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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Espírito animal

Hugo Gomes, 25.06.23

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O charme de "Tótem", a segunda obra de Lila Avilés ("La Camarista"), provém da sua (aparente) inércia - os preparativos para uma festa aniversário com a mesma energia de um ritual fúnebre - e no centro desse turbilhão humano, onde os estresses relacionados aos avanços dessa cerimónia se fundem com as emoções contidas (voluntariamente ocultas para não ferir susceptibilidades), reside Sol (Naíma Sentíes), uma menina de sete anos cujo pai (o motivo deste frenesim), encontra-se debilitado por uma doença cancerígena.

Desde o início do filme, deparamo-nos com a pequena protagonista em convívio com a sua progenitora (Iazua Larios), uma mulher de contagiante vitalidade (contrastando com o outro progenitor, de abraços com a morte), pressentimos um certo encobrimento, sorrisos amarelos, forçados como máscaras sociais. A celebração que parece nunca "descolar" do seu planeamento resume-se a uma interminável tortura (pessoalmente) dirigida a esta criança, mantida na ignorância do seu redor, suspeitando das suas adversas características. 

Avilés cria um filme de ambientes, de conflitos aligeirados para serem sentidos por "enfants", aliás, é nesse olhar, algo infantil e confuso, que "Tótem" presta serviço quanto à sua formalidade. Sol, "ilumina-nos", entre esconderijos (refúgios improvisados) e a vontade de ver o seu pai, erudito no seu quarto, no seu túmulo guardado pelos totens animalescos. Essas forças místicas (e bem vivas) não deixam o filme em aconchegos. O corvo marca a morte predatória, os anciãos pressentem com clareza os sinais da sua vinda, tentando contrariar o fim abrupto e previamente anunciado com a manutenção (humanamente) possível da vida - o "bonsai" - esse símbolo de prosperidade (com paciência à mistura), é ali mesmo, o combate contra esses alados antagónicos de mau agoiro. 

Na sequência final, de rosto iluminado pelas velas do enfim bolo de aniversário, Sol transmite algo mais do que mera inocência infantil, o seu olhar trespassa a quarta parede, por minutos foca-nos [a audiência]. O mistério ali orquestrado foi em vão, Sol sabe e muito bem do “crime” ali ocorrido. Inocência termina, o conflito já se encontrava persuadido na sua mente, como uma Virginia Woolf que em espaços pequenos deambula pelos seus íntimos e perigosos pensamentos.

Cavalos de Guerra

Hugo Gomes, 21.06.23

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Seguindo os trilhos da América Profunda, deparamo-nos com um cruzamento onde se determina o destino da estreia americana da britânica Andrea Arnold ("American Honey") com "War Pony", não apenas unificada pela presença da atriz virada realizadora Riley Keough, mas é dela partido essa ramificação. Conta-se que durante as filmagens dos "meninos perdidos" em terras indomáveis, a estrela conheceu dois figurantes de origem Lakota [Franklin Sioux Bob e Bill Reddy], criando assim uma amizade possivelmente impulsionada pela ancestralidade da própria Keough (neta de Elvis Presley, cujo próprio músico tinha ligações, do lado da mãe, com nativos da tribo Cherokee). No término das filmagens, de forma a manter o contacto com os seus "novos" amigos, ela visita a reserva onde ambos residem. Para além das experiências, é aí que as sementes de "War Pony" são devidamente colhidas.

O filme recorre a um realismo desengonçado, dito e formalizado em muito do cinema norte-americano independente - a linguagem instável que oferece ao espectador uma voraz inquietação com o seu ambiente de violência social. Joga-se em duas histórias cruzadas, em infâncias negligenciadas e juventudes roubadas, fruto do desespero do seu próprio estatuto e das fracassadas políticas, quer de integração ou de reconstituição do nativo americano nos EUA. No entanto, esta panóplia de personagens são figurantes olvidadas, acima do white trash (esses seres humanos mal-amados e restringidos à “porno-miséria”, seja social ou até moral), persistindo na sobrevivência pelos seus escassos meios, desonrados ancestrais e às místicas entidades (o bisonte, que surge como alucinação, é a réstia dessa dignidade, a memória de uma ligação natural, desvanecida pelos vícios do capitalismo).

Portanto, "War Pony" é um filme que anseia captar as “vibrações” de uma miséria condenável, sem condescender os seus "peões" (era o que faltava!), mas a sua constante ficção “salta-pocinhas” faz com que se perca esse retrato, incentivando o espectador a conectar os dois pontos narrativos que nos são apresentados ao invés de “vislumbrar” pelo ecossistema aí registado (possivelmente funcionaria como documentário, mais do que qualquer outra ‘coisa’). É um regresso à comunidade, e ao que isso permite e insiste. Keough (com a sua amiga e argumentista Gina Gammell creditada na co-realização) revela-se emocionalmente dedicada à sua causa e às suas experiências materializadas, uma visão que lhe garantiu a Caméra D'Or para melhor primeira obra em Cannes, igualmente sustentando a tese de uma "fórmula" de simulacro realista (ou o que achamos ser realismo) que muito desse cinema tem vindo a apostar como a sua ofensiva indie e alternativa às produções megalómanas.

Novos olhares, o Cinema de sempre! Vem aí o 19º FEST - New Directors New Films Festival.

Hugo Gomes, 18.06.23

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Mais um ano, mais um FEST, automaticamente, mais descobertas cinematográficas a caminho do nosso cardápio. De 19 a 26 de junho, todos os ‘mirones’ do Cinema em Portugal estarão apontados à cidade de Espinho, onde concretizará a 19ª edição do Festival de Novos Realizadores, uma congregação de algumas das primeiras e segundas obras mais badaladas do ano, uma mostra lado-a-lado com um centro de pitching, hubs e masterclasses, para aliciar experiências e motivar novos cineastas.

Novamente com Fernando Vasquez, diretor e programador do evento, aceitou o convite do Cinematograficamente Falando … para nos resumir as novidades e as recomendações destes próximos sete dias, recheados de Cinema. 

Mais um ano, mais um FEST. Começo com a, possível, grande novidade desta edição que é a reunião musical intitulada de “FEST – Music Walk With Me”. Como surgiu esta iniciativa? Os critérios para a seleção de artistas e que espera conseguir com esta fresca “secção” (chamaremos assim)?

