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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Do luxo ao lixo, um retrato iludido de uma geração ...

Hugo Gomes, 25.03.25

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Com a série "Adolescence" a berrar por aí fora e a preocupar pais com essa glutona, mas silenciosa, cultura incel, podemos acrescentar à conversa a estreia de "Diamant brut", um primo afastado, mas igualmente mergulhado na imperatividade estética e sociológica das redes sociais. Nesta medida imposta pelos padrões de beleza e pela regência do reality show — esse poplixo que persiste nas audiências televisivas —, a primeira longa-metragem de Agathe Riedinger segue uma alucinada jovem, Liane (Malou Khebizi), cuja existência medíocre a leva a ambicionar tornar-se estrela de um programa do género. Desencantada com as suas potencialidades, mas sem querer franzir os olhos como quem mede superioridades, é alimentada por essas iguarias digitais, cosméticas e quase transhumanas.

É essa juventude presa à fama fácil, pensando unilateralmente na ascensão (leia-se, o holofote televisivo danado), mas há nela uma outra questão: os conformes do corpo idealizado pela luz do algoritmo, das plásticas como prática, da roupa espampanante e das cores berrantes que gritam tendência, uma ave canora sem voz em época de acasalamento. Mas não denegrimos a protagonista desta maneira — não estamos aqui para o bullying —, ainda que a empatia para com ela seja difícil. A fantasia que a envolve torna-a cega, mesmo quando a realidade decide dar-lhe um banho.

"Diamant brut" fala-nos da brutalidade do mundo para lá da fabulística idealização, transformando Liane (Malou Khebizi) na vítima perfeita, submetida a humilhação atrás de humilhação. Só que a sua carapaça dura — e artificial também —, esse narcisismo efémero pontuado nestas sociedades reféns dos conteúdos e a sua auto-produção, fá-la persistir numa resiliência sem par. O filme parece adquirir essa moralidade, se não fosse aquele final a fazer conchinha na "menina", oferecendo ao espectador o álibi perfeito para perpetuar as suas fantasias mais medíocres.

Poderia ser um "Adolescence", desses que todos comentam com convicção, mas preferiu ser “O Feiticeiro de Oz" desta geração… é só seguir estrada fora, aquela de tijolo amarelo em direção à cidade esmeralda.

Está na hora do "cházinho"!

Hugo Gomes, 01.01.25

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Rezam as histórias que, quando os “seguidores” dos irmãos Lumière levaram o cinematógrafo para outros cantos do mundo, nomeadamente fora do círculo ocidental, muitas vezes contavam com tradutores. Curiosamente, estes tradutores não estavam ali para decifrar a língua, já que os filmes eram mudos ou simples vinhetas, e sim, para ajudar os nativos a compreenderem a linguagem narrativa, estética e formal evocada pela tela — como aquela história poderia ser traduzida aos olhos de 'estrangeiros'. Essa prática surge como uma tentativa de conectar duas perspectivas divergentes, diferentes formas de olhar e interpretar o mundo, e em consequência, como, hoje, essa visão acabaria por ser moldada (não totalmente) pelo olhar ocidentalizado.

Ao assistir “Black Tea”, percebemos uma cadência temporal muito própria, quase como uma espécie de atmosfera deslocada, um véu narrativo de acesso difícil para o gosto ocidentalizado e altamente “mainstreamizado”. O mauritano Abderrahmane Sissako (“Timbuktu”)  premeia essas antipodes, oferecendo-nos a história de Aya (Nina Mélo), uma mulher marfinense que após declarar o “Não” no seu casamento, exila-se da sua terra natal e instala-se em Guangzhou, a chamada “Cidade do Chocolate” naChina. Lá integra uma comunidade culturalmente diversificada, e passa os dias a frequentar tutoriais de chá lecionados pelo seu patrão, e amante (convém informar), Cai (Chang Han). 

Esses ensinamentos sobre paciência e a veneração pelo tempo necessário entre a difusão e o momento certo para captar o sabor aromático do chá estão alicerçados numa série de costumes e maneirismos. Estes revelam quase um back-to-back de um olhar estrangeirado, que nos aconselha sobre disposição, aprovação e a melhor forma de alcançar tal estado. Talvez seja por isso que “Black Tea” nos soa, por vezes, estranho — por vezes sem paladar. Essa necessidade de tradutores, que nos guiem num tempo diferente do que vivemos de forma acelerada e, por isso, irritada, não consegue evitar as fragilidades corrosivas da obra, nomeadamente, o seu exotismo e a fascinação oriundo de um olhar alheio.

Um realizador mauritano a tentar capturar a essência de uma personagem marfinense em terras orientais, compondo um cinema que procura dialogar com a China da seda e dos vastos campos de chá, dando mais tarde um saltinho por Cabo Verde na liquidez do grogue. Tal como Apichatpong Weerasethakul, que migrou o seu cinema para a Colômbia sem conseguir contornar totalmente a aura turística do projeto ["Memoria"], este "chá das cinco" de Abderrahmane Sissako demonstra que a patologia do exotismo não pertence exclusivamente ao Ocidente ou a "realizadores brancos."

Sim, após a água a ferver, as infusões de ervas calmantes não são propriamente cinema inventivo — apenas forasteiro para alguns.

Stéphane Brizé: "vejo sempre a ficção como um documentário sobre os atores."

Hugo Gomes, 06.12.24

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Stéphane Brizé faz uma pausa ao seu cinema social e a Vincent Lindon, dizem que foram os sinais do tempo, a pandemia e tudo isso acarretou que o fez virar para “Hors-Saison” (“A Vida Entre Nós”), filme atípico da sua filmografia, onde filma Guillaume Canet enquanto ator deprimido e resignado à sua estagnação, a reencontrar memórias de vidas passadas num retiro balnear. Alba Rohrwacher, a célebre atriz italiana, é essa "madalena de Proust"

Em conversa com o realizador, entendemos o quão de Brizé tem esta tragicomédia romântica, o tempo que passa, o tempo que marca e demarca, Alain Delon, Claude Lelouch e Östlund num caldeirão verborreico. Depois de Veneza, “Hors-Saison” integrou a Festa do Cinema Francês e marcou assento nas estreias em sala do nosso país. Fiquemos com um diálogo que tem tudo menos estar em “fora-de-época”.

Gostaria de perguntar sobre a génese deste projeto, mas também sobre como foi, após concluir a chamada “trilogia do trabalho”, aventurar-se por este novo universo? Como se sentiu ao dar esse passo?

Muita coisa! [risos] Depois de concluir o que acabou por se tornar numa trilogia — que, curiosamente, não começou com essa intenção —, a minha primeira ideia era fazer um novo filme social. Desta vez, seria situado numa grande empresa, com uma protagonista feminina e um tom diferente. Sentia essa vontade de continuar a explorar os mecanismos de subjugação: como é que se transforma um indivíduo? Como é que se força alguém a fazer algo que vai contra o seu próprio modo de ver o mundo? Tinha muitos elementos em mente para desenvolver.

Mas, quando expliquei essa ideia ao produtor com quem tinha trabalhado nos filmes anteriores, ele disse-me: “Não quero mais trabalhar contigo. Acabou.” E, de um dia para o outro, fiquei sem produtor. Foi um golpe duro. Decidi continuar sozinho, avançar com o projeto, mas percebi que não estava a reinventar nada. Estava apenas a repetir o que já tinha feito nos filmes anteriores.

Foi então que parei. Havia um peso emocional muito grande: a separação com o produtor, questões pessoais difíceis de gerir e, claro, a pandemia de COVID. Naquele período, a morte era uma presença constante no nosso quotidiano, uma sombra inevitável. Contávamos mortos nos jornais todos os dias. Creio que isso trouxe à superfície questões muito essenciais, quase arcaicas. O lado político, que sempre me interessou, parecia diluir-se, cedendo espaço a algo mais existencial.

Durante o COVID, todos passámos por um processo muito existencial, e “Hors-saison” nasceu disso. Foi o resultado de uma necessidade de contemplação, de olhar para a minha própria vida e experiência. Só depois de terminar esse filme é que consegui retomar o guião político e encontrar o caminho certo para ele. Mas precisava, naquele momento, de parar e de criar algo diferente, mais íntimo e reflexivo.

Mas, voltando à questão, porque falou-me desta ideia das crises existenciais, mas gostaria de perguntar-lhe sobre a escolha de um ator como protagonista. O porquê dela para representar uma crise de existencial social num filme que evoca o COVID? 

Compreendo perfeitamente o que perguntas, e foi algo em que reparei, embora não tenha sido exatamente ao ver o filme, mas sim no set, enquanto estávamos a filmar nas ruas vazias. Como a história de “Hors-saison” se desenrola numa cidade balnear fora de época, houve um momento em que, ao olhar para aqueles planos, aquelas ruas desertas fizeram-me lembrar as ruas de Paris durante o período do COVID.

Acho que isso não é um acaso. Pode ter sido algo totalmente inconsciente, mas não deixa de estar ligado a essa memória coletiva que agora carregamos. Talvez seja mesmo isso: as ruas vazias adquiriram uma nova camada de significado, remetem-nos para essa sensação partilhada, essa outra história que se infiltrou no nosso imaginário coletivo.

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Da esquerda para a direita: a co-argumentista Marie Drucker, o ator Guillaume Canet, o realizador Stéphane Brizé e a atriz Alba Rohrwacher, no Festival de Veneza na apresentação de "Hors-Saison" (2023).

Sobre esse imaginário coletivo do COVID no filme, sublinho a sequência sobre o jazz como música de fundo, no qual o Cannet refere as suas batidas como provocadoras de ansiedade. E como bem encaramos, a ansiedade é quase uma cicatriz do pós-pandemia.

