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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Guerras declaradas ...

Hugo Gomes, 14.01.24

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Fora a sua temática de que o enredo é refém, “L'Amour et les Forêts” poderá ser recordado como um palco para Virginie Efira desempenhar a dobrar, duas personagens, irmãs gémeas, cuja intenção é nos chegada num modo fútil, digamos, descartável. 

Porém, é voltando à temática, essa, a da violência doméstica, seja física ou psicológica, que no cinema pouco ou nada adquiriu forma sem ser a do corpo de “cinema de género” (deste lado, “The Invisible Man de Leigh Whannell permanece como um dos recentes casos funcionais, ou até mesmo “The Entity”, com Barbara Hershey, remontando o ano 1982). Contudo, nas vestes dramáticas, muitos destas explorações resumem-se a pedagogias ou panfletos de mão armada, por exemplo, Jennifer Lopez em “Enough” (2002) cuja solução foi encontrada na retribuição de força, olho por olho, dente por dente, enquanto que no vínculo psicológico, o “gaslight”, palavra à meia-luz que tão bem conhecemos do homónimo filme de George Cukor (em 1944, mas antes um filme de Thorold Dickinson em 1940), esperneia como matéria para thrillers da ordem criminosa e vice-versa.

Aqui, Valérie Donzelli, atriz e realizadora, que deu nas vistas com outro território “maldito” do cinema, o cancro (ou doença terminal várias), com “La guerre est déclarée” (2011), deseja sensibilizar como objetivo crucial (a realizadora e argumentista Audrey Diwan alia-se à missão), usando Efira como um prototipo, uma face para um extenso episódio “e se fosse consigo?”, “coadjuvada” por Melvil Poupaud, ultimamente rotulado de “canalha francês” (“Coup de Chance”, “Jeanne du Barry”), e voilá, temos assunto para final de visionamento. Neste sentido, nada contra o debate do tema, e a urgência de o fazer é mais do que qualquer produção, mas paremos que o Cinema respire através de simples filmes-tema, e aproveitemos o mesmo para manobrar em exercícios mais ricos na linguagem cinematográfica (nesse aspecto, o género é terra fértil para “flic-flacs”).

Hercúleo movimento portanto, mas não impossível, já “L'Amour et les Forêts” é só corriqueiro sem o seu escudo. 

Nicolas Philibert: "Acredito firmemente que a arte nos permite suportar o mundo, a sua escuridão, a sua miséria e violência"

Hugo Gomes, 12.11.23

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Sur L’Adamant (2023)

Nas margens do Rio Sena, em Paris, encontra-se ancorado o L’Adamant, mais do que um mero navio, um centro de dia que acolhe as mais diferentes loucuras, culminando-as numa salvação, ou amenização, por via da arte, seja de que forma for. Entre loucos e génios, a distância é mínima, mas é através dessas particularidades, que estes 'doentes', assim a sociedade os apelida como marginalização, se unem, partilhando vivências, ideias, hesitações e angústias com a sua própria existência. São ateliês de desenhos, cafeterias improvisadas, ou até um festival de cinema, Travelling, onde a passagem é prometida como breve. Não são os loucos de Lisboa, mas parisienses, aqueles que igualmente acreditam que “os rios nascem no mar” como uma alternativa à violência da nossa realidade.

O barco à mercê de todos, é o motivo do novo filme de Nicolas Philibert, documentarista de sucessos notáveis em França, que cá em Portugal estreou [comercialmente] com “Ser e Ter” (“Être et avoir”, 2002), sobre uma escola da zona rural francesa. Existe nele um interesse pelas pessoas que tornam possíveis as existências das instituições, e talvez a 'loucura' seja um método corrente do seu fascínio, aqui escutando, deliciando e sublinhando as singularidades de cada um de nós.

Sur L’Adamant”, o seu mais recente filme (mas não o último), impactou as audiências da Berlinale de 2023, gratificando-se com o Urso de Ouro do certame. Chega a Portugal com essa faixa laureada, mas antes serviu de ‘desculpa’ para uma retrospectiva na Cinemateca Portuguesa, com o apoio da Festa do Cinema Francês. Nicolas Philibert esteve presente no seu dedicado ciclo, conversando com o público, abrindo as cortinas para os eventuais 'mundos' que mostraria nos seus trabalhos, desde o Louvre, a hospitais psiquiátricos, a jardins zoológicos até aos bastidores da Radio France. Assim segue a nossa conversa com o documentarista, cineasta da humanidade.

Tendo em conta grande parte do seu trabalho, e nomeadamente o seu recente e premiado "Sur l'Adamant", o ponto de partida para os seus filmes são as instituições. Assim, questiono-o: o que o fascina nas instituições?

Nada. Não são as instituições que me fascinam. As instituições, para mim, desempenham o papel de palco nos meus filmes, mais do que propriamente tema. Ou seja, não faço filmes como o Frederick Wiseman, que aborda didaticamente os meandros institucionais, eu adoto uma abordagem distinta. Utilizo as instituições como pano de fundo, uma moldura que contextualiza as narrativas cinematográficas que busco criar.

Conhece o cinema de Frederick Wiseman? Para mim, Wiseman transcende a mera análise institucional, é um cineasta dotado de profundo interesse pela arte e pela complexidade da condição humana. Que se interessa pelo rosto. Na sua trajetória, filmou milhares de rostos, que para ele são tão ou mais importantes que as próprias instituições.

Ainda bem que trouxe o Wiseman para a conversa, porque apesar de ele e de você partirem das instituições, as suas abordagens são opostas entre si. Wiseman é, sobretudo, observacional e, de certa forma, crítico em relação às instituições que aborda na sua ótica, enquanto o Nicolas humaniza as pessoas que integram essa estrutura institucional. Oferece um palco a estas pessoas, proporcionando-lhes um motivo de escuta. Aliás, diria mesmo que o seu propósito é a 'escuta' acima de tudo o resto.

Penso que há uma diferença profunda na abordagem entre o trabalho dele e o meu, no sentido que o Wiseman, diria, busca um certo apagamento, uma quase dissolução, ao passo que, de certa forma, opto por não esconder a minha presença nos meus filmes. Embora haja ocasiões em que evito minha própria imagem, não me submeto a permanecer fora do quadro. A voz, por vezes, torna-se no meu meio de interação. Estabeleço diálogos com aqueles que filmo. Quando me abordam, eu respondo. Ou seja, não procuro abertamente dizer “Estou aqui, eu sou eu". Não tento enganar os espectadores, sugerindo que a pessoa diante deles está sozinha. Em vez disso, instigo: “Ajam como se eu estivesse aqui”. Quando digo que Wiseman se apaga, não implica que ele esteja ausente. Reconhecemos imediatamente um filme de Wiseman, mesmo que fisicamente ele não esteja lá.

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Nicolas Philibert na Cinemateca / Foto.: Hugo Gomes

Não lhe incomoda estas comparações?

Isso não me incomoda. Na verdade, tenho por ele uma grande admiração e carinho. É alguém que aprecio muito e que me inspira.

A sua longevidade é de facto uma inspiração [risos] …

Ele é um grande atleta, faz desporto e tem uma saúde de ferro.[risos] Além disso, trabalha imensamente, e é rápido. Ele faz, aproximadamente, um filme a cada 18 meses. Eu, ao lado dele, sou um ‘menino’, não tenho esse ritmo. [risos]

Sobre o “Sur l'Adamant”, cuja proposta nos remete a outro filme seu - “La Moindre des choses” (1997) - em que um grupo de doentes de um hospital psiquiátrico francês encena a “Operetta” de Witold Gombrowicz, gostaria de abordar a relação entre a psiquiatria e a arte, especificamente a psicoterapia. A arte pode ser considerada um dos remédios para uma mente doente?

Tenho o desejo de afirmar que, estejamos doentes ou não, sejamos vítimas ou não de distúrbios psíquicos, a arte nos conforta. A arte faz bem a todos nós, independentemente de quem sejamos. Pessoalmente, reconheço que, dada a minha atividade no cinema, devo muito à sétima arte, ao teatro, à literatura, à música, à pintura, à arquitetura. Acredito firmemente que a arte nos permite suportar o mundo, a sua escuridão, a sua miséria e violência. 

Se não tivéssemos as artes e a cultura, o que teríamos para nos elevar? O que teríamos para nos fazer crescer? Para nos consolar? Nos confortar? O mundo seria insuportável. Posso parecer um quanto provocador, mas encaro as artes e a cultura como bens de primeira necessidade. Olhem para os pacientes-passageiros do L’Adamant. Alguns vêm diariamente, outros, mais espaçados, no entanto, participar de um workshop para desenhar, pintar, fazer música, quer sejam ou não talentosos para tal, são momentos de grande importância para eles no seu quotidiano. É o que os sustenta. É o que os mantém de pé. É o que os auxilia a viver. Ir ao L’Adamant, para alguns, é vital. Compartilhar com os outros uma atividade, durante um workshop, é essencial.

Um dos passageiros do L'Adamant afirma o seguinte: “Aqui há atores que não sabem que são atores.” Em seu filme “La Ville Louvre” (1990), também existe uma menção dessa natureza. Nicolas nunca repudiou esses termos performativos; aliás, chega mesmo a tratar estas pessoas como 'personagens', um território que muitos documentaristas evitam veementemente. Nesse sentido, é fácil encontrar em seus filmes pessoas que poderiam muito bem ser personagens ficcionais. Em L'Adamant, destaca-se um passageiro peculiar, uma alma abstracta que acredita ser, de alguma forma, um vínculo direto de Van Gogh ou James Dean, e acusa Wim Wenders de o ter plagiado no seu filme “Paris, Texas ".

Esse homem é Frédéric! Mas ele identifica-se conosco também. Nós, por nossa vez, temos a capacidade de nos identificar com ele. Por vezes, ao assistir a um filme, nos vemos refletidos em determinado personagem. Com Frédéric, essa dinâmica está muito presente, é uma questão muito central. É como se sua existência tivesse servido de inspiração para muitos cineastas e escritores. Como se sua vida fosse a substância primordial de inúmeros filmes ou romances. Ao seu redor, surge uma constelação de escritores e artistas dos quais ele diz que se inspiraram na história dele ou na história de sua família.

