Blanche Gardin em "Tout le monde aime Jeanne" (2022)
Jeanne (Blanche Gardin), mulher, nos seus 40 anos, sem relação e ambientalista de coração, vê o seu projeto de uma vida, literalmente, a afundar-se no alto mar. Embarcada numa angústia, dúvida e constante medo alicerçado ao fracasso aí gerado, tenta lidar com os “fantasmas do passado” no momento em que parte de Paris para Lisboa, para um antigo apartamento da sua falecida mãe, com propósito de vendê-lo. Aí, deparará com uma cidade em mudança, resiliente e povoada das mais variadas “criaturas”, entre eles Jean (Laurent Lafitte), um francês radicado em Portugal, um autêntico “fura-vidas” cujo seu quotidiano entrará em choque com a de Jeanne, suscitando os mais inesperados sentimentos.
É através do ensaio cómico-trágico que Céline Devaux estreia nas longa-metragens de “ação real”, um filme sobre encontros caóticos e recriações de afetos, mas acima disso um retrato sincero sobre a depressão, melancolia e a ansiedade, aqui, representada sob a forma de uma palrante criatura interior. “Tout le monde aime Jeanne” (“Toda a Gente Gosta de Jeanne”), uma produção luso-francesa de Luís Urbano e Sylvie Pialat, estreou nos nossos cinemas após uma digressão iniciada na Semana da Crítica em Cannes, Curtas Vila do Conde e Festa do Cinema Francês, do qual teve as honras de o abrir.
Céline Devaux falou com o Cinematograficamente Falando … sobre Lisboa e as suas transformações, uma sociedade que não perdoa fracassos e ansiedade, esta última sublinhada para que ninguém interrompe, abruptamente, a conversa.
Com “Toda a Gente Gosta de Jeanne”, não se trata só da passagem da curta para a longa-metragem, mas como também da animação para o “live action”, em que momento sentiu esse impulso de mudança de registo?
Tudo começou com uma curta intitulada de “You Will Be Fine” (“Gros chagrin”, 2017), onde executei uma mistura de “medias” no qual fosse possível contar uma história através dessas diferenças. Ou seja, tentei com isto provar que é possível narrar qualquer história com qualquer imagem, basta apenas ter uma boa escrita por detrás do conceito.
E com este filme, essa necessidade de misturar “medias”, como chama, é também ela uma forma de experimento narrativo e de transição dos diferentes estados da personagem Jeanne? Não falo apenas da alternância entre a realidade [actores] e consciência [animação], como também dos footages em modo de reportagem inseridos nos ecrãs do filme, que apelam ao estado emocional da protagonista.
Sim, podemos contar qualquer história através desse alicerçado de imagens. Jeanne olha tristemente para o ecrã do seu computador. Só este gesto poderia servir para que nós pudéssemos intercalar com qualquer outra imagem para que os sentimentos mudassem ligeiramente. Neste caso, a mudança não era pretendida, até porque poderia colocar imagens felizes naqueles ecrãs e a Jeanne sempre soaria triste. É um exercício de percepção, mas sobretudo a de conectar sentimentos com imagens ….
Céline Devaux
Como o “efeito kuleshov” da Escola Soviética?
Sim, isso mesmo.
É certo que “Toda a Gente Gosta de Jeanne” é uma comédia dramática que tem como pano de fundo uma mulher a lidar com a sua própria depressão e não só … encontro por estas bandas um retrato sobre a ansiedade e como ela se manifesta. Sem querer entrar no foro pessoal, e tendo em conta o que o filme nos apresenta, diria que a Céline conhece verdadeiramente a ansiedade?
A temática deste filme é como navegar entre o que sentimos e com o que acontece. Vejamos, é suposto nós "funcionarmos" enquanto seres humanos. Sermos obrigados a dizer “olá” ou a dizer “adeus” nos devidos momentos, andar ou falar com pessoas. É o que nos esperam de nós, é o sublinhado “normal”, é como devemos comportamos, mas dentro da tua cabeça está uma tempestade de emoções que, por vezes, te torna inoperacional. E é isso do que se trata, de dor, de sucesso e fracasso, simplesmente “sentir mal" por nenhuma razão. Essa é a grande aventura de ser um humano e é a única ‘coisa’ que me interessa escrever neste momento.