Não tenho muita imaginação, confesso. O que tenho, sim, é um bom sentido de observação, e é a partir daí que tento transmitir aquilo que vejo. O jazz, por exemplo, é algo profundamente pessoal [risos].

E o jazz... tem tantas vertentes. Algumas, claro, gosto e acho aceitáveis, mas há algo curioso neste universo: parece que é um daqueles territórios de que ninguém pode falar mal. Existe quase uma pressão implícita, uma obrigação de se gostar, talvez para parecer mais inteligente ou sofisticado. No entanto, tenho de admitir que não me enquadro totalmente nisso. Ainda assim, há coisas no jazz que me atingem de forma muito direta. É como se me estivessem a espetar uma agulha ali... [risos].

[risos] Muito bem, voltemos então à questão do casting? Da personagem-actor, como também do ator?

Para mim, a ficção é sempre uma espécie de documentário sobre os atores. Nos filmes que faço, a ideia de personagem surge no momento da escrita e é algo que os espectadores inevitavelmente reconhecem. Mas, quando trabalho diretamente com um ator, não vejo uma personagem à minha frente; vejo uma pessoa real. O que realmente me interessa é capturar a sua humanidade, aquilo que o define, para depois, disso, emergir a personagem como uma consequência natural. Preciso de encontrar algo essencial e autêntico no ator, algo que não seja fabricado, e que estabeleça essa ligação entre ele, a atriz ou ator, e o que quero expressar através da personagem.

No caso do Guillaume, o que me atraiu foi algo que percebi nele: por trás da sua postura confiante, descontraída e até engraçada, havia uma grande angústia e, sobretudo, uma tristeza profunda. Foi essa tristeza que filmei. No entanto, o Guillaume tem uma grande capacidade de autodepreciação e um sentido de humor apurado, o que fez com que a sua tristeza não pesasse 100 toneladas, mas ainda assim presente e filmável.

Tenho uma pergunta pertinente, mas antes disso, queria continuar a falar sobre os atores. Passo agora para a Alba Rohrwacher. Portanto, uma atriz italiana para uma produção francesa.

Primeiro, porque, bom, ela fala francês. [risos] Mas essa escolha não foi algo que partiu de mim desde o início; foi, na verdade, uma sugestão da diretora de elenco. Como já expliquei antes, há sempre algo do real que é essencial para mim, mesmo num filme de ficção. Por exemplo, ao escolher Guillaume Canet, um ator conhecido que interpreta um ator famoso, era inevitável surgir a questão: quem coloco ao lado dele para dar vida a uma personagem desconhecida?

Na minha visão, não fazia sentido, escolher uma atriz francesa conhecida, porque isso poderia quebrar a coerência da história. Mas claro, a minha lógica francesa só funciona até ao momento em que o filme chega a Itália, e lá a Alba Rohrwacher é mais famosa que o Guillaume Canet! [risos] Foi curioso perceber, quando estivemos em Veneza, que essa troca de dinâmicas funcionava perfeitamente.

A escolha da Alba também veio da necessidade de alguém que pudesse interpretar um papel muito difícil: uma personagem forte, mas que trilha um percurso de resignação. E quem poderia carregar esse arco sem perder força? Precisava de uma grande atriz, e Alba é exatamente isso. Além disso, em França, ela não é muito conhecida, o que ajudava a manter a lógica da personagem.

No início, fizemos testes com outras atrizes, mas quando a Alba surgiu como sugestão, tornou-se evidente. O sotaque dela em francês também trouxe um toque poético, algo que remete à ideia de ser de fora, de outro lugar, o que adicionava camadas à personagem. E há, claro, aquele mistério que só os grandes atores e atrizes conseguem trazer — fazem existir o que o guião não escreve, mas que está lá, latente. Alba é exatamente assim: alguém que torna o invisível visível, que revela algo que transcende o texto. E essa é, talvez, a maior força dela

O seu rosto transmite tudo isso! 

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Gostaria de colocar-lhe a tal pergunta pertinente: É a seguinte — este filme, em certos momentos, poderá lembrar a muitos o “Triangle of Sadness”, mas prefiro evocar outro trabalho de Ruben Östlund, “The Square”. Nesse filme, há uma performance marcante de um homem-gorila, uma sequência angustiante e até agressiva, que explora a violência e a nossa animalesca natureza ‘adormecida’. Em “Hors-Saison”, a performance dos dois homens-pássaros parece apresentar uma contraposição clara: algo mais leve, mais distante da ferocidade do artista-símio. Nesse sentido, gostaria de saber: vê essa escolha como uma provocação ou até mesmo como uma resposta direta ao filme de Östlund?

Eu não sou um provocador! 

Digo antes, a provocação que é responder à agressividade e transgressão do homem-gorila com a harmonia dos homens-pássaros.

Não houve uma referência consciente ao homem-gorila, mas havia uma intenção muito clara: provocar uma emoção pura. Enquanto a performance do homem-gorila em "The Square" desperta uma reação violenta e imediata, no meu caso, quis criar um clima que transformasse todos os olhares — tanto dos personagens como do espectador — num olhar infantil, desarmado e genuíno. Se existe um ponto de ligação entre as duas cenas, ele está na busca por algo integralmente orgânico e emocional. Não é sobre ser inteligente; é sobre sentir e trazer à tona o sorriso mais puro e espontâneo, quase como o de uma criança.

Enquanto escrevia o filme, ouvi um relato na rádio sobre este grupo artístico. Imediatamente pensei: "Isto tem tudo a ver com o filme." Contactei-os e sugeri uma colaboração, que aceitaram. Depois de assistir a uma das suas apresentações, vi não só o sorriso no rosto das pessoas, mas também no meu próprio, e foi aí que percebi que esta cena tinha que acontecer durante o casamento.

Filmámo-la com cinco câmaras, precisamente para capturar toda a espontaneidade e os risos genuínos numa única tomada. Nenhum dos presentes na sala sabia exatamente o que ia acontecer, nem mesmo o Guillaume e a Alba. Coloquei as pessoas estrategicamente na sala e preparei os performers, mas mantive o elemento surpresa. Disse aos atores principais apenas que era fundamental partilharem aquele momento de comunhão e alegria com os outros. E foi assim que conseguimos criar uma cena desarmante, carregada de poesia, humor e emoção verdadeira.

Alguns críticos e jornalistas comparam facilmente o seu “Hors-saison” a filmes como “Lost in Translation” ou “Broken Flowers”, e a sua resposta é com Claude Lelouch. Acho curioso porque ultimamente tem encontrado vários cineastas a mencionar Lelouch como referência, um homem visto como criador de melodrama francês, algo que foi considerado pejorativo durante algum tempo, mas que hoje muitos tem o declarado a saudade desse melodrama clássico no panorama francês, esse dito melodrama lelouchiano.

Essas comparações com “Broken Fever” e outros, deve-se muito à sensação que o meu filme transmite... O que certamente o que os une é que as personagens passam por momentos em que estão completamente perdidos. Acho isso fascinante de encenar: uma personagem que está perdida, mas sem cair no risco de aborrecer o espectador. Esse é sempre o grande desafio, o objetivo.

Sobre Claude Lelouch, tenho de admitir que tenho uma enorme admiração por ele. Curiosamente, ele chegou até a ser produtor de um dos meus filmes, por isso conheço o trabalho dele de perto. O que me fascina no Lelouch é como ele criou um gesto cinematográfico muito próprio. Quando nos encontramos pela primeira vez, percebi algo interessante: havia técnicas que já usava sem saber que ele também as fazia.

Por exemplo, dentro de um texto bastante estruturado, existe sempre a ideia de criar dispositivos no set que trazem algum grau de desequilíbrio para os atores. Não para os deixar desconfortáveis, longe disso, mas para criar um ambiente onde a escuta entre eles atinge o máximo potencial. Esse desequilíbrio torna tudo mais vivo, mais orgânico.

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Possivelmente, esta menção a Claude Lelouch deve-se porque um dos últimos filmes da sua autoria tem pontos de contacto com esta sua obra. São filmes de reencontro.

Qual filme?

A terceira parte da trilogia “Un homme et une femme” (1966), com o Jean-Louis Trintignant e com a Anouk Aimée … 

Deve ser o Les plus belles années d'une vie?

Exatamente, vi esse filme em Cannes.

O último foi apresentado em Veneza este ano [“Finalement”], com um prémio especial para ele. Também o vi em Cannes, ele convidou-me para essa exibição.

Portanto deves-te lembrar, quando no final, todo o cinema cantou... Foi incrível. Estava ele, o Jean-Louis Trintignant, a Anouk Aimée, na famosa linha do “Un homme et une femme”. E eu estava mesmo na fila da frente, a poucos metros. Fiquei tão emocionado com o filme, tão tocado. Foi incrível, porque o primeiro filme já é algo lendário na História do Cinema.

Disse-lhe como imaginava... Disse-lhe: “Claude, imagino como deve ter sido o teu entusiasmo enquanto montavas este filme.” Porque era possível trazer de volta o primeiro filme, com eles naquela cena em que fazem amor no Hotel Normandy. Eles são maravilhosos, belíssimos, belíssimos. É incrível o vínculo entre os dois filmes.

Talvez seja sobre o “tempo que passa” que referes como ligação desse filme com o meu? Só que nesse filme, fala-se do Claude. Vemos os personagens velhos, depois vemos-os novamente jovens, e, de repente, há ali 50, 60 anos de diferença, ou algo assim, e num determinado momento da montagem, sentimos intensamente o tempo que passou.