A ideia surgiu no seguimento de uma iniciativa que já tínhamos começado no ano passado, a criação do FEST – Sound & Music Hub, um conjunto de debates e palestras sobre o trabalho de som em cinema. Foi uma forma que encontramos de valorizar e salientar a importância do som no Cinema e como é perigoso negligenciar esses processos. É curioso, mas na minha opinião a revolução digital não teve um impacto muito positivo no que toca ao som. É frequente encontrar filmes ou obras audiovisuais em que os diálogos são imperceptíveis, enquanto os efeitos sonoros estão frequentemente desequilibrados em relação ao resto dos trabalhos. Esse é também o feedback que recebemos de alguns peritos na matéria que passaram pelo FEST em anos anteriores. Sinceramente já se trabalhou muito melhor esta questão. Em parte isso acontece porque a temática do som não tem muito espaço de debate e troca de perspectivas, praticamente que não se toca no tema, por isso é natural que o crescimento na área seja mais lento. Nesse contexto, uma iniciativa desta natureza só poderia enriquecer o mundo do cinema. 

Obviamente que esse evento já contemplava espaço de debate sobre produção musical para cinema, mas pareceu-nos que podíamos e devíamos ir mais longe. A composição musical para cinema precisava do seu próprio espaço. E assim nasceu o FEST – Music Walk With Me, um conjunto de performances musicais e encontros que criam uma nova ponte entre o mundo da música e o mundo do cinema. A seleção foi feita por um painel que para além de incluir membros da nossa equipa, incluiu também a Academia de Música de Espinho, que é uma instituição de referência a nível nacional, e o colectivo Salitre, que pretende desenvolver a cultura musical underground na região. Abrimos uma chamada internacional para músicos interessados em mostrar o seu talento a produtores e cineastas, e os resultados superaram em muito as nossas expectativas.

Como entretanto criamos o Music Walk With Me, o Sound & Music Hub será mais curto este ano e com um foco maior na produção e mistura de som daqui para a frente. Temos já confirmados formadores como Eddy Joseph, uma figura lendária na área, que trabalhou muito com o Tim Burton, o Alan Parker e os próprios Pink Floyd; a canadiana Kle Savidge, que tem tido um percurso notável na área; e profissionais como Tristin Norwell e John Rogerson.

Sobre os convidados deste ano? O que pode dizer sobre eles?

Voltamos a ter um conjunto de convidados eclético e de grande peso, e igualmente importante, nunca tivemos tantas mulheres em destaque no nosso programa. É inevitável destacar a presença de quatro realizadores de peso. O Carlos Reygadas era já um objetivo há muito tempo, afinal de contas é um dos autores de culto mais relevantes da nossa era. Pessoalmente fico muito contente com a presença da peruana Claudia Llosa, que não só estará em Espinho para dar uma masterclass, como ainda vamos fazer uma retrospectiva do seu trabalho. Ela é uma figura fundamental da cena latino-americana contemporânea, e foi uma das pioneiras no que toca à representação da mulher indígena no cinema, por isso este é o momento ideal para oferecer todo o destaque possível a esta autora. E temos ainda a presença de Lone Scherfig, autora de uma das últimas obras do movimento Dogma 95, o “Italian for Beginners"; e algo inédito na história do FEST, uma animadora, Brenda Chapman, a primeira mulher a realizar uma longa-metragem de animação num grande estúdio de Hollywood, “The Prince of Egypt”

Voltamos a dar grande destaque ao mundo dos atores, através da presença da grande Noomi Rapace, a atriz sueca que rapidamente se tornou numa das figuras mais enigmáticas dos últimos anos, e claro está, o nosso Nuno Lopes; para além das Diretoras de Casting Nancy Bishop, Jo Monteiro e Caprice Crawford. Na área da pós-produção há um cruzamento com o ano passado. Após a presença de Gaspar Noé em 2022, este ano contamos com um dos seus mais fiéis e relevantes colaboradores, Marc Boucrot. Mas temos ainda a Melody London, editora muito conotada com o trabalho de Jim Jarmusch, em filmes como o “Down by Law”; e o grego Yorgos Mavropsaridis, uma das mentes por detrás do enorme sucesso e influência da chamada Greek Weird Wave, já que editou a grande maioria das obras que associamos ao movimento, incluindo o filme que começou tudo: “Canino” de Yorgos Lanthimos.  

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Past Lives (Celine Song, 2023)

Passeando pela Competição, o que destacaria este ano?

Este ano, entre as 10 longas de ficção de documentário em competição, é inevitável destacar 3 obras que competiram em Berlim em fevereiro passado. O “Disco Boy” do italiano Giacomo Abbruzzese é um dos filmes fundamentais do ano e uma experiência sensorial inesquecível. É uma espécie de trip psicadélica e surreal que funde os mundos da Legião Estrangeira e de guerrilheiros anti-exploração petrolífera no Delta do Níger, tudo regado por uma banda sonora original de Vitalic que ainda vai dar muito que falar. Outro é a segunda longa-metragem da mexicana Lila Avilés, “Totem”, que acabou por vencer o prémio do Júri Ecuménico em Berlim, e é um filme profundamente tocante, e que nos apresenta a uma família que faz de tudo para evitar lidar com uma tragédia iminente. E temos ainda “Past Lives” de Celine Song, uma das obras mais badaladas na última edição dos festivais de Sundance e Berlim.

Porquê de não vermos produções portuguesas a competir pelo Lince de Ouro?

Já aconteceu várias vezes no passado, com filmes como “Irmãos” do Pedro Magano, ou a primeira longa’ do Pedro Pinho, “Um Fim do Mundo". Temos vários exemplos, mas são bastante menos frequentes do que queiramos. Existe um conjunto de razões que não são muito favoráveis para que isso aconteça. Por um lado existe uma pressão para termos estreias nacionais dos filmes em competição. Infelizmente, por questões de financiamento, essa pressão não pode ser ignorada. E existe uma tradição na nossa indústria que leva a que os filmes portugueses que estreiam em festivais acabem a estrear sempre nos mesmos sítios. Ao mesmo tempo, o contexto de apoios à produção e distribuição de cinema português também não ajuda nesse processo, ao não contabilizar as exibições em festivais para os dados oficiais de audiência, o que significa que exibir filmes com contratos de distribuição em festivais é demasiado arriscado para as distribuidoras. E os fundos Europeus agora dificultam também a quantidade de obras nacionais que podemos exibir, porque têm como objetivo pô-las em circulação pela Europa fora em detrimento dos mercados nacionais, o que a longo prazo é bom para a nossa cinematografia. 

E este ano temos uma enorme presença de filmes nacionais no nosso Grande Prémio Nacional, com 23 obras no total, incluindo várias estreias de peso, o que limitou as possibilidades de filmes portugueses estarem presentes na competição do Lince de Ouro. Dito isto tudo, o nosso comprometimento com a cinematografia portuguesa é muito significativo, e o crescimento do Grande Prémio Nacional é a prova disso. Acontece porque temos feito um trabalho árduo nesse sentido. Acreditamos que cada vez mais os novos cineastas portugueses olham para o FEST como uma das suas casas naturais e uma paragem relevante para os seus trabalhos. Em breve esperamos que ele dará frutos também na competição de longas.

