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Emil Jannings como Mephisto em "Faust" (F.W. Murnau, 1926)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
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Emil Jannings como Mephisto em "Faust" (F.W. Murnau, 1926)
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Fruto do Vosso Ventre (Fábio Silva, 2021)
O medo da juventude parece um sintoma sobretudo manifestado por quem vê o seu cânone ameaçado por eventuais revisionismos ou reavaliações patrimoniais. Inconcebível percepção de que até os mesmos jovens detêm o seu direito de “queimar livros”, apologia de Henri Langlois que parece ser apenas aplicada a qualquer intervenção de Godard e nunca amplificada aos demais. Não que concorde totalmente com a destruição de um pensamento para a criação de um outro em oposição, mas sim, com específica abordagem com a novas gerações para uma conscientização do universo cinematográfico e mais do que impor vontades e visualizações, a possibilidade de escuta, as suas preocupações e visões, a fim de lhes conquistar o interesse. A cinefilia não é um estatuto garantido e estagnado, é um estado de passagem e quem faz desses territórios a sua casa é, inevitavelmente, proclamado cinéfilo como o alpinista que atinge o cume de tão apetecível montanha. Mas que é isso de ser “cinéfilo”? Curiosamente, foi através de um jovem que me fez questionar essa mesma “roupagem” nos últimos dias.
Apresento-vos Fábio Silva, graduado na Escola Superior de Teatro e Cinema, tendo no seu currículo algumas curtas - e uma longa-metragem à espera da luz do dia (“Hip to da Hop”, que quase obteve estreia comercial nos cinemas em 2018) – desafiou-me a repensar na definição de cinefilia, exercida para os dias atuais como gerais, num dos seus trabalhos. “Fruto do Vosso Ventre”, a curta motivadora deste texto, arranca com o próprio Silva a expor-se no ecrã, advertindo ao espectador daquilo que veremos e aquilo que a obra se assume, uma colheita memorialista, sobretudo de vídeos caseiros armazenados pelo seu pai, uma cápsula temporal que ostenta um teor genealógico. Essa visita guiada a um passado não tão longínquo, em busca de uma recordação que o une com o seu progenitor intermitentemente ausente, realça uma jornada identitária, tal como sucedera com “Visita ou Memórias e Confissões” de Manoel de Oliveira (o próprio realizador confessou-me essa inspiração, evidente no ponto de partida e de partilha do filme, a casa e que reminiscências ela esconde, no caso de Fábio Silva é a sua habitação de infância no Alto dos Barronhos).
O documento venceu o Prémio de Documentário do YMOTION: Festival de Cinema Jovem de Famalicão, seguindo o quarto uso do cinema propriamente dito, fora do narrativo, político e estético (este último pode estar “embrulhado" nos anteriormente mencionados, mas isso é conversa para uma outra altura), deparamos com as propriedades arquivistas, a de preservação de uma existência. Silva desejou com este pequeno filme conduzir-se à razão da sua presença neste mundo, tentando, como vontade epifânica, decifrar a personagem fantasmagórica que é o seu pai. Há aqui qualquer coisa que me remeteu aos ditos e lições (muitos que elucidamente adquirem cariz motivacional) do professor de cinema Pedro Florêncio nas suas aulas, em particular numa sessão sobre a Nouvelle Vague, referindo a transgressão destes, na altura, jovens cineastas, que “por vezes para avançar, o filho deve ‘matar’ o pai”. Aqui o verbo matar é figurativo, não o ato grotesco e animalesco, mas o de “cortar” com um pensamento seguidista que nos limita as ideias num só traço, e porque não, a falta de ambição para se restringir a aprovação “paternal”? Fábio Silva não “matou” o seu pai, mas o superou na sua partitura existencial, e através disso, traçou o seu próprio caminho, nem que para isso tenha que reviver, ou melhor, revisitar as suas memórias.
Visita ou Memórias e Confissões (Manoel de Oliveira, 1993)
A esta altura o leitor, o que tem de relacionado a curta de um jovem com o legado já duradouro e de certa forma paquiderme da cinefilia? Em “Fruto do Vosso Ventre” reti uma frase proclamada pelo próprio realizador / protagonista enquanto remexia e mostrava com o seu devido destaque a coleção de VHS(s) do seu pai: “O meu pai sempre foi cinéfilo sem saber o peso da palavra.” E aí fez o “clique”, não porque obtive uma resposta concreta, mas fiquei por mim a pensar o que é realmente ser um cinéfilo e que consequências isso aplica? Além do mais, que razão Fábio Silva declarou o seu pai como tal sem ter a consciência de o ser?