E o “Hors-Saison”, fala disso: o que fazemos com as nossas vidas, o que fazemos com o tempo. Fala mesmo sobre isso.

Quer no seu filme, quer na do Lelouch, o romance é entendido como uma espécie de veículo para regressar a um tempo que não tem regresso. São filmes sobre a ilusão encantatória do passado. 

Sim, concordo plenamente consigo. Este filme fala exatamente sobre isso. Há algo muito forte nele porque todos os espectadores se lembram do primeiro filme, lembram-se do início da história. No último filme, o Jean-Louis Trintignant não se lembra. A personagem principal não se lembra de algo que eu me lembro. Isso é muito poderoso. É uma ideia incrível. Às vezes, perguntamo-nos: “Será que ele se lembra? Não sabemos. Será verdade? Ou não será?”

Compreendo perfeitamente a sua questão, e é a primeira vez que alguém observa isso, por isso deixa-me contar-te uma história.

Sim, claro …

Na primeira versão do guião de “Hors-saison” tinha uma personagem para o Alain Delon. Eu o queria no meu filme, seria um dos hóspedes do hotel.

O Guillaume, a personagem, está tão em baixo... Ele vê o Alain Delon ao longe, no restaurante. O Alain Delon está ali. Ele tem dinheiro, é um grande hotel, é plausível. Guillaume liga à mulher, e ela diz-lhe: “Ouve, durante toda a tua vida disseste que, se um dia encontrasses o Alain Delon, lhe dirias: ‘Sou um grande fã, és muito importante para mim.’ Estão no mesmo hotel. Vai e diz-lhe que ele é importante para ti.” Mas o Guillaume, nessa tristeza, responde: “É o Alain Delon. O que é que ele se vai importar comigo? Faz o que quiseres.

Então, o que acontece? Mais tarde, noutra cena, noutro lugar, o Alain Delon está no mesmo espaço. E sabemos, naquele momento, que o Guillaume gostaria de se aproximar dele, mas não tem coragem. E não vai. No guião, estava escrito que, depois disso, ele estaria no quarto, a ver o “Plein Soleil" de René Clément.

Porquê “Plein Soleil”? Porque é exatamente o que está a dizer sobre o Claude Lelouch, queria ter a imagem do Alain Delon de antigamente logo após a imagem do Alain Delon na sua atualidade, porque o meu filme fala do tempo, do tempo que passa. Na história, era por isso que, quase no final do filme, o Guillaume estava sentado à mesa e víamos um homem a chegar – o Alain Delon – e ele dizia: “Não quero incomodá-lo, só quero dizer que sou um grande fã. Sabe, aproveite a estadia. Tenho de ir.

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Alain Delon em "Plein Soleil" (René Clement, 1960)

Contactei a filha do Alain Delon, escrevi uma carta de amor para ele. Ela disse-me: “O meu pai está tão cansado, já não quer fazer estas coisas.” Mas ele recebeu a minha carta. Não sei se leu, mas recebeu. E era exatamente sobre o que estávamos a falar: sobre a vida.

Foi uma experiência, um experimento cinematográfico. Tal como em “Une Vie(2016), uma das principais experiências de montagem que já fiz para falar sobre o tempo. Em zero segundos, no não-tempo, ela é jovem, depois velha, depois jovem outra vez. E, de repente, estamos a falar do tempo, num único momento de montagem.

Voltará ao filme social que mencionou no início da conversa?

Sim, o guião está praticamente pronto, e aliás, enquanto trabalhava em “Hors-saison”, a outra metade do meu cérebro pensava nesse filme. [risos] Posso dizer que não encontrei toque no momento certo, mas atualmente o vejo como uma examinação sobre os aspectos grotescos do liberalismo. Será de um filme performaticamente cínico. 

Ou seja, é uma resposta aos novos tempos. Tempos, esses, em que a política adquiriu uma certa espectacularidade circense.

Sim, vou voltar a Ruben Östlund para fechar o círculo. O que acontece é que, quando escrevi “La Loi du marché” (2015), “En Guerre” (2018) e “Un autre monde” (2021), fiz esses filmes a partir de dezenas de testemunhos. Fui ao encontro das pessoas, escutei-as, e elas contaram-me as suas vidas. Depois, tentei transpor essas vidas para o filme.

No entanto, em cada um desses filmes, fui obrigado a colocar a ficção abaixo do real. Porquê? Porque, de outra forma, os meus filmes realistas pareceriam falsos. O real é tão mais indecente, violento e cínico do que aquilo que conseguimos imaginar que, para não perder essa autenticidade, tive de subordinar a ficção à verdade.

Há anos que me pergunto: como se pode representar o real de forma precisa numa obra de ficção? E acho que é necessário deslocar-se um pouco em direção à farsa. É isso que Ruben Östlund faz. É um caminho para representar a indecência a que chegámos hoje — a indecência do cinismo e do grotesco do capitalismo. Por isso, o meu "cursor" também se desloca nessa direção.

Guerras declaradas ...

Hugo Gomes, 14.01.24

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Fora a sua temática de que o enredo é refém, “L'Amour et les Forêts” poderá ser recordado como um palco para Virginie Efira desempenhar a dobrar, duas personagens, irmãs gémeas, cuja intenção é nos chegada num modo fútil, digamos, descartável. 

Porém, é voltando à temática, essa, a da violência doméstica, seja física ou psicológica, que no cinema pouco ou nada adquiriu forma sem ser a do corpo de “cinema de género” (deste lado, “The Invisible Man de Leigh Whannell permanece como um dos recentes casos funcionais, ou até mesmo “The Entity”, com Barbara Hershey, remontando o ano 1982). Contudo, nas vestes dramáticas, muitos destas explorações resumem-se a pedagogias ou panfletos de mão armada, por exemplo, Jennifer Lopez em “Enough” (2002) cuja solução foi encontrada na retribuição de força, olho por olho, dente por dente, enquanto que no vínculo psicológico, o “gaslight”, palavra à meia-luz que tão bem conhecemos do homónimo filme de George Cukor (em 1944, mas antes um filme de Thorold Dickinson em 1940), esperneia como matéria para thrillers da ordem criminosa e vice-versa.

Aqui, Valérie Donzelli, atriz e realizadora, que deu nas vistas com outro território “maldito” do cinema, o cancro (ou doença terminal várias), com “La guerre est déclarée” (2011), deseja sensibilizar como objetivo crucial (a realizadora e argumentista Audrey Diwan alia-se à missão), usando Efira como um prototipo, uma face para um extenso episódio “e se fosse consigo?”, “coadjuvada” por Melvil Poupaud, ultimamente rotulado de “canalha francês” (“Coup de Chance”, “Jeanne du Barry”), e voilá, temos assunto para final de visionamento. Neste sentido, nada contra o debate do tema, e a urgência de o fazer é mais do que qualquer produção, mas paremos que o Cinema respire através de simples filmes-tema, e aproveitemos o mesmo para manobrar em exercícios mais ricos na linguagem cinematográfica (nesse aspecto, o género é terra fértil para “flic-flacs”).

Hercúleo movimento portanto, mas não impossível, já “L'Amour et les Forêts” é só corriqueiro sem o seu escudo. 

Nicolas Philibert: "Acredito firmemente que a arte nos permite suportar o mundo, a sua escuridão, a sua miséria e violência"

Hugo Gomes, 12.11.23

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Sur L’Adamant (2023)

Nas margens do Rio Sena, em Paris, encontra-se ancorado o L’Adamant, mais do que um mero navio, um centro de dia que acolhe as mais diferentes loucuras, culminando-as numa salvação, ou amenização, por via da arte, seja de que forma for. Entre loucos e génios, a distância é mínima, mas é através dessas particularidades, que estes 'doentes', assim a sociedade os apelida como marginalização, se unem, partilhando vivências, ideias, hesitações e angústias com a sua própria existência. São ateliês de desenhos, cafeterias improvisadas, ou até um festival de cinema, Travelling, onde a passagem é prometida como breve. Não são os loucos de Lisboa, mas parisienses, aqueles que igualmente acreditam que “os rios nascem no mar” como uma alternativa à violência da nossa realidade.

O barco à mercê de todos, é o motivo do novo filme de Nicolas Philibert, documentarista de sucessos notáveis em França, que cá em Portugal estreou [comercialmente] com “Ser e Ter” (“Être et avoir”, 2002), sobre uma escola da zona rural francesa. Existe nele um interesse pelas pessoas que tornam possíveis as existências das instituições, e talvez a 'loucura' seja um método corrente do seu fascínio, aqui escutando, deliciando e sublinhando as singularidades de cada um de nós.

Sur L’Adamant”, o seu mais recente filme (mas não o último), impactou as audiências da Berlinale de 2023, gratificando-se com o Urso de Ouro do certame. Chega a Portugal com essa faixa laureada, mas antes serviu de ‘desculpa’ para uma retrospectiva na Cinemateca Portuguesa, com o apoio da Festa do Cinema Francês. Nicolas Philibert esteve presente no seu dedicado ciclo, conversando com o público, abrindo as cortinas para os eventuais 'mundos' que mostraria nos seus trabalhos, desde o Louvre, a hospitais psiquiátricos, a jardins zoológicos até aos bastidores da Radio France. Assim segue a nossa conversa com o documentarista, cineasta da humanidade.

Tendo em conta grande parte do seu trabalho, e nomeadamente o seu recente e premiado "Sur l'Adamant", o ponto de partida para os seus filmes são as instituições. Assim, questiono-o: o que o fascina nas instituições?