É um indivíduo muito interessante, existe genialidade na sua loucura …

É um homem extremamente erudito, possuidor de uma memória impressionante. Uma cultura literária, cinematográfica e musical muito vasta. Revela-se um homem multifacetado, expressando-se através do desenho, da escrita e da composição, personificando, assim, a verdadeira definição de artista. Encontra-se verdadeiramente imerso no seu próprio mundo, e é essa dimensão artística que lhe proporciona não apenas viver, mas resistir. Não está medicado, o seu tratamento é manter-se na vida por meio dessas ricas referências culturais. Ele ‘fabrica’ livros na sua própria casa! Há, por exemplo, um álbum dedicado a Rimbaud, contendo os seus próprios textos. Atualmente, está a trabalhar num volume sobre Wim Wenders.

Ele sempre carrega consigo um estojo de desenho, sendo uma ‘amostra’ do seu pequeno universo. Este estojo, juntamente com seu gravador de fitas cassete, tornaram-se inseparáveis. Ele grava variadas ‘coisas’ com ele. Voilá.

E esses livros não são publicados?

Não. É algo intimamente dele. Talvez quando morrer, vamos descobrir a sua verdadeira genialidade.

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Frédéric em "Sur L'Adamant" (2023)

Alguma vez enfrentou hostilidade durante o processo de realização dos seus filmes?

Para dizer a verdade nunca fui recebido com hostilidade, embora seja possível haver desconfiança com a minha presença. No contexto da chegada de um cineasta a um determinado local, é bastante legítimo que haja uma dose inicial de suspeita. As pessoas envolvidas na criação visual nem sempre são, eu diria, motivadas por boas intenções; nem sempre são benevolentes e podem apresentar-se ‘selvagens’, até predatórios. É comum, ao iniciar um projeto, encontrar indivíduos que expressam claramente o seu desejo de não serem filmados. Considero completamente legítimo o direito de não querer ser filmado. 

Por que deveríamos, de imediato, aceitar estar em frente à câmara? Quando chego a um local para realizar um filme, sempre enfatizo que ninguém está obrigado a consentir com a presença da câmara. A liberdade de decidir se deseja ou não ser filmado é um direito que todos possuem. Encorajo as pessoas a expressarem as suas preferências e a não se sentirem culpadas por isso. Nunca forço portas, respeito às decisões de cada um.

É sabido que já tem dois projetos na “manga”. Poderia-me falar sobre eles?

Quando iniciei o projeto de filmagem no L’Adamant, minha intenção era criar apenas um filme, no entanto, ao longo do caminho, dois projetos adicionais se delinearam, os quais senti o impulso de incorporar. Paralelamente, realizei filmagens no hospital ao qual o L’Adamant está vinculado, um hospital de dia. No entanto, surgiu o desejo de explorar também esse ambiente hospitalar, motivado pelo facto de alguns pacientes do L’Adamant estarem lá hospitalizados. Decidi, então, visitá-los e, com a devida permissão, iniciei filmagens, principalmente conversas entre pacientes e os seus respectivos psiquiatras. Nesses momentos, os pacientes partilham histórias bastante íntimas. Testemunhamos essas trocas, esses diálogos, onde o cuidador e o cuidado se entrelaçam em bonitas conversas. Este segundo filme está concluído e totalmente editado. Um terceiro filme está em desenvolvimento, uma ideia que surgiu durante a minha estadia no barco, centrada em visitas domiciliares realizadas por enfermeiros do L’Adamant aos pacientes.

Vale ressaltar que os filmes dois e três não se configuram como uma sequência direta. Prefiro pensar que os dois próximos filmes abordam dois outros aspetos distintos dessa abordagem à psiquiatria. Ou seja, exploram uma psiquiatria que busca auxiliar cada indivíduo na reconstrução dos seus laços, sejam eles com o mundo, com a cidade ou com a sociedade. Os três filmes são concebidos para serem apreciados em qualquer ordem, permitindo a visualização do terceiro sem a necessidade de ter visto o segundo, e assim fora.

Histórias felizes em tempos de ansiedade: uma conversa com Céline Devaux em amor à Jeanne

Hugo Gomes, 15.11.22

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Blanche Gardin em "Tout le monde aime Jeanne" (2022)

Jeanne (Blanche Gardin), mulher, nos seus 40 anos, sem relação e ambientalista de coração, vê o seu projeto de uma vida, literalmente, a afundar-se no alto mar. Embarcada numa angústia, dúvida e constante medo alicerçado ao fracasso aí gerado, tenta lidar com os “fantasmas do passado” no momento em que parte de Paris para Lisboa, para um antigo apartamento da sua falecida mãe, com propósito de vendê-lo. Aí, deparará com uma cidade em mudança, resiliente e povoada das mais variadas “criaturas”, entre eles Jean (Laurent Lafitte), um francês radicado em Portugal, um autêntico “fura-vidas” cujo seu quotidiano entrará em choque com a de Jeanne, suscitando os mais inesperados sentimentos. 

É através do ensaio cómico-trágico que Céline Devaux estreia nas longa-metragens de “ação real”, um filme sobre encontros caóticos e recriações de afetos, mas acima disso um retrato sincero sobre a depressão, melancolia e a ansiedade, aqui, representada sob a forma de uma palrante criatura interior. “Tout le monde aime Jeanne” (“Toda a Gente Gosta de Jeanne”), uma produção luso-francesa de Luís Urbano e Sylvie Pialat, estreou nos nossos cinemas após uma digressão iniciada na Semana da Crítica em Cannes, Curtas Vila do Conde e Festa do Cinema Francês, do qual teve as honras de o abrir.

Céline Devaux falou com o Cinematograficamente Falando … sobre Lisboa e as suas transformações, uma sociedade que não perdoa fracassos e ansiedade, esta última sublinhada para que ninguém interrompe, abruptamente, a conversa. 

Com “Toda a Gente Gosta de Jeanne”, não se trata só da passagem da curta para a longa-metragem, mas como também da animação para o “live action”, em que momento sentiu esse impulso de mudança de registo?

Tudo começou com uma curta intitulada de “You Will Be Fine” (“Gros chagrin”, 2017), onde executei uma mistura de “medias” no qual fosse possível contar uma história através dessas diferenças. Ou seja, tentei com isto provar que é possível narrar qualquer história com qualquer imagem, basta apenas ter uma boa escrita por detrás do conceito. 

E com este filme, essa necessidade de misturar “medias”, como chama, é também ela uma forma de experimento narrativo e de transição dos diferentes estados da personagem Jeanne? Não falo apenas da alternância entre a realidade [actores] e consciência [animação], como também dos footages em modo de reportagem inseridos nos ecrãs do filme, que apelam ao estado emocional da protagonista.

Sim, podemos contar qualquer história através desse alicerçado de imagens. Jeanne olha tristemente para o ecrã do seu computador. Só este gesto poderia servir para que nós pudéssemos intercalar com qualquer outra imagem para que os sentimentos mudassem ligeiramente. Neste caso, a mudança não era pretendida, até porque poderia colocar imagens felizes naqueles ecrãs e a Jeanne sempre soaria triste. É um exercício de percepção, mas sobretudo a de conectar sentimentos com imagens ….

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Céline Devaux

Como o “efeito kuleshov” da Escola Soviética? 

Sim, isso mesmo. 

É certo que “Toda a Gente Gosta de Jeanne” é uma comédia dramática que tem como pano de fundo uma mulher a lidar com a sua própria depressão e não só … encontro por estas bandas um retrato sobre a ansiedade e como ela se manifesta. Sem querer entrar no foro pessoal, e tendo em conta o que o filme nos apresenta, diria que a Céline conhece verdadeiramente a ansiedade?

A temática deste filme é como navegar entre o que sentimos e com o que acontece. Vejamos, é suposto nós "funcionarmos" enquanto seres humanos. Sermos obrigados a dizer “olá” ou a dizer “adeus” nos devidos momentos, andar ou falar com pessoas. É o que nos esperam de nós, é o sublinhado “normal”, é como devemos comportamos, mas dentro da tua cabeça está uma tempestade de emoções que, por vezes, te torna inoperacional. E é isso do que se trata, de dor, de sucesso e fracasso, simplesmente “sentir mal" por nenhuma razão. Essa é a grande aventura de ser um humano e é a única ‘coisa’ que me interessa escrever neste momento. 

Conheço imensas pessoas que passaram pela depressão e conheço pessoalmente a ansiedade, e estou determinada em encontrar os meios e as ferramentas que me atribuem a capacidade de falar sobre isto, porque é vergonhoso o facto de muitos demorarem tanto tempo a admitir que “não estão bem”. Não existe solução para a ansiedade, quando alguém tenta o abordar, a conversa tem tendência a acabar abruptamente. 

Normalmente, chega-nos com “não fiques triste”, “tudo vai ficar bem”, “não stresses” … não entendem que o melhor que podem fazer é simplesmente ouvir. 

Presumi que conhecesse a ansiedade, porque descreve (ou não-descreve, visto não ser fácil descrição) o sentimento de pânico vivido por quem tem. A cena da praia, por exemplo, reflete bem essa tentativa de reprodução.

[Martin] Heidegger descrevia que a “ansiedade é ter medo sem nenhuma razão aparente”. Não existe objetivo para esse medo, mas as sensações trazidas são aterrorizantes. Ele também o descreve como uma mudança de realidade, como se o espaço físico e o espaço emocional alterassem, como um desaparecimento do realismo. 

Voltando à animação, o porquê de atribuir à consciência atormentada de Jeanne uma … bem, vou usar a palavra “criatura” para o descrever.

