Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Toni Servillo: "discordo desse estatuto de ator político"

Hugo Gomes, 11.05.23

56603b47ca2aa365be04a767442309925f869451.jpg

Toni Servillo em "La Stranezza" (Roberto Andò, 2022) 

O nosso "Jep Gambardella"! Com um charuto entre os lábios e uma expressão descontraída, talvez influenciada pelo clima ameno, antecipando o verão em pleno abril, ele recebeu-me a mim e ao jornalista Roni Nunes na sala de reuniões do Hotel D. Pedro. A sua visita coincidia com a celebração do Festival de Cinema Italiano, onde iria apresentar as sessões do seu mais recente filme - "La Stranezza" - novamente dirigido por Roberto Andó ("Viva La Libertà"), onde interpreta a icónica figura do teatro italiano, Luigi Pirandello, e na do filme que marcadamente fora seu primeiro protagonismo no grande ecrã. Curiosamente, este foi o primeiro trabalho em conjunto com Paolo Sorrentino, numa obra intitulada "L'Uomo in Piu" (2001), que viria a ser o "início de uma bela amizade", para citar Claude Rains num célebre clássico americano.

Toni Servillo tem sido cobiçado desde a primeira edição do festival, e não é para menos, pois é atualmente um dos atores mais requisitados e prestigiados do panorama cinematográfico. Aproveitando o convite, ele presenteou o público do Teatro Maria Matos com uma interpretação de Dante, da autoria de Giuseppe Montesano. Servillo é um homem dividido entre o teatro e o cinema, alcançando grande popularidade com o filme "La Grande Bellezza", onde interpretou o jornalista Jep Gambardella, que nas noites tórridas de Roma buscava o que havia perdido ao longo da sua jornada pela vida. Este filme foi aclamado em Cannes e conquistou o Óscar de Melhor Filme de Língua Estrangeira, tornando-se hoje uma referência na carreira tanto do ator como de Sorrentino. No entanto, gerou amores e ódios, especialmente entre aqueles que o veem como uma pretensiosa aproximação a Fellini.

Mas "La Grande Bellezza" possui um espírito audaz e tumultuoso, moldando Servillo numa espécie de Jep amado e desgastado. Tudo o que se seguiu está de alguma forma enraizado nesse registo, assim como no afastamento desse papel. Depois disso, o ator foi Silvio Berlusconi num ambicioso projeto do seu amigo Paolo ["Loro", 2018], interpretou um detetive pouco convencional no thriller "La ragazza nella nebbia" (Donato Carrisi, 2017) e deu vida a dois ícones da dramaturgia italiana: Eduardo Scarpetta em "Qui Rido Io" de Mario Martone (2021) e agora, Pirandello na sua busca pelo autor na nova colaboração com Andó.

Segue-se a conversa gerada a partir do nosso encontro:

Em “La Stranezza”, Luigi Pirandello é descrito como um homem austero, um pouco melancólico e vivendo uma crise criativa. Como surgiu a composição desta personagem?

Pirandello era, sem dúvida, um homem austero, e embora eu não saiba se ele era melancólico, certamente era profundamente inquieto. Essa inquietação tinha raízes tanto em sua vida pessoal quanto em sua vida intelectual. E é exatamente essa jornada criativa desse homem, que tinha em mente o que ele chamava de "verdadeira estranheza", antes mesmo de transformá-la em sua célebre peça "Os Seis Personagens à Procura de um Autor" ("Sei personaggi in cerca d'autore"), que quisemos explorar neste filme.

Pirandello concebia um mecanismo dramatúrgico novo, revolucionário e nunca antes visto. A ideia brilhante de Roberto [Andó], juntamente com seus co-argumentistas [Ugo Chiti e Massimo Gaudioso], foi desenvolver esse mecanismo inédito a partir do encontro com uma companhia de teatro amador, que o convidam para assistir a uma de suas apresentações. Ao observar esse espectáculo, Pirandello contempla uma mescla entre o que acontece no palco e o que acontece na vida real.

Outra das características do filme é que a fronteira entre o dramático e o cómico é muito ténue e, de facto, no filme trabalha com uma conhecida dupla de comediantes [Salvatore Ficarra e Valentino Picone]. Como correu esta mistura de tons?

Foi precisamente essa ideia que fez deste filme o mais visto em Itália no ano passado, alcançando uma receita de 5.600.000€ nas bilheteiras. Este feito foi um marco pós-pandémico extremamente importante para o cinema italiano. O público ficou surpreendido pelo facto de termos um filme cujo centro é uma figura incontornável da literatura italiana, Pirandello, e que conta com dois dos nossos comediantes mais carismáticos. Este facto quebrou o preconceito de que o "cinema de autor de festivais" não é acessível ao público em geral.

Acredito que essa surpresa tenha conferido ao filme uma imprevisibilidade e, consequentemente, despertado uma curiosidade benéfica, equilibrando o seu apelo tanto para os amantes do cinema mais culto como para o público em geral. Acima de tudo, trata-se de uma obra contemporânea, capaz de unir esses dois elementos de uma forma única.

1621505743-grande-bellezza.jpg

Toni Servillo em "La Grande Bellezza" (Paolo Sorrentino, 2013)

Visto que interpretou Eduardo Scarpetta no filme de Mario Martone [“Qui rido io”] e agora Pirandello, além disso apresenta uma longa carreira teatral, gostaria de saber como se sente ao interpretar estes grandes vultos do teatro italiano, e se leva a sua experiência teatral para a produção desses mesmos filmes? 