Nada. Não são as instituições que me fascinam. As instituições, para mim, desempenham o papel de palco nos meus filmes, mais do que propriamente tema. Ou seja, não faço filmes como o Frederick Wiseman, que aborda didaticamente os meandros institucionais, eu adoto uma abordagem distinta. Utilizo as instituições como pano de fundo, uma moldura que contextualiza as narrativas cinematográficas que busco criar.

Conhece o cinema de Frederick Wiseman? Para mim, Wiseman transcende a mera análise institucional, é um cineasta dotado de profundo interesse pela arte e pela complexidade da condição humana. Que se interessa pelo rosto. Na sua trajetória, filmou milhares de rostos, que para ele são tão ou mais importantes que as próprias instituições.

Ainda bem que trouxe o Wiseman para a conversa, porque apesar de ele e de você partirem das instituições, as suas abordagens são opostas entre si. Wiseman é, sobretudo, observacional e, de certa forma, crítico em relação às instituições que aborda na sua ótica, enquanto o Nicolas humaniza as pessoas que integram essa estrutura institucional. Oferece um palco a estas pessoas, proporcionando-lhes um motivo de escuta. Aliás, diria mesmo que o seu propósito é a 'escuta' acima de tudo o resto.

Penso que há uma diferença profunda na abordagem entre o trabalho dele e o meu, no sentido que o Wiseman, diria, busca um certo apagamento, uma quase dissolução, ao passo que, de certa forma, opto por não esconder a minha presença nos meus filmes. Embora haja ocasiões em que evito minha própria imagem, não me submeto a permanecer fora do quadro. A voz, por vezes, torna-se no meu meio de interação. Estabeleço diálogos com aqueles que filmo. Quando me abordam, eu respondo. Ou seja, não procuro abertamente dizer “Estou aqui, eu sou eu". Não tento enganar os espectadores, sugerindo que a pessoa diante deles está sozinha. Em vez disso, instigo: “Ajam como se eu estivesse aqui”. Quando digo que Wiseman se apaga, não implica que ele esteja ausente. Reconhecemos imediatamente um filme de Wiseman, mesmo que fisicamente ele não esteja lá.

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Nicolas Philibert na Cinemateca / Foto.: Hugo Gomes

Não lhe incomoda estas comparações?

Isso não me incomoda. Na verdade, tenho por ele uma grande admiração e carinho. É alguém que aprecio muito e que me inspira.

A sua longevidade é de facto uma inspiração [risos] …

Ele é um grande atleta, faz desporto e tem uma saúde de ferro.[risos] Além disso, trabalha imensamente, e é rápido. Ele faz, aproximadamente, um filme a cada 18 meses. Eu, ao lado dele, sou um ‘menino’, não tenho esse ritmo. [risos]

Sobre o “Sur l'Adamant”, cuja proposta nos remete a outro filme seu - “La Moindre des choses” (1997) - em que um grupo de doentes de um hospital psiquiátrico francês encena a “Operetta” de Witold Gombrowicz, gostaria de abordar a relação entre a psiquiatria e a arte, especificamente a psicoterapia. A arte pode ser considerada um dos remédios para uma mente doente?

Tenho o desejo de afirmar que, estejamos doentes ou não, sejamos vítimas ou não de distúrbios psíquicos, a arte nos conforta. A arte faz bem a todos nós, independentemente de quem sejamos. Pessoalmente, reconheço que, dada a minha atividade no cinema, devo muito à sétima arte, ao teatro, à literatura, à música, à pintura, à arquitetura. Acredito firmemente que a arte nos permite suportar o mundo, a sua escuridão, a sua miséria e violência. 

Se não tivéssemos as artes e a cultura, o que teríamos para nos elevar? O que teríamos para nos fazer crescer? Para nos consolar? Nos confortar? O mundo seria insuportável. Posso parecer um quanto provocador, mas encaro as artes e a cultura como bens de primeira necessidade. Olhem para os pacientes-passageiros do L’Adamant. Alguns vêm diariamente, outros, mais espaçados, no entanto, participar de um workshop para desenhar, pintar, fazer música, quer sejam ou não talentosos para tal, são momentos de grande importância para eles no seu quotidiano. É o que os sustenta. É o que os mantém de pé. É o que os auxilia a viver. Ir ao L’Adamant, para alguns, é vital. Compartilhar com os outros uma atividade, durante um workshop, é essencial.

Um dos passageiros do L'Adamant afirma o seguinte: “Aqui há atores que não sabem que são atores.” Em seu filme “La Ville Louvre” (1990), também existe uma menção dessa natureza. Nicolas nunca repudiou esses termos performativos; aliás, chega mesmo a tratar estas pessoas como 'personagens', um território que muitos documentaristas evitam veementemente. Nesse sentido, é fácil encontrar em seus filmes pessoas que poderiam muito bem ser personagens ficcionais. Em L'Adamant, destaca-se um passageiro peculiar, uma alma abstracta que acredita ser, de alguma forma, um vínculo direto de Van Gogh ou James Dean, e acusa Wim Wenders de o ter plagiado no seu filme “Paris, Texas ".

Esse homem é Frédéric! Mas ele identifica-se conosco também. Nós, por nossa vez, temos a capacidade de nos identificar com ele. Por vezes, ao assistir a um filme, nos vemos refletidos em determinado personagem. Com Frédéric, essa dinâmica está muito presente, é uma questão muito central. É como se sua existência tivesse servido de inspiração para muitos cineastas e escritores. Como se sua vida fosse a substância primordial de inúmeros filmes ou romances. Ao seu redor, surge uma constelação de escritores e artistas dos quais ele diz que se inspiraram na história dele ou na história de sua família.

É um indivíduo muito interessante, existe genialidade na sua loucura …

É um homem extremamente erudito, possuidor de uma memória impressionante. Uma cultura literária, cinematográfica e musical muito vasta. Revela-se um homem multifacetado, expressando-se através do desenho, da escrita e da composição, personificando, assim, a verdadeira definição de artista. Encontra-se verdadeiramente imerso no seu próprio mundo, e é essa dimensão artística que lhe proporciona não apenas viver, mas resistir. Não está medicado, o seu tratamento é manter-se na vida por meio dessas ricas referências culturais. Ele ‘fabrica’ livros na sua própria casa! Há, por exemplo, um álbum dedicado a Rimbaud, contendo os seus próprios textos. Atualmente, está a trabalhar num volume sobre Wim Wenders.

Ele sempre carrega consigo um estojo de desenho, sendo uma ‘amostra’ do seu pequeno universo. Este estojo, juntamente com seu gravador de fitas cassete, tornaram-se inseparáveis. Ele grava variadas ‘coisas’ com ele. Voilá.

E esses livros não são publicados?

Não. É algo intimamente dele. Talvez quando morrer, vamos descobrir a sua verdadeira genialidade.

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Frédéric em "Sur L'Adamant" (2023)

Alguma vez enfrentou hostilidade durante o processo de realização dos seus filmes?

Para dizer a verdade nunca fui recebido com hostilidade, embora seja possível haver desconfiança com a minha presença. No contexto da chegada de um cineasta a um determinado local, é bastante legítimo que haja uma dose inicial de suspeita. As pessoas envolvidas na criação visual nem sempre são, eu diria, motivadas por boas intenções; nem sempre são benevolentes e podem apresentar-se ‘selvagens’, até predatórios. É comum, ao iniciar um projeto, encontrar indivíduos que expressam claramente o seu desejo de não serem filmados. Considero completamente legítimo o direito de não querer ser filmado. 

Por que deveríamos, de imediato, aceitar estar em frente à câmara? Quando chego a um local para realizar um filme, sempre enfatizo que ninguém está obrigado a consentir com a presença da câmara. A liberdade de decidir se deseja ou não ser filmado é um direito que todos possuem. Encorajo as pessoas a expressarem as suas preferências e a não se sentirem culpadas por isso. Nunca forço portas, respeito às decisões de cada um.

É sabido que já tem dois projetos na “manga”. Poderia-me falar sobre eles?

Quando iniciei o projeto de filmagem no L’Adamant, minha intenção era criar apenas um filme, no entanto, ao longo do caminho, dois projetos adicionais se delinearam, os quais senti o impulso de incorporar. Paralelamente, realizei filmagens no hospital ao qual o L’Adamant está vinculado, um hospital de dia. No entanto, surgiu o desejo de explorar também esse ambiente hospitalar, motivado pelo facto de alguns pacientes do L’Adamant estarem lá hospitalizados. Decidi, então, visitá-los e, com a devida permissão, iniciei filmagens, principalmente conversas entre pacientes e os seus respectivos psiquiatras. Nesses momentos, os pacientes partilham histórias bastante íntimas. Testemunhamos essas trocas, esses diálogos, onde o cuidador e o cuidado se entrelaçam em bonitas conversas. Este segundo filme está concluído e totalmente editado. Um terceiro filme está em desenvolvimento, uma ideia que surgiu durante a minha estadia no barco, centrada em visitas domiciliares realizadas por enfermeiros do L’Adamant aos pacientes.

Vale ressaltar que os filmes dois e três não se configuram como uma sequência direta. Prefiro pensar que os dois próximos filmes abordam dois outros aspetos distintos dessa abordagem à psiquiatria. Ou seja, exploram uma psiquiatria que busca auxiliar cada indivíduo na reconstrução dos seus laços, sejam eles com o mundo, com a cidade ou com a sociedade. Os três filmes são concebidos para serem apreciados em qualquer ordem, permitindo a visualização do terceiro sem a necessidade de ter visto o segundo, e assim fora.