O que o futuro reserva? Quanto às extensões por Lisboa e Porto? Foram abandonadas?

Como estamos a dias do início desta 19ª edição é difícil estar a falar do futuro, seria sempre prematuro. O FEST vai fazer 20 anos em 2024, o universo do cinema está muito diferente do que era, e há condicionantes que estamos inevitavelmente a avaliar, e que continuaremos a estudar no final desta edição. Por isso ainda não é o momento oportuno para falar disso. Mas é garantido que haverá muitas novidades, diria até algumas muito surpreendentes. As extensões em Lisboa e Porto que fizemos em 2020 e 2021 foram resultado da pandemia e da inevitável necessidade de levar o evento à audiência, que estava muito restrita a nível de mobilidade, já para não falar na limitação da lotação das salas. Dito isso acreditamos na importância de continuar a fazer neste mundo pós-pandemia. E até ia mais longe, igualmente importante seria fazê-las noutros pontos do país.

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Veja a programação completa e mais informações aqui.

Catherine Corsini: "A França é um país com uma tradição revolucionária"

Hugo Gomes, 04.10.21

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Apresentado na secção Competição do último Festival de Cannes e com as honras de abertura na 17ª edição do FEST: Novos Realizadores Novo Cinema em Espinho, "La Fracture" é um ensaio político que tem no humor a sua maior arma de arremesso, ainda que seja a compaixão humana que se destaca.

Catherine Corsini captou o retrato de uma sociedade fraturada num específico momento e num ainda mais específico local: no calor das violentas manifestações dos “coletes amarelos” em Paris e num hospital sob “fogo”, onde os enfermeiros e médicos tentam trabalhar durante um tremendo turbilhão social. Uma sala de espera das Urgências será o lugar de uma guerra entre classes e visões opostas que destacará heróis, mártires e vítimas.

Ainda sem estreia comercial confirmada em Portugal, conversei com a realizadora após a primeira exibição do filme na Riviera Francesa em julho, quando se mostrava indignada pela forma como estava a ser recebido por diversas classes, incluindo a política, após as reações precipitadas à partilha de frases sem contexto nas redes sociais, nomeadamente as de um encontro imaginário do Presidente Emmanuel Macron por um “colete amarelo”.

“La Fracture” é uma obra que retrata tantos problemas correntes da nossa sociedade de uma perspetiva quase tragicómica. Como conseguiu trabalhar esses diferentes elementos?

Não costumo contar histórias de pessoas que não venham do meu ponto de vista. Nesse aspeto, começo “Le Fracture'' com as personagens de Valeria Bruni Tedeschi e de Marina Foïs, porque elas aproximam-se do meu mundo. Nos meus dois filmes anteriores ["La belle saison", 2015; "Un amour impossible", 2018], abordei tempos diferentes, sendo que, e seguindo os moldes de uma obra de Nanni Moretti que aprecio muito – "Palombella Rossa" –, desejava usar o humor para abordar o compromisso e relação política. Recordo que fiz uma comédia em 1999 denominada “La nouvelle Ève” que por si tinha um vínculo político, o que também me fez querer voltar e persistir nessa forma. E as personagens foram extraídas da minha própria vida, assim como a ideia deste filme. Tudo aconteceu quando eu e a minha companheira tivemos que passar uma noite nas Urgências. Apesar dos hospitais serem locais mais do que vistos no cinema, permanecem um espaço rico em relações e encontros com pessoas de classes e universos diferentes. E o curioso é que todos são tratados da mesma maneira. Observei todo este biótopo, os auxiliares, médicos e enfermeiros, e imaginei como isso poderia originar um conjunto de enredos.

No fundo, isto é um filme sobre a fragilidade do Sistema Nacional de Saúde francês, já num tempo anterior à pandemia. Como é atualmente a situação?

A situação é terrível. O Sistema Nacional de Saúde já se encontrava mal antes da pandemia e depois dela ficou totalmente danificada. Basta só ver o caso do primeiro confinamento, onde assistimos e ouvimos pessoas aplaudir e encorajar os profissionais de saúde todas as noites, o que não aconteceu no segundo. Até mesmo o bónus atribuído pelo governo só foi dado ao departamento de reanimação, esquecendo por completo os outros.

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Grande parte da ação decorre num só espaço. Poderemos encarar estas Urgências como uma representação de uma sociedade em colapso?

Quando começamos a fazer um filme, tentamos olhar para as personagens, concebendo um cenário e modificando alguns procedimentos. Foi o que fiz com o hospital, criei nele uma tensão, um enredo, um espaço circundante de pessoas... sim, poderemos encarar isso como a representação de uma sociedade que atinge um limite.

Por vezes, para discutir questões políticas num filme é preciso manter uma certa distância. Em “La Fracture”, pelo contrário, sentimos a urgência do agora, quase como uma intervenção.

Mantive essa distância nos meus dois filmes anteriores, mas aqui tive o sentimento de querer “saltar para o meio do fogo” e isso fez com que várias pessoas não acreditassem no meu guião. O que me valeu foi a minha produtora [Elisabeth Perez] me ter apoiado desde a sua génese e ter-me garantido tudo o que necessitava para a sua produção. O que fiz foi usar a realidade à minha volta, tentar com isso alcançar um certo discurso proveniente dessa mesma realidade.

Tendo em conta o que se está a passar [a viralidade de frases sem contexto do filme divulgadas nas redes sociais], acredita que hoje em dia, num mundo cada vez mais polarizado e extremista, a comédia em cenários politizados é como um campo minado para ser trabalhado?

Sim, é verdadeiramente um campo minado, nisso tem razão. Tornou-se um trilho arriscado essa abordagem, plenamente criticado por tudo e por todos, incluindo os coletes amarelos. Mas tomei esses riscos com consideração e, pelo menos, consegui agradar aos profissionais de saúde com esta minha homenagem. Por um lado, não há que ter medo, porque se receássemos as críticas não faríamos nada.

Em relação ao movimento dos "coletes amarelos", como é que os encara e de que forma os representou no filme?

Li todos os livros possíveis, encontrei-me com imensos "coletes amarelos" e até mesmo usei algumas das suas palavras no filme... obviamente com a respetiva e devida autorização. É um movimento estranho porque não existe um líder concreto e está constantemente a desenvolver-se, mas senti-me, contudo, sensibilizada com as suas vidas. França é um país com uma tradição revolucionária, temos a vontade de rebelar-nos contra o que consideramos injusto na sociedade. Infelizmente, ninguém quer ouvir os “coletes amarelos” e os que estão dispostos a isso são os movimentos de extrema-direita e isso é uma pena. Muitos, que estão atualmente “enfiados” nos escritórios, poderiam ter a decência de ouvir os que eles têm para dizer e defender.

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Quanto aos profissionais de saúde, mais especificamente os enfermeiros, abordou-os com um distinto heroísmo em todo aquele caos. 