Se o pretendido era poder falar sobre embaraço e ansiedade, necessitaria de palavras, ou seja uma conversa. Quando somos reféns desses sentimentos, o nosso cérebro tem tendência a enlouquecer, por isso não seriam palavras, como diria, sedutoras, apenas uma voz envolta da sua mente. Para tal, a solução era colocar uma voz-off que representasse essa consciência em constante alarme, mas pensei que seria mais generosa com Jeanne se atribuísse-lhe um corpo a essa voz, e assim nasceu esta “criatura”, um fantasma até. Uma das razões para ter chegado a esta entidade é que quando estamos neste estado, a voz que ouvimos mentalmente não é de toda a nossa voz, mas sons de outras, possivelmente alicerçados a memórias. 

Ao tornar esta presença “física”, desviei-me da tendência de ser “Jeanne a falar com Jeanne” e passaria a “Jeanne a ser assediada por todas as vozes ao seu redor”. 

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Laurent Lafitte e Blanche Gardin em "Tout le monde aime Jeanne" (2022)

Não sei se foi algo consciente, mas esta “criatura” tem traços que remetem a Charles M. Schulz e o seu “Peanuts”.

Sim, porque era suposto ser bastante simples, isso também, porque nunca desenhei personagens em animação. Esta “criatura” de Jeanne seria a minha primeira vez. Como tal, o concebi como um pequeno “cartoon”.

E já agora, porquê Lisboa?

Porque sempre foi um lugar de passagem para mim. Aqui mostrei os meus filmes. Aqui passei vários dos meus dias, e também fiz vários amigos, principalmente. Estive aqui na altura da crise, o qual passamos para aquela ideia repentina em que pessoas com menos possibilidades poderiam viajar, ter um pequeno apartamento para desfrutar um simples fim-de-semana fora em qualquer cidade na Europa. E estas boas notícias convergiram numa catastrófica especulação imobiliária, apropriação e destruição de cidades turísticas, como a de Lisboa. 

O facto de ter escolhido a cidade para o filme, é porque ela representa uma certa essência de uma Europa “castigadora”, mais de uns países do que outros. Então, para esta geração que começou a viajar em easy jets e outras companhias low-cost, senti-me no dever de escrever sobre isso. Uma escrita através dessas observações. 

E com isso também quis abordar o fenómeno da gentrificação [uma espécie de segregação urbana, que "expulsa" de regiões tradicionais os seus moradores]?

Na verdade, está mais além da gentrificação. Porque a gentrificação responde ainda a uma certa coexistência dessas pessoas para com estas cidades, neste caso não existe qualquer indício de coexistência porque essas pessoas são “obrigadas” a sair.

Recordo num dia em que chego a Lisboa para um trabalho, e deparo-me com um intenso som oriundo das rodas de malas e um achocalhar de chaves de um proprietário com mais de dezenas de chaves no seu porta-chaves. Eram airbnbs, imensos, em pleno Chiado. A cidade se transformou nisso, numa outra ‘coisa’, num recreio para turistas. É de doidos, desta forma desenfreada como os espaços são vendidos para estes propósitos. Politicamente, é uma situação complexa. 

Gostaria que me falasse do final, visto tratar-se de uma obra sobre ansiedade que evitou, completamente, a epifania ou fechar a narrativa, dando um digno “The End” à personagem. De certa forma, tentou dizer-nos que - a vida continua? 

Queria explorar a ideia de que podemos ser felizes sem a necessidade de fazer algo, ou seja, sem querer ou preencher um propósito. Existe um fundamento instalado nesta sociedade de que necessitamos produzir ou sermos bem-sucedidos em algo para sermos realmente felizes. Acordamos e deitamos, e entre esses acontecimentos esperamos produzir o que quer que seja, somos viciados na produção … aliás, em qualquer sociedade capitalista, como esta em que nós vivemos, qualquer atividade é valiosa. Por exemplo, se um banqueiro reformar tem que automaticamente fazer cerâmica, ou dedicar-se à agricultura biológica … a ideia trazida é que temos que fazer algo, fazer, fazer e fazer. Isso é importante, segundo esta mesma sociedade, e Jeanne faz algo, porém, fracassa, e depois conhece alguém que não faz rigorosamente nada, um perfeito niilista, alguém que se encontra satisfeito, por apenas estar vivo. É um pensamento de “loucos” para esta sociedade que nos “ordena” a produzir. 

Pessoalmente, não conheço ninguém assim, mas penso que devemos refletir sobre esse modo de vida [risos]. 

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A "criatura" de "Tout le monde aime Jeanne" (2022)

Pertinente, está  a insinuar, ou simplesmente a exaltar o lado capitalista nesta onda ambientalista?

Penso que está interligado. Vejamos, a Jeanne torna-se uma jovem ambientalista, e ela é sincera com esse ato, porém, vivemos numa sociedade em que esse aspecto é ultra-valorizado. E como tal recebe o estatuto de “Mulher do Ano”! É de doidos [risos]. Ela não pode ser a “Mulher do Ano”, é apenas uma mulher que faz algo … útil. 

Este filme é muito acerca da percepção, de como vemos as pessoas e de como elas realmente são. Por exemplo, quando Jeanne vê pela primeira vez Jean no aeroporto, a sua primeira impressão é que ele é verdadeiramente irritante. Ninguém deseja falar com aquele homem, é um pesadelo [risos]. Mas revela-se em alguém generoso, compreensivo, bastou apenas conhecê-lo. Como a Jeanne, que fez este ativismo, ou trabalho ecológico, e o que lhe interessou realmente foi o que as pessoas pensavam dela, e isso, é uma forma capitalista de encarar as ‘coisas’. Porque se ela fizesse este ambientalismo secretamente ou anonimamente, não seria uma aventura capitalista. 

Vivemos numa sociedade que não perdoa falhas …

Verdadeiramente. Ela foi elevada a ‘santa’, por isso, quando ela falhou, não falhou somente para ela, falhou para todos, para o Planeta. Isso é um grande Fracasso.

Fale-me do elenco, como chegou a ele?

Escrevi a personagem da Jeanne a pensar nela [Blanche Gardin], depois convidamos Laurent [Lafitte] para ler o guião e felizmente embarcou nesta aventura. Quanto a Nuno Lopes, já o conhecia, e tive a felicidade de lhe oferecer este papel. Um pouco diferente do que lhe é normalmente oferecido, um papel mais pateta e humorado, ao invés de sexy fidalgo. Depois fui precisa no rol secundário, e felizarda também. Sinto que eles foram o “sumo” do filme, ou seja, mesmo por dois minutos conseguiram preencher ricamente a minha visão. 

E quanto a novos projetos?

Eu levo a questão dos novos projetos muito secretamente [risos], mas já estou a trabalhar em algo.

Tudo aconteceu numa "bela manhã" ...

Hugo Gomes, 04.11.22

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Desde que comecei a fazer filmes, descobri que é através deles que encontro as ferramentas para aprender a voltar a viver e encarar este mundo.Mia Hansen-Løve

Numa “bela manhã”, Sandra visita o seu decadente pai, um respeitado professor de filosofia, hoje prisioneiro, do seu próprio apartamento, face a uma doença degenerativa que o impede de ser autónomo. Os olhos da nossa protagonista, “vestida” sob uma discreta Léa Seydoux, enchem-se de angústia, um silencioso desespero ao ver o seu progenitor em estado de farrapo, perdendo a sua consciência quanto à sua própria existência. Discute-se a possibilidade de o mover para um lar, e isso, mais tristeza lhe atribui. 

Porém, foi nessa mesma “bela manhã” que Sandra reencontra um “velho amigo”, belo e confiante após uma expedição à Antártida, um cosmofísico, cuja, por fim, troca de olhares, dissipa aquela tristeza contida. Novos sentimentos (re)nascem. Aquela “bela manhã”, no fundo, foi uma agridoce manhã como a vida o é, ora cinzenta, ora colorida, entretanto confundida ou escapista. Sandra é impotente para com aquilo que o seu pai vai-se tornando (um ser fragmentado, impreciso nas suas memórias, na sua evidência) e deseja exiliar desses sentimentos, ou Sandra conforta-se na temporária felicidade (nos braços do seu amante) e ao mesmo tempo sente-se perturbada pelo destino que o seu ente querido encaminha. Nada é unilateral, preciso nessa vida, olha-se para o horizonte de forma a fugir das nossas preocupações. 

Depois de Mumbai com “Maya” (2018), e da Ilha Faroo com “Bergman Island” (2021), Mia Hansen-Løve, definitivamente entranhada na sua melancolia (vida para além do cinema, mas que se confunde com a mesma), regressa a Paris, ao seu quotidiano e às histórias que a interpelam sem o uso de uma ótica turística. “Un Beau Matin”, aquela “bela manhã” de Sandra, é respondida com um grito de revolta perante a inconformidade de um desígnio indecifrável, porém, o resultado é silenciosamente delicado, Mia encontrou o equilíbrio da sua tristeza interiorizada, a consciência de que a morte é um ato natural e que os recomeços estão no virar da esquina. Como a doença degenerativa do seu personagem, nada nos soa estagnado, aliás, tudo se transforma … imprevisivelmente. Nesse efeito, o cinema de Mia transforma-se, deixando de lado a cinefilia de postal que o seu anterior filme fora, e partindo de regresso às suas inserções rohmerianas sem a possessão dos estados de graças rohmerianos. Quem sabe, a marca do seu cinema. 

Reviravoltas, por vezes, como a nossa Sandra, há que olhar para o passado como se olha em frente, nela poderemos reencontrar as nossas antecipadas respostas. 

Mia Hansen-Love: "O meu cinema foi uma cruzada pela luz, mas é na leveza que encontrei o meu prazer”

Hugo Gomes, 20.10.21

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Vicky Krieps em "Bergman Island" (2021)

Após uma viagem existencial e amorosa por Mumbai em “Maya” (2018), a prolifera realizadora Mia Hansen-Love convida-nos a percorrer a ilha de Faroo, Suécia, um território apropriado pelo fantasma do cineasta Ingmar Bergman.

Por entre cenários, adereços e endereços e uma presença onipresente do realizador, "Bergman Island” (“A Ilha de Bergman”) consente-se numa jornada interior na relação de realizadores que procuram os seus propósitos e próximos projetos naquele mundo detido por outro. Os atores Tim Roth e Vicky Krieps estão ao serviço da realizadora neste "turismo" cinematográfico, espelhando as angústias e incertezas de uma artesã que sonha aqui conhecer-se verdadeiramente.

