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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

16 Anos de Cinematograficamente Falando ... ainda 'moro' cá!

Hugo Gomes, 25.07.23

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Marcello Mastroianni em "La Dolce Vita" (Federico Fellini, 1960)

Bem, chegamos aos 16 e, segundo a lógica dos GNR, falta pouco para os 96. A caminho da sua maioridade, o Cinematograficamente Falando … tornou-se um espaço mais do que sobrevivente, caloroso de uma cinefilia perdida e partilhada entre blogs e "cinéfilos de cave", como também de expressão deste meio, algures entre a crítica (que não segue os padrões mercantis) ou do cinema enquanto discurso universal. É como uma espécie de bimby, cozinha-se tudo ao sabor da Sétima Arte, seja de transversalidades como políticas, estéticas, sociologias ou lirismo. Sai o prato e acompanha-se com uma boa cerveja, gelada de preferência.

De momento, com 16, não existe novidade alguma senão a perseverança e o aprimoramento deste espaço, meu, como também vosso. Portanto, convido-vos a explorar, comentar, criticar, degustar ou até desgostar (estão no vosso direito). E fora isso, um agradecimento a todos que têm contribuído para a longevidade do Cinematograficamente Falando..., não é só para mim que escrevo, como também para vocês, e as visitas confirmam essa adesão.

Ah... já me estava a esquecer, este ano teremos outro dossiê de convidados, desta feita sobre a relação entre Cinema e Medo, a ser lançado nas proximidades do Halloween. Brevemente adiantarei mais sobre esta iniciativa. Por enquanto:

CONFORME SEJA AS VOSSAS ESCOLHAS, BONS FILMES!

Celebrando a mentira com os mentirosos!

Hugo Gomes, 01.04.21

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No dia 1 de Abril, o cada vez mais banalizado Dia das Mentiras (tendo em conta que a verdade já não é mais uma definição absoluta nesta mesma contemporaneidade), celebramos o Cinema como a maior das mentiras criadas pelo Homem, e em especial, o assumidamente maior dos seus mentirosos – Federico Fellini. Porém, se a Mentira é aparentemente uma folia neste universo felliniano, ele também é [mencionando uma das mais conhecidas citações de Michael Haneke] um dispositivo ao serviço de uma verdade. Mas qual Verdade será essa? Ou a verdade é tão cruel e ácida que necessitamos de adocicá-la com a Mentira? Conforme seja a questão e a sua eventual resposta, o cinema existe, não para nos elucidar perante os nossos dilemas, mas para ... c'os diabos! ... Confundir-nos ainda mais. 

Na foto, Fellini e o ator e amigo Marcello Mastroianni, durante a rodagem de 8½ (1963).

Foi culpa da Lua

Hugo Gomes, 10.10.20

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Não faremos suspense algum em relação ao facto de “La Voce della Luna” (“A Voz da Lua”) ser o último dos trabalhos de Federico Fellini (falecido em 1993, três anos após o seu lançamento). Ou que foi criticado à época e nem mesmo os mais "fellinianos" conseguiram contrariar a tendência. Mas hoje, com a distância do tempo, podemos desenterrar nestes "iluminados lunares" um sereno e triste adeus, o de um homem derrotado por uma indústria que lhe falhara.

Baseado no romance “O Poema dos Lunáticos”, de Ermanno Cavazzoni, que também co-escreve o argumento, “A Voz da Lua” permanece o deambular de um louco, inocente e de perceção encantada perante um mundo em forte e rápida mudança, discutindo com os velhos “amigos”, eremitas de um destino não-concretizado. Nesta jornada, Roberto Benigni (antes do sucesso global de “La vita è bella”) assume este seu papel-tipo, o mesmo que levaria até às últimas consequências em “Pinocchio”. E assim somos paralelizados com o percurso de um cineasta, grande e “mentiroso”, homem forte de um movimento que fortaleceu uma máquina operativa de cinema em italiano.

O brilho do maestro Fellini tenta resistir ao seu possível esquecimento, provocado por um "boom" televisivo que seria um útil instrumento político em Itália e também o carrasco do estilo dito “felliniano”, que soaria cada vez mais caducado perante a chegada de novos autores, estéticas e formalizações. Neste contexto de decadência de um sistema italiano a torná-lo obsoleto, Fellini foi preservado como uma "espécie em vias de extinção", ou, apropriando-nos de “A Voz da Lua”, um lunático convencido que o seu ambiente se mantém intacto ao longo da existência artística.

