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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Catherine Corsini: "A França é um país com uma tradição revolucionária"

Hugo Gomes, 04.10.21

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Apresentado na secção Competição do último Festival de Cannes e com as honras de abertura na 17ª edição do FEST: Novos Realizadores Novo Cinema em Espinho, "La Fracture" é um ensaio político que tem no humor a sua maior arma de arremesso, ainda que seja a compaixão humana que se destaca.

Catherine Corsini captou o retrato de uma sociedade fraturada num específico momento e num ainda mais específico local: no calor das violentas manifestações dos “coletes amarelos” em Paris e num hospital sob “fogo”, onde os enfermeiros e médicos tentam trabalhar durante um tremendo turbilhão social. Uma sala de espera das Urgências será o lugar de uma guerra entre classes e visões opostas que destacará heróis, mártires e vítimas.

Ainda sem estreia comercial confirmada em Portugal, conversei com a realizadora após a primeira exibição do filme na Riviera Francesa em julho, quando se mostrava indignada pela forma como estava a ser recebido por diversas classes, incluindo a política, após as reações precipitadas à partilha de frases sem contexto nas redes sociais, nomeadamente as de um encontro imaginário do Presidente Emmanuel Macron por um “colete amarelo”.

“La Fracture” é uma obra que retrata tantos problemas correntes da nossa sociedade de uma perspetiva quase tragicómica. Como conseguiu trabalhar esses diferentes elementos?

Não costumo contar histórias de pessoas que não venham do meu ponto de vista. Nesse aspeto, começo “Le Fracture'' com as personagens de Valeria Bruni Tedeschi e de Marina Foïs, porque elas aproximam-se do meu mundo. Nos meus dois filmes anteriores ["La belle saison", 2015; "Un amour impossible", 2018], abordei tempos diferentes, sendo que, e seguindo os moldes de uma obra de Nanni Moretti que aprecio muito – "Palombella Rossa" –, desejava usar o humor para abordar o compromisso e relação política. Recordo que fiz uma comédia em 1999 denominada “La nouvelle Ève” que por si tinha um vínculo político, o que também me fez querer voltar e persistir nessa forma. E as personagens foram extraídas da minha própria vida, assim como a ideia deste filme. Tudo aconteceu quando eu e a minha companheira tivemos que passar uma noite nas Urgências. Apesar dos hospitais serem locais mais do que vistos no cinema, permanecem um espaço rico em relações e encontros com pessoas de classes e universos diferentes. E o curioso é que todos são tratados da mesma maneira. Observei todo este biótopo, os auxiliares, médicos e enfermeiros, e imaginei como isso poderia originar um conjunto de enredos.

No fundo, isto é um filme sobre a fragilidade do Sistema Nacional de Saúde francês, já num tempo anterior à pandemia. Como é atualmente a situação?

A situação é terrível. O Sistema Nacional de Saúde já se encontrava mal antes da pandemia e depois dela ficou totalmente danificada. Basta só ver o caso do primeiro confinamento, onde assistimos e ouvimos pessoas aplaudir e encorajar os profissionais de saúde todas as noites, o que não aconteceu no segundo. Até mesmo o bónus atribuído pelo governo só foi dado ao departamento de reanimação, esquecendo por completo os outros.

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Grande parte da ação decorre num só espaço. Poderemos encarar estas Urgências como uma representação de uma sociedade em colapso?

Quando começamos a fazer um filme, tentamos olhar para as personagens, concebendo um cenário e modificando alguns procedimentos. Foi o que fiz com o hospital, criei nele uma tensão, um enredo, um espaço circundante de pessoas... sim, poderemos encarar isso como a representação de uma sociedade que atinge um limite.

Por vezes, para discutir questões políticas num filme é preciso manter uma certa distância. Em “La Fracture”, pelo contrário, sentimos a urgência do agora, quase como uma intervenção.

Mantive essa distância nos meus dois filmes anteriores, mas aqui tive o sentimento de querer “saltar para o meio do fogo” e isso fez com que várias pessoas não acreditassem no meu guião. O que me valeu foi a minha produtora [Elisabeth Perez] me ter apoiado desde a sua génese e ter-me garantido tudo o que necessitava para a sua produção. O que fiz foi usar a realidade à minha volta, tentar com isso alcançar um certo discurso proveniente dessa mesma realidade.

