O Brasil de hoje ... a tragédia!
Tragam-me a Cabeça de Carmen M. (Felipe Bragança & Catarina Wallenstein, 2019)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Tragam-me a Cabeça de Carmen M. (Felipe Bragança & Catarina Wallenstein, 2019)
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Em um debate decorrido no Cinema Ideal, durante a projeção de O Fim do Mundo de Basil da Cunha (no âmbito do Cineclube do Indelisboa), perante um grupo de alunos da Faculdade de Letras aventurei-me nas palavras “descolonizar o cinema português”. Isto, obviamente, seguindo a temática do filme pelo qual fui convidado a comentar, referia sobre a nossa perceção quanto aos bairros sociais e os seus respetivos biótopos sob a lente de diversos cineastas, os seus tratados teriam que ser, antes de mais, pluralizados em conformidade com um vasto leque de “quem o filma”. Esse descolonizar, o qual referi, e que possa, porventura, ser mal interpretado, deriva dessa passagem de testemunho do olhar predominante para aqueles que possam, através das suas especificidades e experiências, enriquecer o cinema e a sua ótica.
Contudo, pegando na sua definição mais “convencional”, encontramos um filme como Um Animal Amarelo que segue essa demanda [descolonizadora] por vias do auto-deboche ou da satirização do privilégio branco. Aqui somos exaltados pela jornada do “herói” branco nas buscas de riquezas exóticas por esse mundo fora e igualmente da sua emancipação frente aos fracassos do capitalismo. É um brasileiro, aspirante a cineasta (Higor Campagnaro), oriundo de um tropicalismo civilizado (Brasil), assim como encara, partindo para os remotos cantos da Africa subsariana, explorando, extorquindo o que de “selvagem” lá permanece.
Contado num jeito de fábula que cruza um imaginário paralelo e um bandeja crítica de todo essa “especialidade” branca, nunca reduzindo o seu grau de ridicularização, a quarta longa-metragem de Felipe Bragança é um exercício eclético que vias explorar a identidade brasileira e nunca restringir-se a uma mera tese. Aqui, o nosso protagonista desafortunado é a cobaia da experiência, essa, a da perceção que maioritariamente o Primeiro Mundo tem do Terceiro e por consequência o engano daqueles que não se revêm na sua classe e que forma um Segundo. A crítica pode-se estender à nossa portugalidade franciscana, iludida das glórias passadas que são, grande parte delas, etiquetas de 40 anos totalitários, mas é no Brasil, essa terra de clara multiculturalidade que as facas estão apontadas, com o fio direcionado ao seu contexto politizado (e não é “O” de agora).
Aí deparamos com o desejo de auto-integrar numa euro-identidade, recolhendo as sobras de velhos impérios, e negligenciando o negro historial do qual se formaram … os brasileiros, propriamente ditos. Um Animal Amarelo atormenta e desconsidera essa mesma colonização cinematográfica, recolhendo-se num abstrato conto que espelha a nossa relação com o Mundo.
Se existe uma moral digna de epifania como a de qualquer “fábula” aqui - novamente, eu a ler por alto as definições como elas são - é que para representar “o Brasil como está hoje em dia só pode ser cantado como piada ou como uma autópsia”, frase extraída da obra seguinte/anterior (tendo em conta a sua rodagem/lançamento) de Bragança, dirigido a meias com a atriz Catarina Wallenstein -Tragam-me a Cabeça de Carmen M. – é um dos sintomas do porquê da necessidade desta descolonização no cinema português (por um lado, Um Animal Amarelo possui uma “costela portuguesa” com certeza) e sobretudo brasileiro.
Aposta de novos olhares e além do mais, temáticas que possam acrescentar o pluralismo que falta, por vezes e muito, no nosso Cinema, esse, sim, é o "Animal Amarelo" na sala que precisa de ser falado.
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Um Animal Amarelo (Felipe Bragança, 2020)
Há um animal, grande, felpudo e tons amarelos que traz consigo memórias amaldiçoadas e poeira cintilante, que é um convidado de honra no Indielisboa.