Hoje, “A Voz da Lua” parece-nos o soneto melancólico de um eventual adeus, mas fora isso, é a sua entropia "felliniana" que o mantêm próximo do brilhante satélite que é o realizador. Aquelas personagens caricatas, excêntricas e convidativas de uma Itália de outros palcos, as constantes invocações do passado que se distancia mais e mais, deixando-nos nus face a um futuro sem filões, são marcas de Fellini recitadas num esforço incansável, mas reveladoras do seu imenso cansaço. Uma fadiga assente em persistência.

É o filme de Fellini mais fascinado com o desencanto à sua volta com o imaginário que criara ao longo de décadas de cinema. É Fellini e basta, mas o Fellini triste e inconsolado. Uma obra que merece uma nova vida para além do seu maldito estatuto. Merece, sim, compaixão.

Fellini aprendeu lições com as suas personagens e seguiu a sua própria estrada ...

Hugo Gomes, 01.09.20

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Nunca o Carnaval trouxe tais sentimentos! Alberto (o sempre grande Alberto Sordi) revira os seus olhos por entre os adereços e ornamentos daquela festa carnavalesca, aliás, fim de festa, onde só os resistentes parecem persistir nas últimas e arrastadas melodias. O seu olhar é de uma tristeza inconsolada, o de perceber que aquele evento cujas alegrias e aventuras lhe suscitou durante anos vai, ao seu tempo, desintegrar-se e transformar-se numa memória. Quem sabe – nostalgia - o pretendido “amarcord” (“lembra-te”). Com “Os Inúteis” (“I Vitelloni”), a terceira longa-metragem de Federico Fellini, tornam-se mais evidentes os valores que acompanharam a sua jornada enquanto cineasta feito e emancipado com um estilo próprio e que seria imitado no futuro até à exaustão.

O filme, que resgata do seu anterior “O Sheik Branco” (“The White Sheik" / “Lo Sceicco Bianco”, em 1952, com contributo de Michelangelo Antonioni no argumento), os atores Alberto Sordi e Leopoldo Trieste, é uma história de cinco amigos desamparados movidos pelas travessuras e sonhos traídos, imaginando as respetivas fugas daquele vilarejo que os viu nascer. Cinco estados de alma, que não são mais do que fragmentações da experiência de Fellini, enquanto este tenta transformar a região de Lazio numa espécie de Rimini improvisada, a sua terra-natal.

Digamos que “Os Inúteis” não é nem um filme autobiográfico nem uma ficção romanesca que caminha lentamente para fora dos parâmetros do neorrealismo, mas um poço de memórias diluído na matéria produtiva do cinema e cuja hibridez resulta num prolongado estudo de personagens. Estas deambulam em “miseráveis” existências, aprisionadas a um destino prescrito e esquecível, enquanto Fellini sonhava alto e não pretendia, de maneira alguma, ser como aquelas personagens, nem sequer invejar os seus rasgos de juventude inconsciente.

É através destas figuras, onde concentra o seu objetivo de vida, que Fellini se iria reafirmar, evadir e, por fim, conquistar o seu espaço e chamá-lo de seu. Rimini, território de infâncias, de primaveras várias, paixões e personas caricaturais que inspirariam o seu leque de bonecos “fellinianos”, foi uma estação de comboio do qual partiu com promessas de descobertas. O realizador concretizou o seu desejo, enquanto que este quinteto de cordas, os seus “inúteis”, que ansiavam pelo mesmo, ficaram paralisados pelo medo da memória e aprisionados à sua própria Terra do Nunca...

Giulietta 8 ½

Hugo Gomes, 28.08.20

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No episódio de “Cinema Sem Tempo” (“Cinema senza Tempo”) dedicado a Giulietta Masina, o entrevistador perguntava a certa altura com qual das personagens de Fellini a atriz (e esposa do "mestre") mais se identificava: Gelsomina (de “La Strada”) ou Giulietta, deste “Giulietta degli Spiriti”? A resposta da “menina dos olhos mais sentimentais do Cinema” foi apaziguadora: “um pouco das duas, e até mesmo Cabíria" [referindo-se ao seu outro papel célebre no universo de Fellini, em “Le notti di Cabiria”] .

Durante muito tempo e talvez até hoje, “Giulietta degli spiriti” foi tido como a resposta feminina ao anterior “Fellini 8 1/2”. Este primeiro filme a cores do grande “mentiroso” do cinema [carinhosa alcunha atribuída a Fellini] permanece um objeto fascinante que recolhe as memórias do amor da sua vida, intrometendo-as numa ficção onírica e delirante, algures entre um surrealismo fervilhante ou um carnavalesco desfile. Fellini usufrui das cores para preencher a tela com um festim visual que vai dos décors excêntricos e fantasiosos ao guarda-roupa vanguardista-chique e o constante jogo de luzes e sombras que nunca deixam intacto o rosto de Masina. Todos os planos são trabalhados em prol de uma estrutura desencadeada pelo críptico das suas imagens ou dos simbolismos com que as visões espirituais integram uma narrativa intrinsecamente tempestuosa.

