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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

“Que Mulheres serão estas?”: a questão que vira sessão de curtas sobre mulheres ... e que mulheres!

Hugo Gomes, 04.10.24

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“Que mulheres serão estas?”, a pergunta que se faz de título, e o título que se faz de pergunta, talvez na persistência do dilema do que é uma mulher, e o que se faz para ser mulher. Decretos feministas, portanto, mas mais que isso, é a vontade de esmiuçar um género, ou além disso uma identidade, a partida dela nasce a iniciativa cinematográfica, três curtas portuguesas para fazer jus à tendência que desejamos tornar tradição. Essas sessões triplas, três produções cada uma delas oriundas de uma diferente produtora, cada uma correspondendo a uma visão e a uma definição própria de mulher. “Que Mulheres Serão Estas?” a questão que vira sessão.

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As Sacrificadas

Seguimos à tradicional e à sacrificada se não fosse esse também o título deste projecto - “As Sacrificadas” - sobre martires e forças, segundo se crê sobrenaturais, que o sexo feminino parece apresentar, neste caso a Otília (Tânia Alves), dividida entre o trabalho, em ser cuidadora da sua mãe e ainda, sob a ameaça dos fogos estivais. Uma curta que chega-nos ao circuito comercial com sabor de zeitgeist, um drama que borboleteia por esses temas e que revela “mão firme” de Aurélie Oliveira Pernet. Contudo, é um filme ausente, pertinentemente e perversamente, do seu lado incendiário. Entende-se a sensação de drama semi-rural enclausurado (mas sem fascínio algum para com esse meio), continuamente fechado a esta mulher de força avassaladora, e em consequência, cada vez mais apagada enquanto identidade, a tradicional e igualmente oprimida, nem que seja pelos códigos estabelecidos sociais, a da mulher, e aí está, sacrificada em prol de outros. 

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By Flávio

Depois segue a emancipação de uma outra mulher “aprisionada”, e não por menos desprezada, Márcia (Ana Vilaça), uma experiente em questões de redes sociais, sendo esse o seu escape, contrariamente condenatório à sua persona. Jovem, solteira e mãe, e com um pouco de inconsequência pelo meio, ela é, à partida, olhada de vesga pelos restantes, a irresponsável vista à lupa da tal sociedade que ordena e julga. “By Flávio”, curta de Pedro Cabeleira, uma das grandes ‘promessas’ do cinema português o qual não canso de insistir (basta conferir “Verão Danado”), trabalha aqui um filme sobre duplas vidas e de duplos desejos, com humor ácido e estéticas embebidas numa artificialização da fantasia pop. É um gag prolongado sobre as ditaduras visuais e aquilo que se prende nos “padrões socialmente seduzidos” do que é uma “mulher de descarte”. Vista as ‘coisas’ é uma emancipação feminina, da improvável, a suposta que “não vale um chavo”, corpo acima do resto, contra as convenções que a aprisiona. No final - “Sou eu e a puta da shotgun” - o grito de guerra da luta de quem por direito anseia uma nova feminilidade.  

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Um Caroço de Abacate

Já a terceira e última curta - “Um Caroço de Abacate” - de Ary Zara (cuja história da sua transpassagem encontra-se presente no documentário “Ary” de Daniela Guerra), lida com uma sombra preconceituosa, a do fetiche inicialmente, aqui representado por Ivo Canelas, homem cis que sente o fascinio pelo mundo de Gaya de Medeiros, aqui como mulher trans e prostituta, que numa certa noite decide mostrar-lhe um caminho alternativo ao lascivo da fantasia oculta. Das três é a historieta mais arriscada, até porque “puxa o tapete e sacode o pó” dela em temas e dilemas que numa sociedade ainda presentemente conservadora tende em negar, e curiosamente, o filme de Zara poderia funcionar nesse panfleto do que é mulher ou não é mulher, as fronteiras da identidade com o seu género, e agressão ao conceito de cisgenero e heteronormatividade. Poderia … mas para quem viu “Ary” apercebe que da sua experiência o ativismo é humano, é sentido, daí “Um Caroço de Abacate” jogar com o seu maior trunfo, a sua delicadeza e carinho para com as suas personagens, deixa de lado o discurso demolidor e transgressivo e se concentra num episódio “After Hours” com “Before the Sunset”, sem malapatas e nem romances acima da carne, apenas dois indivíduos de traços quase almodovarianos partilhando um mundo, uma dança, e uma expectativa. Empatia sobretudo, é a arma de guerra de Ary Zara, e nesse sentido faz mais pelas supostas “causas” que muitos irão realçar do que os verdadeiros “filmes de causa”. Somos humanos, e é o que importa, o resto é “conversa de tesão”. 

Portugal e o mundo árabe na distância de uma projeção. Arranca a 1ª edição do Lisbon Arabe Film Festival.

Hugo Gomes, 30.09.24

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Everybody Loves Touda (Nabyl Ayouch, 2024)

Entre as muitas definições sobre a verdadeira essência do Cinema (o nosso absolutismo da 'coisas'), que variam consoante a sensibilidade e a perspetiva de cada um, há um facto incontestável: esta arte, além de contar histórias, criar estéticas ou expressar gestos artísticos, teve e tem contribuído para o encurtar da distância geográfica. Sentimo-nos mais próximos, mais comunicativos e por vezes, mais humanos. Através de uma projeção, uma tela e um filme, somos “transportados” para outros cantos do mundo, sejam eles exóticos ou simplesmente distantes, essa capacidade "vendida" de viajar através do Cinema alimenta o desejo de saciar curiosidades, como a forma como um determinado povo se vê a si próprio, ou a imagem que projeta perante o resto do mundo.

Deixemos de lado estas divagações “pseudo-filosóficas”, diversas carimbadas em spots para vender cadeias de cinema, para anunciar que Lisboa irá acolher a primeira edição do Lisbon Arab Film Festival, uma mostra de obras produzidas provenientes dos mais variados países que comumente associamos à "Arábia": o Médio Oriente, conectando ainda com o Norte de África. Este evento terá lugar na Culturgest, entre os dias 1 e 5 de outubro. Não há dúvida de que filmes desta natureza são em todo um caso um ponto de escuta e de observação, desafiando estereótipos, denunciando ‘males’ ou simplesmente narrando vidas que poderiam muito bem ser as nossas. Há Mil e Uma Noites a serem contadas, em película e em digital, abordando temas como liberdade, fé e esperança.

Nabyl Ayouch, cineasta marroquino aclamado em diversos festivais, terá a honra de abrir este evento com o filme feminista “Everybody Loves Touda”. Já “Inshallah a Boy”, de Amjad Al Rasheed, uma coprodução entre a Cisjordânia, o Qatar, a Arábia Saudita e a França, encerrará a mostra. O Cinematograficamente Falando … desafiou João Gonçalves, vice-presidente do festival, a revelar mais detalhes sobre a programação.

A criação do Lisbon Arab Film Festival reflete a crescente necessidade de transcender estereótipos. Como foram selecionados os filmes para garantir o desafio dessas percepções convencionais sobre o mundo árabe?

A seleção dos filmes foi baseada em vários factores: a qualidade artística; a variedade de representatividade dos países árabes da região do Norte de África e Médio Oriente; a variedade de tópicos abordados nos filmes. Selecionamos filmes que representam uma multiplicidade de vozes e que desafiam estereótipos, mostrando que para lá do Mediterrâneo os desafios e desejos são inerentes à condição humana, e também que mostram algumas características culturais dos diferentes povos árabes. No fundo, pretendemos ir para além das percepções superficiais sobre a região, mostrando histórias de resistência, amor, lutas sociais e emancipação.

Sendo esta a primeira edição do festival, que impacto esperam ter no público português e, de uma forma mais ampla, na relação entre Portugal e o mundo árabe?

O nosso objetivo é criar um espaço de diálogo intercultural que permita ao público português explorar novas perspetivas e entender a riqueza e a diversidade do mundo árabe. Esperamos que o festival ajude a romper com alguns estereótipos e crie pontes de entendimento. A longo prazo, desejamos que o LAFF [Lisbon Arabe Film Festival] se torne uma plataforma cultural importante para fortalecer as relações entre Portugal e os países árabes.