Conversei com Mia Hansen-Love logo após a estreia do seu filme no Festival de Cannes, uma passagem não de todo consensual, mas, sem dúvida alguma, pessoal.

Na sessão de Cannes, uma frase do filme levou a sala ao rubro e gostaria que me comentasse. No momento em que se discute os feitos e feitios de Ingmar Bergman, a personagem de Krieps insinua que, em comparação com o cineasta sueco, “não seria possível uma mulher com nove filhos realizar mais de 60 filmes e ‘n’ de peças de teatro”.

Recebi imensos comentários acerca dessa sequência e não falo apenas de jornalistas, mas dos homens que estavam na rodagem e ficaram automaticamente histéricos [risos]. É verdade! Muitos deles ficaram agressivos comigo, questionando-me constantemente “o que queres dizer com isto?" “Uma mulher não era capaz?” “ Como assim?”. Não tentei com aquela frase minimizar ou determinar a criatividade das mulheres, colocando em choque com os parâmetros sociais. Só constatei um facto e não um ponto moral. Temos pena, mas uma mulher não conseguiria ser mãe de nove crianças e fazer 60 filmes. É fisicamente impossível, não é um comentário biológico. Recordo, como se fosse ontem, aquele ambiente de confronto causado por essa frase.

Antes da ilha de Faroo, concretizou “Maya”, em que filmou na Índia, por isso pergunto se usa o cinema como um modo de viajar e conhecer o mundo? Ou, como os americanos etiquetam, é uma forma de fazer “world cinema”?

Não tento com isto fazer “world cinema”, e antes de vir para Cannes rodei metade do meu novo filme em Paris. Não é uma questão de sair de França e começar a realizar “filmes de estrada”, e sim o de procurar filmes que me trazem de volta à realidade. Desde que comecei a fazer filmes, descobri que é através deles que encontro as ferramentas para aprender a voltar a viver e encarar este mundo. Era uma rapariga melancólica na casa dos 20 [anos] que tinha medo e é com o cinema que venço esse medo, não de viver propriamente dito, mas de arriscar, o que faz parte do processo de viver. Portanto, fazer filmes fora do meu país também faz parte desse processo, é um risco que tomo, que me faz crescer e confronta o territorialismo do cinema.

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Mia Hansen-Love

Nesse sentido, o que é que aprendeu ao rodar “A Ilha de Bergman”?

Aprendi o quanto amo filmar. Aliás, é em plena rodagem que me deparo com os momentos mais felizes da minha vida. Mas isso já sabia, o que descobri aqui foi que a criação não é inseparável da culpa. Por outro lado, a distância pode motivar essa mesma criação. Quando escrevo os meus filmes, sigo profundamente no meu ser e, por vezes, vou ao reencontro de momentos dolorosos para mim. Igualmente podemos encontrar grande prazer na extração desses mesmos momentos e filmá-los, recriá-los e deixar que atores os apropriem, e por essa via tornarem-se numa outra ‘coisa’. E aprendi a aceitar esse prazer na culpa e “A Ilha de Bergman” resultou numa experiência prazenteira. Como também aprendi muito sobre o próprio [Ingmar] Bergman

Durante a minha estadia, entranhei em vários documentários e algo que constatei no registo das suas filmagens é que, ao contrário da figura sisuda e séria que temos dele, Bergman parecia luminoso e verdadeiramente feliz na rodagem dos seus filmes. Havia qualquer coisa de positivamente infantil quando os filmava e isso conecta com a sensualidade deste filme. Quando falamos de Bergman, automaticamente falamos de um realizador sério e frio, e não é bem assim, há inocência e sensualidade nos seus filmes. Por exemplo, “Summer with Monika” [“Mónica e o Desejo”, 1953] é um dos filmes mais sensuais. Tendo em conta esses fatores, apercebi-me em “A Ilha de Bergman” que devo encontrar prazer na leveza. O meu cinema foi uma cruzada pela luz, mas é na leveza que encontrei o meu prazer.

Nesta narrativa deparamo-nos com outro filme no seu interior, outra história e trama que coincidem com os sentimentos das suas personagens. Porque decidiu centrar-se nesta narrativa de evidentes camadas?

A história dentro da história foi resultado da minha busca pela forma e o quanto inspiracional ela é. Portanto, encontrei neste método narrativo portas para a minha liberdade - os meus anteriores filmes eram mais realistas ao nível da sua escrita - e queria com isto materializar a minha confusão com que lidava vida e ficção, passado e presente, e, mais uma vez, o prazer disso. Não importa aqui a definição do que é e como se deve comportar o cinema, o que importa é o meu entusiasmo e prazer de o fazer. Julgo que a questão não é o porquê da minha decisão de fazer um filme dentro de outro filme, mas sim o que o filme trata e o que me levou a isso.

Antes de “A Ilha de Bergman”, qual era a sua relação com o cinema de Ingmar Bergman?

Isso é difícil de descrever em poucas palavras. [risos] Comecei a ver os filmes de Bergman nos meus 20 [anos] e bem cedo integrou o meu imaginário. Posso afirmar que Bergman acompanhou o meu crescimento enquanto realizadora. Uma das razões para ter feito este filme é que queria estar mais próximo “dele” e tentar decifrar porque é que ele é tão universal, complexo... ou seja, é tão difícil sumarizar tudo isto em meros minutos. Até na pandemia, no meu apartamento em Paris, regressei várias vezes a Bergman e tornei-o, não oficialmente, no meu lugar de refúgio, por exemplo.

Existe mais algum realizador que cause iguais sentimentos em si?

Sim, tantos, mas os outros são franceses. [risos] Tenho este tipo de relação com o trabalho de Eric Rohmer e François Truffaut... já agora, o italiano Nanni Moretti. Mas o facto é que, para mim, Bergman era familiar e, ao mesmo tempo, distante. Porque era esta figura genial, massiva e intimidativa. E também tenho uma ligação estranha, a minha família é dinamarquesa, por isso tenho sentido uma atração pela Dinamarca e Suécia, e encarei-os sempre como um lugar de fantasia porque uma parte de mim é de lá, mas não os conheço, cresci na França. O que acontece é que Bergman leva-me de alguma maneira a estar próxima das minhas raízes.

"Miss": Ruben Alves fala sobre o seu "Rocky"

Hugo Gomes, 26.11.20

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Ruben Alves

Em 2013, uma comédia típica francesa de costumes e de choques culturais tornou-se um dos grandes êxitos do "box-office" português: "A Gaiola Dourada", do lusodescendente Ruben Alves e com um elenco português. Ainda que esse fenómeno não se vá repetir num ano como este 2020, "Miss"; a sua segunda longa-metragem, que estreia esta semana preserva muitos dos mesmos códigos que conquistaram multidões: a história de um rapaz que sonha vencer o concurso da Miss França e para isso se transveste como uma mulher, assumindo uma nova identidade.

Ruben Alves toma partido de Alexandre Wetter, ator e modelo andrógeno, neste “feel good movie” [o realizador não o esconde na entrevista] que chega até nós para contribuir para um debate sobre temáticas identitárias e de transgressões ao convencionalismo de género.

Como surgiu este projeto?

A ideia de “Miss” surgiu do meu encontro com o Alex [Alexandre Wetter]. Já tinha em mente um filme que falasse sobre a identidade de género, sendo uma causa que me toca imenso, mas quando encontrei o Alex é que me deparei com uma personagem iluminada, livre que assume completamente tudo. É um rapaz que demonstra o seu lado feminino e aqui, com esse mesmo lado, cria e recria a sua performance. Encontrei-o no Instagram a desfilar para a Alta-Costura, e fiquei automaticamente surpreendido e até mesmo baralhado. O rapaz não quer ser mulher, ele apenas se quer exprimir, é tão moderno e próprio da nossa época. Simplesmente é livre!

A particularidade é que temos um rapaz que quer participar no concurso Miss França, apenas isso. Não deseja transformar-se em mulher nem nada parecido, o que afasta “Miss” da temática da transsexualidade mas aproxima-o das questões de identidade ao nível do género.

Exatamente. Isso pode ser perturbador para muita gente. Mas ele é um rapaz! É o sonho dele que simplesmente está a viver. “Miss” é um filme sobre sonhos e como concretizá-los, por mais “malucos” que sejam. Mas para quê? Para que se conheça o percurso interior e introspectivo. A lição aqui é a seguinte: ama-te antes que as pessoas te amem. É aceitar e amar essa diferença. Porque a diferença é a riqueza. E é isso que faz um povo, é isso que se faz a Humanidade. Porque não somos todos iguais.

Deixe-me dizer que o que mais me interessou foi a utilização do universo do pugilismo, que é o tema da superação e do “underdog” no cinema. E que o utiliza como base estrutural para todo o percurso do Alex.

Tentei fazer deste filme uma espécie de “Rocky”! Achava interessante como um amigo de infância “volta” e como ele traz uma representação de virilidade ligado ao mundo do boxe e como isso se irá relacionar/trabalhar com a feminilidade trabalhada pelo protagonista. É um paralelo mais do que interessante, até porque sou fascinado em desconstruir clichés. Como tal, escolhi a Miss França porque é um concurso ditado por regras, “super-clássico”, em contraste com uma personagem que não anseia ficar reduzida em caixas. Para conseguir vencer o concurso, ela(e) tem que se deixar subjugar pelas regras.

Visto que falou do Alex ser uma figura, em si, livre, e sendo um pessoa andrógena, como o trabalhou ou direcionou-o para se enquadrar na sua idealização?