Tal como em "Mrs Dalloway", o romance de Virginia Woolf, a protagonista é confrontada com os seus receios e suspeitas do marido estar a traí-la com uma mulher bem mais nova e um divã que a remete a uma infância de opressão religiosa que reflete a sua… digamos, submissão. A juntar ao tormento está um despertar psíquico que abre portas secretas a entidades de outros mundos, todas apontando para o seu desejo inerente, a vontade de mão dada com uma eventual emancipação, seja amorosa, matrimonial ou sexual.

Em contraste com esta Julieta de costumes brandos está a fantasmagórica vizinha Suzy (Sandra Milo), uma representação algures entre o ilusório e o alusivo de Afrodite, a guia necessária para a levar a lugares até então desconhecidos. Tal como acontece com “La Dolce Vita”, existe aqui uma certa classe hedonista envolvida em absurdismos. Seres integrados na sua festa sem razão, implorando pela atenção da câmara e do espectador.

Tudo isto resulta num espetáculo descoordenado, de falas cortadas ou movimentos inacabados que realçam as veias circenses de Fellini, transformando aristocratas e burgueses e as suas respetivas “loucas e inúteis existências” em arlequins de um filme verdadeiramente pessoal e … feminino. Uma luxuriante dedicatória a Giulietta Masina.

Entre Guido e Federico, entre o cinema e as mulheres

Hugo Gomes, 20.08.20

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Em "Fellini 8 1/2" (1963), aos 43 anos, o realizador contempla-se (e privilegia-se, digamos assim) com a capa fictícia de Guido (interpretado por Marcello Mastroianni, quem mais?) para o ajudar a refletir sobre o seu percurso e sobre a relação com o cinema que o envolve. Através dessa figura nasce o sempre enigmático “8 ½”, uma autobiografia de foro extensivamente existencial sobre um realizador num perplexo conflito de inspiração.

No centro desta procrastinação, surgem as mulheres, um signo que o remete para os mais variados desejos, sejam lascivos, amorosos ou simplesmente invocações do seu “amarcord” (o equivalente italiano a ‘saudade’, neste caso de casa, Rimini, aquela praia e aquele assombrado refúgio da figura de Saraghina). Sim, o feminino é o centro vital da vida de Guido e consequentemente dos atalhos memoriais do próprio Fellini, que concede “8 ½” como o auge do seu palanque felliniano, o estilo que compõe e liberta no auge da indústria italiana, proclamando como seu por direito.

Três anos após “La Dolce Vita”, onde esmiuçava um estilo de vida romanesco e claramente burguês, Fellini continuou a sua demanda pelas futilidades e pelas vontades inconsumíveis do ser mais insaciável, nós. O “eu” artístico não é mais que uma desculpa para alcançar essa genealogia da mortalidade. Mas voltando ao dito “felliniano”: é o onirismo provocatório que alicerça a fantasia masculina e insegura de Guido, os contornos que colocaram esta obra na vanguarda do seu autor. A partir daqui a relatividade do adjetivo criado adquirirá a sua aura e perderá para sempre a sua fisicalidade. Por outras palavras, foi com “8 ½” que o intrínseco do sonho molhado é experimentado e superado na sua mais devaneia forma. O resto, digamos, a carreira de Fellini, pairou no limiar da fronteira deste território com outros desejos na mente, como o de escapar à sua própria realidade. As memórias não serão esvaziadas totalmente aqui, continuarão anos largos e em outras produções de respeito da pauta de Fellini (entre as quais, “Amarcord”, lançado dez anos depois).

Mas voltemos ao universo estabelecido em “8 ½”, pondo de parte as “sequelas” causadas por esta introspecção. O filme assume-se como um bloco de palavras soltas, reorganizadas na tendência de um homem de chicote (literalmente) e é através destas mesmas palavras, diríamos decifradas por sequências e personagens passageiras, que o espectador se move em direção à “obra mestra”. O mono arquitetónico que culminará com a verdadeira fuga do artista: “para os produtores, um filme falhado é um fator económico, para o realizador representa a beira de um fim”.

Já aqui, desenhava-se a força motora da indústria cinematográfica italiana, dos lentos, mas contínuos processos de rivalidade (ou diluição) com Hollywood que, por um lado o iriam guiar para a sua decadência, nunca mais contrariada desde o final de 70. Mas por enquanto, Fellini interage com o seu lugar no cinema e cria a sua própria parábola.