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O cinema é frequentemente visto como uma ponte para a compreensão cultural. De que maneira pretendem abordar questões e temas sensíveis, promovendo um diálogo intercultural sem cair em polarizações?

A nossa intenção com o LAFF nunca foi torná-lo um festival político. O nosso objetivo é proporcionar ao público em Portugal a oportunidade de conhecer uma realidade diferente, mas que está tão próxima de nós. A presença árabe em Portugal durou cerca de 500 anos e, no entanto, sabemos muito pouco sobre esse período. Muitos aspetos da nossa vida, como a organização das cidades, especialmente a sul do Tejo, e a própria arquitetura, refletem influências do mundo árabe. Na seleção dos filmes, não evitámos temas sensíveis que possam causar impacto ou desconforto no espectador. Pelo contrário, acreditamos que o cinema tem o poder de ser um catalisador de reflexão e ação. Queremos que os filmes exibidos no festival não só gerem debate, mas também ajudem a promover um diálogo intercultural genuíno, abordando temas complexos de forma que vá além de visões polarizadas.

A curadoria do festival inclui várias produções co-produzidas com países europeus. Estas colaborações intercontinentais enriquecem a narrativa sobre o mundo árabe nos filmes apresentados?

Acreditamos que as co-produções entre países árabes e europeus trazem uma riqueza adicional às histórias. Além disso, essas parcerias permitem que as histórias sejam contadas com diferentes sensibilidades e recursos, contribuindo para uma narrativa mais completa e abrangente.

Com filmes de várias geografias, como Marrocos, Palestina e Arábia Saudita, de que maneira o Lisbon Arab Film Festival pretende sublinhar as diferenças culturais e sociais dentro do próprio mundo árabe, em vez de o tratar como uma entidade monolítica?

O festival foi projetado para refletir a diversidade dentro do mundo árabe, destacando as diferenças culturais, sociais e políticas que existem entre os vários países da região. Cada filme traz uma perspetiva única sobre o contexto específico de onde vem, seja no norte de África ou no Médio Oriente, explorando questões locais, tradições e formas de vida que contrastam entre si. O objetivo do LAFF é mostrar que o mundo árabe não é homogéneo, mas uma mancha de retalhos de identidades e culturas ricas e variadas, que por algumas vezes têm semelhanças entre si.

O festival não se limita apenas à exibição de filmes, mas inclui eventos paralelos como encontros com cineastas e experiências gastronómicas. Como é que estes elementos adicionais contribuem para aprofundar a experiência do público e ampliar o entendimento cultural?

Estes eventos paralelos, como as experiências gastronómicas, são essenciais para criar uma experiência mais imersiva e envolvente para o público, conhecendo melhor a região. A ideia seria que ao interagir diretamente com os realizadores, o público teria a oportunidade de entender melhor os contextos culturais e os processos criativos por trás dos filmes.

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Bye Bye Tiberias (Lina Soualem, 2023)

Como veem, dentro do circuito comercial português, a distribuição e difusão de obras cinematográficas árabes? Como acham que o público português reage a essas cinematografias?

Embora o cinema árabe ainda tenha uma distribuição limitada no circuito comercial português, o festival pode servir de plataforma para aumentar o interesse e a visibilidade dessas obras. Estamos confiantes de que, com a promoção adequada, o público português, que já demonstrou grande interesse pelo cinema arabe noutros momentos, com filmes como “Les Filles d'Olfa” [Kaouther Ben Hania, 2023], “Adam” [Maryam Touzani, 2019] ou a “Cairo Conspiracy” [Tarik Saleh, 2022], e acreditamos que a curiosidade despertará ainda mais depois do nosso festival.

Expectativas futuras para o festival?

O nosso objetivo é que o LAFF cresça e se torne um evento de referência entre o mundo árabe e Portugal. No próximo ano, temos a visão de expandir o festival a outras cidades portuguesas e de acrescentar um ciclo retrospectivo de obras anteriores ao ano 2000. Também pretendemos acrescentar uma nova nuance na nossa visão, que seria uma ligação cultural através da música e ter pelo menos um concerto por ano com artistas do mundo árabe. Assim pretendemos melhorar a construção de pontes culturais.

 

Para ter acesso a toda a programação, ver aqui

 

Próxima paragem: Estónia e arredores, com Porto no coração do 7º BEAST IFF

Hugo Gomes, 25.09.24

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Dark Paradise (Triin Ruumet, 2023)

Depois da Eslováquia, o “comboio” BEAST IFF embarca na Estónia, novamente com uma mostra rica de cinema proveniente daquelas andanças e ares, sem nunca olhar a meio às suas periferias. É o Cinema do Leste novamente a encher o Porto, a partir de hoje (25 de setembro) até ao próximo dia 29, com projeções no Batalha Centro de Cinema, Cinema Trindade, Cinema Passos Manuel, e eventos paralelos, conversas, exposições e DJ sets, na Livraria Térmita e no OKNA

A abertura traz ao grande ecrã três curtas-metragens que definem, e bem, o tom desta sétima edição, com destaque para “Sauna Day” (estreado no último Festival de Cannes), de Anna Hints (que o circuito nacional a reconhecerá de uma outra sauna confessional - “Smoke Sauna Sisterhood”) e Tushar Prakash, um olhar a uma sauna masculina com invocação quase xamânica. Além do filme de Hints / Prakash, a sessão inaugural contará ainda com “Heiki on the Other Side” (2022), de Katariina Aule, comédia negra com o submundo pós-vida à mistura, e “Miisufy” (que teve estreia no último Sundance), de Liisi Grünberg, animação sobre a dualidade real / virtual com inspirações reconhecíveis ao fenómeno Tamagotchi, reforçam a oferta rica e variada deste ano. Os realizadores de “Sauna Day”, a realizadora Katariina Aule e a produtora de “Miisufy” (Aurelia Aasa) estarão presentes na sessão.

Contudo, o Cinematograficamente Falando … dará voz a quem esteve realmente por trás deste evento, desta seleção e desta perspectiva que encherá o Porto nos próximos quatro dias, Radu Sticlea e Teresa Vieira, os diretores artísticos e programadores, repetiram o convite de responder e de desvendar os cantos e recantos desta sétima celebração do BEAST. O comboio não pára!

Com a Estónia enquanto país-homenageado desta edição, pergunto quais foram os critérios usados na selecção dos filmes e eventos que melhor representam o panorama cinematográfico contemporâneo e histórico do país?

O trabalho de desenho de programação advém de uma combinação de factores. Desde logo com os materiais a que o festival tem acesso, graças ao apoio dos nossos parceiros institucionais (como o Instituto de Cinema da Estónia e do Centro de Arte Contemporânea da Estónia, por exemplo). Materiais que advêm de pedidos já de si direcionados pela equipa curatorial do festival. 

O BEAST tem, no seu core, uma atenção para com trabalhos com assinatura de pessoas dentro do amplo espectro da identidade de género (que se traduz numa preocupação de criar uma programação com diversidade de género), uma atenção para trabalhos tanto do presente como do passado, uma atenção para com trabalhos de escola, uma atenção para com obras de videoarte, entre outras. A partir desta base, a equipa permite-se à descoberta: muitas vezes desconhecendo o caminho, este surge através de um longo e profundo trabalho de investigação. 

O programa emerge como resultado das aspirações iniciais da equipa, revelando-se como o fruto da inspiração que surgiu a partir de todos os filmes com os quais entrou em contacto. Assim, temos este ano uma secção de país de foco diversa: de curtas a longas-metragens; de documentários a ficção; de anúncios televisivos a videoarte.

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Sauna Days (Anna Hints & Tushar Prakash, 2024)

Este ano, a competição oficial conta com uma variedade de géneros e formatos, desde ficção até animação. Como garantem um equilíbrio entre a inovação artística e a acessibilidade ao público nas selecções de "Experimental East" e "AnimaEast"? 

Desde a sua primeira edição que o BEAST conta com as secções competitivas East Wave, East Doc e Experimental East. A secção competitiva AnimaEast foi introduzida o ano passado e mantém-se nesta nova edição. Uma adição que consideramos dar o espaço justo ao universo do cinema de animação num festival dedicado a regiões de forte impacto nesse contexto cinematográfico. 