Há dois heróis que considero neste filme: o da personagem do colete amarelo - o sacrifício – porque o seu “ganha-pão”, o seu corpo, é completamente danificado no final; a enfermeira Kim, que se assume como a última imagem de “La Fracture”. Nesse sentido, queria homenagear os profissionais de saúde, os seus sacrifícios e a tremenda força conseguida perante os escassos meios.

Foi por isso que escolheu uma não-atriz para o papel de Kim?

Não foi bem uma escolha, porque inicialmente pensava numa atriz para o papel de Kim. Só que, durante os dois dias de trabalho de campo no hospital, fiquei a conhecer Aïssatou Diallo Sagna e percebi quão a grande mais-valia ela seria para o enredo. Ela trouxe uma carga dramática necessária e, vendo hoje, é indispensável ao filme.

Grandes promessas do cinema para descobrir em tempos de pandemia com o 16º FEST

Hugo Gomes, 02.08.20

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Jumbo (Zoé Wittock, 2020)

De 2 a 9 de agosto, o FEST - Festival Novos Realizadores - Novo Cinema assumir-se-á como o primeiro grande festival de cinema pós-confinamento do país. Mostra de emergentes autores a descobrir e de um novo tipo de cinema com promessas de perdurar, Espinho regressará ao seu estatuto de capital cinematográfica durante uma semana, sendo que, paralela e posteriormente, Lisboa e Porto receberão esse testemunho. A comédia belga nudista “Patrick”, de Tim Milants, abrirá a mostra, que englobará cerca de 230 filmes, dos quais dez concorrem ao Lince de Ouro e sete são dirigidos por mulheres.

Ainda nas propostas desta 16ª edição poderemos contar com um cinema “drive-in” e um especial foco na filmografia do francês Quentin Dupieux (”Reality”, “Le daim") na secção Be Kind Rewind, e no cinema do realizador letão Aik Karapetian.

Conversei com Fernando Vasquez, diretor de programação, sobre o desafio de programar, gerir e projetar um festival em tempos de pandemia, e ainda uma verdadeira mostra de promessas do cada mais fragilizado cinema português.

Quais foram as dificuldades que o FEST atravessou e enfrentou nesta pandemia?

Os desafios foram muitos, começando logo pelo facto de a pandemia ter chegado numa fase crítica a nível de programação. De um momento para o outro ficamos sem saber se o evento poderia ter lugar ou não, o que dificultou em muito a negociação de algumas obras. O facto do Festival de Cannes, que é o grande barómetro do lançamento e distribuição de filmes na Europa, ter sido adiado, criou um clima de indefinição sem precedentes dentro da indústria, e a própria World Sales [organização de vendas de direitos mundiais] ficou sem saber que medidas tomar em relação a determinados filmes, se deviam ser lançados na mesma, ou se deviam ser guardados para melhores dias. Assim que a situação se tornou mais clara, o trabalho foi reiniciado. O que vinha a ser feito desde Agosto foi praticamente todo anulado e recomeçamos as preparações em tempo recorde. Apesar de todas as dificuldades, estamos muito contentes com a forma como a nossa equipa, e a indústria de uma forma geral, se comportou. E os resultados estão à vista.

E uma edição 100% online esteve em cima da mesa?

Chegamos a equacionar essa hipótese, mas confesso que ninguém no FEST fez questão de priorizar essa alternativa. Após estudar o impacto dessa alternativa noutros eventos, chegámos rapidamente à conclusão de que não justificava o esforço nem os recursos que teriam de ser empregues. Existe um excesso de conteúdo online e o sucesso destas iniciativas é sempre muito relativo, para não dizer fraco. Nós decidimos que, se o evento fosse ter lugar, teria de ser num formato sempre de uma mais-valia. Se fosse para ser online teria de trazer algo de novo e com grande potencial de melhoria, como foi o que aconteceu com o nosso Pitching Forum, que acontecerá em formato on line, e com uma presença de produtores e investidores ainda maior do que em anos anteriores. Em relação à exibição de filmes, concluímos que o melhor seria multiplicar as sessões, os espaços e as cidades. Desta forma nasceu a ideia da criação de uma sala "Drive-In" e a expansão de algumas das secções competitivas ao Porto e a Lisboa, para além das sessões habituais em Espinho.

O que destacaria na vossa seleção oficial? Que surpresas poderemos encontrar na edição deste ano?

Começando pela competição de longas-metragens, que este ano conta com sete mulheres realizadoras num total de dez filmes, destaco de imediato a presença de “Jumbo”, de Zoé Wittock, uma das mais badaladas obras neste último Festival de Sundance. É exatamente o tipo de filme que queremos exibir, uma obra de uma nova voz sem paralelo na cena mundial, impressionantemente inovador e arrojado. O filme perfila-se já para ser uma dos grandes sucessos do ano.

Destaco ainda o “Babyteeth”, da australiana Shannon Murphy, um dos grandes vencedores em [festival] Veneza, também ele muito arrojado por “brincar” com o cancro e a forma como uma família lida com tamanho problema. O “Pacificado”, de Paxton Winters, grande vencedor da Concha de Ouro em [festival] San Sebastián, também merece uma nota especial, até porque se trata de um "thriller" de favela poderoso e cuja ação se desenrola no período pré-Jogos olímpicos do Rio de Janeiro, o início das transformações sociais e políticas que tornaram o Brasil no barril de pólvora que é hoje. Nos documentários, refiro também "The Earth In Blue as an Orange”, da ucraniana Iryna Tsilyk, que venceu o prémio de realização em Sundance.

A nível de curtas, a qualidade e o tom mantêm-se. O Grande Prémio Nacional merece todo o destaque, com os regressos de cineastas como António Sequeira, Miguel D e João Monteiro.

Quanto às secções temáticas, grande foco para a Letónia, país em evidência na secção Flavours of the World, e em particular o cineasta Aik Karapetian, o grande timoneiro da nova onda letã, que reaparece neste FEST 2020 com duas das suas melhores obras: “People Out There” e “Man in the Orange Jacket”. E claro está, o "Drive-In" é a grande novidade e terá um programa especial, com duas sessões diárias, uma de comédia e outra de cinema fantástico. Enfim, serão exibidas mais de 230 obras nesta edição do FEST, por isso há muito para destacar.

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Babyteeth (Shannon Murphy, 2019)

A extensão da programação em Lisboa e Porto é uma parcela de uma projeção a nível nacional do festival?