Histórias felizes em tempos de ansiedade: uma conversa com Céline Devaux em amor à Jeanne

Hugo Gomes, 15.11.22

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Blanche Gardin em "Tout le monde aime Jeanne" (2022)

Jeanne (Blanche Gardin), mulher, nos seus 40 anos, sem relação e ambientalista de coração, vê o seu projeto de uma vida, literalmente, a afundar-se no alto mar. Embarcada numa angústia, dúvida e constante medo alicerçado ao fracasso aí gerado, tenta lidar com os “fantasmas do passado” no momento em que parte de Paris para Lisboa, para um antigo apartamento da sua falecida mãe, com propósito de vendê-lo. Aí, deparará com uma cidade em mudança, resiliente e povoada das mais variadas “criaturas”, entre eles Jean (Laurent Lafitte), um francês radicado em Portugal, um autêntico “fura-vidas” cujo seu quotidiano entrará em choque com a de Jeanne, suscitando os mais inesperados sentimentos. 

É através do ensaio cómico-trágico que Céline Devaux estreia nas longa-metragens de “ação real”, um filme sobre encontros caóticos e recriações de afetos, mas acima disso um retrato sincero sobre a depressão, melancolia e a ansiedade, aqui, representada sob a forma de uma palrante criatura interior. “Tout le monde aime Jeanne” (“Toda a Gente Gosta de Jeanne”), uma produção luso-francesa de Luís Urbano e Sylvie Pialat, estreou nos nossos cinemas após uma digressão iniciada na Semana da Crítica em Cannes, Curtas Vila do Conde e Festa do Cinema Francês, do qual teve as honras de o abrir.

Céline Devaux falou com o Cinematograficamente Falando … sobre Lisboa e as suas transformações, uma sociedade que não perdoa fracassos e ansiedade, esta última sublinhada para que ninguém interrompe, abruptamente, a conversa. 

Com “Toda a Gente Gosta de Jeanne”, não se trata só da passagem da curta para a longa-metragem, mas como também da animação para o “live action”, em que momento sentiu esse impulso de mudança de registo?

Tudo começou com uma curta intitulada de “You Will Be Fine” (“Gros chagrin”, 2017), onde executei uma mistura de “medias” no qual fosse possível contar uma história através dessas diferenças. Ou seja, tentei com isto provar que é possível narrar qualquer história com qualquer imagem, basta apenas ter uma boa escrita por detrás do conceito. 

E com este filme, essa necessidade de misturar “medias”, como chama, é também ela uma forma de experimento narrativo e de transição dos diferentes estados da personagem Jeanne? Não falo apenas da alternância entre a realidade [actores] e consciência [animação], como também dos footages em modo de reportagem inseridos nos ecrãs do filme, que apelam ao estado emocional da protagonista.

Sim, podemos contar qualquer história através desse alicerçado de imagens. Jeanne olha tristemente para o ecrã do seu computador. Só este gesto poderia servir para que nós pudéssemos intercalar com qualquer outra imagem para que os sentimentos mudassem ligeiramente. Neste caso, a mudança não era pretendida, até porque poderia colocar imagens felizes naqueles ecrãs e a Jeanne sempre soaria triste. É um exercício de percepção, mas sobretudo a de conectar sentimentos com imagens ….

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Céline Devaux

Como o “efeito kuleshov” da Escola Soviética? 

Sim, isso mesmo. 

É certo que “Toda a Gente Gosta de Jeanne” é uma comédia dramática que tem como pano de fundo uma mulher a lidar com a sua própria depressão e não só … encontro por estas bandas um retrato sobre a ansiedade e como ela se manifesta. Sem querer entrar no foro pessoal, e tendo em conta o que o filme nos apresenta, diria que a Céline conhece verdadeiramente a ansiedade?

A temática deste filme é como navegar entre o que sentimos e com o que acontece. Vejamos, é suposto nós "funcionarmos" enquanto seres humanos. Sermos obrigados a dizer “olá” ou a dizer “adeus” nos devidos momentos, andar ou falar com pessoas. É o que nos esperam de nós, é o sublinhado “normal”, é como devemos comportamos, mas dentro da tua cabeça está uma tempestade de emoções que, por vezes, te torna inoperacional. E é isso do que se trata, de dor, de sucesso e fracasso, simplesmente “sentir mal" por nenhuma razão. Essa é a grande aventura de ser um humano e é a única ‘coisa’ que me interessa escrever neste momento. 

Conheço imensas pessoas que passaram pela depressão e conheço pessoalmente a ansiedade, e estou determinada em encontrar os meios e as ferramentas que me atribuem a capacidade de falar sobre isto, porque é vergonhoso o facto de muitos demorarem tanto tempo a admitir que “não estão bem”. Não existe solução para a ansiedade, quando alguém tenta o abordar, a conversa tem tendência a acabar abruptamente. 

Normalmente, chega-nos com “não fiques triste”, “tudo vai ficar bem”, “não stresses” … não entendem que o melhor que podem fazer é simplesmente ouvir. 

Presumi que conhecesse a ansiedade, porque descreve (ou não-descreve, visto não ser fácil descrição) o sentimento de pânico vivido por quem tem. A cena da praia, por exemplo, reflete bem essa tentativa de reprodução.

[Martin] Heidegger descrevia que a “ansiedade é ter medo sem nenhuma razão aparente”. Não existe objetivo para esse medo, mas as sensações trazidas são aterrorizantes. Ele também o descreve como uma mudança de realidade, como se o espaço físico e o espaço emocional alterassem, como um desaparecimento do realismo. 

Voltando à animação, o porquê de atribuir à consciência atormentada de Jeanne uma … bem, vou usar a palavra “criatura” para o descrever.

Se o pretendido era poder falar sobre embaraço e ansiedade, necessitaria de palavras, ou seja uma conversa. Quando somos reféns desses sentimentos, o nosso cérebro tem tendência a enlouquecer, por isso não seriam palavras, como diria, sedutoras, apenas uma voz envolta da sua mente. Para tal, a solução era colocar uma voz-off que representasse essa consciência em constante alarme, mas pensei que seria mais generosa com Jeanne se atribuísse-lhe um corpo a essa voz, e assim nasceu esta “criatura”, um fantasma até. Uma das razões para ter chegado a esta entidade é que quando estamos neste estado, a voz que ouvimos mentalmente não é de toda a nossa voz, mas sons de outras, possivelmente alicerçados a memórias. 

Ao tornar esta presença “física”, desviei-me da tendência de ser “Jeanne a falar com Jeanne” e passaria a “Jeanne a ser assediada por todas as vozes ao seu redor”. 

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Laurent Lafitte e Blanche Gardin em "Tout le monde aime Jeanne" (2022)

Não sei se foi algo consciente, mas esta “criatura” tem traços que remetem a Charles M. Schulz e o seu “Peanuts”.

Sim, porque era suposto ser bastante simples, isso também, porque nunca desenhei personagens em animação. Esta “criatura” de Jeanne seria a minha primeira vez. Como tal, o concebi como um pequeno “cartoon”.

E já agora, porquê Lisboa?

Porque sempre foi um lugar de passagem para mim. Aqui mostrei os meus filmes. Aqui passei vários dos meus dias, e também fiz vários amigos, principalmente. Estive aqui na altura da crise, o qual passamos para aquela ideia repentina em que pessoas com menos possibilidades poderiam viajar, ter um pequeno apartamento para desfrutar um simples fim-de-semana fora em qualquer cidade na Europa. E estas boas notícias convergiram numa catastrófica especulação imobiliária, apropriação e destruição de cidades turísticas, como a de Lisboa. 

O facto de ter escolhido a cidade para o filme, é porque ela representa uma certa essência de uma Europa “castigadora”, mais de uns países do que outros. Então, para esta geração que começou a viajar em easy jets e outras companhias low-cost, senti-me no dever de escrever sobre isso. Uma escrita através dessas observações. 

E com isso também quis abordar o fenómeno da gentrificação [uma espécie de segregação urbana, que "expulsa" de regiões tradicionais os seus moradores]?

Na verdade, está mais além da gentrificação. Porque a gentrificação responde ainda a uma certa coexistência dessas pessoas para com estas cidades, neste caso não existe qualquer indício de coexistência porque essas pessoas são “obrigadas” a sair.

Recordo num dia em que chego a Lisboa para um trabalho, e deparo-me com um intenso som oriundo das rodas de malas e um achocalhar de chaves de um proprietário com mais de dezenas de chaves no seu porta-chaves. Eram airbnbs, imensos, em pleno Chiado. A cidade se transformou nisso, numa outra ‘coisa’, num recreio para turistas. É de doidos, desta forma desenfreada como os espaços são vendidos para estes propósitos. Politicamente, é uma situação complexa. 

Gostaria que me falasse do final, visto tratar-se de uma obra sobre ansiedade que evitou, completamente, a epifania ou fechar a narrativa, dando um digno “The End” à personagem. De certa forma, tentou dizer-nos que - a vida continua? 

Queria explorar a ideia de que podemos ser felizes sem a necessidade de fazer algo, ou seja, sem querer ou preencher um propósito. Existe um fundamento instalado nesta sociedade de que necessitamos produzir ou sermos bem-sucedidos em algo para sermos realmente felizes. Acordamos e deitamos, e entre esses acontecimentos esperamos produzir o que quer que seja, somos viciados na produção … aliás, em qualquer sociedade capitalista, como esta em que nós vivemos, qualquer atividade é valiosa. Por exemplo, se um banqueiro reformar tem que automaticamente fazer cerâmica, ou dedicar-se à agricultura biológica … a ideia trazida é que temos que fazer algo, fazer, fazer e fazer. Isso é importante, segundo esta mesma sociedade, e Jeanne faz algo, porém, fracassa, e depois conhece alguém que não faz rigorosamente nada, um perfeito niilista, alguém que se encontra satisfeito, por apenas estar vivo. É um pensamento de “loucos” para esta sociedade que nos “ordena” a produzir. 