Palavra resultante da conjugação entre Cinema e Filo (do grego amigo), no sentido mais simplista do termo, o cinéfilo é um apaixonado por cinema, um vocacionado pela arte e na preservação da mesma nem que para isso a sua existência resuma a demonstrações amorosas. Em certa parte, a cinefilia é essa relação, esse ato de amor consumado que provoca vício, tornando os cinéfilos “doentes” e insaciáveis. Para Fábio Silva a devoção pelas imagens por parte do seu pai, seja na arrecadação de memórias filmadas e preservadas que mais tarde são fruto de um ventre cinematográfico (o filme para quem as metáforas fogem), ou seja nessa memória transcrita nos filmes que grava em 8mm ou a que detém na sua coleção de “cassetes”. A cinefilia pode muito ser uma jornada identitária, e cinéfilo essa posição de constante descoberta de si próprio.
E como em qualquer introspecção, existe um efeito entrópico, um caos que rodeia a cinefilia, mas será também o seu interior desorganizado? Discordo da organização, aliás, afronto-o com a História. Os Cahiers du Cinéma, a génese da Nova Vaga Francesa como bem sabemos, insurgiu-se contra uma canonização, um certo cinema francês, seguindo a ordem de pensamentos de Truffaut, que se instalou numa determinada intelligentsia francesa. Foram eles mesmos que colocaram Chaplin, Hitchcock e Hawks no sistema da canonização, portanto, “mataram os seus pais”, novamente parafraseando Florêncio, ou “queimaram livros” como situa Langlois.
Sunrise (F.W. Murnau, 1923)
Portanto, porque é que precisamos de três estágios como neste “artigo” (mais uma confissão que qualquer outra coisa) do site de cinéfilos “À Pala de Walsh”, sem ser o da limitação do próprio conceito de cinefilia? Porquê que quando falamos de decadência do cinema a ligamos umbilicalmente a uma “decadência da cinefilia” como fizera Susan Sontag no seu famoso texto em comemoração dos 100 anos do Cinema? Devemos confinar a cinefilia à nossa própria cinefilia, da mesma forma que Louis Skorecki escreveu na edição de abril de 1978 do Cahiers', um ativismo à chamada “nova cinefilia” que não foi mais do que o realçar da sua autenticada cinefilia?
Através dessa sopa de ideias faço o exercício mental de ir atrás da raiz de tudo. O que me faz duvidar de uma cinefilia canonizada? E a resposta foi encontrada na imagem, aliás, devo antes insinuar, palavras, vindas de Luís Mendonça, na altura somente fundador do referido site “À Pala de Walsh”, hoje já professor e programador da Cinemateca (só para dar a ideia de como nós somos personagens em desenvolvimento), que perante uma audiência, o qual fazia parte, lê um específico texto da autoria de Sabrina D. Marques, também ele relacionado com definição de Cinefilia. Não recordo de grande parte dele (numa pesquisa rápida o encontrei aqui), mas memorizei uma palavra tida como uma única frase - "Anarquia''.
Cinefilia pode assumir muitas definições, conotações e razões, mas nunca dependerá da disciplina, e essa mesma revela-se na antimatéria da própria liberdade, sobretudo a do olhar. Um olhar treinado não poderá ser um olhar limitado, acima disso, um olhar experiente que saiba contextualizar e a cinefilia integra essa experiência a merecer ser passada para terceiros, porém, densamente incrustada em nós. Não se trata de conflito entre cinefilias, trata-se sim da coexistência dessas mesmas que constituem uma constelação. Como o crítico Ricardo Gross uma vez disse, “o Cinema é familiaridade, é a aproximação para com os outros”. Não é bem a citação correta, mas sim o espectro desse mesmo diálogo.
Fruto do Vosso Ventre (Fábio Silva, 2021)
Falando em diálogos, um outro amigo, Duarte Mata, revelou-me uma fábula de Esopo - “O Vento e o Sol” - em que os dois elementos apostam, qual dos dois conseguem fazer com que um pobre viajante despisse o seu casaco. O Vento começou, soprou e soprou com a intenção do casaco voar. Não resultou e, aliás, o viajante agarrou-o com ainda mais força. O Sol, por sua vez, começou a brilhar intensamente, mais e mais, causando calor, levando, por fim, o errante voluntariamente a retirar o casaco. O Sol ganhou a aposta, e desta metáfora é-nos incutido a seguinte moral - a persuasão tem-se em melhor estima que a força. Ou seja, “obrigar” alguém a ver, no mínimo duas vezes, “Sunrise” de F.W. Murnau antes de este “pegar” numa câmara, não é favor nenhum a uma eventual cinefilia, é antes, incentivar à criação de anticorpos no indivíduo o qual deveríamos cativar. A consequência é a alimentação dum conflito entre cinefilias, aliás a disputa de uma nova em oposição de uma velha e cansada.