Os filmes de cada uma destas secções são escolhidos pelos respectivos comités de selecção, que contam com especialistas em cada uma das áreas e com pessoas de diferentes nacionalidades - e isto aplica-se igualmente no caso da competição de animação e experimental. Os critérios de selecção têm diversos parâmetros e aquilo que ressalta é a alta qualidade e a relevância política dos trabalhos que procuramos trazer junto do público. Um público que vemos, desde sempre, tanto com interesse em entrar em contacto com narrativas e formas mais normativas, como com espaços de maior expansão das possibilidades da forma do cinema (que não se fechará nunca numa só caixa - e aqui estaremos, em conjunto com o público, sempre curioses e ansioses por navegar em todas as suas possibilidades).

A secção "Visegrad Film Hub" apresenta um conjunto diversificado de filmes de diferentes origens e temas. De que forma os programas como "LAPILLI" e "Fairy Garden" contribuem para a discussão sobre a memória e identidade da Europa Central e de Leste?

A selecção do documentário húngaro “Fairy Garden" foi feita em conjunto com o HU Verzio Film Festival, um dos festivais com os quais o BEAST colabora no contexto do programa Visegrad Film Hub. Este documentário de Gergő Somogyvári, vencedor do prémio do público da última edição do HU Verzio, encaixa na linha de programação do BEAST de representação queer. Este filme mostra-nos a (tanto dura como bela) realidade de vida de Fanni, uma jovem mulher trans e Laci, um homem de 60 anos sem-abrigo. Vivem juntos num lugar longe do centro de Budapeste. E nesse lugar, que surgiu devido à opressão social, à violência, cria-se uma casa de apoio mútuo, de trabalho para construção de uma realidade melhor para ambos. Uma família cria-se neste contexto: e a beleza surge dos gestos de ternura e amor que observamos e acompanhamos. Neste filme temos um equilíbrio entre o negativo e o positivo: mostrando os potenciais de salvação através de comunidade, de família escolhida, não deixando de lado todas as questões problemáticas da sociedade que essa mesma comunidade (ainda) tem que enfrentar. Questões presentes na região da Europa Central e de Leste mas também em Portugal e no resto do mundo. 

Lapilli” é a mais recente longa-metragem de Paula Ďurinová. Um filme-ensaio de homenagem à vida dos seus avós, tal como um filme que cria espaço para a realizadora lidar com os diferentes estágios de luto. Uma observação cuidada, uma abordagem sensível (como um sussurrar cinemático-geológico) que retrata, através do processo individual e único, algo universal. Ďurinová é uma de várias vozes de grande força no contexto cinematográfico da Eslováquia, e consideramos que este filme é um diamante que deve ser partilhado com o público no Porto

Com iniciativas como o CINE-GEOGRAFIA: Blackness and Race in the PRL, vemos uma abordagem histórica e social ao cinema. Como consideram que estas narrativas dialogam com a actualidade sociopolítica, e qual o impacto que esperam gerar no público português? 

CINE-GEOGRAFIA: Blackness and Race in the PRL abre uma conversa sobre a riqueza da troca cultural — como as interações diversas entre a Europa de Leste e as nações africanas deram origem a alguns dos movimentos criativos mais profundos. Num mundo muitas vezes dividido pelo racismo e discriminação, percebemos que a 'alteridade' não é algo a temer, mas algo essencial para o nosso crescimento e compreensão de quem somos. Com este programa, esperamos mostrar ao público português que, do outro lado da exclusão, está uma força vibrante e poderosa, alimentada pela diversidade. É ao abraçar essas diferenças que construímos as coisas mais impactantes e significativas, uma filosofia que está no coração do nosso festival e de muitos membros da nossa equipa.

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Queer Fighters of Ukraine (Alex King & Angelika Ustymenko, 2023)

A inclusão do primeiro festival de cinema queer da Ucrânia na secção "Queer Ukraine: Sunny Bunny" (que teve primeira edição no ano passado) merece destaque nesta programação. Que papel esperam que o BEAST desempenhe na promoção de cinema queer no contexto de um festival focado na Europa de Leste?

A ligação entre o BEAST e a Ucrânia tem acontecido ao longo de várias edições de diferentes formas, fora do contexto da secção competitiva do festival. Já tendo sido o País de Foco do festival, e com alguns programas especiais fora de competição, desde 2023 que temos uma colaboração com o Sunny Bunny (que teve nesse ano a sua primeira edição). Consideramos que, tendo em conta o contexto actual do país, torna-se ainda mais urgente criar um espaço para as vozes, as visões cinematográficas da Ucrânia - e, em particular, de narrativas sobre e vidas da comunidade queer.

No geral, BEAST tem tido uma forte presença de filmes queer na sua programação, além de muites des elementes da equipa fazerem também parte da comunidade. Desde o ano passado que decidimos formalizar essa atenção curatorial permanente com a criação de uma secção: How To Care for Cosmos. Um título inspirado no livro-diário de Derek Jarman, “Modern Nature”. Consideramos de extrema importância ter este espaço, e tentamos representar tanto filmes de países cujo contexto relativamente aos direitos e vivências da comunidade LGBTQIA+ não sejam positivos, como também os movimentos progressivos que acontecem na região da Europa Central e de Leste, que permitem um avanço para uma realidade mais igualitária. Uma junção de inquietação com esperança: tentando cuidar do presente para criar um futuro melhor. 

No ano passado, por exemplo, dedicámos um espaço a filmes queer da Eslováquia: país onde duas pessoas queer foram assassinadas a tiro. Uma tentativa de gesto de homenagem às suas vidas e de lançamento de um alerta para com as atitudes homofóbicas, transfóbicas que ainda acontecem em regiões de nossa proximidade. Este ano, por exemplo, temos a presença da Polónia: um país que, durante 8 anos, esteve sob um regime de direita que impediu o avanço dos direitos LGBTQIA+ e que instigou uma narrativa anti-”propaganda LGBTQIA+”. Com a saída desse governo do poder, quisemos criar um espaço que aponte para um futuro que esperamos melhor: “Such Feeling”, um filme de gestos de intimidade, que nos mostra como o apoio dentro da comunidade permitiu a sobrevivência de muites nesse contexto sócio-político. Um filme de lutas fora do ramo da violência (no extremo oposto): uma luta de arte política, de corpos e identidades reivindicativas, que esperamos que, nos próximos anos, alcancem os merecidos e devidos direitos.

A presença destes filmes e destas narrativas é fulcral para um maior entendimento do espectro de situações um pouco por toda a Europa. O BEAST é e quer-se manter como um espaço para a exibição de filmes sobre - e com - essas realidades, para a criação de um diálogo entre os diferentes pontos da Europa, incluindo Portugal.

O que poderá dizer sobre os convidados desta edição? 

Este ano, o festival conta com uma vasta e forte presença de realizadores, produtores e curadores da Estónia (País de Foco): Anna Hints, Tushar Prakash, Katariina Aule, Aurelia Aasa marcam presença na cerimónia de abertura e apresentam os filmes que dão início à 7ª edição do festival. Além disso, vamos contar com a presença de Lyza Jarvis da EKA, que irá apresentar os filmes selecionados para a Carte Blanche da escola de animação de Tallinn. Junta-se também a Marika Agu - gestora de arquivos do CCA, com quem o BEAST colaborou para a criação do programa de videoarte -, que irá apresentar o CCA, além de fazer parte do Júri deste ano.

O júri é constituído por Tadeusz Strączek (Polónia), Heleen Gorritsen (Alemanha), Jakub Spevák (Eslováquia), Eugen Jebeleanu (Roménia) e Juliana Julieta (Portugal). Do contexto da secção Visegrad, contamos com a presença das curadoras do programa CINE-GEOGRAFIA: Blackness and Race in the PRL, Monika Talarczyk e Magda Lipska, que farão uma apresentação deste que é um dos programas de grande destaque do festival. Contamos também com a presença de dois realizadores de realizadores de longas-metragens presentes nesta secção: Paula Ďurinová (“Lapilli”) e Gergo Somogyvari (“Fairy Garden”). No contexto da talk de Festival Makers do contexto Visegrad, teremos um momento de encontro, conversa e partilha com Eniko Gyuresko, Ewa Szablowska e Szymon Stemplewski, que partilharam as suas experiências na direcção ou direcção artística de festivais. São alguns dos destaques deste ano.

