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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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"Beautiful Boy": a paternidade posta à prova

Hugo Gomes, 28.11.18

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Tendo em conta a temática comum entre os seus filmes, parece que Felix Van Groeningen possui uma questão paternal por resolver e a sua obra ressoa como um ensaio de voluntária psicanálise. Porém, fugindo a qualquer tentativa de divã, é de evidenciar essas questões presentes na sua recente filmografia, a começar pelo grandíssimo “The Broken Circle Breakdown”, o relato da dor vivida entre um casal que acaba de perder a sua filha, passando por “Belgica”, filme onde adapta as memórias do seu pai e agora com “Beautiful Boy”, que através de duas biografias costura a resistência e embate de um progenitor que lida com a toxicodependência do seu “rebento”.

Tendo como linha os livros de memórias de David e Nic Sheff (pai e filho), "Beautiful Boy" foge da corrente dos supostos filmes de superação pelo simples virar do holofote. A recordar exemplos como “The Fault in our Stars” (“A Culpa é das Estrelas”), que sob uma abordagem puramente adolescente, contraía a história de doença e resistência no epicentro da dor, elaborando com isso um filme egocêntrico, egoísta e demasiado martirológico (sem também falar das grandes “demências” deste trabalho pueril). No filme de Van Groeningen, à imagem de “Broken Circle”, o foco não é quem vive a dor, mas quem convive com essa dor, o segundo elemento da dita superação é sobretudo, neste caso, a família, que sofre e desespera e é nesse duo sentimental que nos identificamos (deixando com isso de serem meros ‘bonecos´ como são representados no anteriormente referenciado filme de jovens). E com este foco alternativo, o elemento de superação renuncia à sua apresentação como tal.

O que está em jogo não é mais esta esperançosa arte de motivação, “Beautiful Boy” desliza pela delicadeza, pelo arrasto e cansaço das personagens, um caso que soa ao de um milhão, e Van Groeningen fá-lo pela decência das mesmas (um imprescindível Steve Carell e um Timothée Chalamet a provar a sua garra de promessa). A composição de uma narrativa intercalada e temporalmente desmontada (como fizera com “Broken Circle’”) valida ainda mais a transfiguração representativa dos seus protagonistas, os “meninos bonitos” que se convertem “rebeldias autodestrutivas” e os pais presentes que ocultam o desejo de fuga fácil.

Sim, “Beautiful Boy” (referência direta ao single de John Lennon, novamente, demonstrando a “bom ouvido” do realizador) é uma obra que cospe na cara das milésimas Luas de Joana e afins, é a história da simplicidade (sem insinuar o simplismo do conflito), da confraternidade e mais uma vez da importância da paternidade. Mesmo que por vezes soe quase eunuca, impotente perante tais batalhas inesperadas.

Um sopro no coração

Hugo Gomes, 27.02.14

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Tal como uma dos personagens principais (o ator e argumentista Johan Heldenbergh), “The Broken Circle Breakdown” revela a sua adoração ao estilo norte-americano, nomeadamente o seu distinto melodrama. Contudo, e novamente em consolidação com o seu protagonista, vai-se divorciando dessa tal afinidade e estabelecendo as suas fronteiras, a do realismo europeu e a da fantasia onírica americana. Por outras palavras, é fácil identificar os elementos que comumente se visualizam nas enésimas obras americanas. Porém, tudo se resume a uma mimetização sarcástica desses mesmos lugares-comuns, ao mesmo tempo que o espectador evidencia um gradual afastamento em prol de um território europeu, realista até à medula e sim, como muito do seu cinema, deveras pessimista.

Mas é nesse pessimismo que encontramos a verdadeira beleza do novo filme de Van Groeningen (baseado numa peça de Johan Heldenbergh e de Mieke Dobbels), uma vingativa descida à eterna melancolia da vida celebrada com pequenos rasgos de graciosidade. Neste drama são muitos os momentos emocionantes e deveras poderosos, tudo graças ao par protagonista que desempenha fervorosamente os seus papéis (Veerle Baetens prestes a torna-se numa imagem de marca do cinema belga). Porém, e talvez o mais triunfante em “The Broken Circle Breakdown”, é que em nenhum momento sentimos pena deste casal, sentimos o roçar da lamechice e, mais infamemente, nenhum ato de esperança.

É um amor completo que gera uma família feliz, ambiente propício para esse tão cobiçado sentimento, mas traído pelo próprio ciclo de vida e culminando em desgraças capazes de converter o mais ou menos crente dos sujeitos. Tal como o título traduzido alude, é um Ciclo Interrompido pelo infortúnio, desfragmentado como a sua narrativa mergulhada entre o passado e o presente (um exercício narrativo a lembrar “21 Grams” de Alejandro González Iñárritu), onde a clara divergência entre estas duas linhas temporais é a fotografia, simbiótica com o tom do momento. É um debate refletivo sobre a natureza do revés e o sentido de uma vida que, por vezes, soa irónica e recheada de malvadez que nos faz questionar os propósitos de Deus.

Mas sem querer entrar nessa disputa religiosa que a promoção do filme parece forçadamente vender, o filme é uma faustosa melodia, um exemplo pesaroso que nos revela sintonia mas que de maneira ingrata retira-nos esse brilho. Apesar de tudo, é de forma apaixonada que Felix Van Groeningen aborda a desilusão no seu “Ciclo Interrompido”, o que se apostava ser mais um “by the book” do final feliz e que se torna numa envolvente obra sobre paixão e decepção, que aos poucos se tatua na sua própria narrativa.