O FEST já vem exibindo filmes fora de Espinho há muito tempo. Sempre exibimos obras no Porto e em vários pontos do país e Europa. Mas nunca o tínhamos feito durante a semana do evento propriamente dito. Sempre foi uma ambição, mas tendo em conta a complexidade de todas as actividades que habitualmente organizamos durante o festival, tinha sido sempre impossível fazê-lo nesse período. Agora que o Training Ground, Directors Hub e várias outras iniciativas foram adiadas para 2021, chegou o momento de dar esse salto e permitir que outras comunidades descubram o nosso trabalho, e mais importante ainda, o das grandes referências do futuro do cinema. É obviamente uma extensão que gostaríamos que se prolongasse no tempo.

Que desafios o festival espera encontrar?

Acima de tudo, o mais imperativo é manter as condições de segurança, que serão apertadas, desde o limite de lotação das salas e espaços, à impossibilidade da presença física dos cineastas, afetando o diálogo que é habitualmente mantido com a audiência. Este ano, haverá menos conversa e contacto físico, o que era sem dúvida uma das mais-valias do nosso evento, que sempre se focou muito neste aspeto social. Em 2020, terão de ser os filmes a cumprir essa função e estamos confiantes que são capazes de fazê-lo com grande sucesso. Mas o desafio principal será descobrir até que ponto as audiências nacionais estão prontas para responder à chamada.

Expectativas para o futuro?

Obviamente que ainda é cedo para se tirarem grandes conclusões. O mais importante é sabermos que a nossa estrutura é capaz de aguentar um período tão turbulento como este e que, apesar dos muitos desafios, foi sempre capaz de encontrar uma resposta à altura. Depois do evento vai tudo depender de como a indústria em geral se adaptar ao momento. Estou confiante de que esta experiência do Covid-19, para além dos muitos efeitos negativos que já teve e terá no futuro, a longo prazo vai estimular uma mudança de hábitos por parte da audiência, que no fundo era já um problema precedente à pandemia. 

Espero que se desenvolva um interesse e apetite crescente pela experiência coletiva de cinema em sala. Sei que a maioria das pessoas no nosso setor têm uma perspetiva muito negra em relação a este assunto, mas estou confiante que é exatamente nos momentos de aflição e pressão extrema que as melhores mudanças acontecem.

"O Cinema é sobre a Humanidade." Uma conversa com Asghar Farhadi

Hugo Gomes, 27.06.18

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A esta altura todos sabem quem é Asghar Farhadi, o cineasta iraniano mais celebrado da atualidade, que encontrou em Espanha o lugar perfeito para recitar o seu cinema de relações e moralidades. Com Javier Bardem e Penélope Cruz como cabeças de cartaz, “Todos lo Saben” corresponde a um segredo que vai abalar toda uma família que ao mesmo tempo tenta lidar com uma situação de rapto.

O cruzamento de drama e thriller, ao jeito do realizador, teve as honras de abrir a última edição do Festival de Cannes, apesar da crítica ter sido em geral fria. A receção imprevista não impede o otimismo de Farhadi, que após uma passagem no FEST, na cidade de Espinho, falou sobre alguns dos temas quentes do seu cinema: política, censura, manifestos e Netflix, ingredientes para mais uma trama farhadiana.

Filmou “Todos Lo Saben” na Espanha, porém, o que deparamos é que é uma história que poderia se passar no Irão.

Se eu quisesse filmar esta história no Irão, seria ligeiramente diferente. Mas sim, poderia acontecer aí. Contudo, este filme foi um desafio no sentido em que tive que entender e consciencializar uma cultura que não era a minha, de forma ao enredo ser o mais culturalmente coerente possível.

Mas foi difícil conceber um filme num país que não é o seu? Como lidou com a divergência cultural?

No início foi difícil, porque toda esta etapa fazia lembrar uma piscina, para a qual saltava e tentava atingir o fundo. Quando comecei, foi bastante árduo, porque obviamente não é a tua língua, nem sequer a tua cultura ou quotidiano que se encontravam à tua frente. Tive que encarar isso, por isso trabalhava constantemente com a minha equipa e todas as vezes  lembro-me de exclamar: “é um desafio, mas não é impossível”. A língua e a cultura não são problemas, são desafios.

O que estava mais hesitante era acerca do resultado disto. Como um iraniano a fazer um filme ocidental é um afastamento completo de tudo aquilo que me era próprio. Durante a estreia de Cannes muitos me disseram que o filme estava perfeitamente ciente do panorama espanhol. O grande senão para estas pessoas era mesmo o meu nome. Eles acreditam que para fazer filmes espanhóis é preciso sê-lo na realidade. Porém, uma coisa é certa, quando se vai para outro país e se concebe um filme lá, essa “realidade” não será 100% fiel, porque esta não me é próxima. O que invocamos são as similaridades destas mesmas realidades e exprimimos isso na ficção.

Ou seja, existem semelhanças entre a cultura espanhola e a iraniana?

Quando imaginamos outras culturas sem ser a nossa, essa idealização é realmente muito diferente do que realmente acontece. Só quando estamos em contacto com estas culturas é que percebemos as diferenças, sobretudo a nível emocional.

Porém, o amor tem sempre a mesma face, conforme seja a cultura a que pertence, assim como o ódio. Mas voltando ao amor, e tendo em conta as diferentes vertentes que estão presentes na relação de um casal ou entre uma mãe e um filho, mesmo diferentes eles têm a mesma correspondência em lugares diferentes. Mas é na expressão e na exposição desses sentimentos que encontramos as diferenças culturais.

No meu país, por exemplo, pais e filhos constantemente debatem-se antes de mostrar qualquer sentimento. Possivelmente, no Japão nem sequer tocam-se.

A maneira de se expressarem é diferente, por isso tentei focar na maneira de como se relacionam ao invés do por que se relacionam.

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"Todos lo Saben" (2018)

Afirmou na masterclass do FEST de que o Cinema iraniano é muito vasto, mas nós [ocidentais] conhecemos uma pequena porção. O que chega a nós é sobretudo um cinema político, porém, o seu cinema está fora desse território, até porque você é um cineasta ligado à moralidade ao invés da política.

Penso que se o seu objeto fílmico é sobre as pessoas e as sociedades a que correspondem – por detrás do aspecto político – até temos que abordar a moralidade. Não quero ser um cineasta político, porque não dialogo diretamente com a política, até porque não é essa a minha função enquanto realizador. Já sobre a moralidade, isso sim, é do meu respeito.

Procuro algo que me diga que isto é certo ou é moralmente errado. Não sabemos como o calcular, por isso é que os meus filmes são acerca de dilemas. Como o caso de “o filho tem razão”, mas questionamos o porquê dessa razão e assim passamos ao campo moral das coisas.

Mas eu não embarco nos filmes como incentivo para criar situações morais, apenas descrevo-os e deixo o espectador ir em direção ao território-moral.

Mas o Cinema pode ser político?

Sim, no bom e no mau sentido. Por exemplo, existem muitos filmes vindos dos EUA que servem como armas. Eles destroem culturas e outras sociedades. Isso não são verdadeiros filmes, são armas de destruição. Não chamo a isso Cinema, mas sim de negócio.