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Fairy Garden (Gergő Somogyvári, 2023)

A programação desta edição parece privilegiar não apenas o cinema, mas também as intersecções com outras artes, como a instalação imersiva de Štefan Oliš. Qual é a visão por trás da incorporação destas vertentes e que contributo esperam que tragam ao festival como um todo? 

Este ano, estamos a focar na integração do cinema com outras formas de arte para enriquecer a experiência do festival. Teremos elementos interativos por todo o festival, começando no nosso ponto de informação OKNA. A nossa colaboração com a TRAKT, liderada por Štefan Oliš, uma organização da Eslováquia que se especializa em media interativos e programas educativos para jovens, já dura há vários anos. Os visitantes podem contar com características interativas, como instalações sonoras e arte em vídeo, em vários locais. O nosso objetivo é criar um ambiente mais envolvente que estimule a participação e a interação com a arte apresentada.

Com uma sétima edição, para onde o festival irá, ou que fronteiras falta transpassar ou deseja fazê-lo, numa oitava edição? Por outras palavras, que ambições tem o BEAST?

“Para onde Vamos?” é o mote do festival deste ano. Algo que se relaciona inevitavelmente com um questionamento interno, de tentativa de entendimento do caminho pelo qual o festival quererá atravessar e para onde quererá chegar. Teremos mudanças já para o próximo ano - ainda por anunciar. E esperamos que o público nos siga nos novos passos que o festival irá tomar. 

Mas o mote deste ano não se prende somente com isso: é um reflexo de uma inquietação generalizada. Não é possível definir o futuro, mas queremos fazer parte de um trabalho comunitário - na área da cultura, na área do cinema -, contínuo, de criação de propostas que possam encaminhar para um mundo melhor, para um futuro possível. Ambições de utopia, que esperamos que nos levem a um lugar o mais próximo possível dela - é assim que todes caminhamos na vida. O cinema tem um grande papel nesse sentido: e queremos que o nosso trabalho se mantenha relevante no sentido de melhorar o estado das coisas.

"Elas Fazem Filmes", e fazem mesmo!: Mostra de realizadoras segue pelo país fora através da MUTIM

Hugo Gomes, 18.09.24

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Frágil como o Mundo (Rita Azevedo Gomes, 2001)

Arranca hoje (18/09) a mostra itinerante “Elas Fazem Filmes” - uma colaboração entre a associação MUTIM (Mulheres Trabalhadoras das Imagens em Movimento) e a Cinemateca Portuguesa, com o apoio do ICA. A mostra parte da “casa-mãe”, o Museu do Cinema, com uma sessão dupla: Cães que Ladram aos Pássaros, curta-metragem de Leonor Teles, e a segunda longa-metragem de Monique Rutler, “Jogo de Mão”, cineasta a ser redescoberta, e prossegue com a ambição de chegar a 14 cidades de todo o país até julho de 2025, trazendo uma coleção de obras, célebres e algumas esquecidas que merecem uma nova apreciação, todas dirigidas por mulheres - cineastas portuguesas que desafiam o cânone ou oferecem uma um novo olhar sobre a História do Cinema Português.

A mostra inclui fragmentos de Barbara Virginia, indiscutivelmente a primeira mulher realizadora em Portugal, com “Três Dias sem Deus” (dos 102 minutos, só restam atualmente 25), a inaugural produção portuguesa a competir no Festival de Cannes. Inclui também as primeiras obras de Rita Azevedo Gomes (“Frágil Como o Mundo”, 2001), Manuela Viegas (“Glória”, 1999) e Margarida Gil (“Relação Fiel e Verdadeira”, 1987), documentos históricos de Raquel Soeiro de Brito (“Erupção Vulcânica dos Capelinhos”, 1958) e de Ana Hatherly (“Revolução”, 1975), animação (trabalhos de Laura Gonçalves, Regina Pessoa e Alexandra Ramires) e documentário (Catarina Mourão, Cláudia Varejão ou Susana de Sousa Dias), entre outros. Um verdadeiro “espectáculo de variedades”, uma montra polivalente de filmes cujo único elo comum é o facto de terem sido conduzidos, concebidos e produzidos através do trabalho árduo e dedicação de mulheres.

O MUTIM disponibilizou-se a responder a algumas questões do Cinematograficamente Falando… não só sobre o ciclo itinerante, como também sobre as projeções e ativismos que “Elas Fazem Filmes” pretende alcançar, bem como sobre a natureza e a estrutura do coletivo. Mariana Liz, professora e co-autora do livro “Realizadoras Portuguesas: Cinema no Feminino na Era Contemporânea”, e Marta Fernandes, distribuidora e programadora [Midas Filmes], aceitaram o desafio, e respeitando o espírito do movimento, falaram em nome de todas, e não apenas uma. Assim, o MUTIM assume uma entidade coletiva e própria neste informativo diálogo. 

Qual foi o impulso inicial para dar vida à mostra “Elas Fazem Filmes” e quais os obstáculos enfrentados ao longo do processo de curadoria e produção?

Desde a sua criação em Abril de 2022, que a MUTIM promove sessões de filmes realizados por mulheres, sessões que contam com debates e a presença sempre que possível de realizadoras ou membros da equipa e de outras profissionais que possam discutir os filmes. As sessões começaram em Lisboa, em parceria com o Goethe-Institut, e mais tarde passámos também a promovê-las no Porto, em conjunto com a Casa das Artes. O ano passado e depois das conclusões do estudo do meio sobre “A Condição da Mulher nos Sectores do Cinema e Audiovisual em Portugal achámos que devíamos criar uma iniciativa que nos permitisse promover o cinema feito por mulheres em Portugal, mas também discutir a nível nacional e com os espectadores as conclusões a que o estudo chegou. As mulheres ganham menos, ocupam menos cargos de chefia, tem mais entraves à progressão da carreira, são vítimas de discriminação de género, assédio, racismo. 

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Jogo de Mão (Monique Rutler, 1983)

Relativamente aos entraves, o apoio que conseguimos do ICA, sendo fundamental para levarmos a cabo a mostra, foi, infelizmente, inferior ao solicitado e por isso não nos permitirá ir a tantas cidades como ambicionávamos. E no processo de programação, existiram também filmes que gostaríamos muito de ter incluído, mas que não foi possível por uma questão de inexistência de cópias disponíveis ou por questões de direitos. 

A mostra reúne cineastas de diferentes gerações, de géneros como também de movimentos artísticos. Como se deu a seleção dos filmes e de que modo acreditam que essa diversidade de perspetivas traduz o panorama do cinema português à luz das mulheres?

A programação da mostra “Elas Fazem Filmes” foi, como aliás todo o processo desde a procura de financiamento até à produção em curso, um trabalho colectivo, feito a muitas mãos. Queríamos apresentar uma programação inédita que permitisse ser um ponto de partida para reflectir sobre o cinema feito por mulheres em Portugal. E para isso era fundamental apresentar filmes de cineastas de diferentes gerações, a trabalhar em diferentes géneros cinematográficos de forma a que pudéssemos ter uma diversidade fértil de olhares e estabelecer diálogos entre filmes e realizadoras. Quisemos ter o máximo de géneros presentes, ter animação, documentários, documentários mais experimentais, aproximações ao fantástico e ao terror, ao filme etnográfico, à ficção científica. Mostrar que o cinema feito por mulheres em Portugal é muito variado e rico. E ajudar a desmontar preconceitos que existam relativamente ao cinema português e especificamente ao cinema realizado por mulheres. 

A colaboração com a Cinemateca Portuguesa, nomeadamente no que toca à digitalização de filmes, foi um ponto essencial para a concretização deste projeto. Como vêem o impacto dessa parceria na preservação e disseminação da obra cinematográfica de mulheres portuguesas?

É um trabalho imprescindível. Parte dos filmes que iremos mostrar só é possível fazê-lo graças a este trabalho da Cinemateca. Seria muito difícil exibir fora de Lisboa e da Cinemateca muitos dos filmes que programamos. É possível fazê-lo porque existem hoje cópias digitais. É preciso ter sempre presente a questão do acesso. Quando, no passado, outras cidades reivindicavam o direito a ter uma Cinemateca, estavam a pedir a descentralização. É claro que o acesso a cópias em 35mm é sempre difícil e por questões de preservação pode ser limitado. Com a digitalização, a circulação torna-se possível e os filmes passam a ser programados mais facilmente, salvando-os de uma invisibilização a que eram sujeitos por uma questão de suporte. Mas é um trabalho que tem de continuar a ser feito, e deve ser defendido e promovido, porque continuam a existir muitos filmes por digitalizar. 