E foi com Fábio Silva que a ideia de cinefilia e a inexistência de uma definição total nela me fascinou ainda mais, e é por essa via que reforço a minha fé nos jovens em encontrar o seu caminho pelo Cinema e dedicarem-se à sua devoção do mesmo. Nós, “cinéfilos de velha guarda” como quiserem chamar, estamos presentes para os guiarem, alicerçá-los a redescobrirem-se, não para formatá-los a um modelo idealizado de “cinéfilo” (aquilo que nós poetizamos como tal).
A convite do YMOTION, moderei um debate entre os jovens realizadores de uma linhagem de curtas vencedoras do festival, entre elas “Fruto do Vosso Ventre”, que foi projetado na Escola Artística de Soares dos Reis, na cidade do Porto, perante um auditório composto segundo as restrições impostas pelo Covid. Sei que abusei do meu tempo, e no final da sessão-conversa dirigi-me à plateia, jovens sobretudo, e desafiei-os ao seguinte: “Se acham que o cinema português não comunica com vocês, o conselho que tenho vos a dar é pegar numa câmara e fazerem o vosso ‘cinema’. Deixar a vossa impressão nele.” Muitos balbuciarão de raiva perante este “ato grotesco” de solicitar o cinema apenas pelo gesto de filmar, mas é um incentivo ao apetite e quem sabe, desse apetite nasça cinéfilos, novos e frescos, assim como novos olhares, possivelmente um novo cinema português. Mas isto é especulação e os cinéfilos foram péssimos em prever o futuro.
Durante a Projeção-Conversa do YMOTION: Festival de Cinema Jovem de Famalicão, na Escola Artística de Soares dos Reis
PS: Neste texto, algo diarista digamos, menciono pessoas. Tal não foi em vão, nem sequer tive a intenção de servir deles como galões de legitimidade para o meu discurso. Apenas achei por bem, num texto sobre cinéfilos, “amigos do cinema”, invocar alguns dos meus amigos e cinéfilos. Porque é através da cinefilia deles que a minha enriquece.
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Nanook of the North (Robert J. Flaherty, 1922)
Comummente existe uma divisão aparentemente “inseparável” no Cinema e a sua relação com as imagens captadas. Através da sua mediação podemos salientar a ficção e o documentário, esta última estância, aquilo que poderemos chamar uma metragem que trabalha sob a realidade imposta, não mediada e “verificável por outras vias” (Jacques Aumont e Michel Marie). Certamente todo este conceito de imutável tratamento de imagens, as “puras” assim resgatadas da sua fonte, são discutíveis, tendo o documentário genuíno (uma ideia somente projetada pelo senso comum generalizado) originando as mais diferentes visões, seja o verité (uma exposição a nu do seu procedimento e intervenção), seja pela docuficção (ou docudrama), que requer na diluição das suas esferas cinematográficas (uma prática mais que valorizada no panorama português).
Contudo, chegando à génese do documentário propriamente dito, não poderíamos deixar de mencionar o seu “Pai” - Robert J. Flaherty – explorador de bom grado que encontrou no cinema uma via narrativa das suas viagens e experiências. Mas antes de Flaherty, já o Cinema, ingenuamente dando os seus passos cruciais, demonstrava essa necessidade pelo real como um efeito de afirmação. Os Lumières desbravaram inauguralmente esse território com os seus retalhos de vida, meras passagens de quotidiano imortalizadas em película e mostradas como uma prova da capacidade do seu cinematógrafo. Mas depressa os irmãos iniciaram a manipulação dessas mesmas imagens, seja pela aplicação do rewind ou fast forward, seja pela replicação como é o caso do famoso gag do jardineiro, encenado vezes sem conta durante as digressões dos aclamados fundadores do Cinema.
De Lumière seguiram os seus “filhos” que se lançaram a quatros ventos no resto do globo, coletando os diferentes quotidianos, delineando o mundo contemporâneo a descobrir e a ser descoberto por aquela nova plataforma. Mas aquilo que os Lumières visionaram e trabalharam são conhecidas como “atualidades”, uma exibição das capacidades tecnológicas do que propriamente artísticas. Nesse sentido saltamos para Flaherty e os seus caçadores do Norte.