"Um Animal Amarelo", o mais recente trabalho do jovem cineasta brasileiro Felipe Bragança, centra-se na história com ecos coloniais de um aspirante a realizador que decide refazer a sua vida como “caçador de riquezas” em Moçambique, sempre acompanhado pelo fémur dos seus antepassados e por um "espectro animalesco".
Conversei com Catarina Wallenstein, atriz que tem ganho nome na produção nacional em trabalhos de Manoel de Oliveira, João Botelho e Sérgio Tréfaut e que, do outro lado do oceano, tem trabalhado com Felipe Bragança numa reconstrução identitária brasileira, primeiro com "Tragam-me A Cabeça de Carmen M.", sobre uma atriz portuguesa que se acha perfeita para interpretar o papel de Carmen Miranda, e agora com o filme que encerra esta 17ª edição do festival IndieLisboa.
No IndieLisboa do ano passado, vimos "Tragam-me A Cabeça de Carmen M.”, que codirigiu com Felipe Bragança. Agora, chega-nos “Um Animal Amarelo”, mas sem a Catarina creditada na realização.
Na verdade, "Um Animal Amarelo” foi rodado antes do “Tragam-me A Cabeça de Carmen M.”, um filme menos ambicioso. Conheci o Felipe durante a rodagem do “Um Animal Amarelo” e decidimos trabalhar no “Carmen” durante a sua pós-produção, para estar pronto como filme-reação. Para existir com maior prontidão. Normalmente nos filmes aplicamos um maior desenvolvimento, aquele tempo todo para escrever, mas “Tragam-me A Cabeça de Carmen M.” foi uma experiência mais artesanal, um processo mais imediato com o momento presente, uma convulsão tão rápida para com esse tempo. Quisemos reagir e, por isso, já estamos a pensar fazer outro.
Em termos políticos, havia qualquer coisa de atualizado em "Tragam-me A Cabeça de Carmen M." em relação a este.
“Um Animal Amarelo” é um filme de camadas sobre a identidade brasileira, que é atravessada pelos tempos. Nós, portugueses, também albergamos essas questões, visto que o filme lida com o colonialismo presente na sua sociedade. Quanto a essa atualização, é bem verdade que os tempos estão a mudar e muito rapidamente, mas "Um Animal Amarelo" aborda questões que não desatualizam em um ou dois anos. O Felipe começou a trabalhar nos filmes antes da eleição de Bolsonaro. Em 2017.
Em “Um Animal Amarelo”, as televisões têm importância para o seu contexto temporal. Quando o protagonista embarca na sua aventura africana, notamos que o Brasil está atento ao "impeachment" da presidente Dilma Rousseff.
Exatamente! Foi uma localização temporal e como o Brasil atravessa durante estes anos, em particularmente desde o golpe. Penso que devemos chamar os bois pelos nomes. Porque do "impeachment" ao golpe existe uma mudança do "status quo" que vai da irresponsabilidade de uma pessoa a uma engrenagem de um movimento ainda maior. Aliás, a Dilma já foi ilibada do que fora acusada, ou seja, ela poderia concorrer outra vez. Só que o seu processo de destituição deu espaço a este atual governo que está a desmantelar o Brasil.
Tragam-me A Cabeça de Carmen M. (Felipe Bragança & Catarina Wallenstein, 2019)
No fundo, “Um Animal Amarelo” é uma fabulação da consciência colonial, quer do Brasil como também de Portugal?
Como cidadãos portugueses temos muito que olhar para a nossa História. “Um Animal Amarelo” é uma coprodução luso-brasileira que foi filmada em Rio de Janeiro, Beira (Moçambique) e Lisboa, criando uma rota comum com a da Escravatura. Permitindo aos dois países repensar o passado que carregamos nas costas. Mas isso depende de cada um e julgo que poucos estão abertos para o fazer.
Mas começa a questionar-se nos manuais escolares a nossa história colonial, nomeadamente a chamada Era dos Descobrimentos.