A MUTIM defende uma maior equidade no sector cinematográfico e audiovisual. Na vossa opinião, que transformações mais urgentes precisam de acontecer para garantir uma verdadeira representatividade das mulheres no meio?

Há várias medidas que podem ser postas em prática e que contribuíram não só para uma maior representatividade das mulheres, mas também uma maior igualdade do setor do cinema e audiovisual em Portugal. Por exemplo, a MUTIM defende o estabelecimento de parcerias com instituições públicas, como a

Comissão para a Igualdade de Género, no sentido de explorar sinergias ao nível do aproveitamento de políticas que tenham impacto no nosso sector, e na sociedade de forma mais lata. Inspirando-nos no que já acontece em outros países europeus, propomos também que se implementem, nos concursos públicos de apoio ao sector, incluindo os do ICA, majorações nos projetos que cumpram critérios de representatividade de género e nos projetos que tenham como criadores e/ou chefes de departamento pessoas racializadas. 

Para além disto, defendemos a atribuição de um valor monetário extra a produções que cumpram 50%/50% ao nível da paridade de género na constituição das suas equipas e respetivas direções de departamento; e a atribuição de um valor monetário extra para a seguinte produção de produtora que continue a cumprir o critério dos 50% / 50% na composição de género das equipas. No que tem a ver com composições de jurados de prémios e financiamentos ao setor, é muito importante não só ter paridade, mas também formar as pessoas no sentido de combater o unconscious bias do sector e diminuir os estereótipos das candidaturas. Dar aos jurados Inclusion Checklists para acompanhar a leitura dos projetos pode também ser útil se contemplado no regulamento, e prevendo a atribuição de pontos extra na avaliação aos projetos que os cumpram. 

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Três Dias sem Deus (Barbara Virgínia, 1943)

Finalmente, recomendamos que seja posta em prática uma avaliação interna contínua sobre representatividade de género e racial, sendo que, na sequência do nosso estudo, acreditamos que ganhar consciência anual dos dados factuais que compõem ou não a diversidade das produções e das narrativas é um primeiro passo fundamental para a construção de um setor mais diverso e menos desigual. Aliada a esta visão, propomos também o estabelecimento de metas percentuais de representatividade e consequente aplicação de medidas para as concretizar.

De que forma a mostra “Elas Fazem Filmes” procura fomentar uma reflexão crítica sobre a imagem e o papel das mulheres no cinema português, tanto no conteúdo narrativo como nas oportunidades de participação?

Todas as sessões da mostra terão uma conversa / debate no final que contará com as realizadoras, profissionais mulheres que integraram a equipa técnica e artística dos filmes apresentados e associadas da MUTIM. E tentámos organizar as sessões de forma a que duas realizadoras de gerações diferentes pudessem conversar sobre as semelhanças e diferenças nos desafios de filmar nas suas gerações. Ao convidar não só realizadoras a falar sobre o filme, mas também outras profissionais, queremos sublinhar o trabalho da criação de um filme como um trabalho colectivo e valorizar todas as profissionais que para nele trabalham. Como já foi dito, queremos também que associadas da MUTIM estejam presentes para discutir as conclusões do estudo do meio, porque falar das conclusões do estudo é o primeiro passo para a mudança. 

A interseccionalidade tem sido um pilar nas discussões da MUTIM. De que modo este princípio influenciou a escolha dos filmes e como têm procurado dar palco a mulheres de diferentes contextos sociais, raciais e geográficos?

É algo que temos sempre presente e que tentamos cumprir o máximo possível e como tal influenciou parte das escolhas que fizemos de programação. Sabemos que as dificuldades que as mulheres enfrentam no cinema e no audiovisual são ainda maiores quando falamos de mulheres fora dos centros urbanos ou de mulheres imigrantes, racializadas ou trans. O nosso trabalho tem obrigatoriamente de passar por ajudar a eliminar essas barreiras.

A mostra vai passar por várias cidades do país. Como esperam que a itinerância contribua para a receção das obras e para a criação de novos públicos, especialmente fora dos grandes centros urbanos?

Quando começámos a pensar a mostra, pareceu-nos crucial que não fosse mais uma mostra que se centrasse unicamente nos grandes centros urbanos, até porque já organizávamos sessões regularmente nas cidades de Lisboa e do Porto. Tendo em conta que é muito mais difícil aceder a cinema português fora das grandes cidades, e mais ainda a filmes realizados por mulheres, achámos desde o início que a itinerância e levar estes filmes ao máximo de cidades possível seria uma necessidade. Mas mais que mostrá-los, os filmes serão acompanhados pelas realizadoras e por associadas da MUTIM porque queremos que se estabeleça um diálogo com os públicos, queremos ajudar à formação de públicos para o cinema português, mas também ajudar ao debate sobre as questões de género. E tentaremos em todas as cidades por que passarmos e com a ajuda dos nossos parceiros locais fazer um trabalho junto do público escolar, trabalho que nos parece de extrema importância.

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Para mais informação sobre a mostra ver aqui

7º Porto Femme: em Abril ser Mulher é continuar na Luta

Hugo Gomes, 18.04.24

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Sew to Say (Rakel Aguirre, 2023)

Abril, Águas Mil, contudo, nos último ano, na cidade do Porto parece ser costume clamar Abril, Mulheres Mil. Tendo arrancado na passada terça-feira (16/04), o festival Porto Femme apresenta-nos uma nova edição, a sétima para sermos mais exactos, novamente com destaque nas vozes femininas e acima de tudo nas suas histórias e Histórias.

Este ano, as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril contamina a programação, de lutadoras de gema a revoluções, pequenas ou grandes, redefinidoras de um cosmo feminino. Além disso, Margarida Cardoso, realizadora com sensibilidades atentas a um Moçambique historicamente colonial, é homenageada no palco (e tela) dos Maus Hábitos e do Cinema Batalha (estendendo-se para a Casa Comum do Porto, Casa das Artes e a Universidade Lusófona do Porto).

Em conversa com o Cinematograficamente Falando …, Rita Capucho, co-diretora artística do evento, aborda as novidades, os filmes (122 oriundos de 38 países), os desafios, workshops, masterclasses, e todos esses elementos que constituem este 7º Porto Femme.   

Que desafios trazem esta nova edição do Porto Femme?

A cada edição lidamos com alguns desafios que são constantes, sendo o financiamento o principal. A dignidade que pretendemos alcançar, a devida e justa para todas as pessoas que trabalham no projecto e que nele participam mobilizam-nos todos os anos.

Para esta edição em particular o maior desafio foi olhar para a nossa trajetória e pensarmos em termos de interseccionalidade e de diversidade e de que modo poderíamos trilhar um caminho mais inclusivo.

O festival tem sido programado no mês de abril desde a sua sexta edição e neste ano de 2024 ganhou um sentido especial além do desafio de pensar um programa para o mês com a enorme carga simbólica que são os 50 anos da Revolução dos Cravos. Longe de fugir ao tema, resolvemos mergulhar e refletir sobre o seu contexto histórico e como afetou a vida das mulheres. A escolha do tema recaiu sobre as mulheres e as revoluções, com intuito de refletir sobre a luta dos direitos das mulheres que ainda está bastante aquém, e tão pouco chegou com o 25 de abril, se se pensa com relação à igualdade de género, à liberdade e ao poder de decisão sobre o próprio corpo, entre outros aspectos. A decisão de apresentar o tema “Mulheres e Revoluções” no plural, quer refletir a diversidade em termos de contextos político, sociais, geográficos e étnicos. O movimento feminista funciona a diferentes ritmos consoantes esses contextos. 

Um dos destaques desta edição é a homenagem à cineasta Margarida Cardoso, das suas visões oriundas de um Moçambique colonial e pós-colonial, assim como o fortalecimento no olhar feminino nestas mesmas “visões”. Gostaria que me falasse no trajeto até à proposta desta homenagem, e a importância de Cardoso, não só no cinema português e para lá do continente, como também nas correntes discussões sobre o colonialismo.