Bem, essa coincidência surgiu do facto de ter trabalhado com dois realizadores que, tal como eu, são devotos do teatro. Foi uma verdadeira honra fazer estes filmes sobre duas figuras tão distintas, mas de extrema importância para a história do Teatro Italiano. Mais do que isso, foi uma alegria imensa, pois amo o teatro e continuo a praticá-lo ao mesmo tempo que me envolvo no cinema contemporâneo.

Ambas as artes sempre estiveram presentes na minha vida, especialmente após a pandemia. A emoção de ver as salas de cinema e teatros gradualmente a encher novamente, como nos velhos tempos, é indescritível. Para mim, o teatro representa uma oportunidade de encontro entre pessoas, de debate, uma celebração dos sentidos e da inteligência. Foi, sem dúvida, a mensagem mais bela que nós, homens do teatro e do cinema, pudemos transmitir ao público através destes dois filmes.

Na Festa do Cinema Italiano apresentou a sessão de “L'Uomo in Più”, o filme inaugural de Paolo Sorrentino e o início de uma conhecida colaboração que ainda hoje perdura. Que impacto o filme teve em si, e na sua carreira? E já agora, é mesmo você que canta?

Sim, canto [risos]. Lembro-me, em primeiro lugar, que essa foi a primeira vez em que assumi toda a responsabilidade de ser o protagonista de um filme. Recordo com imenso prazer e carinho essa experiência. Desde o início, senti o apoio e testemunho dos pensamentos do Paolo [Sorrentino], que me incentivou a expressar minha própria face, minha forma de me movimentar. Durante a realização desse filme, essa conexão foi muito intensa e, acima de tudo, após o entusiasmo que ele gerou no Festival de Veneza, sendo a estreia de um autor jovem e talentoso, e posteriormente em Cannes, com 'Le conseguenze dell'amore', onde o filme competiu. Foi nesse momento que percebi que estava iniciando uma grande aventura..

Nessa aventura deparamos com “La Grande Bellezza”, o maior êxito da vossa colaboração. O que mais recorda desse filme? Imaginou que teria o impacto que obteve?

Olha, o que mais me recordo deste filme é que a vida nunca deixa de nos surpreender. Quando o fizemos, nunca, absolutamente nunca, imaginávamos que ele teria tanto sucesso. É fascinante como a vida sempre corre mais rápido do que o cinema, do que as nossas intenções, e nos surpreende continuamente. Foi realmente um presente que a vida nos concedeu, mas acima de tudo, uma enorme surpresa, uma surpresa gigantesca. Sentimos que estávamos a fazer algo que amávamos com alegria, mas jamais poderíamos imaginar que impressionaria tanto o público ao redor do mundo.

Mas porquê esse filme fascinar tanta gente? 

Digamos que ao usar Roma, com todo o seu encanto antigo como cenário, e ao simbolizar o fumo, com o seu encanto tão antigo, estamos representando uma perplexidade geral. E acredito que seja uma das razões que contribuíram para o sucesso deste filme. Ou seja, ao manter Jep Gambardella e Roma unidos em um sentimento de perplexidade, de oportunidades perdidas, de vidas cheias de beleza para aqueles que também estão ligados ao passado e à memória.

340185794_152654030790395_1414502381779295388_n.jp

Eu e Toni Servillo

Foi Giulio Andreotti em “Il Divo” e Silvio Berlusconi em “Loro”, ambos de Sorrentino, a juntar ainda as variações políticas de Roberto Andó, como “Viva La Libertà" e “Il Confessioni”, com isto pergunto, considera-se um ator político?

Não, discordo desse estatuto de ator político. Embora eu acredite que qualquer pessoa que escolha estar em público, independentemente da arte ou forma, assume uma responsabilidade política, como mencionou. Os filmes que citou estão ligados a uma tradição de cinema com um caráter político, proveniente de cineastas como Francesco Rossi ou Elio Petri, que conseguiram manter uma linguagem cinematográfica moderna e, ao mesmo tempo, influenciaram fortemente o debate político na época. De certa forma, estou inserido nessa tradição italiana bastante marcante. Além disso, é um prazer para mim fazer parte de filmes como esses, ou até mesmo como "Gomorra" de Matteo Garrone, que não foi referido, que é um exemplo bastante politizado na minha carreira. São filmes que levam as audiências a refletir e como acréscimo, sentir.

Já agora, anda por aí um rumor de que é um “workaholic” … [risos]

Nada disso, embora a minha mulher pense que sim! [risos] Na realidade, sinto-me privilegiado, sortudo em conseguir trabalho, o qual tenho colhido alguns frutos saborosos. 

E quanto a novos projetos?

De momento, em cartaz em Itália, tenho o novo filme de Gabriele Salvatores - “Il ritorno di Casanova”. Vou protagonizar o próximo título de Marco D’Amore, “Caracas”, ator da série “Gomorra” que se tem aventurado na realização, e ainda trabalhar com Stefano Sollima num filme chamado “Adagio”. 

Egrégios Avós ...

Hugo Gomes, 12.04.23

O-SOLDADO-NOBRE7.jpg

Velha tendência, ou será antes a cerne do Cinema, o seu genuíno existencialismo? Serge Daney, na publicada entrevista-conversa de Serge Toubiana ["Perseverança"], confessava ‘procurar’ nos filmes o rasto do seu incógnito pai, diversas vezes iludido, graças à sua mãe e avó, de que a dublagem de muitas das produções, e a de um específico ator, preservavam as vocalidades da sua figura paterna. Acreditando nessa mentira, e persistentemente crendo-a como uma busca sem eira nem beira, o crítico de cinema confiava no Cinema enquanto território familiar, nela localizam os seus traços familiares, como um poeirento e esquecido álbum de fotografias. 