Tendo em conta o que se está a passar [a viralidade de frases sem contexto do filme divulgadas nas redes sociais], acredita que hoje em dia, num mundo cada vez mais polarizado e extremista, a comédia em cenários politizados é como um campo minado para ser trabalhado?

Sim, é verdadeiramente um campo minado, nisso tem razão. Tornou-se um trilho arriscado essa abordagem, plenamente criticado por tudo e por todos, incluindo os coletes amarelos. Mas tomei esses riscos com consideração e, pelo menos, consegui agradar aos profissionais de saúde com esta minha homenagem. Por um lado, não há que ter medo, porque se receássemos as críticas não faríamos nada.

Em relação ao movimento dos "coletes amarelos", como é que os encara e de que forma os representou no filme?

Li todos os livros possíveis, encontrei-me com imensos "coletes amarelos" e até mesmo usei algumas das suas palavras no filme... obviamente com a respetiva e devida autorização. É um movimento estranho porque não existe um líder concreto e está constantemente a desenvolver-se, mas senti-me, contudo, sensibilizada com as suas vidas. França é um país com uma tradição revolucionária, temos a vontade de rebelar-nos contra o que consideramos injusto na sociedade. Infelizmente, ninguém quer ouvir os “coletes amarelos” e os que estão dispostos a isso são os movimentos de extrema-direita e isso é uma pena. Muitos, que estão atualmente “enfiados” nos escritórios, poderiam ter a decência de ouvir os que eles têm para dizer e defender.

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Quanto aos profissionais de saúde, mais especificamente os enfermeiros, abordou-os com um distinto heroísmo em todo aquele caos. 

Há dois heróis que considero neste filme: o da personagem do colete amarelo - o sacrifício – porque o seu “ganha-pão”, o seu corpo, é completamente danificado no final; a enfermeira Kim, que se assume como a última imagem de “La Fracture”. Nesse sentido, queria homenagear os profissionais de saúde, os seus sacrifícios e a tremenda força conseguida perante os escassos meios.

Foi por isso que escolheu uma não-atriz para o papel de Kim?

Não foi bem uma escolha, porque inicialmente pensava numa atriz para o papel de Kim. Só que, durante os dois dias de trabalho de campo no hospital, fiquei a conhecer Aïssatou Diallo Sagna e percebi quão a grande mais-valia ela seria para o enredo. Ela trouxe uma carga dramática necessária e, vendo hoje, é indispensável ao filme.

"O Cinema é sobre a Humanidade." Uma conversa com Asghar Farhadi

Hugo Gomes, 27.06.18

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A esta altura todos sabem quem é Asghar Farhadi, o cineasta iraniano mais celebrado da atualidade, que encontrou em Espanha o lugar perfeito para recitar o seu cinema de relações e moralidades. Com Javier Bardem e Penélope Cruz como cabeças de cartaz, “Todos lo Saben” corresponde a um segredo que vai abalar toda uma família que ao mesmo tempo tenta lidar com uma situação de rapto.

O cruzamento de drama e thriller, ao jeito do realizador, teve as honras de abrir a última edição do Festival de Cannes, apesar da crítica ter sido em geral fria. A receção imprevista não impede o otimismo de Farhadi, que após uma passagem no FEST, na cidade de Espinho, falou sobre alguns dos temas quentes do seu cinema: política, censura, manifestos e Netflix, ingredientes para mais uma trama farhadiana.

Filmou “Todos Lo Saben” na Espanha, porém, o que deparamos é que é uma história que poderia se passar no Irão.

Se eu quisesse filmar esta história no Irão, seria ligeiramente diferente. Mas sim, poderia acontecer aí. Contudo, este filme foi um desafio no sentido em que tive que entender e consciencializar uma cultura que não era a minha, de forma ao enredo ser o mais culturalmente coerente possível.

Mas foi difícil conceber um filme num país que não é o seu? Como lidou com a divergência cultural?

No início foi difícil, porque toda esta etapa fazia lembrar uma piscina, para a qual saltava e tentava atingir o fundo. Quando comecei, foi bastante árduo, porque obviamente não é a tua língua, nem sequer a tua cultura ou quotidiano que se encontravam à tua frente. Tive que encarar isso, por isso trabalhava constantemente com a minha equipa e todas as vezes  lembro-me de exclamar: “é um desafio, mas não é impossível”. A língua e a cultura não são problemas, são desafios.