Pessoalmente, não conheço ninguém assim, mas penso que devemos refletir sobre esse modo de vida [risos]. 

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A "criatura" de "Tout le monde aime Jeanne" (2022)

Pertinente, está  a insinuar, ou simplesmente a exaltar o lado capitalista nesta onda ambientalista?

Penso que está interligado. Vejamos, a Jeanne torna-se uma jovem ambientalista, e ela é sincera com esse ato, porém, vivemos numa sociedade em que esse aspecto é ultra-valorizado. E como tal recebe o estatuto de “Mulher do Ano”! É de doidos [risos]. Ela não pode ser a “Mulher do Ano”, é apenas uma mulher que faz algo … útil. 

Este filme é muito acerca da percepção, de como vemos as pessoas e de como elas realmente são. Por exemplo, quando Jeanne vê pela primeira vez Jean no aeroporto, a sua primeira impressão é que ele é verdadeiramente irritante. Ninguém deseja falar com aquele homem, é um pesadelo [risos]. Mas revela-se em alguém generoso, compreensivo, bastou apenas conhecê-lo. Como a Jeanne, que fez este ativismo, ou trabalho ecológico, e o que lhe interessou realmente foi o que as pessoas pensavam dela, e isso, é uma forma capitalista de encarar as ‘coisas’. Porque se ela fizesse este ambientalismo secretamente ou anonimamente, não seria uma aventura capitalista. 

Vivemos numa sociedade que não perdoa falhas …

Verdadeiramente. Ela foi elevada a ‘santa’, por isso, quando ela falhou, não falhou somente para ela, falhou para todos, para o Planeta. Isso é um grande Fracasso.

Fale-me do elenco, como chegou a ele?

Escrevi a personagem da Jeanne a pensar nela [Blanche Gardin], depois convidamos Laurent [Lafitte] para ler o guião e felizmente embarcou nesta aventura. Quanto a Nuno Lopes, já o conhecia, e tive a felicidade de lhe oferecer este papel. Um pouco diferente do que lhe é normalmente oferecido, um papel mais pateta e humorado, ao invés de sexy fidalgo. Depois fui precisa no rol secundário, e felizarda também. Sinto que eles foram o “sumo” do filme, ou seja, mesmo por dois minutos conseguiram preencher ricamente a minha visão. 

E quanto a novos projetos?

Eu levo a questão dos novos projetos muito secretamente [risos], mas já estou a trabalhar em algo.

Tudo aconteceu numa "bela manhã" ...

Hugo Gomes, 04.11.22

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Desde que comecei a fazer filmes, descobri que é através deles que encontro as ferramentas para aprender a voltar a viver e encarar este mundo.Mia Hansen-Løve

Numa “bela manhã”, Sandra visita o seu decadente pai, um respeitado professor de filosofia, hoje prisioneiro, do seu próprio apartamento, face a uma doença degenerativa que o impede de ser autónomo. Os olhos da nossa protagonista, “vestida” sob uma discreta Léa Seydoux, enchem-se de angústia, um silencioso desespero ao ver o seu progenitor em estado de farrapo, perdendo a sua consciência quanto à sua própria existência. Discute-se a possibilidade de o mover para um lar, e isso, mais tristeza lhe atribui. 

Porém, foi nessa mesma “bela manhã” que Sandra reencontra um “velho amigo”, belo e confiante após uma expedição à Antártida, um cosmofísico, cuja, por fim, troca de olhares, dissipa aquela tristeza contida. Novos sentimentos (re)nascem. Aquela “bela manhã”, no fundo, foi uma agridoce manhã como a vida o é, ora cinzenta, ora colorida, entretanto confundida ou escapista. Sandra é impotente para com aquilo que o seu pai vai-se tornando (um ser fragmentado, impreciso nas suas memórias, na sua evidência) e deseja exiliar desses sentimentos, ou Sandra conforta-se na temporária felicidade (nos braços do seu amante) e ao mesmo tempo sente-se perturbada pelo destino que o seu ente querido encaminha. Nada é unilateral, preciso nessa vida, olha-se para o horizonte de forma a fugir das nossas preocupações. 

Depois de Mumbai com “Maya” (2018), e da Ilha Faroo com “Bergman Island” (2021), Mia Hansen-Løve, definitivamente entranhada na sua melancolia (vida para além do cinema, mas que se confunde com a mesma), regressa a Paris, ao seu quotidiano e às histórias que a interpelam sem o uso de uma ótica turística. “Un Beau Matin”, aquela “bela manhã” de Sandra, é respondida com um grito de revolta perante a inconformidade de um desígnio indecifrável, porém, o resultado é silenciosamente delicado, Mia encontrou o equilíbrio da sua tristeza interiorizada, a consciência de que a morte é um ato natural e que os recomeços estão no virar da esquina. Como a doença degenerativa do seu personagem, nada nos soa estagnado, aliás, tudo se transforma … imprevisivelmente. Nesse efeito, o cinema de Mia transforma-se, deixando de lado a cinefilia de postal que o seu anterior filme fora, e partindo de regresso às suas inserções rohmerianas sem a possessão dos estados de graças rohmerianos. Quem sabe, a marca do seu cinema. 

Reviravoltas, por vezes, como a nossa Sandra, há que olhar para o passado como se olha em frente, nela poderemos reencontrar as nossas antecipadas respostas. 

Mia Hansen-Love: "O meu cinema foi uma cruzada pela luz, mas é na leveza que encontrei o meu prazer”

Hugo Gomes, 20.10.21

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Vicky Krieps em "Bergman Island" (2021)

Após uma viagem existencial e amorosa por Mumbai em “Maya” (2018), a prolifera realizadora Mia Hansen-Love convida-nos a percorrer a ilha de Faroo, Suécia, um território apropriado pelo fantasma do cineasta Ingmar Bergman.

Por entre cenários, adereços e endereços e uma presença onipresente do realizador, "Bergman Island” (“A Ilha de Bergman”) consente-se numa jornada interior na relação de realizadores que procuram os seus propósitos e próximos projetos naquele mundo detido por outro. Os atores Tim Roth e Vicky Krieps estão ao serviço da realizadora neste "turismo" cinematográfico, espelhando as angústias e incertezas de uma artesã que sonha aqui conhecer-se verdadeiramente.

Conversei com Mia Hansen-Love logo após a estreia do seu filme no Festival de Cannes, uma passagem não de todo consensual, mas, sem dúvida alguma, pessoal.

Na sessão de Cannes, uma frase do filme levou a sala ao rubro e gostaria que me comentasse. No momento em que se discute os feitos e feitios de Ingmar Bergman, a personagem de Krieps insinua que, em comparação com o cineasta sueco, “não seria possível uma mulher com nove filhos realizar mais de 60 filmes e ‘n’ de peças de teatro”.

Recebi imensos comentários acerca dessa sequência e não falo apenas de jornalistas, mas dos homens que estavam na rodagem e ficaram automaticamente histéricos [risos]. É verdade! Muitos deles ficaram agressivos comigo, questionando-me constantemente “o que queres dizer com isto?" “Uma mulher não era capaz?” “ Como assim?”. Não tentei com aquela frase minimizar ou determinar a criatividade das mulheres, colocando em choque com os parâmetros sociais. Só constatei um facto e não um ponto moral. Temos pena, mas uma mulher não conseguiria ser mãe de nove crianças e fazer 60 filmes. É fisicamente impossível, não é um comentário biológico. Recordo, como se fosse ontem, aquele ambiente de confronto causado por essa frase.

Antes da ilha de Faroo, concretizou “Maya”, em que filmou na Índia, por isso pergunto se usa o cinema como um modo de viajar e conhecer o mundo? Ou, como os americanos etiquetam, é uma forma de fazer “world cinema”?

Não tento com isto fazer “world cinema”, e antes de vir para Cannes rodei metade do meu novo filme em Paris. Não é uma questão de sair de França e começar a realizar “filmes de estrada”, e sim o de procurar filmes que me trazem de volta à realidade. Desde que comecei a fazer filmes, descobri que é através deles que encontro as ferramentas para aprender a voltar a viver e encarar este mundo. Era uma rapariga melancólica na casa dos 20 [anos] que tinha medo e é com o cinema que venço esse medo, não de viver propriamente dito, mas de arriscar, o que faz parte do processo de viver. Portanto, fazer filmes fora do meu país também faz parte desse processo, é um risco que tomo, que me faz crescer e confronta o territorialismo do cinema.

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Mia Hansen-Love

Nesse sentido, o que é que aprendeu ao rodar “A Ilha de Bergman”?