No cinema português, diversas vezes deparei-me em tertúlias cinéfilas com reclamações a várias das produções, principalmente em foros documentais ou nos primeiros passos neste universo, o qual tendiam (e pretendiam) servir de encontro e reencontro aos seus entes familiares. Os avós ou avôs seriam o “alvo” predileto nessas buscas para lá da ficção e para lá da veia documental. Talvez esse apelo emocional conquiste, e com muito sucesso, esse público que aceita o Cinema enquanto ponto de encontro, enquanto motivador de convívio familiar, ora em jeito detetivesco (“A Toca do Lobo” de Catarina Mourão), em modo de (bem-sucedida) instalação artística (“A Metamorfose dos Pássaros" de Catarina Vasconcelos) ou na demanda “cinema verité” (“Bostofrio” de Paulo Carneiro). A estes exemplos, acrescentamos “Soldado Nobre”, a primeira longa-metragem de Jorge Vaz Gomes, conduzida por mais de 6 anos (as primeiras filmagens iniciaram em 2013, as últimas em 2019), um (ree)ncontro com fantasmas de paradeiro desconhecido. 

O trajeto define-se envolto do vulto do seu bisavô. O realizador, que pouco ou nada conhece sobre este seu familiar - com excepção de que combateu na batalha de La Lys, Primeira Guerra Mundial, onde nela fez a sua derradeira morada - procura-o numa velha foto. Ali, dezenas de soldados posam firmemente em frente a uma parede de tijolos, o estado da fotografia desvirtua os detalhes da mesma, e sobretudo as características destes outrora jovens. Acreditando ser este o único retrato do seu parente, Jorge Vaz Gomes embarca numa investigação para, primeiramente, reconhecer o seu bisavô naquela mesma foto. Começa-se por três candidatos, reunidos pelas poucas e salientes semelhanças com os seus congêneres, contudo, quanto mais aprofundada a investigação se revela, mais afinidade o realizador tem com um determinado soldado desconhecido e semi-apagado do decadente registo.

“Soldado Nobre” salta de trincheira a trincheira a fim de concluir o seu objetivo. Se por um lado deseja conhecer o familiar “desaparecido” do registo, completando assim a árvore genealógica, por outro repensa a fotografia como conduta memorialista, e a desafia perante a ausência do seu objeto-estudo. Nesses termos, e evidentemente, o faz efetivamente através de uma visita ao Museu Louvre-Lens [nas imediações de La Lys], comparando o seu hipotético bisavô com a natureza dos retratos, esculpidos ou pintados dos seus artefactos históricos, mas é em específicas esculturas, silhuetas sem cabeça o qual depara uma relação direta com aquela pessoa-objeto. Jorge Vaz Gomes não inventa a “roda” nesta referida tendência, parte de uma foto, como tantos fizeram, e limita-se ao universo daquela mesma. Os “subúrbios” daquele pelotão, contextos históricos e geopolíticos, ou até mesmo o descortinar do papel de Portugal na Primeira Grande Guerra, ficam para outra altura. Não nos vemos em pedagogias, apenas em autognoses.

1679863670_anexo_ni__interdito_caes_e_italianos_vv

Mais criativo e acima de tudo mais abrangente no seu “abraço” histórico, “Interdito a Cães Italianos” (“Interdit aux chiens et aux italiens”), uma animação stop-motion coproduzida entre Itália - Portugal - França- Suíça. Aqui, Alain Ughetto persiste em conhecer o seu avô e a restante linhagem familiar num registo autodocumental [um documentário sobre o seu próprio processo fílmico]. É um filme, felizmente, em constante desenvolvimento, e sem vergonha em esconder esses “andaimes", aos nossos olhos as figuras de "plasticina" formam personagens e essas personagens possuem memórias alicerçadas de “outrens” (uma possessão). É todo um processo, ora lúdico, ora repescatório de uma História recente, com Luigi, o avô e protagonista animado, homem de mil façanhas e de mil peles, atravessando fronteiras e esquadrias bélicas para que uma família possa, por fim, ser formada (e formalizada), tudo isso narrado pela avó de Ughetto, Cesira, também ela convertida em “boneco”, num pleno e imaginário diálogo com um realizador-criador onipresente. 

Homenagem, dirão muitos, malabarismo técnico, dirão outros, mas fora esse lado memorialista, “Interdito a Cães Italianos” (título alusivo a uma mensagem discriminatória à porta de um café francês) é a condensação de um século, o XX para sermos exatos, e as atribulações ocidentais, numa Europa dividida e “engolida” por movimentos fascistas e declarações de guerra concretizadas. Elemento narrativo latente na construção e resumo de uma árvore genealógica, Ughetto utiliza o seu talento de forma a descobrir a sua família, seja no conto e reconto das suas aventuras e desventuras, e dessa maneira redescobrir a si próprio.

Soldado Nobre” e “Interdito a Cães Italianos”, dois exemplos recentemente estreados de como o cinema continua a falar dos avós, e tratá-los como a sua força criativa e artística.

Capital humano desidratado

Hugo Gomes, 01.04.23

630.jpg

Roma está à seca, literalmente. A capital italiana vive uma crise hidráulica sem precedentes que despoleta uma distopia social onde a água torna-se no maior dos luxos e um delimitador de classe, e a acrescentar ainda uma desconhecida e mortal epidemia. Enquanto isso, no leito seco do Rio Tibre, um torso de um colosso é redescoberto, levando em alvoroço um grupo de jornalistas perante a possibilidade de captar as “primeiras imagens” do achado, como muitos prometem, prontas para ser transmitidas em horário nobre nos respectivos noticiários. Porém, à chegada do telejornal é a escassez de água e todas as suas repercussões sócio-políticas que fazem as honras no pequeno ecrã. Ninguém quer mais saber de “faits divers”, e sim, de como “matar a sede”.