O que estava mais hesitante era acerca do resultado disto. Como um iraniano a fazer um filme ocidental é um afastamento completo de tudo aquilo que me era próprio. Durante a estreia de Cannes muitos me disseram que o filme estava perfeitamente ciente do panorama espanhol. O grande senão para estas pessoas era mesmo o meu nome. Eles acreditam que para fazer filmes espanhóis é preciso sê-lo na realidade. Porém, uma coisa é certa, quando se vai para outro país e se concebe um filme lá, essa “realidade” não será 100% fiel, porque esta não me é próxima. O que invocamos são as similaridades destas mesmas realidades e exprimimos isso na ficção.

Ou seja, existem semelhanças entre a cultura espanhola e a iraniana?

Quando imaginamos outras culturas sem ser a nossa, essa idealização é realmente muito diferente do que realmente acontece. Só quando estamos em contacto com estas culturas é que percebemos as diferenças, sobretudo a nível emocional.

Porém, o amor tem sempre a mesma face, conforme seja a cultura a que pertence, assim como o ódio. Mas voltando ao amor, e tendo em conta as diferentes vertentes que estão presentes na relação de um casal ou entre uma mãe e um filho, mesmo diferentes eles têm a mesma correspondência em lugares diferentes. Mas é na expressão e na exposição desses sentimentos que encontramos as diferenças culturais.

No meu país, por exemplo, pais e filhos constantemente debatem-se antes de mostrar qualquer sentimento. Possivelmente, no Japão nem sequer tocam-se.

A maneira de se expressarem é diferente, por isso tentei focar na maneira de como se relacionam ao invés do por que se relacionam.

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"Todos lo Saben" (2018)

Afirmou na masterclass do FEST de que o Cinema iraniano é muito vasto, mas nós [ocidentais] conhecemos uma pequena porção. O que chega a nós é sobretudo um cinema político, porém, o seu cinema está fora desse território, até porque você é um cineasta ligado à moralidade ao invés da política.

Penso que se o seu objeto fílmico é sobre as pessoas e as sociedades a que correspondem – por detrás do aspecto político – até temos que abordar a moralidade. Não quero ser um cineasta político, porque não dialogo diretamente com a política, até porque não é essa a minha função enquanto realizador. Já sobre a moralidade, isso sim, é do meu respeito.

Procuro algo que me diga que isto é certo ou é moralmente errado. Não sabemos como o calcular, por isso é que os meus filmes são acerca de dilemas. Como o caso de “o filho tem razão”, mas questionamos o porquê dessa razão e assim passamos ao campo moral das coisas.

Mas eu não embarco nos filmes como incentivo para criar situações morais, apenas descrevo-os e deixo o espectador ir em direção ao território-moral.

Mas o Cinema pode ser político?

Sim, no bom e no mau sentido. Por exemplo, existem muitos filmes vindos dos EUA que servem como armas. Eles destroem culturas e outras sociedades. Isso não são verdadeiros filmes, são armas de destruição. Não chamo a isso Cinema, mas sim de negócio.

O Cinema povoa imensos territórios; culturais, morais e psicológicos. No caso do espectador se interessar pela política, então é verdade que verá todos esses filmes nesse prisma.

Quando fazia o "Todos lo Saben" em Espanha, um dos produtores questionou-me se pesquisei a situação política do país e eu respondi que li alguns livros sobre Franco e afins. Ele referiu que o filme que fiz seria considerado um filme político sob a perspetiva espanhola. Respondi que não, apenas descrevi o quotidiano daquelas personagens. Ele, como pensou politicamente, encontrou isso naquela história.

É por isso que se recusa a fazer manifestos com os seus filmes?