Na verdade, bastou-me encontrá-la em Alexandre Wetter, porque ele próprio tem essas características, essa experiência e iluminação. Acredito que tive que transladar essa dita iluminação para a personagem, mas desconfio que nem um terço daquilo que o Alex possui. Recordo que, quando o conheci, contava-me histórias da sua própria experiência de vida, do "bullying" que sofria enquanto criança. E o que era invulgar é que me contava tudo isto com um sorriso nos lábios. O importante era que ele percebesse o percurso da sua própria personagem, de onde veio, o que vivenciou e para onde vai. Um trabalho deveras introspectivo. Até digo mais, foi muito mais difícil para o Alex trabalhar o seu lado mais masculino, da maneira como se vestir, andar, etc., aquele que evidenciamos no início do filme, do que a sua parte mais feminina. Isto aconteceu devido à experiência vivida pelo próprio Alex.

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"Miss" (2020)

Como se deparou com este universo das Misses como o objetivo de Alex? Como estudou e reproduziu esse sistema, essa instituição?

A ideia surgiu num almoço com o Alex, questionando o que será que pode levar alguém ao máximo da sua feminilidade e seja acessível a todos os públicos. Costumo fazer filmes a pensar em causas, até mesmo nas mais arriscadas. Neste caso a questão de género, debrucei-me numa instituição com que todos estão familiarizados. Então, eu e a minha argumentista guionista [Elodie Namer] batemos à porta, eles receberam-nos cordialmente e durante um ano mostraram-me a estrutura e processo desse universo de Misses. Gostei do lado de uma instituição tão clássica e normativa permitir a entrada de uma personagem como esta. Lembro-me de ter perguntado a uma das responsáveis que nos acompanhou neste estudo se seria possível, tendo em conta as suas atuais características, regulamentos e restrições, acontecer algo como este filme. A resposta foi que poderia ser possível. Por isso mesmo era importante para mim usar a instituição e desconstruí-la.

Nessa questão de desconstruir, há uma personagem em “Miss”, Amanda (Pascale Arbillot), que vai produzir o novo concurso e que se depara com um programa obsoleto, incapaz de cativar novas gerações. Acredita nisso?

Não, porque este concurso é a preservação do sonho trabalhado. Hoje em dia, tudo quer-se rápido, efémero ou instantâneo. Como a fama, surgida do nada, mas que desaparece de um momento para o outro. E as Misses, tal como diz, algo obsoleto, está a regressar. A ser novamente um desejo, uma fantasia e até mesmo um objetivo. Agora, a questão da modernização que faço no filme… bem, eles que desenrasquem, lancei a sugestão [risos]. Há dois anos, em França, houve uma polémica por causa dessa mesma modernização, em que se ponderou aceitar candidatas transexuais. É uma abertura que leva a uma mudança de regras, requerimentos e procedimentos. Alteraria tudo.

Em "Miss", sinto que o(a) Alex tem um tratamento privilegiado na competição, até porque a nível narrativo, você lhe dá um passado trágico, sendo órfão e acolhido numa família de marginalizados sociais.

Acabei por dar os dois. A infância feliz com os pais, pelo que está no filme possibilita ao Alex acreditar no sonho, porque eles próprios o induziram a lutar por aquilo que queria. Ser o que acreditava ser. Tudo era possível. E a questão da família adotiva era tornar esta sua luta igual, porque perante as adversidades o protagonista teria que ter um suporte, um equilíbrio que o mantivesse firme para continuar o seu sonho.

Sinceramente, acredita que, nos tempos que decorrem, ainda vale a pena “lutar por sonhos”?

Acho que sim, há que lutar por isso. E… por muito estranho que pareça, não tenho muitos sonhos. Não sou uma pessoa sonhadora, nem coisa que o valha.

Como sente estrear um novo filme em Portugal, tendo em conta que "A Gaiola Dourada" foi um tremendo êxito... equivocadamente vendido como uma "obra portuguesa"? [risos]

Sim, é verdade. [risos] "Ai, foi o filme português que mais gostei!" [sarcasmo] Sim, o filme foi vendido como tal, e não só aqui, mas em todo o lado. Bem, esta minha obra é puramente francesa, abriu a Festa do Cinema Francês, o que me deu um sabor particular porque são dois países [Portugal, França] que me construíram. Não sei ao certo como o público português irá reagir. O que posso dizer é que em França correu bem. Muitos dirigiram-se a mim com comparações com “A Gaiola Dourada”.

Que não tem nada a ver, e ao mesmo tempo tem tudo a ver. Estão lá os meus elementos e preocupações, a dinâmica da identidade, da família, isso que me caracteriza, está lá.

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A Gaiola Dourada /  La Cage Dorée (2013)

Suponhamos que “A Gaiola Dourada”, que é de 2013 e foi a sua primeira longa-metragem, fosse feita hoje. Mudaria alguma coisa ou faria completamente distinto? Falo de elenco, tom ou outras questões.

Mais do que tudo, era importante fazer um filme “feel good” para descomplexar toda essa questão dos emigrantes, e como os portugueses olham para os seus imigrantes. Era importante falar disso, nem nunca troçar ou denegrir os valores da alma portuguesa. Sim, faria igual, no tom, em tudo. As únicas mudanças seriam em meros pormenores. Como também era o meu primeiro filme.

E novos projetos?

Estou a escrever com um argumentista espanhol um projeto que quero filmar aqui, em Lisboa, e com atores portugueses. Será basicamente um filme europeu. Digo europeu, porque será uma coprodução entre Portugal, França e Espanha.

Falando com Cédric Le Gallo e Maxime Govare, realizadores de "Les Crevettes Pailletées"

Hugo Gomes, 18.03.20

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Num espaço de um ano, França viu duas obras de sucesso sob a temática de polo aquático a estrear nas suas salas. A primeira, com direito a estreia no Festival de Cannes, “Le Grand Bain”, com direção do galã Gilles Lelouch, seguia na aventura de um grupo de cinquentões numa comédia pela desconstrução da masculinidade, enquanto este “Os Camarões Brilhantes” (Les crevettes pailletées / The Shiny Shrimps), instalava-se como um hino à alegria homossexual, remetendo a uma equipa em competição nos chamados Gay Games. Tendo chegado às salas portuguesas no início de novembro, depois de ter integrado a Festa do Cinema Francês, “Os Camarões Brilhantes” chega ao formato digital em VOD.

O Cinematograficamente Falando ... teve o prazer de conversar com os dois autores do projeto (Cédric Le Gallo e Maxime Govare), que já nos prometeram estar encarregues de uma sequela deste brilhante grupo do desporto aquático.

Devo começar pela questão mais comum, de onde surgiu a ideia para este filme?

Cédric Le Gallo: Bem, foi inspirado numa verdadeira equipa de polo aquático, aliás, a minha equipa [risos]. Eu jogo com eles há mais de 8 anos e participamos nos Gay Games, em Paris. Sempre ambicionei fazer ficção, quanto mais uma longa-metragem de ficção, sendo que já tinha concretizado algumas curtas e até uma série televisiva, e por isso, refleti e achei que esta minha história resultaria em boa ficção. Até porque todas estas personagens são coloridas e tem algo para dizer.

O meu produtor introduziu-me a Maxime que me ajudou a concretizar um guião, eu nunca tinha escrito um na minha vida. Trabalhamos juntos e foi aí que tudo começou.

Maxime Govare: Tínhamos uma equipa fantástica, bem verdadeira que trouxe a mim algo que nunca tinha visto antes na minha carreira no cinema. Fiquei automaticamente seduzido por ter um projeto que falasse de desporto no geral e que possuísse personagens aparentemente “leves”, mas todas elas com historiais “pesados”. Eram personagens fortes e de bom coração.

Uma das dúvidas que sempre tenho em relação à representação de personagens LGBT no cinema, muito mais no género da comédia, é como fazem para evitar os estereótipos?

CLG: Nós brincamos com eles. Eu diria mais que são arquétipos do que estereótipos. Neste caso, são arquétipos, porque temos um rol tão diferente de personagens, desde o pai até ao solteiro, passando pelo velho ativista até à mulher transgénero. No fim de contas, estas personagens são aquilo que experienciei na minha jornada com esta equipa. Neste tipo de desporto temos jovens de 20 anos até adultos de 60, são toda uma variedade distinta de gays.

E porque o arquétipo existe, o nosso trabalho é demonstrar que estas personagens vão mais longe que estes arquétipos.

MG: Existe verdade nos arquétipos, e talvez seja essa a razão para eles existirem, porque a sua existência advém da experiência coletiva e isso transgride. Ao trabalhar com este coletivo consultei diversas vezes o Cedric se podia usar ou não isso, e quando ele respondia “eu tenho alguém assim na minha equipa”. Tudo bem, é um arquétipo. Obviamente, que tivemos casos em que o Cedric dizia “não é de todo verdade”, e colocávamos de lado essas mesmas ideias.

Não tivemos problemas quanto a isso, porque “Os Camarões Brilhantes” não é pura ficção, é baseado numa equipa que existe. Se as pessoas pensarem que isto tudo é um amontoado de estereótipos ou “demais”, então o problema é deles. Nós temos uma base bastante sólida, que é uma verdadeira equipa.

 

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CLG: Por exemplo, os fatos de banhos foram “desenhados” por um colega meu. Aqueles fatos de banhos representam essa realidade. No caso de as pessoas acharem tudo isto exagerado ou demasiado delirante, bem, nós não somos os culpados, O preconceito é.

Tendo em conta a atualidade político-social que se vive, principalmente esta ascendente ideologia conservadora que ressurge em muitos países de primeiro mundo, é cada vez mais urgente termos obras desta natureza? Que abordam este tipo de assuntos?

MG: Penso que chegou um momento em que é urgente abordar tais tópicos. A primeira discussão que tivemos foi exatamente que género de filme pretendíamos fazer, e tendo em conta que tais temas já povoam com exaustão o drama e o documentário, por isso decidimos endereçar numa comédia, porque através do risos iríamos reunir um maior grupo de pessoas. A comunidade LGBT não precisava de ser “convencida”, mas sim o resto, e tal deu enfoque à ideia do humor, a comédia continua a ser uma linguagem universal de forte atração.