Evidentemente influenciado pela pandemia do COVID-19, Paolo Virzi revisita a sua fórmula vencedora de “Il Capitale Umano” (2013), recitando-a e ambicionando-a para além dos seus “nós interconectores”, este emaranhado de enredos e subenredos é uma vitrine decorativamente virtuosista. “Siccità” (“Seca”) é o “Don’t Look Up” em itálico, uma salada de temas contemporâneos aromatizado com sátira e de crítica social, tudo em todo o lado e mais alguma ‘coisa’, cuja sua pretensão revela na sua incapacidade de conduzir um cenário devidamente intrigante, visto que as suas histórias não passam de sugestões banhadas por uma tórrido e poeirenta atmosfera (a fotografia desértica de tons amarelados de Luca Bigazzi, um fiel colaborador de Sorrentino), representações ou símbolos, como bem queremos, dos identificadores “pecados capitais”. 

Virzi ostenta a megalomania em ser um cronista atual, sendo que a pressa dessa atualização o poderá trair com a efemeridade discursiva, mesmo que a universalidade da classe social seja por si uma aposta previamente ganha. Mas essa cegueira em querer tudo e “enfiá-lo” no mesmo filme-mosaico, cauteloso em não "desmembrar" o seu epifânico clímax (obviamente inspirado em “Magnólia” de Paul Thomas Anderson, o mais popular dos filmes-mosaicos), o seu “nó de marinheiro” à vista do Mundo, o condena aos mais prolongados “lugares-comuns”, até porque a audiência é outra, mais “informada”, aliás, saturadamente “informada” do seu respectivo ambiente (e sim, a ecologia também entra neste cardápio enquanto “fantasma apocalíptico"). 

Tendo em conta esta presente tendência em combinar críticas sociais e políticas num só frutado cocktail, felizmente não estamos perante noutro “Triangle of Sadness” de Östlund, Virzi não possui essa crueldade em caricaturar, ao invés disso, notamos em “Seca” a existência de personagens, mesmo que sedentas e impedidas de ser mais do que espécimes de montra. Essa, provavelmente detida por Monica Bellucci, a sereia de um rio seco. 

O "bom" populista?

Hugo Gomes, 31.03.23

viva-la-libertc3a0.jpg

Após a saída do visionamento de imprensa de “La Straneza”, decidi rever aquele que é possivelmente mais interessante dos filmes de Roberto Andó, realizador italiano de altos e baixos, mas que se mantém coerentemente numa certa tradição de crónica política. O filme em questão intitula-se “Viva La Libertà”, apresentado em 2013 (e com honras de abrir a Festa do Cinema Italiano do seguinte ano), era na altura vista como uma comédia de farsas e dotado de tamanha ingenuidade, porém, esse dito lado inocente adquiriu ao longo destes anos um outro tom, até porque “populismo” entrou fortemente no nosso vocabulário e hoje é uma reflexão sem causa nem efeito.

Viva La Libertà" aposta numa dupla interpretação de Toni Servillo (o ator celebrado sob a luz de Paolo Sorrentino, e que pouco a pouco se lançava em projetos díspares a esse mesmo universo, muitas vezes trazendo resquícios destes consigo), aqui encabeça gémeos, de um lado, um líder político vencido por uma crise existencial, e por outro, um filósofo delirante recém-saído de um hospício. Quando o primeiro “desaparece”, possivelmente em “busca” da sua “Grande Beleza”, o segundo toma o seu lugar, e a sua imprevisível natureza eleva o seu partido, anteriormente em estado de decadência, num dos fortes candidatos a governo em Itália. Isto porque o "irmão louco” faz política de afetos, de “verdades” e lança de cabeça para a consensualidade do seu eleitor e não o oposto, aqui abandona a ideologia e disfarça esse vazio com o “bem da vontade do povo-freguês". Digamos que por aqui paira uma certa sombra à lá Silvio Berlusconi (curiosamente, Servillo iria ser o incontornável ministro numa falsa-biopic assinado pelo seu "compincha" Sorrentino, em 2018), nessa jogada politizada de aproximação com as populações, recorrendo à incoerência discursiva equivalendo-a gestos humanizados e identificadores.

Ao sabor da sua estreia, “Viva la Libertà” seria encarado como um exercício recorrente à velha fórmula de “troca de papéis" sob um cenário de política (o equivalente italiano e menos simplista de “Dave” de Ivan Reitman), onde facilmente caímos que "nem tordos" na valsa do impostor. Hoje, com tantos peões populistas a acenarem à liderança da contemporaneidade do discurso político, prometendo fundos e mundos em diálogos vazios, aquelas “verdades” que muitos juram ouvir e que não passam de delírios provenientes de um “povo” cansado dos mesmos truques, acabando por “cair” em outros velhos truques, "lobos em vestes de cordeiro". Contudo, talvez influenciado por estas mudanças repentinas na esfera política, Roberto Andó inconscientemente incentivou o debate: será que existem bons populistas, ou tudo se resumo no fruto das nossas próprias convicções?

Em memória do Carteiro de Nápoles

Hugo Gomes, 18.02.23

laggiu-qualcuno-mi-ama-scaled.webp

Mario Martone no processo de edição de "Laggiù qualcuno mi ama” / Somebody Down There Likes Me" (2013)

Para Mario Martone, de “pá na mão”, a justiça tem de ser feita: «Massimo deve ser celebrado e colocado à igual imagem de outros que conquistaram a sua luz por direito».