Aprendi o quanto amo filmar. Aliás, é em plena rodagem que me deparo com os momentos mais felizes da minha vida. Mas isso já sabia, o que descobri aqui foi que a criação não é inseparável da culpa. Por outro lado, a distância pode motivar essa mesma criação. Quando escrevo os meus filmes, sigo profundamente no meu ser e, por vezes, vou ao reencontro de momentos dolorosos para mim. Igualmente podemos encontrar grande prazer na extração desses mesmos momentos e filmá-los, recriá-los e deixar que atores os apropriem, e por essa via tornarem-se numa outra ‘coisa’. E aprendi a aceitar esse prazer na culpa e “A Ilha de Bergman” resultou numa experiência prazenteira. Como também aprendi muito sobre o próprio [Ingmar] Bergman

Durante a minha estadia, entranhei em vários documentários e algo que constatei no registo das suas filmagens é que, ao contrário da figura sisuda e séria que temos dele, Bergman parecia luminoso e verdadeiramente feliz na rodagem dos seus filmes. Havia qualquer coisa de positivamente infantil quando os filmava e isso conecta com a sensualidade deste filme. Quando falamos de Bergman, automaticamente falamos de um realizador sério e frio, e não é bem assim, há inocência e sensualidade nos seus filmes. Por exemplo, “Summer with Monika” [“Mónica e o Desejo”, 1953] é um dos filmes mais sensuais. Tendo em conta esses fatores, apercebi-me em “A Ilha de Bergman” que devo encontrar prazer na leveza. O meu cinema foi uma cruzada pela luz, mas é na leveza que encontrei o meu prazer.

Nesta narrativa deparamo-nos com outro filme no seu interior, outra história e trama que coincidem com os sentimentos das suas personagens. Porque decidiu centrar-se nesta narrativa de evidentes camadas?

A história dentro da história foi resultado da minha busca pela forma e o quanto inspiracional ela é. Portanto, encontrei neste método narrativo portas para a minha liberdade - os meus anteriores filmes eram mais realistas ao nível da sua escrita - e queria com isto materializar a minha confusão com que lidava vida e ficção, passado e presente, e, mais uma vez, o prazer disso. Não importa aqui a definição do que é e como se deve comportar o cinema, o que importa é o meu entusiasmo e prazer de o fazer. Julgo que a questão não é o porquê da minha decisão de fazer um filme dentro de outro filme, mas sim o que o filme trata e o que me levou a isso.

Antes de “A Ilha de Bergman”, qual era a sua relação com o cinema de Ingmar Bergman?

Isso é difícil de descrever em poucas palavras. [risos] Comecei a ver os filmes de Bergman nos meus 20 [anos] e bem cedo integrou o meu imaginário. Posso afirmar que Bergman acompanhou o meu crescimento enquanto realizadora. Uma das razões para ter feito este filme é que queria estar mais próximo “dele” e tentar decifrar porque é que ele é tão universal, complexo... ou seja, é tão difícil sumarizar tudo isto em meros minutos. Até na pandemia, no meu apartamento em Paris, regressei várias vezes a Bergman e tornei-o, não oficialmente, no meu lugar de refúgio, por exemplo.

Existe mais algum realizador que cause iguais sentimentos em si?

Sim, tantos, mas os outros são franceses. [risos] Tenho este tipo de relação com o trabalho de Eric Rohmer e François Truffaut... já agora, o italiano Nanni Moretti. Mas o facto é que, para mim, Bergman era familiar e, ao mesmo tempo, distante. Porque era esta figura genial, massiva e intimidativa. E também tenho uma ligação estranha, a minha família é dinamarquesa, por isso tenho sentido uma atração pela Dinamarca e Suécia, e encarei-os sempre como um lugar de fantasia porque uma parte de mim é de lá, mas não os conheço, cresci na França. O que acontece é que Bergman leva-me de alguma maneira a estar próxima das minhas raízes.

"Miss": Ruben Alves fala sobre o seu "Rocky"

Hugo Gomes, 26.11.20

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Ruben Alves

Em 2013, uma comédia típica francesa de costumes e de choques culturais tornou-se um dos grandes êxitos do "box-office" português: "A Gaiola Dourada", do lusodescendente Ruben Alves e com um elenco português. Ainda que esse fenómeno não se vá repetir num ano como este 2020, "Miss"; a sua segunda longa-metragem, que estreia esta semana preserva muitos dos mesmos códigos que conquistaram multidões: a história de um rapaz que sonha vencer o concurso da Miss França e para isso se transveste como uma mulher, assumindo uma nova identidade.

Ruben Alves toma partido de Alexandre Wetter, ator e modelo andrógeno, neste “feel good movie” [o realizador não o esconde na entrevista] que chega até nós para contribuir para um debate sobre temáticas identitárias e de transgressões ao convencionalismo de género.

Como surgiu este projeto?

A ideia de “Miss” surgiu do meu encontro com o Alex [Alexandre Wetter]. Já tinha em mente um filme que falasse sobre a identidade de género, sendo uma causa que me toca imenso, mas quando encontrei o Alex é que me deparei com uma personagem iluminada, livre que assume completamente tudo. É um rapaz que demonstra o seu lado feminino e aqui, com esse mesmo lado, cria e recria a sua performance. Encontrei-o no Instagram a desfilar para a Alta-Costura, e fiquei automaticamente surpreendido e até mesmo baralhado. O rapaz não quer ser mulher, ele apenas se quer exprimir, é tão moderno e próprio da nossa época. Simplesmente é livre!

A particularidade é que temos um rapaz que quer participar no concurso Miss França, apenas isso. Não deseja transformar-se em mulher nem nada parecido, o que afasta “Miss” da temática da transsexualidade mas aproxima-o das questões de identidade ao nível do género.

Exatamente. Isso pode ser perturbador para muita gente. Mas ele é um rapaz! É o sonho dele que simplesmente está a viver. “Miss” é um filme sobre sonhos e como concretizá-los, por mais “malucos” que sejam. Mas para quê? Para que se conheça o percurso interior e introspectivo. A lição aqui é a seguinte: ama-te antes que as pessoas te amem. É aceitar e amar essa diferença. Porque a diferença é a riqueza. E é isso que faz um povo, é isso que se faz a Humanidade. Porque não somos todos iguais.

Deixe-me dizer que o que mais me interessou foi a utilização do universo do pugilismo, que é o tema da superação e do “underdog” no cinema. E que o utiliza como base estrutural para todo o percurso do Alex.

Tentei fazer deste filme uma espécie de “Rocky”! Achava interessante como um amigo de infância “volta” e como ele traz uma representação de virilidade ligado ao mundo do boxe e como isso se irá relacionar/trabalhar com a feminilidade trabalhada pelo protagonista. É um paralelo mais do que interessante, até porque sou fascinado em desconstruir clichés. Como tal, escolhi a Miss França porque é um concurso ditado por regras, “super-clássico”, em contraste com uma personagem que não anseia ficar reduzida em caixas. Para conseguir vencer o concurso, ela(e) tem que se deixar subjugar pelas regras.

Visto que falou do Alex ser uma figura, em si, livre, e sendo um pessoa andrógena, como o trabalhou ou direcionou-o para se enquadrar na sua idealização?

Na verdade, bastou-me encontrá-la em Alexandre Wetter, porque ele próprio tem essas características, essa experiência e iluminação. Acredito que tive que transladar essa dita iluminação para a personagem, mas desconfio que nem um terço daquilo que o Alex possui. Recordo que, quando o conheci, contava-me histórias da sua própria experiência de vida, do "bullying" que sofria enquanto criança. E o que era invulgar é que me contava tudo isto com um sorriso nos lábios. O importante era que ele percebesse o percurso da sua própria personagem, de onde veio, o que vivenciou e para onde vai. Um trabalho deveras introspectivo. Até digo mais, foi muito mais difícil para o Alex trabalhar o seu lado mais masculino, da maneira como se vestir, andar, etc., aquele que evidenciamos no início do filme, do que a sua parte mais feminina. Isto aconteceu devido à experiência vivida pelo próprio Alex.

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"Miss" (2020)

Como se deparou com este universo das Misses como o objetivo de Alex? Como estudou e reproduziu esse sistema, essa instituição?

A ideia surgiu num almoço com o Alex, questionando o que será que pode levar alguém ao máximo da sua feminilidade e seja acessível a todos os públicos. Costumo fazer filmes a pensar em causas, até mesmo nas mais arriscadas. Neste caso a questão de género, debrucei-me numa instituição com que todos estão familiarizados. Então, eu e a minha argumentista guionista [Elodie Namer] batemos à porta, eles receberam-nos cordialmente e durante um ano mostraram-me a estrutura e processo desse universo de Misses. Gostei do lado de uma instituição tão clássica e normativa permitir a entrada de uma personagem como esta. Lembro-me de ter perguntado a uma das responsáveis que nos acompanhou neste estudo se seria possível, tendo em conta as suas atuais características, regulamentos e restrições, acontecer algo como este filme. A resposta foi que poderia ser possível. Por isso mesmo era importante para mim usar a instituição e desconstruí-la.

Nessa questão de desconstruir, há uma personagem em “Miss”, Amanda (Pascale Arbillot), que vai produzir o novo concurso e que se depara com um programa obsoleto, incapaz de cativar novas gerações. Acredita nisso?

Não, porque este concurso é a preservação do sonho trabalhado. Hoje em dia, tudo quer-se rápido, efémero ou instantâneo. Como a fama, surgida do nada, mas que desaparece de um momento para o outro. E as Misses, tal como diz, algo obsoleto, está a regressar. A ser novamente um desejo, uma fantasia e até mesmo um objetivo. Agora, a questão da modernização que faço no filme… bem, eles que desenrasquem, lancei a sugestão [risos]. Há dois anos, em França, houve uma polémica por causa dessa mesma modernização, em que se ponderou aceitar candidatas transexuais. É uma abertura que leva a uma mudança de regras, requerimentos e procedimentos. Alteraria tudo.

Em "Miss", sinto que o(a) Alex tem um tratamento privilegiado na competição, até porque a nível narrativo, você lhe dá um passado trágico, sendo órfão e acolhido numa família de marginalizados sociais.