Desde o início do projeto que a Margarida Cardoso esteve presente na lista das cineastas que pretendíamos homenagear. Com a decisão de abordarmos o tema a partir da perspetiva do 25 de Abril, pareceu-nos o melhor contexto para trazê-la ao palco do festival. Os filmes da Margarida abordam o passado colonial e pós-colonial, debates cada vez mais presentes na sociedade portuguesa, além de seu olhar muito particular que traz as mulheres para o centro, dando visibilidade e que nos parece ser um olhar necessário, atento, sensível e reflexivo. Interessa-nos sobretudo este tipo de olhar e de sensibilidade.

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A Costa dos Murmúrios (Margarida Cardoso, 2004)

O que poderá destacar na programação, dos filmes aos convidados?

Gostava de destacar a secção especial “Mulheres de Câmara na Mão, Cinema e Revolução” que apresenta filmes realizados entre 1975 e 2015, e que em sua maioria reperspectivam o 25 de abril. Poderão ser conferidos obras de Ana Hatherly,  Catarina Alves Costa, Margarida Rêgo,  Solveig Nordlund, Monique Rutler e  Luísa Sequeira, co-curadora deste programa. Além disso, os filmes da competição temática traz uma seleção de narrativas revolucionárias, como por exemplo, “Analogue Revolution: How Feminist Media Changed the World” (2024) de Marusya Bociurkiw, faz um apanhado das comunicações feministas entre os anos 70 e 90, precedendo a era #MeToo; “Šagargur” (2024) de Nataša Nelević, é o testemunho sobre um campo de prisioneiros na ilha de São Gregório, onde mais de 600 mulheres foram torturadas entre 1949 e 1952; “Sew to Say” (2022) de Rakel Aguirre, apresenta um protesto feminista que durou quase duas décadas, em que mulheres se fixaram num acampamento para protestar contra as armas nucleares; “Uma Mulher Comum” (2023) de Debora Diniz, é a história de uma mulher que viaja à Argentina para realizar um aborto.

Gostaria que me falasse sobre o workshop - “Desconstruindo estereótipos - o cinema como linguagem para transformação” - e as pretensões e objetivos deste evento.

Este workshop é realizado em parceria com o CineDelas e procura explorar temas da contemporaneidade no cinema e debater de que modo é possível democratizar e criar melhores condições para alterar o atual paradigma do setor no que diz respeito a igualdade de géneros, a condições laborais e a condições de inclusão.  

O objectivo é refletir sobre os estereótipos tendo como temas orientadores o feminismo, a colonização, o patriarcado, a democratização da cultura e do cinema, a importância da cultura local e regional, entre outros. De uma proposta de reflexão surgirá o desafio de criarem uma curtíssima de um minuto que apresente o olhar particular de cada participante.

O recente filme de João Salaviza e Renée Nader Messora - “A Flor do Buriti” - menciona a luta das mulheres indígenas em “empoderar-se” (palavra que extraiu do português do Brasil) num país constantemente alavancado num capitalismo feroz e nas constantes ameaçadas do ultraconservadorismo que relegam os povos originários à condição subhumana. Trago isto como mote de conversa sobre a especial secção “Uma Revolução Íntima. De Monstros e Mulheres no Cinema Indígena”, se a idealização deste espaço prendeu-se com a influência da estreia do filme, e que propósitos tem essa mesma secção especial?

A ideia para esta secção especial já vem de edições anteriores, mas não deixa de ser interessante esta coincidência, inclusive porque possibilita ampliar o diálogo com outras iniciativas afins. Esta secção especial com a curadoria da Maria Luna-Rassa — coordenadora e programadora associada da Muestra Internacional Documental de Bogotá — apresenta filmes produzidos em outros países da América Latina, Colômbia e México, que poderá ser um interessante complemento à produção brasileira. O propósito desta secção, como também da “Enfim o Amor”, é criar espaços de visibilidade, trazendo novas narrativas e novos protagonismos para o centro do festival. 

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Quais os próximos desafios para a Porto Femme em edições futuras? Haverá extensões por outro lugares fora da cidade da Invicta (e as sessões de Lisboa)?

Mensalmente, na última quarta do mês, apresentamos as nossas Femme Sessions no Maus Hábitos no Porto e já deixo o convite para a do dia 24 que trará alguns premiados da edição. 

Ao longo do ano percorremos o país com as nossas sessões itinerantes. No ano passado, estivemos em Leiria, Viseu, Coimbra, Águeda, Amarante, Aveiro e Amadora. Habitualmente programamos sessões ao nível internacional, tendo realizado no ano passado sessões no Brasil e no Canadá. Este ano o objectivo é regressar a algumas destas cidades e claro levar o festival a novos locais e a outros países.

Toda a programação aqui

Ímpares - Ciclo de Conversas / Double Bill: Abel Ferrara - Bacurau & Vazante

Hugo Gomes, 09.04.24

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Na próxima segunda-feira (15 de abril), estarei na sétima sessão da iniciativa Ímpares - Ciclo de Conversas enquanto moderador. Vai-se discutir a filosofia “desesperante” de Søren Kierkegaard em cruzamento com o filme de Abel Ferrara (“The Addiction”), com responsabilidade do Dr. Telmo Rodrigues, e ainda, do outro lado do Atlântico com “Bacurau” de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles com “Vazante” de Daniela Thomas, sob a batuta da poetisa e ensaísta Patrícia Lino. A ter lugar na Cinemateca Portuguesa, mais concretamente na Livraria Linha de Sombra, pelas 18h30. A entrada é livre.

Mais informação, ver aqui

Ciclo «Câmera-Corpo» na Culturgest: pela lente ergue-se a janela para o mundo indígena

Hugo Gomes, 04.04.24

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Na rodagem de "A Flor do Buriti" (João Salaviza & Renée Nader Messora, 2023)

Arrancou hoje (04 de Abril), a primeira edição do Câmera-Corpo”, ciclo promovido na Culturgest, em Lisboa, com “perninha” com o Festival Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte, do outro lado do Atlântico [Brasil], e motivado com a estreia de A Flor do Buriti” da dupla Salaviza e Nader Messora. Trata-se de um ciclo que decorrerá em dois dias com ambições de despertar a curiosidade lusa sobre o cinema-indigena e lançar-se no debate sobre, para além das estéticas, a sobrevivência destes povos e a preservação do seu modo de vida. 

Tendo curadoria de Daniel Ribeiro Duarte e Júnia Torres, esta última dando a honra ao Cinematograficamente Falando … de descortinar a mostra e a sua órbita, fica, para além do gesto a resistência não como grito mas como existência numa cinematografia que deseja, em todo o caso, ser emancipadora. 

Gostaria que me falassem sobre a génese deste projeto e como se desenvolveu a parceria com o forumdoc.bh - Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte?

O forumdoc.bh é um festival que há 27 anos exibe filmes indígenas, sendo pioneiro nesta difusão e divulgação.  

Em 2023 fizemos o lançamento do belo e importante filme “A Flor do Buriti", de João Salaviza e Renée Nader, em sessão comentada com a presença dos realizadores e dos argumentistas indígenas do povo Krahô. Foi um momento muito forte e bonito na programação. Deste encontro no Brasil partiu a ideia de realizarmos em Portugal, junto à estreia deste trabalho uma pequena mas significativa mostra das produções de diversas etnias que vem fazendo do cinema um modo de expressão valioso e um veículo de fortalecimento cultural, num movimento estético especialmente relevante para o documentário no Brasil.

Quais são os principais objetivos que esperam alcançar com esta mostra?

Difusão e valorização de um novo modo de fazer cinema, com novas perspectivas,  linguagens e abordagens que amplia o protagonismo autoral cinematográfico e colabora para a relação entre povos diversos e entre indígenas e não-indígenas. Esperamos que uma maior visibilidade internacional possa colaborar politicamente para a manutenção, emancipação e permanência dessas culturas com o seu modo especial de se relacionar com o Outro e o que chamamos de natureza.

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Yvy Pyte - Coração da Terra (Alberto Alvares & José Cury, 2023)

O que pode dizer sobre os filmes seleccionados?

Os filmes selecionados compõem um conjunto que procura mostrar trabalhos contemporâneos,  realizados nos últimos anos, com abordagens e estratégias fílmicas heterogéneas que vão de filmes mais etnográficos ou melhor, auto-etnográficos até filmes de experimentação formal, como vídeo-performance. Mas todos eles com recados importantes sobre os (civilização ocidental) limites ambientais, sociais, etc. São amostras de modos de vida diversos e mais ricos, como acreditamos. 