Assim nasce “Laggiù qualcuno mi ama” (“Somebody Down There Likes Me”, título internacional que soa contraponto a “Somebody Up There Likes Me” de Robert Wise), a revitalização do popular ator e realizador napolitano Massimo Troisi (1953-1994), que com 41 anos de idade e com um póstumo êxito a atravessar fronteiras - “Il Postino” de Michael Radford (recebendo a nomeação de Melhor Ator) - nos prematuramente deixou, porém, o documentário parte, não só da ideia de colheita e ostentação de uma carreira, como também, de uma prolongada tese, iluminando o percurso artístico deste “autor”, designação segundo Martone

unnamed.jpg

Massimo Troisi em "Ricomincio da tre" / "I’m Starting from Three" (Massimo Troisi, 1981)

Trata-se aqui de um objeto de fascínio, originando um empenho investigativo e de pensamento (compara-se Troisi a Antoine Doinel de Léaud, da sua "incapacidade existencialista de se integrar na sociedade”, e enquanto a sua face de realizador, a Truffaut, “a vida, o amor, e pouco mais”), reservando um lado académico na disposição informativa (a filmografia, da sua cronologia à leitura desta, dos seus gestos e a contextualização performativa), e um lado emocional como embate do legado Troisi ao seu impacto cultural (ou quiçá popular, como presenciamos no cinema ao ar livre, participado por um jovem e emotivo público), com recurso ao seu trajeto trágico (recusou tratamento cardíaco imediato por desejar fazer “Il Postino” com o seu “próprio coração”, segundo consta, faleceu 12 horas após o fim das filmagens). 

Portanto, falar de “Laggiù qualcuno mi ama” é falar da nossa relação com o ator, interagir e aderir a este episódio de revisão e revitalização da sua memória, e com isto, subtilmente “destruindo” o mito da decadência do cinema italiano nos anos 80 e início de 90, coroando o ator, realizador e argumentista numa das mais importantes vozes como também impulsores de uma aderência popular a uma indústria que abandonava bruscamente a sua audiência. 

postino1-1.jpg

Massimo Troisi em "Il Postino" (Michael Radford, 1995)

Talvez estejamos na altura de escutar atentamente Martone e “desenterrar” de uma vez por todas Massimo, o ator-máximo ou o realizador-mínimo, e colocá-lo de frente à luz do qual devido direito tem. Um encontro, ora umbiguista e cerebral, ora histórico e sentimental.

Michelangelo Frammartino: "sacrificamos muito para que 'Il Buco' fosse possível ser visto em grande ecrã"

Hugo Gomes, 24.10.22

IL-BUCO-Official-still-H-2021.webp

"Il Buco" (2021)

Em agosto de 1961, ocorre a primeira expedição ao Abismo Bifurto, situado ao sul de Itália, naquela que é considerada uma das mais profundas grutas do Mundo. Michelangelo Frammartino extraiu dessa história, não só o relato, como também uma experiência, tentando com isso reproduzir a descida e "convidar" o espectador a participar nesta descoberta a um mundo subterrâneo governado pela escuridão e pelo ensurdecedor silêncio. “Il Buco”, o “buraco”, é esse filme-sensorial que merece o escuro do cinema e o misticismo do seu espaço.  Pode não ser “storytelling” nem estética desconstrutiva, mas é entre os seus ecos que a experiência cresce, definitivamente, obrigando-nos a olhar para cima, para a luz que nos abandona gradualmente. Bem-vindo ao submundo!

Conversei com o realizador sobre o projeto na sua vinda a Portugal, durante a antestreia da Festa do Cinema Italiano, uma tentativa de decifrar o mistério da “gruta viva” e do cinema aqui praticado. 

Não gostaria de começar esta conversa com a pergunta “de onde surgiu a ideia para este filme?”, ao invés disso, com o que o “levou a concretizar um filme desta maneira”?

Quis com este filme prosseguir, ao invés de descobrir, pretendia construir. Ou seja, seguir no trilho da profundidade de uma gruta não é, para mim, um ato de descoberta, antes um gesto de construção ou até mesmo de instituição. Através daquela gruta criei toda uma condição espacial, dimensional, de luz e até de pensamento, isto, baseado na própria natureza. Na escuridão da gruta deparamos com uma feixe de luz, o que condiciona o nosso olhar como também o motiva a construir uma imagem sensorial. Tentei levar à sala de cinema essa mesma imagem alegórica, a de olhar para o feixe luminoso, traduzida no crepúsculo vindo da cabine de projeção, uma imagem-construída e não uma imagem-descoberta.  

Tal como o seu anterior “Le Quattro Volte" (2010), “Il Buco” partilha a mesma essência, a busca por um naturalismo e com isso encontrar uma "vértebra" mística. Há algo de além-físico nos seus filmes.  

Tento proporcionar no meu cinema, que as ‘coisas’ falem por si, e não obrigá-las a “falar” - captar o seu naturalismo e não forçá-lo - e com isto também retirar a figura humana do centro desta paisagem fílmica, posicionando-a igual para igual com a Natureza no qual embarco. Aquilo que poderás chamar de misticismo, é antes uma comunhão entre tecido, a dos Homens com as ‘coisas naturais’. A espiritualidade não é mais a diluição de todos os materiais terrenos; humanos, animais, vegetais ou minerais. 

