ambicioso projeto do seu amigo Paolo ["Loro", 2018], interpretou um detetive pouco convencional no thriller "La ragazza nella nebbia" (Donato Carrisi, 2017) e deu vida a dois ícones da dramaturgia italiana: Eduardo Scarpetta em "Qui Rido Io" de Mario Martone (2021) e agora, Pirandello na sua busca pelo autor na nova colaboração com Andó.

Segue-se a conversa gerada a partir do nosso encontro:

Em “La Stranezza”, Luigi Pirandello é descrito como um homem austero, um pouco melancólico e vivendo uma crise criativa. Como surgiu a composição desta personagem?

Pirandello era, sem dúvida, um homem austero, e embora eu não saiba se ele era melancólico, certamente era profundamente inquieto. Essa inquietação tinha raízes tanto em sua vida pessoal quanto em sua vida intelectual. E é exatamente essa jornada criativa desse homem, que tinha em mente o que ele chamava de "verdadeira estranheza", antes mesmo de transformá-la em sua célebre peça "Os Seis Personagens à Procura de um Autor" ("Sei personaggi in cerca d'autore"), que quisemos explorar neste filme.

Pirandello concebia um mecanismo dramatúrgico novo, revolucionário e nunca antes visto. A ideia brilhante de Roberto [Andó], juntamente com seus co-argumentistas [Ugo Chiti e Massimo Gaudioso], foi desenvolver esse mecanismo inédito a partir do encontro com uma companhia de teatro amador, que o convidam para assistir a uma de suas apresentações. Ao observar esse espectáculo, Pirandello contempla uma mescla entre o que acontece no palco e o que acontece na vida real.

Outra das características do filme é que a fronteira entre o dramático e o cómico é muito ténue e, de facto, no filme trabalha com uma conhecida dupla de comediantes [Salvatore Ficarra e Valentino Picone]. Como correu esta mistura de tons?

Foi precisamente essa ideia que fez deste filme o mais visto em Itália no ano passado, alcançando uma receita de 5.600.000€ nas bilheteiras. Este feito foi um marco pós-pandémico extremamente importante para o cinema italiano. O público ficou surpreendido pelo facto de termos um filme cujo centro é uma figura incontornável da literatura italiana, Pirandello, e que conta com dois dos nossos comediantes mais carismáticos. Este facto quebrou o preconceito de que o "cinema de autor de festivais" não é acessível ao público em geral.

Acredito que essa surpresa tenha conferido ao filme uma imprevisibilidade e, consequentemente, despertado uma curiosidade benéfica, equilibrando o seu apelo tanto para os amantes do cinema mais culto como para o público em geral. Acima de tudo, trata-se de uma obra contemporânea, capaz de unir esses dois elementos de uma forma única.

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Toni Servillo em "La Grande Bellezza" (Paolo Sorrentino, 2013)

Visto que interpretou Eduardo Scarpetta no filme de Mario Martone [“Qui rido io”] e agora Pirandello, além disso apresenta uma longa carreira teatral, gostaria de saber como se sente ao interpretar estes grandes vultos do teatro italiano, e se leva a sua experiência teatral para a produção desses mesmos filmes? 

Bem, essa coincidência surgiu do facto de ter trabalhado com dois realizadores que, tal como eu, são devotos do teatro. Foi uma verdadeira honra fazer estes filmes sobre duas figuras tão distintas, mas de extrema importância para a história do Teatro Italiano. Mais do que isso, foi uma alegria imensa, pois amo o teatro e continuo a praticá-lo ao mesmo tempo que me envolvo no cinema contemporâneo.

Ambas as artes sempre estiveram presentes na minha vida, especialmente após a pandemia. A emoção de ver as salas de cinema e teatros gradualmente a encher novamente, como nos velhos tempos, é indescritível. Para mim, o teatro representa uma oportunidade de encontro entre pessoas, de debate, uma celebração dos sentidos e da inteligência. Foi, sem dúvida, a mensagem mais bela que nós, homens do teatro e do cinema, pudemos transmitir ao público através destes dois filmes.