O Cinema povoa imensos territórios; culturais, morais e psicológicos. No caso do espectador se interessar pela política, então é verdade que verá todos esses filmes nesse prisma.

Quando fazia o "Todos lo Saben" em Espanha, um dos produtores questionou-me se pesquisei a situação política do país e eu respondi que li alguns livros sobre Franco e afins. Ele referiu que o filme que fiz seria considerado um filme político sob a perspetiva espanhola. Respondi que não, apenas descrevi o quotidiano daquelas personagens. Ele, como pensou politicamente, encontrou isso naquela história.

É por isso que se recusa a fazer manifestos com os seus filmes?

Sim, é uma das razões. Se eu fizesse um filme e produzisse um manifesto para o acompanhar, dentro de 15, 20 anos, essa mensagem perder-se-ia por outras gerações e  os países não obteriam esse mesmo manifesto. Os filmes são sobretudo obras do foro emocional, eles fazem-nos felizes ou fazem-nos tristes, e por vezes encontram o seu lugar no meio. Se um filme não causar felicidade ou tristeza, pouco tempo depois morre. Mas se esse sentimento, feliz ou não, nos leva a pensar na temática da obra, então o filme viverá para toda a eternidade, e sobretudo o espectador encontrará a mensagem do filme. Nunca o encontraremos através dos manifestos. O Cinema é sobre a Humanidade.

Como afirma, a política é sobretudo perspetiva. Relembro que na altura de “A Separation”, vários grupos afirmavam que era um filme que incitava a imigração no Irão.

Nem todas as pessoas do meu país, mas aquelas que têm relações com os órgãos governamentais ou que se identificam com tais doutrinas é que encontram e procuram os filmes algum tipo de mensagem.

Mas concorda que existe uma espécie de pressão para que cineastas do Médio Oriente façam cinema político?

Sim. Talvez isso não aconteça com o vosso país ou até mesmo Espanha, mas em França, nos países da Escandinávia, nos Estados Unidos, eles veem o realizador do Médio Oriente como alguém que está passar informação à audiência do que realmente acontece nesses países. Mas tal não é o nosso trabalho. Muitos não conseguem encarar que muitos realizadores desses locais apenas querem fazer filmes, pois realmente adoram Cinema, não para denunciar ou informar. Se querem isso, basta ir ao Google. Por vezes, isso torna-se mesmo incómodo.

Obviamente que com isto não estou a insinuar que não fazemos cinema político, o que acontece é que muitas vezes quem vê os filmes não possui o conhecimento do que se passa naquele país e espera que nós confirmemos o que os Media constantemente transmitem.

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"Le Passé" (2013)

E foi por isso que decidiu fazer este filme, para não ter relações com o Irão? Visto que o “Le Passé” mantinha essas ligações.

Sim, esse foi um dos motivos pelo qual quis fazer “Todos Lo Saben” na Espanha, foi para ver a reação do público, visto estar a fazer um filme sem ligação alguma ao Irão. É costume fazerem-me sempre imensas questões políticas sobre o Irão. É aborrecido, porque eu quero falar de cinema e tenho de abordar política. Mas felizmente as questões sobre cinema já estão a ser feitas, graças a este filme espanhol.

Mas muitos festivais têm utilizado essa "política" nos filmes iraniano de forma a promoverem-se. Relembro Jafar Panahi, cineasta que está proibido de fazer filmes mas que ao mesmo tempo os faz, e possivelmente realiza mais que muitos realizadores em liberdade. A verdade é que quando um dos seus filmes é selecionado, surge toda uma promoção ao filme – “o realizador que resiste” – e do festival.

Nem todos os festivais, mas sim, alguns fazem isso. O que importa para estes eventos nem é a questão política dos filmes, é o facto de terem em sua posse “hot news” [notícias quentes], e com isso a atenção dos espectadores e da imprensa.

Jafar é meu amigo e ele tenta fazer amigos, apesar das proibições, porque também ama o Cinema.  

E quanto à censura? Alguma vez sofreu com isso no seu país?

Referes a cortes ou impedimentos?

Sim.

Desse jeito não. E atenção, eu não os conheço [comité de censura]. Mas quem quiser fazer filmes, tem de enviar algumas páginas do guião ao comité.

A parte boa é que este comité, para além de ser integrado por pessoas do Governo, é também constituído por pessoas que trabalham na indústria de cinema, como realizadores,  os quais tentam facilitar a nossa vida. No caso do cinema comercial, eles não se preocupam, mas sim com alguns poucos filmes vindos de realizadores que querem realmente passar uma mensagem.

Quando nasceste e cresceste lá, sempre acabas por arranjar uma maneira de contornar a censura. Não digo com isto, que esta atitude nos ajuda.

Mas essa atitude alguma vez afetou um filme seu?

Sim, porque acabamos por criar dentro de nós uma autocensura, mesmo que não me aperceba disso.

Os seus filmes remetem sobretudo a mal-entendidos, tal poderá ser encarado como uma metáfora ao estado do Mundo?

Sim, é um grande problema atualmente, não só no meu país mas em todo o Mundo. Hoje, por mais tecnologia que temos a nosso dispor, e refiro obviamente o papel das redes sociais, nós não nos conseguimos entender uns aos outros. Falamos muito e até demasiado, mas não dialogamos. Não nos entendemos.

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Asghar Farhadi em plena masterclass no FEST 2018 / Foto.: Cecilia Melo

Ou seja, é um problema de comunicação?

Sim, ou porque não queremos, ou é a nossa língua que não nos permite. Por vezes queremos nos expressar emocionalmente, mas não conseguimos descrevê-lo por palavras. Hoje em dia, o nosso Mundo tem esse grande problema: não comunicamos, seja entre culturas, pessoas ou até mesmo casais.

Constantemente menciona Bergman e, deixe-me aqui fazer um reparo, de certa maneira você tem algo em comum com o cineasta sueco. Ambos oscilam entre peças de teatro e Cinema. Na masterclass, Farhadi referiu que o Teatro aproxima-se cada vez mais do Cinema e assim perde a sua identidade. A minha questão é: como faz para evitar esse contágio?

Quando trabalhava em peças, sabia que havia um problema comigo. Amo o Cinema e quando escrevia peças, escrevia como fossem guiões cinematográficos. E isso acontece com imensas peças de teatro.

No meu caso, esse problema fez com que não conseguisse mais fazer teatro. Não consigo pensar teatralmente, mas sim cinematograficamente.

E o oposto? Será que resulta? Pergunto porque no seu “The Salesman”, o Farhadi trabalhava com ambos os territórios.