Além da Natureza, existe em ambos os seus filmes uma figura humana central, apesar de tudo. Em “Le Quattro Volte” como em “Il Buco”, temos um pastor, o qual suponho que seja um vínculo entre Homem e o natural, ou seja mais do que uma personagem, um alternativo “ser místico", curiosamente não-atores. Não pude deixar de reparar, também, que o pastor é o único “humano” que filma em grandes planos neste filme. Isto tudo para lhe pedir que falasse sobre a sua relação e o seu processo de trabalho com os “não-atores”, e o facto de serem peças centrais na sua filmografia.

O protagonista de “Le Quattro Volte” e o pastor do “Il Buco”, que chama-se Nicola [Lanza], foram frutos de uma intensa procura. Quanto a Nicola, que já não está entre nós, não era uma pessoa dirigível durante as filmagens. Não conseguíamos dizer-lhe rigorosamente nada. É um problema recorrente em não-atores, principalmente daquela idade, a sua incapacidade de relembrar deixas e gestos para os filmes chegava a ser caricato. 

coverlg.jpg

Michelangelo Frammartino e a argumentista Giovanna Giuliani na estreia de "Il Buco" em Veneza

No caso do Nicola, notava-se, e nota-se em “Il Buco”, uma ligação fortíssima com aquele mesmo ambiente, com aquele lugar, com aquele “buraco”, coloquei essa presença como prioridade no filme, acima da minha intervenção na sua persona, porque como disse, pouco ou nada conseguia fazer dele, ou deixava tudo correr naturalmente ou teria que constantemente verbalizar com ele, o que seria uma tarefa hercúlea. Recordo de pedir-lhe num determinado momento para olhar para o horizonte - “Nicola, olha para ali” - automaticamente me respondia-  “Não vejo nada” [risos]. Ou da cena em que o médico o visita, e supostamente a sua "personagem" encontrava-se numa fase de comatose, Nicola rompia o seu “papel” para informá-lo que estava bem [risos]. 

Se optasse por esta segunda opção, o de dirigi-lo ao máximo das minhas forças, provavelmente “Il Buco” seria completamente distinto, e possivelmente sem a ligação pretendida aquele lugar e aquela naturalidade. Nicola é como uma montanha, simplesmente longe de mim moldá-la.  

Quanto à questão do enquadramento, se bem reparaste, os espeleólogos são filmados como um só corpo, uma só existência, Nicola, por sua vez, é emancipado, livre e soberano. Esteticamente, encontramos algo topográfico no seu rosto envelhecido, mais um ponto em comum com aquele território montanhoso e manifestamente resultante do tempo e da Natureza. Enquanto os espeleólogos exploram a caverna, a nossa câmara explorava a face de Nicola, que da mesma forma que a gruta tinha impressa nela toda uma história ainda por contar. 

Ao ver “Il Buco”, tive a impressão que estamos perante um filme cuja rodagem seria ela própria um filme à parte. Foi arriscado a sua rodagem nesta gruta?

Chamam-lhe “gruta viva”, porque é uma gruta que constantemente altera o seu estado ao longo do ano. Tem ligação a um rio subterrâneo, o que nos possibilita entrar nela apenas em agosto ou em períodos mais secos, e quando começa a chover, temos exatamente uma hora para sairmos dali, visto que ficará novamente inundada. 

Em junho de 2019, fizemos uma repérage lá, e repentinamente começou a chover, e a equipa ficou “presa” no seu interior. Fomos resgatados, um momento que chegou a figurar no telejornal nacional. Durante as filmagens éramos uma equipa de sete, todos com licença e preparação para descer a gruta, juntamente com mais sete espeleólogos que serviriam de segurança. Para além das condições agrestes do ambiente, lidamos também com um delay temporal. Imagina, para chegarmos a 300 metros demorávamos 5 horas, o que nos garantia apenas 1 hora de filmagem. A imagem, que provinha de uma pequena câmara trazida pelo diretor de fotografia, estava ligada à superfície por via de um cabo de fibra, eu supervisionava as mesmas de um pequeno ecrã no topo. Facilmente a escuridão apoderava-se da área, a luz era uma incógnita, pelo que diversas vezes teria que mudar um diafragma. 

Naquele processo de filmagens, eu não era só o realizador, teria que também ser o futuro espectador daquele futuro filme, e como sentia-me impotente, porque a única intervenção que poderia fazer era somente a mudança do diafragma. Então a comunicação entre a superfície e as profundezas era quase impossível. Estava refém daquilo que o diretor de fotografia conseguia captar e registar.  

il-buco_1_jpg_1200x0_crop_q85.jpg

Nicola Lanza em "Il Buco" (2021)

Gostaria de ‘tocar’ na “eterna” luta entre cinema em sala e streaming, referindo que “Il Buco” é definitivamente um filme imperativamente a ser projetado. É uma experiência sensorial, imagem, som, quase nos sentimos presos naquele “buraco”. 

Como arquiteto, tenho a percepção que para cada objetivo há que utilizar diferentes materiais. No caso de “Il Buco”, pretendíamos um filme para sala de cinema e desenvolvemos-o para esse mesmo destino. Para outros projetos, poderão ser calculados para outras plataformas, e aí criaremos um filme com “outros materiais”, mas em relação a “Il Buco”, em termos de distribuição, sacrificamos muito para que fosse possível ser visto em grande ecrã. Com a vinda de festivais, como o de Veneza, recusei o uso de links. Praticamente “obriguei” a imprensa a vê-lo em sala para usufruir toda a experiência que “Il Buco” tinha a oferecer. A única excepção foi com os prémios Donatello [prémios de cinema italiano], o qual concordei, de forma a dar mais visibilidade ao projeto, principalmente nas categorias de som, garantir um link de visionamento à Academia

Mas isso acaba por ser paradoxal, porque ver “Il Buco” em link, é ficar aquém das possibilidades do seu trabalho sonoro. 