Na Festa do Cinema Italiano apresentou a sessão de “L'Uomo in Più”, o filme inaugural de Paolo Sorrentino e o início de uma conhecida colaboração que ainda hoje perdura. Que impacto o filme teve em si, e na sua carreira? E já agora, é mesmo você que canta?

Sim, canto [risos]. Lembro-me, em primeiro lugar, que essa foi a primeira vez em que assumi toda a responsabilidade de ser o protagonista de um filme. Recordo com imenso prazer e carinho essa experiência. Desde o início, senti o apoio e testemunho dos pensamentos do Paolo [Sorrentino], que me incentivou a expressar minha própria face, minha forma de me movimentar. Durante a realização desse filme, essa conexão foi muito intensa e, acima de tudo, após o entusiasmo que ele gerou no Festival de Veneza, sendo a estreia de um autor jovem e talentoso, e posteriormente em Cannes, com 'Le conseguenze dell'amore', onde o filme competiu. Foi nesse momento que percebi que estava iniciando uma grande aventura..

Nessa aventura deparamos com “La Grande Bellezza”, o maior êxito da vossa colaboração. O que mais recorda desse filme? Imaginou que teria o impacto que obteve?

Olha, o que mais me recordo deste filme é que a vida nunca deixa de nos surpreender. Quando o fizemos, nunca, absolutamente nunca, imaginávamos que ele teria tanto sucesso. É fascinante como a vida sempre corre mais rápido do que o cinema, do que as nossas intenções, e nos surpreende continuamente. Foi realmente um presente que a vida nos concedeu, mas acima de tudo, uma enorme surpresa, uma surpresa gigantesca. Sentimos que estávamos a fazer algo que amávamos com alegria, mas jamais poderíamos imaginar que impressionaria tanto o público ao redor do mundo.

Mas porquê esse filme fascinar tanta gente? 

Digamos que ao usar Roma, com todo o seu encanto antigo como cenário, e ao simbolizar o fumo, com o seu encanto tão antigo, estamos representando uma perplexidade geral. E acredito que seja uma das razões que contribuíram para o sucesso deste filme. Ou seja, ao manter Jep Gambardella e Roma unidos em um sentimento de perplexidade, de oportunidades perdidas, de vidas cheias de beleza para aqueles que também estão ligados ao passado e à memória.

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Eu e Toni Servillo

Foi Giulio Andreotti em “Il Divo” e Silvio Berlusconi em “Loro”, ambos de Sorrentino, a juntar ainda as variações políticas de Roberto Andó, como “Viva La Libertà" e “Il Confessioni”, com isto pergunto, considera-se um ator político?

Não, discordo desse estatuto de ator político. Embora eu acredite que qualquer pessoa que escolha estar em público, independentemente da arte ou forma, assume uma responsabilidade política, como mencionou. Os filmes que citou estão ligados a uma tradição de cinema com um caráter político, proveniente de cineastas como Francesco Rossi ou Elio Petri, que conseguiram manter uma linguagem cinematográfica moderna e, ao mesmo tempo, influenciaram fortemente o debate político na época. De certa forma, estou inserido nessa tradição italiana bastante marcante. Além disso, é um prazer para mim fazer parte de filmes como esses, ou até mesmo como "Gomorra" de Matteo Garrone, que não foi referido, que é um exemplo bastante politizado na minha carreira. São filmes que levam as audiências a refletir e como acréscimo, sentir.

Já agora, anda por aí um rumor de que é um “workaholic” … [risos]

Nada disso, embora a minha mulher pense que sim! [risos] Na realidade, sinto-me privilegiado, sortudo em conseguir trabalho, o qual tenho colhido alguns frutos saborosos. 

E quanto a novos projetos?

De momento, em cartaz em Itália, tenho o novo filme de Gabriele Salvatores - “Il ritorno di Casanova”. Vou protagonizar o próximo título de Marco D’Amore, “Caracas”, ator da série “Gomorra” que se tem aventurado na realização, e ainda trabalhar com Stefano Sollima num filme chamado “Adagio”. 

Egrégios Avós ...