Sim, é uma das razões. Se eu fizesse um filme e produzisse um manifesto para o acompanhar, dentro de 15, 20 anos, essa mensagem perder-se-ia por outras gerações e  os países não obteriam esse mesmo manifesto. Os filmes são sobretudo obras do foro emocional, eles fazem-nos felizes ou fazem-nos tristes, e por vezes encontram o seu lugar no meio. Se um filme não causar felicidade ou tristeza, pouco tempo depois morre. Mas se esse sentimento, feliz ou não, nos leva a pensar na temática da obra, então o filme viverá para toda a eternidade, e sobretudo o espectador encontrará a mensagem do filme. Nunca o encontraremos através dos manifestos. O Cinema é sobre a Humanidade.

Como afirma, a política é sobretudo perspetiva. Relembro que na altura de “A Separation”, vários grupos afirmavam que era um filme que incitava a imigração no Irão.

Nem todas as pessoas do meu país, mas aquelas que têm relações com os órgãos governamentais ou que se identificam com tais doutrinas é que encontram e procuram os filmes algum tipo de mensagem.

Mas concorda que existe uma espécie de pressão para que cineastas do Médio Oriente façam cinema político?

Sim. Talvez isso não aconteça com o vosso país ou até mesmo Espanha, mas em França, nos países da Escandinávia, nos Estados Unidos, eles veem o realizador do Médio Oriente como alguém que está passar informação à audiência do que realmente acontece nesses países. Mas tal não é o nosso trabalho. Muitos não conseguem encarar que muitos realizadores desses locais apenas querem fazer filmes, pois realmente adoram Cinema, não para denunciar ou informar. Se querem isso, basta ir ao Google. Por vezes, isso torna-se mesmo incómodo.

Obviamente que com isto não estou a insinuar que não fazemos cinema político, o que acontece é que muitas vezes quem vê os filmes não possui o conhecimento do que se passa naquele país e espera que nós confirmemos o que os Media constantemente transmitem.

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"Le Passé" (2013)

E foi por isso que decidiu fazer este filme, para não ter relações com o Irão? Visto que o “Le Passé” mantinha essas ligações.

Sim, esse foi um dos motivos pelo qual quis fazer “Todos Lo Saben” na Espanha, foi para ver a reação do público, visto estar a fazer um filme sem ligação alguma ao Irão. É costume fazerem-me sempre imensas questões políticas sobre o Irão. É aborrecido, porque eu quero falar de cinema e tenho de abordar política. Mas felizmente as questões sobre cinema já estão a ser feitas, graças a este filme espanhol.

Mas muitos festivais têm utilizado essa "política" nos filmes iraniano de forma a promoverem-se. Relembro Jafar Panahi, cineasta que está proibido de fazer filmes mas que ao mesmo tempo os faz, e possivelmente realiza mais que muitos realizadores em liberdade. A verdade é que quando um dos seus filmes é selecionado, surge toda uma promoção ao filme – “o realizador que resiste” – e do festival.

Nem todos os festivais, mas sim, alguns fazem isso. O que importa para estes eventos nem é a questão política dos filmes, é o facto de terem em sua posse “hot news” [notícias quentes], e com isso a atenção dos espectadores e da imprensa.

Jafar é meu amigo e ele tenta fazer amigos, apesar das proibições, porque também ama o Cinema.  

E quanto à censura? Alguma vez sofreu com isso no seu país?

Referes a cortes ou impedimentos?

Sim.

Desse jeito não. E atenção, eu não os conheço [comité de censura]. Mas quem quiser fazer filmes, tem de enviar algumas páginas do guião ao comité.

A parte boa é que este comité, para além de ser integrado por pessoas do Governo, é também constituído por pessoas que trabalham na indústria de cinema, como realizadores,  os quais tentam facilitar a nossa vida. No caso do cinema comercial, eles não se preocupam, mas sim com alguns poucos filmes vindos de realizadores que querem realmente passar uma mensagem.

Quando nasceste e cresceste lá, sempre acabas por arranjar uma maneira de contornar a censura. Não digo com isto, que esta atitude nos ajuda.

Mas essa atitude alguma vez afetou um filme seu?

Sim, porque acabamos por criar dentro de nós uma autocensura, mesmo que não me aperceba disso.

Os seus filmes remetem sobretudo a mal-entendidos, tal poderá ser encarado como uma metáfora ao estado do Mundo?

Sim, é um grande problema atualmente, não só no meu país mas em todo o Mundo. Hoje, por mais tecnologia que temos a nosso dispor, e refiro obviamente o papel das redes sociais, nós não nos conseguimos entender uns aos outros. Falamos muito e até demasiado, mas não dialogamos. Não nos entendemos.