Sim, funciona. Até porque o Teatro e o Cinema têm uma conexão. Em “The Salesman” abordei a peça de Arthur Miller de forma a demonstrar essa ligação entre os dois territórios. Diria que é uma ligação amigável, mas nos meus filmes há acima de tudo uma separação, porque aquilo que evidenciamos no ecrã, passando pelos movimentos dos atores, é Cinema. Tento injetar vida neles, separá-los do Teatro.

Voltando à masterclass, falou que se pelo menos dois espectadores saírem de uma peça, esta é um fracasso. O mesmo acontece num filme. Por isso, para si, o Cinema é sobretudo uma questão de consenso?

O que disse foi que o primeiro objetivo de uma peça ou de um filme é colocar o espectador sentado no seu lugar a assisti-lo até ao fim. Se o espectador se desinteressa ou sai do respectivo espetáculo, nós perdemos.

Mas existem duas maneiras diferentes. No teatro, para “agarrar” o espectador não é preciso grandes ênfases dramáticas ou acelerar o ritmo. Porquê? Porque as pessoas que vão ao teatro são pacientes, têm mais tempo nas mãos. Eles vieram ao teatro para aprender. Já no cinema, a maioria dos espectadores querem entretenimento e não aprender. São dois trabalhos distintos.

Quando era mais novo não pensava nisto, mas hoje em dia reflito o quanto posso fazer no Cinema para manter o espectador sentado. A TV e as suas séries alteraram o gosto do espectador, eles querem algo mais frenético no cinema e isso tem-se tornado num obstáculo. Reparamos isso no tipo de produção atual. Se metermos estes espectadores a assistirem a filmes do passado, de um cineasta nipónico, ou do Ford, ou Truffaut, eles questionam a cadência rítmica. Não é acelerado o suficiente, e isso tem como culpado o universo das séries e o modo de vê-las.

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"The Salesman" (2016)

E o que pensa deste boom televisivo que estamos a testemunhar?

Sei que a Netflix e a Amazon estão a produzir cada vez mais conteúdos televisivos, e por vezes gosto de ver, mas sei que isto está a matar o Cinema, pelo menos a nossa forma de ver Cinema. Porque quando vemos uma série, não temos o tempo necessário para refletir sobre ela, sobre as personagens e situações. Em Cinema, temos acesso a esse espaço e tempo. Até porque quando o filme termina, o espectador leva-o com ele.

E em relação à Netflix? Alguma vez lhe propuseram algum projeto?

Sim, fizeram em Espanha. Queriam produzir o “Todos Lo Saben”, mas eu respondi que não. Isto é Cinema, se alguma vez quiser fazer uma série ou televisão recorro a eles. A questão é que pretendia que o meu filme fosse visto em grande ecrã como é habitual no Cinema. No caso da Netflix não teria problemas de orçamento, mas confiava nos meus produtores porque tinha a visão de ver o meu trabalho numa sala de cinema e não num pequeno monitor.

Tenho conhecimento que ainda existem muitos cineastas que resistem a isto.

Devido a “Todos Lo Saben”, viveu durante algum tempo em Espanha, que é o nosso país vizinho. Alguma vez veio a Portugal?

Estive uns dias na cidade do Porto num festival, penso que foi há 10 anos, mas nós iranianos estamos familiarizados com este país até por causa de Carlos Queiroz [risos] Ele é quase um iraniano, ele é inteligente e respeitoso com todos e conhece muito bem o país … e também o Cinema. Quando recebi o prémio nos Óscares, ele enviou-me uma mensagem nas redes sociais a dar-me os parabéns. E claro, o Cristiano Ronaldo também é muito famoso. [risos]

Marcada à nascença

Hugo Gomes, 23.06.18

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O título entra em cena sob pesarosas cadências como uma declaração de força, um ativismo pessoal, o punho fechado da autoestima se tratasse (I – Am – Not – A – Witch), isto, após uma sequência invulgar que coloca o espectador ocidental, conformista, de mundo feito e reconhecido em choque com uma sobrerrealidade. Essa, tão irreal que confunde-se como uma distopia fantasiosa do absurdo, porém, este tipo de ritual é inspirado em “factos verídicos”. Tais palavras que servem de um totalitarismo pensante na indústria fílmica, aqui inteirado como sugestão para um drama, por si reconhecível a estas audiências privilegiadas, a emancipação de uma criança … ou pelo menos em teoria.

Mas afinal, o que de tão ridículo encontramos nesta primeira longa-metragem de Rungano Nyoni? Desde uma sociedade ainda regida pelo tribalismo no interior da Zâmbia, até ao preconceito alicerçado ao mito da Bruxa. Longe da imagem ocidental de um verrugosa mulher com pactos faustianos e de má índole, as “bruxas” nascidas nesta savana são “seres” fora do condição humana, temidas e igualmente veneradas perante um estranho método de domesticação. “Não se deixem enganar, ela não é um ser humano, é uma bruxa”, avisa o Presidente da Câmara numa emissão televisiva. Homem de alto cargo político motivado por crenças ancestrais que dilui com a “fé do primeiro Mundo”, a capitalização. Um desses atos de ganância, a apresentação do seu “novo” animal de estimação, Shula (Maggie Mulubwa), uma menina de pais desconhecidos, abandonada à sua sorte após ser acusada de “bruxaria”. Sabe lá a rapariga o que isso é!

Após um julgamento inacreditável, onde as provas são mais escassas que as loucuras proferidas pelos cidadãos de uma vila longínqua, mas a única “casa” conhecida por Shula, a criança que da hora para a outra torna-se uma não-criança. Ou diria antes um não-humano, uma “criatura algo mitológico” – a bruxa – o seu novo estatuto.

“I Am Not A Witch” responde com um realismo seco, um episódico retalho no intuito de preencher uma ideia silenciosamente panfletária, impondo choque cultural e racional para as audiências de “outras realidades”. Sim, diríamos que Nyomi cria e recria um filme bem aos moldes do mercado world cinema, possível interação com este meio, infelizmente, nunca respondendo com exatidão ao ativismo presente no título garrafal. É com humor e com humor que se paga, contorcendo esta realidade numa caricatura plena, como o caso de Shula que usa os seus poderes de “vidente” para pedir auxílio às “seniores” bruxas através de um telemóvel.

São sequências como estas, impagáveis, que funcionam como momentos-chave de uma tragicomédia onde o lado humorístico encontra-se no nervosismo do nosso riso, aquele, envergonhado perante uma situação incapaz de lidarmos. “I Am Not A Witch” está longe de ser um grande filme, mas está perto de nos surpreender pela sua temática bizarra.

"Blue My Mind": a pequena "sereia"

Hugo Gomes, 20.06.18

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Com os seus 15 anos feitos, Mia terá que lidar com as transformações do seu corpo perante a primeira vinda do período. Diríamos nós que é o “prato-de-cada-dia” de qualquer adolescente e que este “Blue My Mind”, a primeira longa-metragem da suíça Lisa Brühlmann, é mais um no vasto território dos coming-of-age. Todavia, as transformações que esta rapariga de olho azul terá que lidar são bem diferentes que aquelas vividas por jovens triviais. O seu corpo está a metamorfosear. Sim, nós sabemos, mas em algo que nem ela própria consegue explicar.