E em relação aos convidados?

O convidado principal desta Mostra será o cineasta Guarani, Alberto Alvares, um dos mais reconhecidos e atuantes realizadores indígenas em atuação no Brasil. Tuparay, seu nome Guarani, faz um filme muito pessoal e autobiográfico que a um só tempo é muito subjetivo e autoral e alcança as grandes questões pelas quais atravessam os povos indígenas no Brasil, assim como nos faz refletir sobre questões humanas gerais e existenciais. É o lançamento, fora do Brasil, na sua mais recente longa-metragem. 

Temos também Renee Nader e João Salaviza para comentarem o seu intenso e extenso trabalho de mais de uma década com o povo Krahô, comentando no dia 5, filmes autorais dos seus companheiros de realização nas Aldeias na região da Amazónia. 

Pesquisadoras e pesquisadores interessados e que já conhecem a produção dos cinemas indígenas também aceitaram os nossos convites para participarem, e estamos muito felizes com essa adesão.

Tencionam continuar com este ciclo no futuro, ou consideram-no como um evento único por enquanto?

Sim, a ideia é estabelecer possibilidades de continuidade nesse movimento para formar um público para estes filmes também em Portugal. A periodicidade permitirá também acompanhar o desenvolvimento dessa nova e inovadora cinematografia, pois a proposta é mostrar a produção contemporânea. 

still1-b.jpegEssa Terra é Nossa! (Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu, Roberto Romero, 2020)

Como encaram o trabalho de João Salaviza e Renée Nader Messora com o díptico krahô dentro do contexto do cinema indígena?

É um trabalho extremamente interessante pois incorpora elementos da cosmologia e da estética krahô nos filmes que são inteiramente atravessados por tais linhas de força e de potência. Desse encontro, surge uma nova perspectiva para o cinema do Real, que se constroi para além dos limites entre a ficção e o documentário, essa divisão, ou essas categorias e géneros fílmicos deixam de fazer sentido. É um modo de produção muito especial pelo nível de profunda relação, conhecimento e respeito com o coletivo indígena parceiro na realização. O que reflete numa proposta formal muito singular, que amplia os conceitos e as formas de se fazer cinema.

Não querendo estragar a "magia"", mas gostaria que explicassem a escolha do nome para o ciclo - "Câmera-Corpo" - e como os corpos dos indígenas são, maioritariamente, representados no cinema enquanto corpos políticos.

Os cinemas indígenas, assim no plural para respeitar ou responder à diversidade de povos que o realizam, mas também, evidentemente a sua bem-vinda heterogeneidade e complexidade formal, são cinemas do corpo, do gesto, das florestas, dos espíritos e não somente das palavras humanas.

Incorporam relações inter-espécies. A câmara funciona como uma extensão do corpo, do olhar, participa dos acontecimentos diários e rituais, dança, caça, compartilha mundos e modos de existência muito diferentes dos nossos. Permite-nos uma imersão nestas diversas cosmologias. A câmara é a flecha que luta e também o cesto que recolhe e guarda memórias fundamentais.

Curtas, curtinhas, a origem: 1ª edição dos Prémios Curtas

Hugo Gomes, 13.03.23

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Os premiados e os jurados / Fotografia.: Ricardo Fangueiro

Foi através de uma curta que Portugal desbravou caminho em direção à Kodak Theater, a nomeação à tão cobiçada estatueta norte-americana automaticamente entrou para a História audiovisual do nosso país, e então porquê de estarmos constantemente a reduzi-los a "protótipos" de futuras longas-metragens?

André Marques teve um sonho, criar uma cerimónia de festividades, premiações e de comunhão a esse universo bem português, a resistência do Cinema na sua mais natural essência, a simples e de rápida dicção, a curta. Para isso juntou oito magníficos* e fundou um júri, aliciou e arrecadou apoios, e “convidou” a todos os participantes a inscrever o seu trabalho. A sua vontade fez com que o seu desejo se materializasse. No passado dia 10 de março, sexta-feira nervosa devido à nomeação de “Ice Merchants”, cujos Óscares seriam revelados no domingo seguinte (“será desta?” pensavam todos os que presentes), o Auditório Fernando Pessa em Lisboa encheu-se (deve-se sublinhar), para receber a primeira edição, modesta, ainda com o seu quê de improviso, muitas vezes ocultado graças ao malabarismo e carisma de Rui Alves de Sousa, radialista da Antena 1, que assumia o papel de anfitrião. Intercalado pela dita premiação e pela projeção de três curtas referentes aos três géneros-base (ficção, documentário e animação), a cerimónia ficou marcada pelas promessas do seu fundador, ambicionando seguintes edições em maior escala e a ambição de um “microfestival” em celebração daquilo que a curta-metragem tão bem representa - o Cinema, aqui e agora.   

Quanto à premiação, a noite consagrou “Azul” de Ágata de Pinho com cinco prémios, no qual incluem as categorias de Curta de Ficção, Realização, Argumento, Atriz (também Pinho) e Fotografia (assinado por Leonor Teles). “O Homem do Lixo” de Laura Gonçalves arrecada três distinções (Curta de Animação, Curta Documental, Banda-Sonora), igualando com “Punkada” de Gonçalo Barata Ferreira (Montagem, Caracterização, Guarda-Roupa). Os outros prémios; Vítor Norte recebe o de Melhor Ator (“O Caso Coutinho” de Luís Alves), Nuno Nolasco como Ator Secundário (“Tornar-se um Homem na Idade Média” de Pedro Neves Marques), Rita Tristão na categoria de Atriz Secundária (“As Feras” de Paulo André Ferreira), Rodrigo Manaia em Interpretação Infantil (“By Flavio” de Pedro Cabeleira), e ainda a animação “Garrano” de David Doutel e Vasco Sá no campo dos Som / Efeitos Sonoros juntamente com a ‘dobradinha’ de “2020: Odisseia no 3.º Esquerdo” de Ricardo Leite (Direção Artística, Efeitos Visuais).

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Rui Alves Sousa e eu / Foto.: Ricardo Fangueiro

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Vítor Norte brama ao Cinema após vencer o Prémio de Ator / Foto.: Ricardo Fangueiro

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André Marques, fundador do evento, discursa / Foto.: Ricardo Fangueiro

*Bruno Gascon (realizador de “Carga” e “Sombra”), Mia Tomé (atriz e radialista), Edgar Morais (ator), Inês Moreira Santos (crítica e blogger do Hoje Vi(Vi) um Filme), Teresa Vieira (curadora, crítica e radialista da Antena 3), Rafael Félix (crítico e fundador do Fio Condutor) e André Pereira (videografo e editor de vídeo da Renascença).

Prémios Curtas - 1ª Edição

Hugo Gomes, 07.03.23

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Na próxima sexta-feira (10 de março) irá decorrer a 1ª Cerimónia de entrega dos Prémios Curtas, Auditório Fernando Pessa (Lisboa), apresentado por Rui Alves de Sousa (jornalista e radialista da Antena 1) e com exibição de três curtas-metragens (“Glória de Fazer Cinema em Portugal” de Manuel Mozos, “Arena” de João Salaviza e a animação “Nestor” de João Gonzalez [o mesmo de “Ice Merchants”, nomeado ao Óscar]). Integrei o júri em conjunto com Bruno Gascon (realizador de “Carga” e “Sombra”), Mia Tomé (atriz e radialista), Edgar Morais (ator), Inês Moreira Santos (crítica e blogger), Teresa Vieira (curadora, crítica e radialista da Antena 3), Rafael Félix (crítico) e André Pereira (videografo e editor de vídeo). 

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Os nomeados poderão ser conferidos aqui.

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2ª Edição do Salão Lisboa: o cinema português não tem que ser o "mau da fita"

Hugo Gomes, 06.07.22

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Kilas (José Fonseca e Costa, 1980)

Por Lisboa adentro, a capital comemorará o cinema português numa segunda edição do Salão Lisboa, iniciativa do Alvalade Cineclube que visa trazer os aromas de um “cinema de rua", prevalecendo a ideia de que os filmes merecem mais lugar do que somente salas de estar e salas de centro comercial. 