O problema é que o link de visionamento é um requisito para a candidatura do filme. Dessa forma não o conseguiria candidatar aos prémios. 

Percebo, só que metade da experiência desaparece com esse tipo de visualização, a sonorização, que pouco se fala nestes contrastes, torna-se refém da poluição sonora em redor. No fundo, o envio de links para tal categoria, acaba por prejudicar a sua nomeação. É um pouco como o “Memória” do Apichatpong Weerasethakul, o qual o realizador tentou resistir ao máximo às outras formas de visualizações para tentar permanecer intacto a sua experiência sonora. Tal como “Il Buco” são filmes bastante sonorizados. 

"Memória" é um filme incrível! Vi em Londres, no Festival, e foi uma experiência indescritível. Mas de qualquer modo, fico feliz que seja os espectadores a guardar a “experiência” de ver “Il Buco” em sala, os votantes são meras formalidades. 

No luto como na luta ...

Hugo Gomes, 02.06.22

1642782205-61eaddfdc4bc1-una-femmina-jpg.jpg

Una Femmina” não inventa ‘coisa alguma’ neste costurado universo da Máfia italiana, neste caso a 'Ndrangheta (da Calábria), é um ponto claro o qual se deve sublinhar mas não rasurar. Até porque é na sua transladação óptica o qual encontramos neste trabalho de Francesco Costabile (a sua primeira ficção) um motivo que chegue para a sua existência. Dito e feito, o olhar feminino posiciona o espectador a mote de uma atmosfera de silêncios, rituais e inquietações manifestadas na presença de uma invisibilidade ilícita, mais concretamente sob o ponto de vista da personagem Rosa (Lina Siciliano), jovem e órfã que desde sempre duvida quanto às circunstâncias do desaparecimento da sua mãe. 

Costabile resguarda um filme calculado, mas acima de tudo contemplativo para com este ambiente prevalecido em cenários rústicos e austeros - de pedra sobre pedra, e ruelas a becos - “construções humanas” que por breves momentos dão lugar ao belo natural, um refúgio onde as personagens evadidas (assim pensam elas) se lamentam [“Nós não merecemos toda esta beleza”]. Mas voltando à prisão, é evidente apontar a este filme um fascínio nada encoberto, interligado pelos constantes movimentos panorâmicos, quer nos interiores e exteriores, afinando a sua utilidade - a vontade de observar, enquanto deixa a protagonista a mercê desses “nefastos tentáculos”. 

Una Femmina” (adaptação do livro “Fimmine ribelli. Come le donne salveranno il paese dalla ndrangheta”) arranca em modo nublado (literalmente), dando de caras o cartão-de-visita a um mundo abstrato apelativo à nossa (anormal) compreensão, carregando o mistério para os sete ventos, até Lina Siciliano, por fim, surgir em ecrã, minando com expressividade todo o campo. Ela, uma descoberta por parte de Costabile, revela-se num real ponto de fuga para um filme demasiado cronometrado. Os seus pedidos à Lua até à suspeita crescente que a consome a olhos vistos, mesmo situando-se em segundo plano. E o realizador parece reconhecer esse seu achado na perfeição, conduzindo-a e por fim emancipá-la numa procissão das mulheres-vítimas dessa densa escuridão que as abate. Rosa, ou melhor Sciliano, não se empoleira como a Voz, mas antes como a Face … e frontal … de uma luta suprimida e sem réstias de ruído.

"Pinocchio": desta vez um filme que não mente sobre o seu legado

Hugo Gomes, 05.11.20

161116851660087b0401b3b_1611168516_3x2_md.jpg

O amado livro infanto-juvenil (mas de contornos negros) do toscano Carlo Collodi, “As Aventuras de Pinóquio”, que muitos de nós o recordamos como a animação da Disney em 1940, foi fruto de muitas imaginações, readaptações e sobretudo tentativas em live-action. De facto, o enredo é agora devolvido à sua terra natal (antes da versão americanizada de Guillermo Del Toro chegar), pelas mãos de um dos incontornáveis autores italianos no ativo (Matteo Garrone), no qual deparamos com um novo propósito do conto, o da redenção.

É cruel regressar a 2002, quando no auge da sua popularidade, o ator e realizador Roberto Benigni (5 anos depois de ter vencido o Óscar em “La vita è bella”), decidiu embarcar numa revisão de “Pinocchio” em ares de Fellini cansado. O pior é que o ator, na altura com os seus 50 anos de idade, assumiu-se como o próprio boneco de madeira que sonhava ser menino de carne-e-osso, deixando o espectador à mercê da sua descrença. O resultado foi embaraçoso e ridículo, levando Benigni a um evidente estado de desgraça (nem mesmo a regressão com “La tigre e la neve” em 2005 o conseguiu erguer a sua anterior ribalta). Portanto, vermos aqui como Geppetto, o carpinteiro responsável pela criação da marioneta sem fios, entende-se como um gesto de misericórdia por parte de Garrone que funciona numa espécie de “refresh” à igualmente exausta e faminta personagem.