Em teoria, "Blue My Mind" lida com a transformação da criança em adulto, usufruindo dos elementos fantásticos como recorrentes metáforas materializadas. Nesse aspeto, Mia tem na sua própria consciência duas mudanças: a visível (o corpo como falamos); e a invisível (a questão existencial, afetiva e sobretudo sexual). O espectador é a testemunha silenciosa dessas mesmas “anomalias”, assistindo em direto da perceção da sua personagem, partilhando um segredo para com os demais. Brühlmann encontra, sim, uma maneira inteligente de dialogar com as crises de adolescentes, sensível com o universo feminino e com as suas complexidades, que em equação somatória com as “complicações adolescentes” nos levam à porta interdita da “juventude eterna”. Mesmo que esta abordagem careça de originalidade e furtividade, esta é uma obra dotada de perversidade, onde a realizadora cria uma ligação fenomenológica para com o espectador, que reconhece cada drama (mesmo diluído no campo do body horror) como seu.

Até porque serão as jovens raparigas desta geração as sirenas dos novos tempos, inteiradas numa sociedade de estéticas e de prazeres ao virar da página, o autorreconhecimento dos seus corpos e dos seus íntimos, tudo embalado no cinzento da ambiguidade (nesse sentido, apesar das similaridades, é um filme menos onírico que "The Lure", da polaca Agnieszka Smoczynska). Juntamos a jovialidade e a anarquia da atriz Luna Wedler como Mia, revelando-se na estrutura fortalecida deste retrato de passagens de estações.

Ser convencional? Há que possuir uma fria relação acerca de tudo!

Hugo Gomes, 20.06.18

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Acreditar em narrativas aristotélicas? Para Hlynur Palmason, um agnóstico preso a um sistema autoritário de narrativa visual, a resposta é resistir como rebelde “encarapuçado”. Em “Vinterbrødre” (“Winter Brothers”), a sua primeira longa-metragem, o realizador interessa-se na história de dois irmãos que vivem e trabalham numa comunidade mineira, porém, longe do que qualquer sinopse anuncia, este não é o mero conto de fraternidades, aliás, o que testemunhamos é uma ode às marginalidades.

Essas, inteiradas em sujeitos que tentam ingressar numa rotina quotidiana e que fracassam, um pouco como o realizador que revolta-se contra a estrutura clássica do somente “contar uma história de forma percetível” para endereçá-la por vias de signos semióticos e um atentado às iminências e omnisciências do clímax. Ou seja, para qualquer descrente da estética e crente absoluto do argumento (uma das oligarquias do boom televisivo), “Vinterbrødre” encontra-se aterrado de cabeça no seu centro e cuja neutralidade do seu ato (sendo neutro o cúmulo da perversidade, já dizia Claude Chabrol) o estabelece como um bon vivant da narrativa mental e do júbilo visual que não são mais que entreténs para Palmason.

Por entre as simétricas trabalhadas em planos gerais (soa a organização cinematográficas intercaladas com a barafunda dos corpos banhados pela escuridão do subsolo (assim como o solo a adquirir o seu protagonismo nas contribuições ao olhar) que deixam o espectador incapaz de interpretar do que vê e a, por fim, violência em conjunto com um humor requintado que só os nórdicos parecem manter intacto.

Se existe algo que poderemos tirar partido disto tudo são duas sequências que aludem a natureza desta ambição, o VHS que exibe a Guerra (qual delas? Não interessa), o confronto armado que transforma-se numa contorção psicológica, o nascer do trauma a olhos vistos. E a segunda, provavelmente a mais relembrada neste episódio cinematográfico, a história dentro da história, o relato de um cão que reside no seu espaço à espera do dono que não volta mais, assim como o espectador que espera uma resolução fácil, as histórias da carochinha para leigo entender de caras.

Por um lado, há que encarar que esta incursão de misfits é mais densa do que as imagens indicam e mais superficial do que a narrativa e as suas constantes voltas nos levam. Hlynur Palmason tem a atitude, tem o paladar (uma escolha meticulosa dos atores com Elliott Crosset Hove) e a técnica necessária para o rastrearmos futuramente.

Histórias de um "castelo andante"

Hugo Gomes, 18.06.18

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Seguindo rasto na historieta de “mães-monstros” e do chamado white trash norte-americano, o parisiense Vladimir de Fontenay avança com um filme frio sobre afetos como inconfidência naquela que é a sua segunda longa-metragem.

Com personagens encurraladas na sua marginalidade, instáveis como as casas “transportadas” de um lado para o outro o qual servem de temática, o realizador explora a superfície de um mundo ilícito, forçado a existir perante a precariedade, ou até à sedução de tais ecossistemas. Trata-se de um exemplo curioso, mas batido enquanto retrato social. A juntar a isso, o facto de “Mobile Homes” exibir uma derivação no que requer a alcançar uma específica voz estética. Aliás, muitos destes novos nomes emergentes do cinema tendem a abdicar do estilo para enquadrarem-se na linguagem visual dos tempos que o acolheram, ou seja, a televisão pró-espetáculo, e o austero possível da violência frontal do handycam. E é pena que essa “voz” à espera de ser encontrada seja um obstáculo para que Fontenay permitisse o filme fluir como um exercício acima do panorama visto em hoje em dia.

Contudo, esta história de nómadas que sobrevivem através de “migalhas” e “cacos”, os fura-vidas de uma América que parece não os suportar, é em jeito siderúrgico, um frio aço que se vai vergando pelo contrastado calor de um sentimento depositado. Esse, um sentimento maternal, inicialmente repudiado em mais um conto suis generis (assim dava a entender), leva-nos a uma derradeira redenção. Fontenay evidencia de um cuidadoso sistema de cálculo emocional, submetendo estas suas personagens em graduais desenvolvimentos do foro afetivo. Obviamente, que estes seus peões funcionam graças à exatidão dos atores, nomeadamente Imogen Poots, sujeitando-se ao perfil de “farrapo” humano, e o ascendente Callum Turner (num papel pensado para o falecido Anton Yelchin). Pois, Fontenay pôde certamente contar à vontade com os seus intérpretes.

“Mobile Homes” é uma espécie de “castelo andante”, encantado pelo seu próprio desencanto, deslumbrado pela energia que o faz mover perante terrenos vários e ao mesmo tempo desengonçado e a um passo da ruína total graças à “ruidosa” dessincronização. Faltou a Fontenay a afirmação de alguém que deseja ser uma voz, e não um exemplo de um cinema geracional.