Acabei por dar os dois. A infância feliz com os pais, pelo que está no filme possibilita ao Alex acreditar no sonho, porque eles próprios o induziram a lutar por aquilo que queria. Ser o que acreditava ser. Tudo era possível. E a questão da família adotiva era tornar esta sua luta igual, porque perante as adversidades o protagonista teria que ter um suporte, um equilíbrio que o mantivesse firme para continuar o seu sonho.

Sinceramente, acredita que, nos tempos que decorrem, ainda vale a pena “lutar por sonhos”?

Acho que sim, há que lutar por isso. E… por muito estranho que pareça, não tenho muitos sonhos. Não sou uma pessoa sonhadora, nem coisa que o valha.

Como sente estrear um novo filme em Portugal, tendo em conta que "A Gaiola Dourada" foi um tremendo êxito... equivocadamente vendido como uma "obra portuguesa"? [risos]

Sim, é verdade. [risos] "Ai, foi o filme português que mais gostei!" [sarcasmo] Sim, o filme foi vendido como tal, e não só aqui, mas em todo o lado. Bem, esta minha obra é puramente francesa, abriu a Festa do Cinema Francês, o que me deu um sabor particular porque são dois países [Portugal, França] que me construíram. Não sei ao certo como o público português irá reagir. O que posso dizer é que em França correu bem. Muitos dirigiram-se a mim com comparações com “A Gaiola Dourada”.

Que não tem nada a ver, e ao mesmo tempo tem tudo a ver. Estão lá os meus elementos e preocupações, a dinâmica da identidade, da família, isso que me caracteriza, está lá.

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A Gaiola Dourada /  La Cage Dorée (2013)

Suponhamos que “A Gaiola Dourada”, que é de 2013 e foi a sua primeira longa-metragem, fosse feita hoje. Mudaria alguma coisa ou faria completamente distinto? Falo de elenco, tom ou outras questões.

Mais do que tudo, era importante fazer um filme “feel good” para descomplexar toda essa questão dos emigrantes, e como os portugueses olham para os seus imigrantes. Era importante falar disso, nem nunca troçar ou denegrir os valores da alma portuguesa. Sim, faria igual, no tom, em tudo. As únicas mudanças seriam em meros pormenores. Como também era o meu primeiro filme.

E novos projetos?

Estou a escrever com um argumentista espanhol um projeto que quero filmar aqui, em Lisboa, e com atores portugueses. Será basicamente um filme europeu. Digo europeu, porque será uma coprodução entre Portugal, França e Espanha.

Falando com Cédric Le Gallo e Maxime Govare, realizadores de "Les Crevettes Pailletées"

Hugo Gomes, 18.03.20

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Num espaço de um ano, França viu duas obras de sucesso sob a temática de polo aquático a estrear nas suas salas. A primeira, com direito a estreia no Festival de Cannes, “Le Grand Bain”, com direção do galã Gilles Lelouch, seguia na aventura de um grupo de cinquentões numa comédia pela desconstrução da masculinidade, enquanto este “Os Camarões Brilhantes” (Les crevettes pailletées / The Shiny Shrimps), instalava-se como um hino à alegria homossexual, remetendo a uma equipa em competição nos chamados Gay Games. Tendo chegado às salas portuguesas no início de novembro, depois de ter integrado a Festa do Cinema Francês, “Os Camarões Brilhantes” chega ao formato digital em VOD.

O Cinematograficamente Falando ... teve o prazer de conversar com os dois autores do projeto (Cédric Le Gallo e Maxime Govare), que já nos prometeram estar encarregues de uma sequela deste brilhante grupo do desporto aquático.

Devo começar pela questão mais comum, de onde surgiu a ideia para este filme?

Cédric Le Gallo: Bem, foi inspirado numa verdadeira equipa de polo aquático, aliás, a minha equipa [risos]. Eu jogo com eles há mais de 8 anos e participamos nos Gay Games, em Paris. Sempre ambicionei fazer ficção, quanto mais uma longa-metragem de ficção, sendo que já tinha concretizado algumas curtas e até uma série televisiva, e por isso, refleti e achei que esta minha história resultaria em boa ficção. Até porque todas estas personagens são coloridas e tem algo para dizer.

O meu produtor introduziu-me a Maxime que me ajudou a concretizar um guião, eu nunca tinha escrito um na minha vida. Trabalhamos juntos e foi aí que tudo começou.

Maxime Govare: Tínhamos uma equipa fantástica, bem verdadeira que trouxe a mim algo que nunca tinha visto antes na minha carreira no cinema. Fiquei automaticamente seduzido por ter um projeto que falasse de desporto no geral e que possuísse personagens aparentemente “leves”, mas todas elas com historiais “pesados”. Eram personagens fortes e de bom coração.

Uma das dúvidas que sempre tenho em relação à representação de personagens LGBT no cinema, muito mais no género da comédia, é como fazem para evitar os estereótipos?

CLG: Nós brincamos com eles. Eu diria mais que são arquétipos do que estereótipos. Neste caso, são arquétipos, porque temos um rol tão diferente de personagens, desde o pai até ao solteiro, passando pelo velho ativista até à mulher transgénero. No fim de contas, estas personagens são aquilo que experienciei na minha jornada com esta equipa. Neste tipo de desporto temos jovens de 20 anos até adultos de 60, são toda uma variedade distinta de gays.

E porque o arquétipo existe, o nosso trabalho é demonstrar que estas personagens vão mais longe que estes arquétipos.

MG: Existe verdade nos arquétipos, e talvez seja essa a razão para eles existirem, porque a sua existência advém da experiência coletiva e isso transgride. Ao trabalhar com este coletivo consultei diversas vezes o Cedric se podia usar ou não isso, e quando ele respondia “eu tenho alguém assim na minha equipa”. Tudo bem, é um arquétipo. Obviamente, que tivemos casos em que o Cedric dizia “não é de todo verdade”, e colocávamos de lado essas mesmas ideias.

Não tivemos problemas quanto a isso, porque “Os Camarões Brilhantes” não é pura ficção, é baseado numa equipa que existe. Se as pessoas pensarem que isto tudo é um amontoado de estereótipos ou “demais”, então o problema é deles. Nós temos uma base bastante sólida, que é uma verdadeira equipa.

 

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CLG: Por exemplo, os fatos de banhos foram “desenhados” por um colega meu. Aqueles fatos de banhos representam essa realidade. No caso de as pessoas acharem tudo isto exagerado ou demasiado delirante, bem, nós não somos os culpados, O preconceito é.

Tendo em conta a atualidade político-social que se vive, principalmente esta ascendente ideologia conservadora que ressurge em muitos países de primeiro mundo, é cada vez mais urgente termos obras desta natureza? Que abordam este tipo de assuntos?

MG: Penso que chegou um momento em que é urgente abordar tais tópicos. A primeira discussão que tivemos foi exatamente que género de filme pretendíamos fazer, e tendo em conta que tais temas já povoam com exaustão o drama e o documentário, por isso decidimos endereçar numa comédia, porque através do risos iríamos reunir um maior grupo de pessoas. A comunidade LGBT não precisava de ser “convencida”, mas sim o resto, e tal deu enfoque à ideia do humor, a comédia continua a ser uma linguagem universal de forte atração.

CLG: Enquanto adolescente, ou até mesmo como jovem adulto, sofri muito porque não tinha qualquer ficção ou série televisiva que demonstrasse que a vida homossexual poderia ser feliz, tal como o Maxime disse, tais tópicos residiam apenas no drama pesado e eu deseja ver um prisma mais alegre daquele estilo de vida. Eu era fã dos “Friends”, por exemplo, mas nenhuma daquelas personagens era gay. Exceto, talvez, Chandler, que julgas de início que é, mas acaba por não ser. [risos]

Ajudar-me-ia imenso se tivesse ao meu dispor essa ficção positiva sobre a vida gay, eu vivo uma vida feliz ao lado dos meus amigos, e este mundo é na maior parte das vezes, colorido, divertido e harmonioso. Se existisse essas propostas, possivelmente ter-me-ia assumido aos meus pais bem mais cedo do que realmente fiz. Mas voltando à tua pergunta, é um tema urgente e necessário de abordar, mas Camarões’ é um feel-good movie, não tínhamos um destes na França há mais de 25 anos. E mais importante que isso, é um filme feito para divertir.

O vosso filme estreou no Festival de Cinema dos Alpes, dedicado à comédia francesa, e desde aí tem sofrido com comparações com “Le Grand Bain” (“Ou Nadas ou Afundas”), êxito do ano retrasado.

MG: Na verdade, era suposto rodarmos o filme na mesma altura que La Grand Bain, possivelmente dois meses antes, mas chegaram a nós e disseram algo deste género “pedimos desculpa, um filme com grandes estrelas será produzido”. Por isso, aguardamos um ano e arrancamos assim as nossas rodagens. Quando estreamos o filme, ouvimos essas comparações, só que estas vinham de pessoas que ainda não tinham visto o nosso filme, depois do visionamento nos Alpes, mas ninguém falou sobre isso.

CLG: Não vi muito disso, até porque a única semelhança estava no desporto. “Os Camarões Brilhantes”, por sua vez, é baseado numa experiência real, e até bem poderia ser adaptada para outra modalidade, por exemplo, futebol. Até mesmo as personagens são bem distintas, em “Le Grand Bain” são um bando de homens cinquentões depressivos que tentam encontrar razões de existência no polo aquático.

MG: O que estamos a tentar dizer é que fora do desporto, aliás, serem ambos filmes de desporto, são duas obras completamente diferentes.

CLG: Sim, para dizer a verdade, filmes de desporto não eram produzidos há já algum tempo, e num espaço de um ano surgem dois. O que me parece ser bom.