CLG: Enquanto adolescente, ou até mesmo como jovem adulto, sofri muito porque não tinha qualquer ficção ou série televisiva que demonstrasse que a vida homossexual poderia ser feliz, tal como o Maxime disse, tais tópicos residiam apenas no drama pesado e eu deseja ver um prisma mais alegre daquele estilo de vida. Eu era fã dos “Friends”, por exemplo, mas nenhuma daquelas personagens era gay. Exceto, talvez, Chandler, que julgas de início que é, mas acaba por não ser. [risos]

Ajudar-me-ia imenso se tivesse ao meu dispor essa ficção positiva sobre a vida gay, eu vivo uma vida feliz ao lado dos meus amigos, e este mundo é na maior parte das vezes, colorido, divertido e harmonioso. Se existisse essas propostas, possivelmente ter-me-ia assumido aos meus pais bem mais cedo do que realmente fiz. Mas voltando à tua pergunta, é um tema urgente e necessário de abordar, mas Camarões’ é um feel-good movie, não tínhamos um destes na França há mais de 25 anos. E mais importante que isso, é um filme feito para divertir.

O vosso filme estreou no Festival de Cinema dos Alpes, dedicado à comédia francesa, e desde aí tem sofrido com comparações com “Le Grand Bain” (“Ou Nadas ou Afundas”), êxito do ano retrasado.

MG: Na verdade, era suposto rodarmos o filme na mesma altura que La Grand Bain, possivelmente dois meses antes, mas chegaram a nós e disseram algo deste género “pedimos desculpa, um filme com grandes estrelas será produzido”. Por isso, aguardamos um ano e arrancamos assim as nossas rodagens. Quando estreamos o filme, ouvimos essas comparações, só que estas vinham de pessoas que ainda não tinham visto o nosso filme, depois do visionamento nos Alpes, mas ninguém falou sobre isso.

CLG: Não vi muito disso, até porque a única semelhança estava no desporto. “Os Camarões Brilhantes”, por sua vez, é baseado numa experiência real, e até bem poderia ser adaptada para outra modalidade, por exemplo, futebol. Até mesmo as personagens são bem distintas, em “Le Grand Bain” são um bando de homens cinquentões depressivos que tentam encontrar razões de existência no polo aquático.

MG: O que estamos a tentar dizer é que fora do desporto, aliás, serem ambos filmes de desporto, são duas obras completamente diferentes.

CLG: Sim, para dizer a verdade, filmes de desporto não eram produzidos há já algum tempo, e num espaço de um ano surgem dois. O que me parece ser bom.



"Agnès Varda dava-nos as pistas necessárias para desvendar o seu Cinema." Uma conversa com Rosalie Varda

Hugo Gomes, 08.10.19

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Varda par Agnès (2019)

Varda disse-me que os jovens não são menos curiosos. São apenas mais preguiçosos.

Seguindo as palavras da sua filha e produtora, Rosalie, percebemos o porquê de Agnès Varda ter sido uma das grandes veteranas do Cinema a apaixonar os mais jovens. Primeiro, porque não encontramos nas suas palavras, proferidas em masterclasses, nenhum indício de condescendência para com esta geração. Ao invés, era uma energia jovial aquela que contaminava as suas palestras.

Varda por Agnès, até ao momento o último trabalho do importante nome da “bancada de esquerda” (left bank) da Nouvelle Vague, expira esse mesmo toque, uma “velhota” que fala dos seus filmes como uma adolescente cheia de genica. É através dessa motivação que vamos de encontro com um legado, a merecer perpetuação nas futuras gerações.

Tive o privilégio de conversar com Rosalie Varda, fruto do relacionamento da realizadora com o ator Antoine Bourseiller (mas legalmente adotada pelo cineasta Jacques Demy) sobre esta sua produção, e sobretudo sobre a sua mãe que infelizmente nos deixou.

É sabido que foi você que trouxe a ideia deste filme para Agnès Varda?

Sim, era a ideia de um filme sobre a sua interação com o público. Como ela trabalha e como ela faz o seu Cinema. Seria um projeto marcado por duas partes: a primeira, antes do ano 2000, com Varda a operar grande câmaras e a trabalhar com a película; a segunda, depois do novo milénio com a “descoberta” da câmara digital, e como o digital tornou possível um envolvimento ainda maior dela na área do documentário. É que, com essa câmara, Varda conseguiu aproximar-se das pessoas sem que parecesse intrusiva.

Ao mesmo tempo queria mostrar que nos primórdios da sua carreira, ela era uma fotógrafa e como tal foi crucial para o seu desenvolvimento enquanto cineasta. A experiência do olhar adquirido por essa área tornou-a atenta e a realizadora perfeccionista que conhecemos. Da mesma forma que o digital a levou a desbravar a arte contemporânea, a inserir-se nas instalações artísticas. Ou seja, temos vídeo, foto, arte … Agnès Varda era tudo isso. Todos esses temas.

Portanto, 11 anos depois de “Les Plages d'Agnes", este seria o definitivo filme do seu legado?

Legado é uma palavra que não aprecio, mas o filme dá-nos as ferramentas para entendermos ainda mais o Cinema.

Quer dizer que “Varda per Agnès” é mais que um tributo e, sim, um filme sobre o Cinema.

Sim, como o Cinema funciona. Ela estava interessada em três palavras – inspiração, criação e partilha – e esse trio é misturável. Porém, é através dessas palavras que Varda pôde ser a realizadora diversificada que sempre foi. Atenção, ela nunca se repetia, facilmente conseguia partir do documentário para a ficção e de seguida para uma curta, sem replicar a narrativa. Mas o mais importante de tudo isso era a facilidade com que ela era capaz de falar sobre o seu trabalho. Sabes uma coisa, daqui a um ano ou dois, ou mais, continuarão a fazer documentários sobre ela. Repito, Agnès Varda dava-nos as pistas necessárias para desvendar o seu Cinema.

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Rosalie Varda e Agnès Varda

Mesmo nos últimos anos, Agnès Varda mantinha um olhar jovem, mesmo abordando os seus filmes mais antigos, ao mesmo tempo que adquiriu a maturidade para falar deles melhor do que na altura que os fizera. Acredito que este foi o momento perfeito para decifrar o seu “La Pointe-Courte”, bem mais precisa do que quando estava a filmá-lo, porque ela experienciou a Vida. Como qualquer pessoa que ao longo dos anos solidifica a sua perspetiva em relação a um tema que tão bem conhece. Acima de tudo, “Varda per Agnès” exibe energia criativa que reflete nas pessoas dando-lhes o desejo de ver e pensar.

Foi uma honra produzir os filmes da sua mãe?

Sempre fomos boas parceiras. Eu tentava protegê-la acima de tudo e ela protegia-me. A nossa relação era muito boa, diria mesmo, facilmente boa. É curioso que, ao contrário de muitos outros realizadores do seu tempo, o público de Varda era maioritariamente jovem. Como explica este fenómeno? Diria mais uma referência. As audiências jovens tem interesse nela e nos seus filmes porque ela era livre. Varda tinha liberdade, nunca cedeu à publicidade, à grande indústria, manteve-se sempre no limiar disso tudo.

Os jovens, por sua vez, adquirem a sensação de que a compreendiam perfeitamente. Nunca a encararam como uma “velha” a falar dos seus filmes, mas sim uma artista, uma cineasta. Nunca sentiram que Varda fosse geracionalmente distante para partilhar alguma coisa. Os jovens querem extrair dela todo o conhecimento.

Recordo que numa entrevista, você expressou que não sentiu que fosse a sua mãe a partir, mas uma “figura pública”.

Sim, quando morreu Agnès Varda senti que morreu uma figura pública. As pessoas vinham ter comigo e davam-me os pêsames e diziam-me o quanto “gostavam de Agnès“. Mas eles só conheciam a sua Agnès, a empática artista, não a minha. Por algum tempo senti que a minha mãe não morreu, mas sim outra pessoa, uma artista, alguém diferente.

Mas consegue separar essas duas figuras?

Sim, eu consigo separar o trabalho dela com a minha mãe. Não é a mesma coisa.

O filme foi apresentado pela própria Agnès Varda em Berlim este ano. Acha que “Varda per Agnès” alterou, inconscientemente, o seu tom?

Pelo facto de ela não estar cá?

Sim.

Não, os artistas são luxo, mas a arte está viva. Varda morreu em março e mesmo assim olhamos para o filme e ele não está morto, está sim vivo. “It’s Alive!

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Jane B. par Agnès V. (1988)

Antes de virar produtora, trabalhou na área da figuração …

Sim, trabalhei como figurinista por mais de 20 anos. Trabalhei com Varda, com Jacques Demy e muito mais gente, em espetáculos de dança e óperas. Depois dessa experiência adquirida cheguei ao pé de Agnès e disse: “Quero trabalhar contigo” [risos]. Ela respondeu: “Sim. Sim, boa“. E foi então que viramos parceiras.

O seu primeiro trabalho de produção foi com a primeira longa-metragem do seu irmão Mathieus Demy, O Americano. Sente-se que de certa forma tem que proteger a sua família?

Sim, exato. Todos os meus filmes são as minhas crianças. Eu tenho uma grande família. Mas sim, enquanto produtora sinto-me na obrigação de proteger todos esses meus projetos, como tenho o dever de proteger todos os filmes da minha mãe. Tenho que proteger o “Cléo de 5 à 7”. Tenho que proteger “Le Bonheur, etc. É interessante porque preocupo-me com a educação, batalho por ela. E a educação não é só Televisão, é também Cinema. Por isso é meu dever levar as pessoas para o Cinema.

Não querendo mencionar a palavra Legado [risos], mas como está responsável pelo espólio de Agnès Varda, será que iremos contar no futuro com projetos nunca concretizados pela mesma? Talvez guiões inéditos…

Eu não sei, não é o melhor dia para falar disso. Sabes, de momento estamos a tentar reunir tudo e … temos muita coisa. Por isso, quer dizer, este não é o tema de agora. O tema de agora é reunir tudo nos nossos arquivos. E temos muito.

Provavelmente já lhe perguntaram isto imensas vezes após a morte da sua mãe, mas tendo em conta aquilo que vimos no final de “Visages Villages”, qual é a sua opinião sobre as palavras de Jean-Luc Godard sobre a sua mãe, dias depois do seu falecimento?