Esta mostra trará produções portuguesas tão diversas desde o culto de “Kilas, O Mau da Fita”, o grande êxito de José Fonseca e Costa, até à musicalidade oriunda do bairro de Alvalade em “Já Estou Farto!” de Paulo Antunes, com paragem na tragédia relembrada (e nunca esquecida) por “Alcindo” de Miguel Dores e o convertido conto de marujos e de sereias em “A Cidade Branca”, uma das obras mais famosas do cineasta suiço Alain Tanner. Quatro longas-metragens, projetadas em quatro sábados, e localizados em espaços periféricos a cinemas de bairro, hoje extintos, mas cuja memória ecoa nessta resistente cinefilia lisboeta. 

Cinematograficamente Falando … falou com a programadora Inês Bernardo que explicita o projeto, a ideia e os filmes, e do porquê necessitarmos de mais iniciativas como estas.

O que podemos esperar desta iniciativa na sua segunda edição? Quais as ambições do projeto? 

Antes de ser qualquer mostra ou iniciativa, o Salão Lisboa era um cinema. Estava ali no Martim Moniz, ainda lá está, e era um “cinema piolho”, o tipo de cinema mais democrático que já existiu nesta cidade. E na verdade é mesmo isso que queremos, desde o início, que as pessoas vejam cinema como parte natural da sua vida na cidade, como quem vai à frutaria ou fala com a vizinha. Porque isto já foi verdade, já fomos todas mais mulheres e homens do cinema, e isso perdeu-se. Claro que somos hoje todas pessoas diferentes, mas também se perdeu porque fecharam quase todos os cinemas da cidade, os cinemas de bairro, onde não se comprava um bilhete no balcão das pipocas. 

O Salão Lisboa, como o concebemos, é na sua essência, uma Mostra de Cinema Português em espaços de memória. No início deste ano esses espaços foram sociedades recreativas tradicionais, em Alfama, na Estrela, nas zonas históricas. Agora trazemos a iniciativa para o nosso território de base, porque Alvalade é literalmente o Bairro do Cinema. É o bairro dos “Verdes Anos” e dos realizadores a beber café no Vá-Vá, mas é também o bairro onde fecharam o King, o Quarteto, o Caleidoscópio, o ABCine e outros tantos. É importante falar desses cinemas e porque fecharam, porque deixámos que fechassem. É por isso que todas as sessões em Julho são literalmente à porta desses espaços de memória, excepto no caso do Quarteto que é mesmo dentro do edifício, no terraço. Temos que perceber todos em conjunto porque isto aconteceu, e a melhor forma é voltar a projectar cinema ali. 

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Gostaria que me falasse desta seleção? Que critérios foram usados para a escolha destes filmes? Gostaria só de acrescentar um reparo, todos os quatro filmes têm, direta ou indiretamente,

Lisboa como centro da ação. É exatamente por aí! Escolhemos cinema português que tem, directa ou indirectamente, Lisboa como o centro da acção e tem relação com os lugares onde os vamos exibir. O “Kilas”, por exemplo, estreou originalmente no Quarteto - que é onde o vamos mostrar, o “Já Estou Farto” tem uma relação directa com o bairro, porque é sobre o grupo punk que apareceu ali, exactamente nos Coruchéus. Está lá o mural do Ribas e tudo! Além disso mantemos a nossa identidade de programação: projectar filmes que merecem ser vistos, e que fazem mais perguntas do que dão respostas. São filmes gatilhos, que puxam conversas, que emocionam as pessoas de alguma forma, que não as deixam indiferentes. 

Não só esta iniciativa, mas também outras promovidas pelo Cineclube de Alvalade, é possível aproximar o cinema português a novos públicos (contrariando a tendência contrária que estamos a experienciar)? 

Na verdade não temos bem a certeza dessa “tendência contrária”.... Talvez até seja verdade para o cinema de ficção mainstream, mas não é no documental, por exemplo. A nossa experiência nos últimos três anos diz-nos que os ciclos de cinema português, e temos sempre um completo todos os anos, são os que mais atraem os espectadores. São sempre quando temos mais pessoas e, mais importante, espectadores interessados, que querem mesmo descobrir o que vêem na tela e ouvir o realizador, e mesmo partilhar a sua visão sobre o filme. E não são espectadores geriátricos! São na sua maioria pessoas abaixo dos 50 anos de idade, que querem mesmo ver os filmes do Tiago Pereira ou da Cláudia Varejão ou da Manuela Serra

A distância entre o cinema português e novos públicos é igual ao nosso empenho em mostrar realidades diferentes. A chave é o trabalho de curadoria. É preciso pensar, discutir, descobrir, e não aceitar a primeira coisa que aparece nas tabelas de distribuição. O resto são as pessoas. Existem espectadores interessados, a sério, e não têm problemas com língua ou geografia. O futuro é da curadoria, dessa proposta de olhar. Estamos todos desejosos por alguém ou algum projeto que nos ajude a descobrir o que não conhecemos. 

Uma das declarações das notas do projeto, é a pretensão de reavivar o “cinema de rua”. Pegando no trabalho que o Cineclube Alvalade tem feitos nos últimos tempos, nomeadamente a abertura da Sala Fernando Lopes, o grande objetivo é sim, relembrar a Lisboa o ato de “ir ao cinema”? 

A prática. A prática de ir ao cinema. Ir ao cinema como quem vai ali buscar o jornal e o pão de centeio. Porque ir ao cinema não tem que ser um evento familiar especial de aniversário, nem tem que implicar navegar num programa gigantesco de um festival que aparece uma vez por ano, como uma fada. A única razão para termos perdido o hábito de irmos ao cinema de forma natural, como quem vive a cidade, foi os cinemas terem desaparecido das nossas esquinas, dos bairros, e parece que tem que ser um programa de centro comercial quando chove. É muito mais que isso. A Sala Fernando Lopes, uma maravilha da Universidade Lusófona, é um cinema de cidade, aberto, acessível, super bem equipado, e é uma felicidade enorme existir e podermos programar ali. As pessoas fazem “uau!” quando entram. Já tivemos espectadores que apareceram para a sessão sem saber o que iam ver. Se com o que fazemos relembramos esse ato de “ir ao cinema” até este ponto, então sim, vamos relembrar, e relembrar e relembrar. 

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A Cidade Branca / Dans la Ville Blanche (Alain Tanner, 1983)

Os locais onde o Salão Lisboa ocorrerá, foram em tempos salas de cinema, tendo em vista a recente abertura da Sala Fernando Lopes, gostaria de lhe questionar sobre a possibilidade de uma nova reabilitação destas antigas salas ou uma ascensão do próprio conceito de cinema de bairro na capital? 

Ui, que conversa longa se fazia agora.... Nós sonhamos com um novo cinema de bairro em Lisboa. É muito, muito, muito difícil que esse cinema, a existir um dia, seja um destes reabilitados. Porque os poucos cinemas fechados que ainda não foram modificados (como o Quarteto ou o Caleidoscópio, que hoje têm outra funcionalidade) estão num estado de ruína tal que o nível de investimento necessário é difícil de medir. São milhões! E, depois, há a questão chata do modelo de negócio.... Deve um cinema hoje ser como há 30 anos? É para nós óbvio que não. Um cinema em 2022 tem que ser um centro cultural multidisciplinar de proximidade, adaptado em escala ao seu território, com capacidade de dinamizar diversas actividades e convocar a comunidade. E para isso acontecer é praticamente mandatório que exista um suporte público, para além de ligação à sociedade civil e corporativa. Se a ascensão de um novo conceito de cinema de bairro é fulcral, também é evidente a dificuldade em ativar, sobretudo por razões económicas. 

Há inúmeros bons exemplos de cinemas independentes com este modelo ou aproximado, na Europa. Nós temos vontade, até temos algumas competências e é possível que continuemos um trabalho de aproximação e sensibilização para este futuro desejado (junto da autarquia, organismos oficiais...), mas, para já, sonhamos com isso. Sabemos que não se pode continuar a produzir o volume de filmes que se produzem atualmente para ninguém ver. Algum dia vamos todos questionar o panorama da exibição cinematográfica em Portugal e nesse dia vamos estar lá, seja para discutir ideias ou pintar as paredes do cinema novo