Sim, começa a existir, mas de forma simplificada. Aliás, um dos problemas de hoje é a facilidade de acesso à informação bastante simplificada, que traz pouca densidade de pensamento. Nós temos que olhar para tudo isto de forma mais complexa e não sermos abatidos pela culpa, porque esta não interessa para nada. O que interessa saber é de onde se vem e para onde vai e o nosso papel de causa-consequência efetivo no desenvolvimento socioeconómico de vários países.
Em relação ao cinema, os franceses “abriram” mais rápido essa desconstrução colonial, enquanto o português ainda vai em pequenos passos.
Sim, só que eles não passaram por uma ditadura de 40 anos que exaltava sentimentos de patriotismo de forma abnegada e pouco explicada. Como alguns “F” que nos ajudaram a construir uma identidade muito básica. A exaltação da bandeira através dos “futebóis” e dos seus respetivos clubismos. Reduzir a identidade nacional somente ao “Fado". Faz parte dela, mas nós não somos apenas isso. Não sou só a Catarina, não sou só uma atriz, não sou só uma mulher e não sou só uma portuguesa. Dentro de mim podem existir 50 pessoas diferentes, mas a questão é quantas delas quero conhecer, dentro da minha história, da minha família. Acho que devíamos ter um pouco mais de vontade de ser curiosos e deixar-nos surpreender.
Outro fator que julgo ser a essência das aventuras deste “herói” é que todo o filme traça um quadro geral do privilégio branco.
Talvez sobre o ridículo e a impossibilidade da utopia do "privilégio branco". O herói branco de “Um Animal Amarelo” é um anti-herói e o facto de ser um privilegiado branco não o faz dele heroico. Não é de todo uma boa pessoa, é um anti-herói que vivencia acasos e onde ele nem sempre é louvável. Isto é uma história onde os negros nem sempre os "bonzinhos", o branco não é nem o "bonzinho" nem o "mauzinho". Por outras palavras, nós não somos uma camada e o filme em si não recorre ao maniqueísmo, apenas desafia o que é "normalizado" para entendermos que existe uma faceta trágica em cada um de nós.
Um Animal Amarelo (Felipe Bragança, 2020)
No fundo, este “anti-herói” brasileiro, como a Catarina lhe chama, que generaliza a ideia de privilégio branco, é um homem ridículo. O privilégio branco é, isso mesmo, “ridículo”?
Sim. Contudo, julgo que, na cultura portuguesa, não temos essa capacidade de auto-deboche, de ridicularizar-nos e, no fundo, penso que seria algo que individualmente nos enriqueceria bastante. Desde 1500 que andamos a exaltar e a glorificar os nossos feitos, o que é muito ridículo porque somos um país muito pequeno, muito provinciano e, ao mesmo tempo, com mil e uma qualidades. Não sou nenhuma traidora da pátria por constatar defeitos ou fragilidades no meu país. Trazia-nos a complexidade que falta ver essas contrariedades e não somente vermo-nos como um povo simplificado de valores tatuados pela ditadura. A nossa geração ainda é herdeira do Estado Novo, ainda somos medrosos. Não nos posicionamos ainda porque ainda temos medo do que o outro pensa, fruto de anos e anos de denúncias e do constante peso da Igreja. É uma carga gigantesca que carregamos às costas e não queremos falar.
Abordemos o futuro, mais especificamente o cinema e a COVID-19. Acredita nessa coexistência nestes novos tempos?
O cinema continuará a existir depois da COVID-19. Não me preocupa verdadeiramente o cinema, tendo em conta a falta de sustentações políticas culturais que alimentem um setor que não só está desnutrido como é necessário à boa saúde da nossa democracia. Evidentemente que o Estado tem que ter um papel importante no apoio da criação plural, independente e diversificada. Não podemos todos depender de plataformas, marcas, curadorias empresariais para estarem a criar produtos massificados, todos parecidos uns com os outros, só porque sabe-se à partida que vai resultar a nível de bilheteira.
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