Conheço imensas pessoas que passaram pela depressão e conheço pessoalmente a ansiedade, e estou determinada em encontrar os meios e as ferramentas que me atribuem a capacidade de falar sobre isto, porque é vergonhoso o facto de muitos demorarem tanto tempo a admitir que “não estão bem”. Não existe solução para a ansiedade, quando alguém tenta o abordar, a conversa tem tendência a acabar abruptamente.
Normalmente, chega-nos com “não fiques triste”, “tudo vai ficar bem”, “não stresses” … não entendem que o melhor que podem fazer é simplesmente ouvir.
Presumi que conhecesse a ansiedade, porque descreve (ou não-descreve, visto não ser fácil descrição) o sentimento de pânico vivido por quem tem. A cena da praia, por exemplo, reflete bem essa tentativa de reprodução.
Já [Martin] Heidegger descrevia que a “ansiedade é ter medo sem nenhuma razão aparente”. Não existe objetivo para esse medo, mas as sensações trazidas são aterrorizantes. Ele também o descreve como uma mudança de realidade, como se o espaço físico e o espaço emocional alterassem, como um desaparecimento do realismo.
Voltando à animação, o porquê de atribuir à consciência atormentada de Jeanne uma … bem, vou usar a palavra “criatura” para o descrever.
Se o pretendido era poder falar sobre embaraço e ansiedade, necessitaria de palavras, ou seja uma conversa. Quando somos reféns desses sentimentos, o nosso cérebro tem tendência a enlouquecer, por isso não seriam palavras, como diria, sedutoras, apenas uma voz envolta da sua mente. Para tal, a solução era colocar uma voz-off que representasse essa consciência em constante alarme, mas pensei que seria mais generosa com Jeanne se atribuísse-lhe um corpo a essa voz, e assim nasceu esta “criatura”, um fantasma até. Uma das razões para ter chegado a esta entidade é que quando estamos neste estado, a voz que ouvimos mentalmente não é de toda a nossa voz, mas sons de outras, possivelmente alicerçados a memórias.
Ao tornar esta presença “física”, desviei-me da tendência de ser “Jeanne a falar com Jeanne” e passaria a “Jeanne a ser assediada por todas as vozes ao seu redor”.
Laurent Lafitte e Blanche Gardin em "Tout le monde aime Jeanne" (2022)
Não sei se foi algo consciente, mas esta “criatura” tem traços que remetem a Charles M. Schulz e o seu “Peanuts”.
Sim, porque era suposto ser bastante simples, isso também, porque nunca desenhei personagens em animação. Esta “criatura” de Jeanne seria a minha primeira vez. Como tal, o concebi como um pequeno “cartoon”.
E já agora, porquê Lisboa?
Porque sempre foi um lugar de passagem para mim. Aqui mostrei os meus filmes. Aqui passei vários dos meus dias, e também fiz vários amigos, principalmente. Estive aqui na altura da crise, o qual passamos para aquela ideia repentina em que pessoas com menos possibilidades poderiam viajar, ter um pequeno apartamento para desfrutar um simples fim-de-semana fora em qualquer cidade na Europa. E estas boas notícias convergiram numa catastrófica especulação imobiliária, apropriação e destruição de cidades turísticas, como a de Lisboa.
O facto de ter escolhido a cidade para o filme, é porque ela representa uma certa essência de uma Europa “castigadora”, mais de uns países do que outros. Então, para esta geração que começou a viajar em easy jets e outras companhias low-cost, senti-me no dever de escrever sobre isso. Uma escrita através dessas observações.
E com isso também quis abordar o fenómeno da gentrificação [uma espécie de segregação urbana, que "expulsa" de regiões tradicionais os seus moradores]?
Na verdade, está mais além da gentrificação. Porque a gentrificação responde ainda a uma certa coexistência dessas pessoas para com estas cidades, neste caso não existe qualquer indício de coexistência porque essas pessoas são “obrigadas” a sair.