Nascido perto da fronteira dos EUA e do Canadá (16 de fevereiro de 1884), Flaherty filmava as paisagens indomáveis do Norte Selvagem e dos respetivos habitantes para posteriormente projetá-los em sessões privadas com algum êxito a partir de 1916. Mas um acidente com cinza de cigarro alterou por completo esse rumo, queimando os 9 km de negativos, obrigando com isso Flaherty a refilmar o seu projeto. Foram precisos alguns anos para que pudesse angariar fundos para a sua expedição, regressando dela com a considerada obra de arranque ao universo documental – Nanook of the North (1922) – onde seguiu uma família de inuits (o que vulgarmente, e popularmente, chamamos de esquimós) tendo como figura central o caçador Nanook.
Automaticamente o filme foi um sucesso comercial e de crítica, reafirmando a habilidade de Flaherty, não sendo antropólogo, em retratar o quotidiano austero e igualmente afável deste povo nómada encaixando numa narrativa trabalhada. Mas cedo também surgiram as críticas que afastavam Nanook da sua genuinidade. Primeiro, pelo ponto mais leve, o nome do protagonista, que na realidade era Allakariak, cuja alteração deveu-se à criação de um título mais identificável às audiências ocidentais. Depois existem os clichés emaranhados no retrato, os inuítes são descritos silenciosamente no filme como seres sem cultura focados no seu permanente estado de sobrevivência. Flaherty pretendia filmar “selvagens” sem contacto com a dita sociedade moderna, o que a esta altura os inuítes conheciam perfeitamente esta cultura paralela. E isto leva-nos à sua maior controvérsia – a sua encenação.
É possível verificar através do filme, o protagonista a receber instruções do seu realizador, a indicar e moderar o seu comportamento selvagem como é no caso da sequência do mercado, onde Nanook (supostamente) vê um gramofone pela primeira vez e tenta comer os discos. Ainda há a questão da família, aquela visualizada no filme não é a sua, mas uma atribuída para efeitos estéticos. Contudo, os defensores, nomeadamente o crítico e teórico André Bazin sublinham a capacidade de Flaherty em explorar um território desconhecido das imagens impostas por uma realidade em trabalhá-las de um modo pericial, incidindo-o numa linguagem percetível a todos e didático sem assumir esse didatismo.
Moana (Frances H. Flaherty & Robert J. Flaherty, 1926)
A verdade, é que perante esta discussão de o que é real e fabricado, Nanook of the North é uma valiosa mina de imagens que permaneceram intocáveis até à atualidade, seja ela, a caça à morsa, uma implacável e angustiante sequência que encontra novas luzes nestes novos e sensíveis tempos, seja a construção do igloo que reforça a estrutura familiar de Nanook. Convém, afirmar que uma das mais concretizadas virtudes do filme de Flaherty é a constante demonstração de afeto do caçador em relação às suas crianças. Infelizmente, no final de Nanook of the North, a passagem destes para mais uma etapa de sobrevivência adquire um novo significado perante a tragédia (o protagonista e a sua família morrem durante uma tempestade pouco depois de terminarem as filmagens).
O efeito Nanook abriu portas para um novo conceito de abordar aquilo que o nosso redor nos oferece, criando o conceito que ainda hoje conhecemos como documentário. Para Flaherty foi também o início de uma jornada tão sua. Depois do Norte Selvagem, o realizador e a sua mulher – Frances Flaherty – aventuram-se no Paraíso dos Mares do Sul com Moana, o Homem Perfeito (1926), o qual reinventam o procedimento utilizado em Nanook, acompanhando um jovem polinésio até à sua estabelecida fase adulta. O filme, encomendado pela Paramount Pictures, que na altura recusou distribuir Nanook nos cinemas por não corresponder aos “parâmetros do espetáculo”, tornou-se, segundo o próprio, a obra mais pessoal de Flaherty e aquele que o perseguirá até então. Trabalharia com F.W. Murnau no argumento de Tabu (1931), um romance proibido na ilha de Bora Bora, e ainda na fase embrionária da adaptação do livro de Frederick O’ Brien – White Shadows in the South Seas (livro que inspiraria Flaherty a realizar Moana) – na versão assinada por W. S. Van Dyke em 1928.
Quanto ao retrato dos inuítes, passaram 98 anos e obtivemos um documentário de investigação aos resquícios destes povos do norte em Anerca, Breath of Life, de Johannes e Markku Lehmuskallio, que fora apresentado em Competição no Visions du Reel. O filme que salta para diferentes regiões geográficas coletando o que restou culturalmente, assim como a diluição dos “grandes caçadores” neste mundo modernizado e globalizado, é um Nanook of the North possível destes tempos em que o documentário não se reinventa e a etnografia “exótica” é mais que remoto.
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Na rodagem de "Faust" (F.W. Murnau, 1926)
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