Hugo Gomes, 12.04.23

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Velha tendência, ou será antes a cerne do Cinema, o seu genuíno existencialismo? Serge Daney, na publicada entrevista-conversa de Serge Toubiana ["Perseverança"], confessava ‘procurar’ nos filmes o rasto do seu incógnito pai, diversas vezes iludido, graças à sua mãe e avó, de que a dublagem de muitas das produções, e a de um específico ator, preservavam as vocalidades da sua figura paterna. Acreditando nessa mentira, e persistentemente crendo-a como uma busca sem eira nem beira, o crítico de cinema confiava no Cinema enquanto território familiar, nela localizam os seus traços familiares, como um poeirento e esquecido álbum de fotografias. 

No cinema português, diversas vezes deparei-me em tertúlias cinéfilas com reclamações a várias das produções, principalmente em foros documentais ou nos primeiros passos neste universo, o qual tendiam (e pretendiam) servir de encontro e reencontro aos seus entes familiares. Os avós ou avôs seriam o “alvo” predileto nessas buscas para lá da ficção e para lá da veia documental. Talvez esse apelo emocional conquiste, e com muito sucesso, esse público que aceita o Cinema enquanto ponto de encontro, enquanto motivador de convívio familiar, ora em jeito detetivesco (“A Toca do Lobo” de Catarina Mourão), em modo de (bem-sucedida) instalação artística (“A Metamorfose dos Pássaros" de Catarina Vasconcelos) ou na demanda “cinema verité” (“Bostofrio” de Paulo Carneiro). A estes exemplos, acrescentamos “Soldado Nobre”, a primeira longa-metragem de Jorge Vaz Gomes, conduzida por mais de 6 anos (as primeiras filmagens iniciaram em 2013, as últimas em 2019), um (ree)ncontro com fantasmas de paradeiro desconhecido. 

O trajeto define-se envolto do vulto do seu bisavô. O realizador, que pouco ou nada conhece sobre este seu familiar - com excepção de que combateu na batalha de La Lys, Primeira Guerra Mundial, onde nela fez a sua derradeira morada - procura-o numa velha foto. Ali, dezenas de soldados posam firmemente em frente a uma parede de tijolos, o estado da fotografia desvirtua os detalhes da mesma, e sobretudo as características destes outrora jovens. Acreditando ser este o único retrato do seu parente, Jorge Vaz Gomes embarca numa investigação para, primeiramente, reconhecer o seu bisavô naquela mesma foto. Começa-se por três candidatos, reunidos pelas poucas e salientes semelhanças com os seus congêneres, contudo, quanto mais aprofundada a investigação se revela, mais afinidade o realizador tem com um determinado soldado desconhecido e semi-apagado do decadente registo.

“Soldado Nobre” salta de trincheira a trincheira a fim de concluir o seu objetivo. Se por um lado deseja conhecer o familiar “desaparecido” do registo, completando assim a árvore genealógica, por outro repensa a fotografia como conduta memorialista, e a desafia perante a ausência do seu objeto-estudo. Nesses termos, e evidentemente, o faz efetivamente através de uma visita ao Museu Louvre-Lens [nas imediações de La Lys], comparando o seu hipotético bisavô com a natureza dos retratos, esculpidos ou pintados dos seus artefactos históricos, mas é em específicas esculturas, silhuetas sem cabeça o qual depara uma relação direta com aquela pessoa-objeto. Jorge Vaz Gomes não inventa a “roda” nesta referida tendência, parte de uma foto, como tantos fizeram, e limita-se ao universo daquela mesma. Os “subúrbios” daquele pelotão, contextos históricos e geopolíticos, ou até mesmo o descortinar do papel de Portugal na Primeira Grande Guerra, ficam para outra altura. Não nos vemos em pedagogias, apenas em autognoses.

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Mais criativo e acima de tudo mais abrangente no seu “abraço” histórico, “Interdito a Cães Italianos” (“Interdit aux chiens et aux italiens”), uma animação stop-motion coproduzida entre Itália - Portugal - França- Suíça. Aqui, Alain Ughetto persiste em conhecer o seu avô e a restante linhagem familiar num registo autodocumental [um documentário sobre o seu próprio processo fílmico]. É um filme, felizmente, em constante desenvolvimento, e sem vergonha em esconder esses “andaimes", aos nossos olhos as figuras de "plasticina" formam personagens e essas personagens possuem memórias alicerçadas de “outrens” (uma possessão). É todo um processo, ora lúdico, ora repescatório de uma História recente, com Luigi, o avô e protagonista animado, homem de mil façanhas e de mil peles, atravessando fronteiras e esquadrias bélicas para que uma família possa, por fim, ser formada (e formalizada), tudo isso narrado pela avó de Ughetto, Cesira, também ela convertida em “boneco”, num pleno e imaginário diálogo com um realizador-criador onipresente. 