Quanto a este “Pinocchio”, com as promessas de uma fidelidade ao tom do conto original (desprendendo de qualquer vínculo imaginativo com a dominante animação do estúdio do Rato Mickey), somos envolvidos num devaneio que preserva a sua ingenuidade e moralidade sufocante, dois ingredientes ao serviço de uma fábula igualmente austera e ambiguamente gótica que joga oscilantemente com uma fantasia interveniente, mas naturalizada. Aliás, o realizador havia tomado notas no seu anterior e exuberante “O Conto dos Contos” (“Il racconto dei racconti”, em 2015), uma adaptação de um conjunto de histórias de Giambattista Basile, de como representar um imaginário apenas traduzido na voz de trovadores, o misticismo bruto e o desencanto em relação ao seu próprio “encantamento”.

Com “Pinocchio”, é aplicado uma alma dignamente rústica no tratamento desta mesma fantasia, e por si, um curioso reflexo antropomórfico na ambiência que as reduz como meros signos de um improvável coming-of-age. No reforço dessa mesma aura, um virtuosismo no sector dos efeitos visuais, desde a caracterização aos esforçados CGI (que nunca tomam a narrativa como gratuita) que concedem a credibilidade deste mundo, demasiado encharcado para a nossa devida contemporaneidade.

É um objeto sem esplendor, mas com afinco, esculpindo um protótipo do verdadeiro coração de “Pinocchio”, a fim de dar o devido descanso às lentes disnescas que imperam na nossa cultura.

"Noites Mágicas" em que o cinema italiano seguia à boleia dos “maestros”

Hugo Gomes, 16.04.19

Noite Mágica2.jpg

Aquele que foi em tempos uma das maiores e mais respeitadas indústrias de cinema a nível global, é hoje convertida num espectro que tenta a sobreviver às custas de niilistas ou recicladores. Não é novidade que o cinema italiano está a sofrer uma verdadeira crise identitária e tendo em conta as suas já produzidas 14 películas (apenas longa-metragens), não será Paolo Virzi a salvá-lo. Porém, o grande júbilo deparado neste seu “Notti Magiche” (Noites Mágicas), é uma tendência de autojustificação e ao mesmo tempo um olhar de dentro para fora para tentar apurar a sua própria decadência.

Estamos em 1990, Fellini acaba de filmar a sua última obra (“La Voce della Luna”, com Roberto Benigni) e os outrora grandes produtores italianos parecem depender do pequeno ecrã. Mas o Cinema não é mais assunto aqui e ninguém quer saber, até mesmo os da própria indústria. O Mundial decorre e a seleção italiana tem as suas hipóteses de conquistar o troféu. O seu obstáculo é a Argentina de Maradona e todos nós sabemos como acabou. E é durante esse crucial jogo que Soponaro (Giancarlo Giannini), um dos importantes produtores, mas ultimamente reduzido a um mendigo, é encontrado sem vida no Tibre. A polícia começa a investigação de um suposto homicídio, tendo como principais suspeitos três jovens argumentistas que se encontravam há poucos dias em Roma.

Um testemunho, ménage-à-trois ao jeito da clássica tradição cinematográfica, que vai colmatando os factos através de um piscar de olhos a um Cinema de postal. As referências são diversas (não vamos aqui enumerá-las), contraindo uma narrativa algo meta que indicia a saturação dos seus elementos como compensações de um mero whodunit. Virzi é em simultâneo; um fanfarrão que se coloca em bicos de pés para aprofundar a sua tese em forma ficcional e um engenhoso ocasional na sua própria narração. Até porque não existe ciência aqui, tudo ocorre como planeado na jornada dos três jovens, cada um deles formando a sua própria caricatura – prodígios na demanda de “triunfar” numa Roma em modo embuste que nega a passagem do seu tempo.

Pontuado com um humor calculista e de situações caricatas que despertam um ar escapista no espectador, uma brisa tão anos 90, assim em contexto com o cinema italiano da época, meloso e profundamente saudosista. A nostalgia está ao rubro em conjunto com as mistelas visuais no qual Sorrentino reina nesta atualidade. Será que o realizador de “La Grande Bellezza” e “Loro” é o modelo a seguir na difusão deste cinema? Contudo, são estes os códigos estéticos e expressivos que endossam a espinha dorsal deste projeto. 

nottimagiche.jpg

Mas pelos vistos, o grande problema em “Notti Magiche'' não é isolado, é uma anomalia que se habitua como um deserto. Por outras palavras, a sua falta de marca autoral. Não é Paolo Virzi o melhor ou o pior cineasta italiano no ativo, é somente um anónimo ser que respira o cinema dos outros com um certo rigor. Nesta sua obra, essa experiência advém da sua condição enquanto narrador e, por sua vez, vigilante dessa narração. “Vocês veem como argumentistas, ao invés de espectadores“, diz o inspector da polícia seguido por um travelling afora que nos vai revelar o “culpado”, como uma das mais criativas (formalmente) revelações de um plot twist. Em certa parte, esta declaração é como uma mea culpa a Virzi, que se aprofunda nas suas demandas pelo centro/caos da equação ao invés de se afirmar como um simples contador de histórias (o resultado é um filme que agradará mais quem está dentro deste universo do que ao público). 

Pode soar injusto estas inquisições à visão de Virzi, até porque o filme tende em lançar as suas certeiras ferroadas, com isso procurando a sua “salvação”, palavra que interliga este enredo de suspeitas e que é inserida nos mais diferentes contextos. Com isto, queremos salvar, por vezes até “abraçar” um cinema-fantasma que se desculpa pelas suas indulgências: “O que ‘matou’ o cinema italiano foi a vossa geração“. O sangue novo foi o culpado, diriam os velhos do Restelo, ou Pasolini, diria Gabriele Muccino, ou quem sabe o destino, a ordem natural das coisas … diria eu, sem querer reduzir-me a um mero pedestre do Cinema dos antigos maestros.