Ele disse alguma coisa?

Disse que ela era das “uma das melhores” …

Ele apenas enviou-me uma pequena colagem. Eu não ouvi nada.

Arnaud Desplechin entre fantasmas e géneros. Uma conversa em torno de Ismael

Hugo Gomes, 17.10.17

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Arnaud Desplechin dando direções a Marion Cotillard na rodagem de "Les fantômes d'Ismael" (2017)

Arnaud Desplechin é um dos nomes mais frutíferos do cinema francês, e um dos cada vez mais prestigiados. A prova está na escolha de um filme como “Les fantômes d'Ismaël” (“Os Fantasmas de Ismael”) para integrar a abertura do mais mediático dos festivais de cinema, Cannes. Um filme multifacetado que reúne todo um conjunto de géneros e nuances ao serviço de uma só ficção, um experimento artístico que entra em contradição com o elenco e a produção estrelar. Desplechin foi o padrinho da 18ª Festa do Cinema Francês, a qual lhe dedicou uma retrospectiva que visa refletir sobre a sua obra, as suas influências e referências. 

O realizador falou-me do seu mais recente filme e de que maneira ele desafia o costume de géneros implantados por Hollywood e globalizados até aos dias de hoje.

No papel, Os Fantasmas de Ismael é um filme muito complexo e multifacetado. Como concebeu ou surgiu a ideia, digamos assim, deste seu novo trabalho?

Tudo começou com linhas separadas, nada de relacionado entre si, que depressa evoluiu para a história de um cineasta que tenta escapar ao seu próprio filme. Contudo, durante o desenrolar do guião, que ainda não era bem um argumento, vi o filme de Miguel Gomes, “Mil e uma Noites”, e recordo que no início tínhamos o próprio realizador a fugir do filme. Pensei, “era quase isto que eu queria, mas mesmo assim vou avançar, a minha ideia será diferente”. Então a minha ideia tornou-se em algo assim, um realizador que escreve um filme sobre as memórias do seu irmão, convertendo-o numa história de espionagem, isolando-se numa casa vazia onde debate os seus fantasmas e recordações com o seu produtor. Foi assim o primeiro rascunho.

Depois de terminar “Trois souvenirs de ma jeunesse” (“Três Recordações de uma Vida”), cujo elenco foi composto praticamente por desconhecidos e principiantes, decidi que com este novo filme iria trabalhar com um elenco de luxo, estrelas do cinema francês. Ou seja, com a experiência que adquiri a dirigir inexperientes, queria testá-la em trabalhar com experientes.

Depois do primeiro rascunho, não como veio, mas dei por mim a imaginar uma personagem a passear na praia, batizei-a instantaneamente de Carlotta, que abordada uma mulher desconhecida. Carlotta pergunta se Ismael está com ela. Ela responde que não e sucessivamente Carlotta afirma “é porque ele não gosta de nadar”. “Como sabe?” e a mulher responde “porque eu sou a mulher dele”. E a partir daí trabalhei com o facto deste realizador ser viúvo, ou pelo menos a acreditar que o é durante 20 anos, e que de um momento para o outro, enquanto tenta refazer a sua vida amorosa, Carlotta regressa à sua vida. Neste sentido, esta personagem tenta esquecer o seu antigo amor voltando a uma relação e este encontro inesperado leva-a ao dilema; continuará com o luto, voltar para a sua antiga mulher, ou seguir com o seu novo amor?

Foi a partir desta sequência, a qual imaginei e reproduzi no filme, que tive completamente a certeza de que história queria contar, de que personagens iria retratar e quais situações iria abordar.

Relembro que em Cannes, nas notas de produção, declarou que concebeu este filme da mesma maneira que Pollock concebeu as suas figuras.

Bem, há uma cena em que a personagem de Mathieu Amalric refere que “Pollock não é abstrato, são apenas imagens comprimidas”. Pretendia pegar em todo o tipo de ficções e comprimi-las de forma dar-me uma única ficção, a apologia das ficções. Um experimento, diria eu, diferentes géneros, diferentes histórias, unidas a dar origem a um só género e a uma só história. E essa experiência não ficou apenas na idealização do filme em papel. Aliás, a rodagem foi parte desse experimento, em cada semana eu virava-me para os meus atores e dizia: “nova semana, novo filme”. Ou seja, estava sempre a rodar um novo tipo de filme a cada semana.

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Mathieu Amalric em "Les fantômes d'Ismael" (2017)

De certa forma, o filme não é uma rebeldia contra o sistema de catalogação de géneros imposta, principalmente, por Hollywood?

Diria que sim. Este “Fantasmas de Ismael” é uma revolta a esse sistema de géneros, porém, o meu próximo filme não o será. Aliás, isso faz parte da minha natureza, em cada projeto converte-se numa oposição ao trabalho anterior. Mas pensando bem, e olhando para os meus filmes anteriores, sempre fui um pouco contra a etiqueta do género. Por exemplo, o “Rois et reine” (“Reis e Rainhas''). Será um drama ou uma comédia? Um slapstick ou um melodrama? Sempre tentei criar uma unificação desses géneros nesse filme, principalmente em conformidade com a perspetiva de diferentes personagens. Em “Os Fantasmas de Ismael'' quis algo em grande. Diria pretensioso, mais que dois géneros, uma multiplicidade de tons que originam um só.

Falando em filmes anteriores, tendo em conta as referências de Vertigo, de Hitchcock, neste “Os Fantasmas de Ismael”. A sua filmografia é pontuada com uma busca identitária por parte das personagens, e até, quem sabe, de si próprio. Procura conhecer-se através da escrita e na conceção destes filmes?

Possivelmente. Quando escrevia “Os Fantasmas de Ismael”, de certa maneira, procurava qual a forma que estas personagens seriam. Não tive a certeza absoluta que Ismael seria um viúvo, tudo veio com o tempo, uma busca por essa identidade, e isso reflete se nas minhas personagens. Nunca gostei de personagens assertivas naquilo que são, prefiro aquelas que têm dúvidas acerca delas próprias. Em cada escrita de um guião, esta torna-se numa jornada em decifrar a identidade destas, um processo criativo e psicológico. E falando em psicológico, sempre gostei de personagens multifacetados, ambíguas para ser mais exato, e aqui a melhor prova é a personagem de Marion Cotillard. Ela é um “pequeno demónio” quando tenta reaver o seu marido. Contudo, na segunda metade do filme ela tenta reaver outro amor, o do pai. Então como se pode ver, ela passa de demónio a um anjo, mas não é uma mudança, são as duas faces que convivem num só indivíduo. Eu sou um adepto deste tipo de personagens. Personagens de várias faces.

Uma sequência que particularmente me fascinou foi a dança indominável de Marion Cotillard ao som de Bob Dylan. A seleção da música foi voluntária, ou foi mero fruto do acaso? [risos]

[risos] Quando escrevia o argumento do filme, imaginei essa sequência e automaticamente propus a música do Bob Dylan, “It Ain't me Baby”, sobretudo por causa da letra. É curioso uma música destas ser tão cruel, aliás, como grande parte do trabalho de Dylan. “Tu precisas de alguém para te proteger e defender, abrir-te todas as portas e janelas, não sou eu, baby, não sou eu”. O que significa, em perspetiva da Marion’, que Ismael não estará lá para a protegê-la, defendê-la, ou seja, não estará lá para ela. Ela é a “rapariga errada” para ele, e ele sabe-o.

Quanto à dança, pedi à Marion que dançasse selvaticamente, como fosse groove, ou rock, então eu trouxe outro CD, e nele estava o “Going Home” dos “Ten Years After”, com todas aquelas guitarras elétricas, e lhe propus, se conseguisse reproduzir o ritmo com Bob Dylan … ela respondeu-me automaticamente: Bob Dylan!? Eu consigo fazer «groovy»”. E é por isso que adorei trabalhar com Marion. Neste exemplo nota-se o seu talento, o facto de conseguir transformar aquela música numa sequência selvagem bem à sua medida.

Em relação a Mathieu Amalric? Tem sido quase o seu “ator-fetiche”, um co-trabalhador. Normalmente escreve uma nova personagem a pensar nele?

Não, cada filme, cada caso. Neste caso, encontrava-me bem perdido com o argumento, ainda não sabia exatamente o que pretendia e como pretendia e quem se iria encaixar nas personagens. Porém, enviei uma edição inacabada do argumento a um amigo e questionei-o em relação quem iria interpretar o papel de Ismael. Ele virou-se para mim surpreendido e disse: "Estás a brincar? Isto foi escrito para Amalric!”. [risos] Não tinha percebido quando escrevia, mas durante a rodagem constatei que Amalric era exatamente o indicado para este papel. Porque ele, assim como eu, gastamos todos os “truques”, todas as nossas façanhas para o concretizar. Ele foi feliz, patético, humorístico, violento, intrigante, burlesco, romântico, dramático … usou todo um conjunto de faces, tons, nuances, que quando terminamos o filme, ele veio ter comigo e disse: “bolas! Tu deste-me tanto neste filme, era mesmo isto que pretendia enquanto ator”. Agradeço-lhe muito por este filme, porque ele conseguiu exatamente unir todas essas distinções e colher uma totalidade interpretativa.

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Charlotte Gainsbourg e Marion Cotillard em "Les fantômes d'Ismael" (2017)

E em relação à abertura de Cannes? A experiência?

Um misto de sentimentos. Por um lado fiquei bastante contente com o facto de Thierry Fremaux ter selecionado o meu filme para o Festival, mas a surpresa chegou quando percebi que fora o escolhido para abrir o certame. Fiquei perplexo. Contudo, acabei por descobrir que a noite de abertura é péssima para o Cinema. Eu tenho um ritual em Cannes, quando o meu filme é apresentado no Grand Lumiére Theatre costumo dar uma saudação aos cinéfilos que se encontram na bancada de cima. Naquela noite, tentei fazer isso e fiquei surpreso quando deparo com um amontoado de pessoas vestidas a rigor e nenhuma das “caras conhecidas”, os cinéfilos que costumo “ver” no Festival. Foi então que percebi que na abertura de Cannes não há cinéfilos, apenas convidados, e isso é péssimo para os filmes, principalmente para um filme como o meu “Os Fantasmas de Ismael''. A abertura não tem nada de relacionado com Cannes, é um evento completamente burguês, uma passerelle de vestidos e uma recepção muito fria. Foi uma experiência muito violenta.