Homenagem, dirão muitos, malabarismo técnico, dirão outros, mas fora esse lado memorialista, “Interdito a Cães Italianos” (título alusivo a uma mensagem discriminatória à porta de um café francês) é a condensação de um século, o XX para sermos exatos, e as atribulações ocidentais, numa Europa dividida e “engolida” por movimentos fascistas e declarações de guerra concretizadas. Elemento narrativo latente na construção e resumo de uma árvore genealógica, Ughetto utiliza o seu talento de forma a descobrir a sua família, seja no conto e reconto das suas aventuras e desventuras, e dessa maneira redescobrir a si próprio.

Soldado Nobre” e “Interdito a Cães Italianos”, dois exemplos recentemente estreados de como o cinema continua a falar dos avós, e tratá-los como a sua força criativa e artística.

Capital humano desidratado

Hugo Gomes, 01.04.23

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Roma está à seca, literalmente. A capital italiana vive uma crise hidráulica sem precedentes que despoleta uma distopia social onde a água torna-se no maior dos luxos e um delimitador de classe, e a acrescentar ainda uma desconhecida e mortal epidemia. Enquanto isso, no leito seco do Rio Tibre, um torso de um colosso é redescoberto, levando em alvoroço um grupo de jornalistas perante a possibilidade de captar as “primeiras imagens” do achado, como muitos prometem, prontas para ser transmitidas em horário nobre nos respectivos noticiários. Porém, à chegada do telejornal é a escassez de água e todas as suas repercussões sócio-políticas que fazem as honras no pequeno ecrã. Ninguém quer mais saber de “faits divers”, e sim, de como “matar a sede”.

Evidentemente influenciado pela pandemia do COVID-19, Paolo Virzi revisita a sua fórmula vencedora de “Il Capitale Umano” (2013), recitando-a e ambicionando-a para além dos seus “nós interconectores”, este emaranhado de enredos e subenredos é uma vitrine decorativamente virtuosista. “Siccità” (“Seca”) é o “Don’t Look Up” em itálico, uma salada de temas contemporâneos aromatizado com sátira e de crítica social, tudo em todo o lado e mais alguma ‘coisa’, cuja sua pretensão revela na sua incapacidade de conduzir um cenário devidamente intrigante, visto que as suas histórias não passam de sugestões banhadas por uma tórrido e poeirenta atmosfera (a fotografia desértica de tons amarelados de Luca Bigazzi, um fiel colaborador de Sorrentino), representações ou símbolos, como bem queremos, dos identificadores “pecados capitais”. 

Virzi ostenta a megalomania em ser um cronista atual, sendo que a pressa dessa atualização o poderá trair com a efemeridade discursiva, mesmo que a universalidade da classe social seja por si uma aposta previamente ganha. Mas essa cegueira em querer tudo e “enfiá-lo” no mesmo filme-mosaico, cauteloso em não "desmembrar" o seu epifânico clímax (obviamente inspirado em “Magnólia” de Paul Thomas Anderson, o mais popular dos filmes-mosaicos), o seu “nó de marinheiro” à vista do Mundo, o condena aos mais prolongados “lugares-comuns”, até porque a audiência é outra, mais “informada”, aliás, saturadamente “informada” do seu respectivo ambiente (e sim, a ecologia também entra neste cardápio enquanto “fantasma apocalíptico"). 

Tendo em conta esta presente tendência em combinar críticas sociais e políticas num só frutado cocktail, felizmente não estamos perante noutro “Triangle of Sadness” de Östlund, Virzi não possui essa crueldade em caricaturar, ao invés disso, notamos em “Seca” a existência de personagens, mesmo que sedentas e impedidas de ser mais do que espécimes de montra. Essa, provavelmente detida por Monica Bellucci, a sereia de um rio seco.