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Asghar Farhadi em plena masterclass no FEST 2018 / Foto.: Cecilia Melo

Ou seja, é um problema de comunicação?

Sim, ou porque não queremos, ou é a nossa língua que não nos permite. Por vezes queremos nos expressar emocionalmente, mas não conseguimos descrevê-lo por palavras. Hoje em dia, o nosso Mundo tem esse grande problema: não comunicamos, seja entre culturas, pessoas ou até mesmo casais.

Constantemente menciona Bergman e, deixe-me aqui fazer um reparo, de certa maneira você tem algo em comum com o cineasta sueco. Ambos oscilam entre peças de teatro e Cinema. Na masterclass, Farhadi referiu que o Teatro aproxima-se cada vez mais do Cinema e assim perde a sua identidade. A minha questão é: como faz para evitar esse contágio?

Quando trabalhava em peças, sabia que havia um problema comigo. Amo o Cinema e quando escrevia peças, escrevia como fossem guiões cinematográficos. E isso acontece com imensas peças de teatro.

No meu caso, esse problema fez com que não conseguisse mais fazer teatro. Não consigo pensar teatralmente, mas sim cinematograficamente.

E o oposto? Será que resulta? Pergunto porque no seu “The Salesman”, o Farhadi trabalhava com ambos os territórios.

Sim, funciona. Até porque o Teatro e o Cinema têm uma conexão. Em “The Salesman” abordei a peça de Arthur Miller de forma a demonstrar essa ligação entre os dois territórios. Diria que é uma ligação amigável, mas nos meus filmes há acima de tudo uma separação, porque aquilo que evidenciamos no ecrã, passando pelos movimentos dos atores, é Cinema. Tento injetar vida neles, separá-los do Teatro.

Voltando à masterclass, falou que se pelo menos dois espectadores saírem de uma peça, esta é um fracasso. O mesmo acontece num filme. Por isso, para si, o Cinema é sobretudo uma questão de consenso?

O que disse foi que o primeiro objetivo de uma peça ou de um filme é colocar o espectador sentado no seu lugar a assisti-lo até ao fim. Se o espectador se desinteressa ou sai do respectivo espetáculo, nós perdemos.

Mas existem duas maneiras diferentes. No teatro, para “agarrar” o espectador não é preciso grandes ênfases dramáticas ou acelerar o ritmo. Porquê? Porque as pessoas que vão ao teatro são pacientes, têm mais tempo nas mãos. Eles vieram ao teatro para aprender. Já no cinema, a maioria dos espectadores querem entretenimento e não aprender. São dois trabalhos distintos.

Quando era mais novo não pensava nisto, mas hoje em dia reflito o quanto posso fazer no Cinema para manter o espectador sentado. A TV e as suas séries alteraram o gosto do espectador, eles querem algo mais frenético no cinema e isso tem-se tornado num obstáculo. Reparamos isso no tipo de produção atual. Se metermos estes espectadores a assistirem a filmes do passado, de um cineasta nipónico, ou do Ford, ou Truffaut, eles questionam a cadência rítmica. Não é acelerado o suficiente, e isso tem como culpado o universo das séries e o modo de vê-las.

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"The Salesman" (2016)

E o que pensa deste boom televisivo que estamos a testemunhar?

Sei que a Netflix e a Amazon estão a produzir cada vez mais conteúdos televisivos, e por vezes gosto de ver, mas sei que isto está a matar o Cinema, pelo menos a nossa forma de ver Cinema. Porque quando vemos uma série, não temos o tempo necessário para refletir sobre ela, sobre as personagens e situações. Em Cinema, temos acesso a esse espaço e tempo. Até porque quando o filme termina, o espectador leva-o com ele.

E em relação à Netflix? Alguma vez lhe propuseram algum projeto?

Sim, fizeram em Espanha. Queriam produzir o “Todos Lo Saben”, mas eu respondi que não. Isto é Cinema, se alguma vez quiser fazer uma série ou televisão recorro a eles. A questão é que pretendia que o meu filme fosse visto em grande ecrã como é habitual no Cinema. No caso da Netflix não teria problemas de orçamento, mas confiava nos meus produtores porque tinha a visão de ver o meu trabalho numa sala de cinema e não num pequeno monitor.

