"Sombra Brancas": um filme-simoso
Um filme-simoso … a palavra, essa, pura invenção do seu autor - José Cardoso Pires - após sofrer um derrame cerebral que o “atirou” para um “branco limbo”. Em jeito poético, resume-se a um escritor que esquece de ser escritor e por sua vez o seu mundo, dessa forma, tenta (re)identificar objetos quotidianos, entre giletes ou óculos e o que sai é “simoso”, sem uso algum devido à sua inexistência gramatical.
Esta adaptação de “De Profundis, Valsa Lenta”, obra literária algures entre o existencialismo biográfico e o experimentalismo ensaísta, objeto de “profunda” construção a partir da sua vivência em 1995 (o tal AVC), é fruto ficcional para Fernando Vendrell, produtor e ocasionalmente realizador, que havia tentado outro escritor e em outro espectro, 5 anos antes, com “Aparição”, sobre Vergílio Ferreira. Portanto, simoso é um estado, uma ideia, uma pluralidade, um gambuzino, e por outras andanças uma via para a criatividade, infelizmente “Sombras Brancas” debate-se para com a sua própria existência ao invés de persuadir na construção de uma, deseja ser uma biografia disfarçada, algo retrospectiva ou introspectiva, e por outro um forro surrealista e experimental, saindo o tiro pela culatra nesse mesmo alvo, no meio um retrato algo dissipado de um Lisboa intelectual e igualmente boémia, amantes do néctar da juventude interna, ou da (a)provação do “minete” (bem haja, em memória de Rogério Samora), ambiências que o próprio Cardoso Pires decidiu enveredar [com "Alexandra Alpha”] como contradição à tradição do ruralismo literário.
Sendo assim, tudo nos é desfragmentado, curiosamente seria essa a mais valia de “Sombras Brancas” (filmado durante a pandemia), uma entropia cerebral e narrativa, mas a confusão aí endereçada nada de refrescante nos traz, existe um sintoma de episódio-piloto em todas as sequências, como fossem esboços ou aperitivos para aprofundar em uma possível conversão de seriado televisivo. Ainda contamos com outro sintoma, não tão propício a enfartes mas de algum incómodo para com a sua natureza, uma sensação de coletivo, o que contraria aqui esse eventual e convidativo intimismo ou vertigem de morte, um índice vivente povoado de personagens em passagem e faces “desenhadas” num ensurdecedor eco. Um “simoso” nunca cumprido … daremos desta maneira uso à não-identificável palavra.
Fernando Vendrell fica-se pela competência em trazer um livro infilmável (assim classificado, ao contrário de “Delfim”, a considerada obra-prima de Cardoso Pires, que contou com conversão fílmica de Fernando Lopes em 2002), sem romper as apropriadas vestes nem os seus estilos definidos, distanciando-nos do escritor regredido, interpretado aqui pelo muy generis Rui Morrison, porém, em matéria de desempenhos, a aliada contra a branquitude voraz, Natália Luiza (em dicotomia temporal com Ana Lopes), merecem os destaques e uma retirada das sombras (mesmo quão brancas sejam). A mulher, a mártir do ego desmesurável e dos pecados originais de quem é escritor, seja de raíz ou de causa, e de quem escritor nunca deixará de ser, mesmo que a vida prega as suas maliciosas partidas.
“Como é que tu te chamas?”
“Eu? Edite. (...) E tu?”
“Parece que é Cardoso Pires”