Quanto a novos projetos?

Terminei o primeiro rascunho do próximo filme que vou trabalhar. Entrarei em território desconhecido na minha carreira, uma produção singular que bravamente entra num universo hitchcockiano. Não sei ao certo como aconteceu, mas apaixonei-me por um artigo de jornal. Um homicídio, para ser mais exato. Mais uma vez, apaixonei-me por aquele relato e devido a isso quero apenas focar nos factos … somente nos factos.

Este meu filme será um objeto completamente seco, despido do lado ficcional, mas ao mesmo devedor do estilo imposto por um The Wrong Man, de Hitchcock. Contudo, e frisando, muito mais seco. Comparo até com o livro “In Cold Blood” (“A Sangue Frio”), de Truman Capote, a apenas narração do real, do facto, não havendo espaço para imaginação e pelo suposto. Retratarei a condição da mulher nos dias de hoje, por isso espero criar uma atmosfera bem sociopolítica, nada parecido do que fizera anteriormente. Espero começar a filmar já neste Inverno.

A Festa do Cinema Francês vai-lhe dedicar uma retrospectiva da sua carreira. Isto, de certa forma, não o motiva a refletir sobre a sua carreira? Aliás, existe algo que se arrependa de ter feito, ou que nunca devia ter feito em relação à sua filmografia?

Estranho que pareça, nunca pensei na minha carreira, apenas no meu próximo projeto. Primeiro de tudo, porque nunca vejo os meus filmes.

Nunca viu os seus filmes?!

Depois de terminados, nunca. Até mesmo em Cannes, deixo passar os créditos iniciais e de seguida desapareço, melhor, escapo da sala. No final, sorrateiramente entro na sala, e recebo os aplausos. [risos] Já vi os meus filmes tantas vezes, mas tantas vezes na sala de montagem, que não tenho curiosidade nem gosto de revê-los no grande ecrã. Acho tudo uma questão de conforto.

O que realmente acredito é que depois de terminado, o filme deixa de ser meu passa a ser de quem vê, por isso não me vejo a pensar como poderia melhorar, ou o que poderia não fazer. Nada disso, não os vejo, o filme é vosso, façam o que quiser com ele.

Mas é muito emotivo ir às retrospectivas e aperceber até que ponto os meus filmes vão e de que maneira tocam em diferentes gerações. Lembro-me de ir a Beijing, numa retrospectiva, e encontrar jovens com os seus 20 e tal anos a afirmar que os meus filmes, de certa maneira, mudaram para todo o sempre. É emocionante ouvir tais palavras de alguém que é tão jovem, e de saber o quanto significa os meus filmes. 

Anne Fontaine: "As violações são ainda consideradas uma arma de guerra"

Hugo Gomes, 06.11.16

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Anne Fontaine na rodagem de "les Innocentes" (2016)

As atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial geram, por si, mil e umas histórias de horrores, intrigas passadas que poderão reflectir no nosso presente e futuro. Anne Fontaine, uma das mais populares realizadoras francesas, falou-nos do seu mais recente olhar a esse período de medo, em particular a uma história que envolve freiras, violações e tropas invasoras, um episódio ocorrido em pleno século XX, que mais parece ter saído das Idade das Trevas, “Les Innocentes”.

A realizadora de êxitos como “Coco Avant Chanel” e o “Mon pire cauchemar” conversou com o Cinematograficamente Falando … sobre os ecos desta história passada no presente que vivemos, sobre a sua carreira e o gosto de filmar sem desfecho à vista.

Como descobriu ou de onde surgiu esta história?

É uma história baseada em factos reais, sobre uma médica francesa que no seu diário relatou a situação vivida por estas freiras polacas, restringidas ao seu convento, grávidas, frutos de violações por parte das tropas soviéticas. Esta mesma história chegou a mim através de alguns produtores franceses que encontraram-na e pensaram logo em mim para transcrevê-la para o grande ecrã. Depois de ter aceitado, arranquei numa investigação histórica, aprofundei o tema desta história, uma aventura humana forte, intensa, sobre a fé, a esperança e a maternidade. Temas complexos que me fizeram crer ser capaz de transformá-lo num filme dramaticamente forte e emocional.

Encontramos em "Les Innocentes", um breve resumo às “agressões” vividas pela Polónia durante a Segunda Guerra Mundial, visto que foi dos países mais fustigados desse período?

A Polónia foi completamente invadida e devastada durante a Guerra. Foi um país esquecido, este episódio de violações com freiras aconteceu em mais do que uma região na Polónia, muitas delas sucederam durante as invasões alemãs, e aí, muitas foram mortas. Foram ocorrências que muita da nova geração polaca não acreditava que tivesse acontecido, e alarmantemente não há muito tempo. Este tipo de situações ainda hoje acontece, graças ao fanatismo que se vive em muitos países, muitos deles vivendo as suas próprias guerras. As violações são ainda consideradas uma arma de guerra muito usada nestes mesmos países.

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"Les Innocentes" (2016)

Ou seja, realizou esta história a pensar na actualidade?

De que maneira podemos comportar, falar, se acreditamos em Deus ou não. Como se pode fazer uma ação comuna numa situação de “bullying” como esta? Quando fui ao Vaticano, mostrar o filme, uma pessoa muito próxima do Papa dirigiu-me considerando que este era um filme aterrador para a Igreja. Ver este tipo de situações, que aconteceram, no ecrã e ter o conhecimento de que este tipo de violência encontra-se presente nos nossos dias. Mais de milhares de monges e freiras estavam em choque, não só porque o filme fala deles, obviamente, mas por esta ocorrência ter marcado espaço na Polónia e ainda hoje existir em diferentes regiões. Eles estavam a chorar no final do visionamento.

Mas apesar disso, este é um filme que de certa forma rebela contra as estruturas hierárquicas religiosas.

Foi a transgressão de uma Ordem que permitiu a ajuda neste filme, sim. Num convento como aquele, não se poderia fazer algo sem primeiro consultar a Madre Superior. Felizmente, esta freira sob esta arriscada decisão vai mudar o destino das outras devotas através de um acto de desobediência. “Les Innocentes” é também um filme sobre a transgressão positiva, ao viver ou deparar com situações como esta, deve-se sobretudo desobedecer, e agir da forma humanamente mais correta.

Tendo em conta que a Festa do Cinema Francês dedicou-lhe este ano uma retrospectiva da sua carreira, tal evento não a faz pensar sobre a sua obra e vida profissional?

Sinceramente, não penso nada em relação a retrospectivas. Neste momento, só me interessa o meu novo filme. Até porque, estava a terminar há uma semana atrás o meu mais recente filme, o qual estava a rodar aqui, em Portugal. Por isso, não tenho a tendência de pensar muito na minha carreira. Também tive uma retrospectiva da minha obra no Vietname, o que foi estranho para mim, porque na altura era a única mulher realizadora naquele país. Agora, uma retrospectiva em Portugal … é engraçado, mas não sei o que quer dizer!

Trabalho com a fragilidade, apesar da minha experiência, não trabalho pelo seguro. Procuro constantemente novas histórias, novos temas com que possa transportá-los para o grande ecrã. Muitos vem ter comigo e confrontam-me “mas tu já tens mais de 15 filmes e em tão pouco tempo“. Para fazer um filme, como deve calcular, ocupa muito tempo. Por isso, para mim, se o significado destas retrospectivas é dizerem-me que tenho que pensar, ou repensar, na minha carreira, simplesmente não acredito. Eu não funciono assim, nem é isso que sinto.

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Anne Fontaine na rodagem de "les Innocentes" (2016)

Começou a sua carreira como atriz, mas afinal de onde surgiu essa paixão de “passar” para o outro lado da câmara? Ser a realizadora que é hoje?

Não fui uma boa atriz, por isso não fiquei muito tempo nas atuações [risos]. Julgo que é a experiência de viver através da mente de outra pessoa, da face de outra pessoa, sentimentos que não podemos expressar nós próprios. É aproveitar a nossa imaginação, mais do que na vida real, que por vezes não é tão intensa assim. A realização é como tentar capturar e trabalhar a alma humana, o mistério dos Homens, o que escondem, o que está por detrás. É algo interessante e antropológico também, trabalhar com as complexidades humanas no grande ecrã. Estas mesmas não “vivem” num papel, por isso cabe a nós, realizadores, dar-lhes vida. São estes os motivos que me fazem ligar a esta, o qual não considero um mero trabalho, mas sim, maneira de viver.

A sua carreira é variada em filmes e géneros. Como é que escolhe o próximo género a trabalhar?

Sou instintiva, eu faço um filme contra o meu anterior, ou seja, passo para um verdadeiramente negro e depois vou trabalhar num filme mais “light“. Obviamente, que escolho cuidadosamente os meus filmes, tento comprometer-me a uma ambiguidade sexual de pessoas que estão perante situações ou sentimentos que não conseguem controlar. O que gosto mesmo é de nunca fazer o mesmo filme ou estilo que já tivesse experimentado. Gosto de descobrir diferentes formas de como fazer um filme. Quando vemos o “Coco Chanel” ou “Adore”, apercebemos de interligações entre as obras, estão todos conectados, principalmente na maneira como eu trato as personagens. Mas claro, “Les Innocentes” é uma obra bastante distante de “Adore”, por exemplo, mas são todas histórias acerca de mulheres.

Em relação a esse novo filme que terminou de rodar em Portugal. O que pode dizer sobre ele?

O meu novo filme intitula-se de “Marvin”, uma semi-biografia que acompanhará um pequeno rapaz dos seus 12 aos 24, oriunda de uma família xenófoba e racista, que reinventa a sua vida de forma radical. A história deste rapaz, uma personagem moderna, termina em Portugal [risos].