Tenho conhecimento que ainda existem muitos cineastas que resistem a isto.

Devido a “Todos Lo Saben”, viveu durante algum tempo em Espanha, que é o nosso país vizinho. Alguma vez veio a Portugal?

Estive uns dias na cidade do Porto num festival, penso que foi há 10 anos, mas nós iranianos estamos familiarizados com este país até por causa de Carlos Queiroz [risos] Ele é quase um iraniano, ele é inteligente e respeitoso com todos e conhece muito bem o país … e também o Cinema. Quando recebi o prémio nos Óscares, ele enviou-me uma mensagem nas redes sociais a dar-me os parabéns. E claro, o Cristiano Ronaldo também é muito famoso. [risos]

"Blue My Mind": a pequena "sereia"

Hugo Gomes, 20.06.18

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Com os seus 15 anos feitos, Mia terá que lidar com as transformações do seu corpo perante a primeira vinda do período. Diríamos nós que é o “prato-de-cada-dia” de qualquer adolescente e que este “Blue My Mind”, a primeira longa-metragem da suíça Lisa Brühlmann, é mais um no vasto território dos coming-of-age. Todavia, as transformações que esta rapariga de olho azul terá que lidar são bem diferentes que aquelas vividas por jovens triviais. O seu corpo está a metamorfosear. Sim, nós sabemos, mas em algo que nem ela própria consegue explicar.

Em teoria, "Blue My Mind" lida com a transformação da criança em adulto, usufruindo dos elementos fantásticos como recorrentes metáforas materializadas. Nesse aspeto, Mia tem na sua própria consciência duas mudanças: a visível (o corpo como falamos); e a invisível (a questão existencial, afetiva e sobretudo sexual). O espectador é a testemunha silenciosa dessas mesmas “anomalias”, assistindo em direto da perceção da sua personagem, partilhando um segredo para com os demais. Brühlmann encontra, sim, uma maneira inteligente de dialogar com as crises de adolescentes, sensível com o universo feminino e com as suas complexidades, que em equação somatória com as “complicações adolescentes” nos levam à porta interdita da “juventude eterna”. Mesmo que esta abordagem careça de originalidade e furtividade, esta é uma obra dotada de perversidade, onde a realizadora cria uma ligação fenomenológica para com o espectador, que reconhece cada drama (mesmo diluído no campo do body horror) como seu.

Até porque serão as jovens raparigas desta geração as sirenas dos novos tempos, inteiradas numa sociedade de estéticas e de prazeres ao virar da página, o autorreconhecimento dos seus corpos e dos seus íntimos, tudo embalado no cinzento da ambiguidade (nesse sentido, apesar das similaridades, é um filme menos onírico que "The Lure", da polaca Agnieszka Smoczynska). Juntamos a jovialidade e a anarquia da atriz Luna Wedler como Mia, revelando-se na estrutura fortalecida deste retrato de passagens de estações.

Ser convencional? Há que possuir uma fria relação acerca de tudo!

Hugo Gomes, 20.06.18

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Acreditar em narrativas aristotélicas? Para Hlynur Palmason, um agnóstico preso a um sistema autoritário de narrativa visual, a resposta é resistir como rebelde “encarapuçado”. Em “Vinterbrødre” (“Winter Brothers”), a sua primeira longa-metragem, o realizador interessa-se na história de dois irmãos que vivem e trabalham numa comunidade mineira, porém, longe do que qualquer sinopse anuncia, este não é o mero conto de fraternidades, aliás, o que testemunhamos é uma ode às marginalidades.

Essas, inteiradas em sujeitos que tentam ingressar numa rotina quotidiana e que fracassam, um pouco como o realizador que revolta-se contra a estrutura clássica do somente “contar uma história de forma percetível” para endereçá-la por vias de signos semióticos e um atentado às iminências e omnisciências do clímax. Ou seja, para qualquer descrente da estética e crente absoluto do argumento (uma das oligarquias do boom televisivo), “Vinterbrødre” encontra-se aterrado de cabeça no seu centro e cuja neutralidade do seu ato (sendo neutro o cúmulo da perversidade, já dizia Claude Chabrol) o estabelece como um bon vivant da narrativa mental e do júbilo visual que não são mais que entreténs para Palmason.