Recordo num dia em que chego a Lisboa para um trabalho, e deparo-me com um intenso som oriundo das rodas de malas e um achocalhar de chaves de um proprietário com mais de dezenas de chaves no seu porta-chaves. Eram airbnbs, imensos, em pleno Chiado. A cidade se transformou nisso, numa outra ‘coisa’, num recreio para turistas. É de doidos, desta forma desenfreada como os espaços são vendidos para estes propósitos. Politicamente, é uma situação complexa.
Gostaria que me falasse do final, visto tratar-se de uma obra sobre ansiedade que evitou, completamente, a epifania ou fechar a narrativa, dando um digno “The End” à personagem. De certa forma, tentou dizer-nos que - a vida continua?
Queria explorar a ideia de que podemos ser felizes sem a necessidade de fazer algo, ou seja, sem querer ou preencher um propósito. Existe um fundamento instalado nesta sociedade de que necessitamos produzir ou sermos bem-sucedidos em algo para sermos realmente felizes. Acordamos e deitamos, e entre esses acontecimentos esperamos produzir o que quer que seja, somos viciados na produção … aliás, em qualquer sociedade capitalista, como esta em que nós vivemos, qualquer atividade é valiosa. Por exemplo, se um banqueiro reformar tem que automaticamente fazer cerâmica, ou dedicar-se à agricultura biológica … a ideia trazida é que temos que fazer algo, fazer, fazer e fazer. Isso é importante, segundo esta mesma sociedade, e Jeanne faz algo, porém, fracassa, e depois conhece alguém que não faz rigorosamente nada, um perfeito niilista, alguém que se encontra satisfeito, por apenas estar vivo. É um pensamento de “loucos” para esta sociedade que nos “ordena” a produzir.
Pessoalmente, não conheço ninguém assim, mas penso que devemos refletir sobre esse modo de vida [risos].
A "criatura" de "Tout le monde aime Jeanne" (2022)
Pertinente, está a insinuar, ou simplesmente a exaltar o lado capitalista nesta onda ambientalista?
Penso que está interligado. Vejamos, a Jeanne torna-se uma jovem ambientalista, e ela é sincera com esse ato, porém, vivemos numa sociedade em que esse aspecto é ultra-valorizado. E como tal recebe o estatuto de “Mulher do Ano”! É de doidos [risos]. Ela não pode ser a “Mulher do Ano”, é apenas uma mulher que faz algo … útil.
Este filme é muito acerca da percepção, de como vemos as pessoas e de como elas realmente são. Por exemplo, quando Jeanne vê pela primeira vez Jean no aeroporto, a sua primeira impressão é que ele é verdadeiramente irritante. Ninguém deseja falar com aquele homem, é um pesadelo [risos]. Mas revela-se em alguém generoso, compreensivo, bastou apenas conhecê-lo. Como a Jeanne, que fez este ativismo, ou trabalho ecológico, e o que lhe interessou realmente foi o que as pessoas pensavam dela, e isso, é uma forma capitalista de encarar as ‘coisas’. Porque se ela fizesse este ambientalismo secretamente ou anonimamente, não seria uma aventura capitalista.
Vivemos numa sociedade que não perdoa falhas …
Verdadeiramente. Ela foi elevada a ‘santa’, por isso, quando ela falhou, não falhou somente para ela, falhou para todos, para o Planeta. Isso é um grande Fracasso.
Fale-me do elenco, como chegou a ele?
Escrevi a personagem da Jeanne a pensar nela [Blanche Gardin], depois convidamos Laurent [Lafitte] para ler o guião e felizmente embarcou nesta aventura. Quanto a Nuno Lopes, já o conhecia, e tive a felicidade de lhe oferecer este papel. Um pouco diferente do que lhe é normalmente oferecido, um papel mais pateta e humorado, ao invés de sexy fidalgo. Depois fui precisa no rol secundário, e felizarda também. Sinto que eles foram o “sumo” do filme, ou seja, mesmo por dois minutos conseguiram preencher ricamente a minha visão.
E quanto a novos projetos?
Eu levo a questão dos novos projetos muito secretamente [risos], mas já estou a trabalhar em algo.