Por entre as simétricas trabalhadas em planos gerais (soa a organização cinematográficas intercaladas com a barafunda dos corpos banhados pela escuridão do subsolo (assim como o solo a adquirir o seu protagonismo nas contribuições ao olhar) que deixam o espectador incapaz de interpretar do que vê e a, por fim, violência em conjunto com um humor requintado que só os nórdicos parecem manter intacto.

Se existe algo que poderemos tirar partido disto tudo são duas sequências que aludem a natureza desta ambição, o VHS que exibe a Guerra (qual delas? Não interessa), o confronto armado que transforma-se numa contorção psicológica, o nascer do trauma a olhos vistos. E a segunda, provavelmente a mais relembrada neste episódio cinematográfico, a história dentro da história, o relato de um cão que reside no seu espaço à espera do dono que não volta mais, assim como o espectador que espera uma resolução fácil, as histórias da carochinha para leigo entender de caras.

Por um lado, há que encarar que esta incursão de misfits é mais densa do que as imagens indicam e mais superficial do que a narrativa e as suas constantes voltas nos levam. Hlynur Palmason tem a atitude, tem o paladar (uma escolha meticulosa dos atores com Elliott Crosset Hove) e a técnica necessária para o rastrearmos futuramente.

As vantagens de ser “invisível”

Hugo Gomes, 22.06.17

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A atriz e agora realizadora Tereza Nvotová aposta nos dramas profundos da adolescência para tecer uma primeira longa-metragem. O resultado é um filme sobre os mistérios da essência “teenager”, sem com isso orquestrar um retrato coletivo e de exemplaridades, visto que a singularidade reina e, com ela, nasce uma ligação bastante mórbida e incompreensível da flor-da-idade.

Filthy” leva-nos a essa atmosfera de jovens e dos seus mundos em parábolas, porém, o sentido trágico cerca a nossa protagonista, já problemática por natureza, impedindo-a de “florescer” numa sociedade reprimida pela “invisibilidade”, pela pressão de um futuro estável e pelas tentações cada mais vez mais precoces da chamada atividade sexual. Mas a nossa jovem, bem poderia ser uma qualquer, um exemplo sem rosto e nome a servir de modelo para um elo identitário ou simplesmente etário. Na verdade, há um conflito que a persegue, e uma trama que tenta encontrar um sentido por meio de uma crítica ao redor e não ao indivíduo central (os adolescentes serão sempre os menos credibilizados consoante as situações), por isso o nosso exemplo tem uma cara e, sim, um nome, chama-se Lena … e ela tem um segredo.

Nvotová consegue por alguns momentos uma sensibilidade de cortar-a-faca aos propósitos emocionais da protagonista, aos silêncios constrangedores que por vezes opta, pelo seu percurso dificultado pelo próprio didatismo. Sim, ela invoca ocasionalmente essa compaixão, esse reconhecimento, mas há ausência … a falta de ir mais longe do que nos entregar em mãos uma anorética narrativa sem transgressividade, nem a rebeldia simbiótica de um adolescente para com as convenções estabelecidas. Por outras palavras, ficamos com a sensação de “Filthy” se contentar com o modelo de realismo formal, pelas palavras não ditas e pela resolução de conflitos facilitados para agendar-se num existencialismo de “fogo-de-artifício”.

Eis um filme que vale pela tentativa, pela entrada na liga das longas-metragens, e pela ausência de ambição em entregar-nos algo único, ou personalizado. Fiquemos então com os desempenhos, pela força “invisível” da jovem Dominika Zeleníková que nos conduz a esta meia jornada.

A Mão Invisível que esmurra o proletariado

Hugo Gomes, 20.06.17

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Longe da pedagogia de um Laurent Cantet, «La Mano Invisible», de David Macian, é um espectáculo sobre o trabalho precário e da nossa submissão. Um experimento sobre a dignidade do trabalhador e do ciclo repetitivo que se tornou este dilema de "trabalhar até morrer". Um exemplar espanhol que tão bem poderia dialogar com o nosso português «A Fábrica do Nada». Dois filme politizados e longe do formalismo documental que se poderia ter suscitado.