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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O elogio lusitano à HBO Portugal

Hugo Gomes, 06.02.21

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Alguns filmes disponíveis no catálogo: “A Religiosa Portuguesa” (à esquerda), “Cartas da Guerra” (ao centro) e “O Fatalista” (à direita)

Sem descurar da Filmin Portugal e a sua progressiva colheita de cinema português, até porque a plataforma é direcionada a uma fasquia de espectadores habituadas a estas andanças, gostaria de salientar o trabalho que a HBO Portugal tem tido na divulgação do nosso burgo cinematográfico. Aqui, entrando numa outra liga de plataformas, daquelas promovidas pelas operadoras e com um catálogo apetecível ao comum dos mortais, o canal criado e denominado de “Made in Portugal” reúne séries de produção nacional e uma pequena mostra da nossa cinematografia. Mesmo que pequena, esta “amostra” é importante para situar e possivelmente criar novas audiências para o nosso universo audiovisual, seja por engano nos seus “binge watchings” ou na instintiva curiosidade.

Se bem que as vozes de desaprovação aos principais streamings dão conta da escassez dos clássicos ou cultos fundamentais na cinefilia (basta verificar a substituição à lá Netflix de muitos dessas histórias por produções próprias completamente alinhadas com a linguagem da empresa), a HBO tem, por sua vez, apostado no tal buffet nacional, o que poderá, a certa altura, ser fundamental para a “reeducação” de públicos (em aspas porque é uma palavra facilmente identificável com causas propagandistas ou lobotomias). E num momento em que a cinefilia bate e debate-se sobre o papel das plataformas na reestruturação dos nossos hábitos de consumo de filmes, a iniciativa à moda portuguesa poderá servir-nos como uma espécie de Cavalo de Tróia, fulcral para criar laços entre os espectadores, até então desligados, para com o cinema “seu”, ou como quiserem – “nosso”.

E não falamos de produção acessíveis, muitas delas integradas a dita ala “cinema comercial” (enquanto nós não ultrapassamos essas duas trincheiras, nunca seremos uma indústria), como as experiências de realização do ator Diogo Morgado (“Malapata”, “Solum), ou os veteranos António-Pedro Vasconcelos (“Parque Mayer”, “Call Girl”), Joaquim Leitão (“A Esperança Está Onde Menos se Espera”) e Luís Galvão-Teles (“Dot.Com”), mas também, a nosso dispor, uma ementa mais requintada e de paladares mais excêntricos.

Recentemente, mais dois se juntaram à coleção, ambas produções de Paulo Branco – “O Fatalista”, de João Botelho, e o reencontro entre a atriz Ana Moreira e a cineasta Teresa Villaverde em “Transe”. E explorando o quadro geral, há muito para (re)descobrir, desde os aclamados e premiados trabalhos de Miguel Gomes e Marco Martins até aos desafios de “A Zona” de Sandro Aguilar, o xamânico “Até ver a Luz” de Basil da Cunha (rodado na Reboleira) ou o eclético “A Religiosa Portuguesa”, de Eugène Green.

Muitos deles filmes invulgares nas “modas” de muitas novas gerações. Pessoalmente, a quem me lê deixo algumas sugestões desse mesmo catálogo, o cada vez mais apreciado Linhas Tortas”, de Rita Nunes, que aborda a nossa dependência e necessidade de refúgio nas redes sociais e “Cartas da Guerra”, de Ivo M. Ferreira, que com base nas cartas de António Lobo Antunes vem desmistificar o belicismo de Ultramar.

À HBO, uma continuação desta iniciativa, porque nem sempre o streaming é uma logística de extração.

"A ficção é a maneira mais eficaz de expressar a realidade": falando com Eugène Green

Hugo Gomes, 23.12.19

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No início de 2020, mais precisamente no a 5 de janeiro, dá-se início à Retrospectiva Integral e à carta branca de um dos grandes devotos da cultura portuguesa, Eugène Green. Nascido em Nova Iorque e radicado em Paris, o realizador celebrizado em filmes “A Religiosa Portuguesa” e “La Sapienza” sempre renegou o inglês, chegando mesmo a recusar dialogar com alguém nesse “bárbaro” dialeto, como o considera. E não se trata de um mero capricho, o realizador é um ávido devorador da palavra, a verdadeira energia das suas personagens, das suas ficções e realidades. Green é um homem literal e com isso preza a sua liberdade na escrita e no processo de produção dos seus filmes.

A Imagem da Palavra“, o cabeçalho desta exposição exaustiva sobre a sua obra, é um atalho para entender o seu cinema e a última palavra aos universos criados pela sua prosa. Essa profunda análise ao seu cerne encontra uma extensão: os filmes que acompanham a sua figura, sejam eles da sua autoria ou de outros mas que fazem parte do seu paladar cinéfilo. Eugène conversou comigo sobre esta proposta, sobre a “sua palavra”, mundo e sapiência.

Na sua carreira, o que representa uma exposição como esta?

Apesar de eu já ter tido retrospectivas (quando a minha filmografia era um pouco mais curta, em festivais como o de Turim, Gijón, Riga, Paris-Cinéma, e recentemente na Cinemateca de Toulouse e no Arsenal em Berlim), esta é a primeira vez, tendo em conta a retrospectiva, no qual sou fruto de uma exposição num prestigiado museu de arte contemporânea. Como é óbvio, a sua representação é para mim importante.

Podemos esperar uma abordagem “íntima” da sua visão cinematográfica e poética nesta exposição? Não tem medo de expor o essencial, o íntimo, do seu trabalho?

Este é, de facto, um olhar externo ao meu trabalho – neste caso, o de António Preto [diretor da Casa do Cinema Manoel de Oliveira] – e representa isso mesmo, sob outra forma, um artigo de análise crítica. Não é “íntimo”, pois não sou eu que me exponho aqui, mas alguém que, de forma contemporânea, observa atentamente e disseca o meu trabalho. Encaro isso como uma abordagem muito interessante e simultaneamente acredito que pode ajudar as pessoas a gostarem do meu cinema.

Visto tratarmos aqui de retrospectivas e análises ao seu trabalho, existe algum arrependimento na sua carreira? Por oposição, de que obras é que mais se orgulha?

Lamento especialmente ter perdido tanto tempo. Enquanto escrevo guiões com facilidade, lancei-me em muitos projetos, mas para que eles tenham sucesso, com algumas raras exceções, o tempo de espera é entre os quatro a cinco anos. Também lamento muito ter sido forçado a filmar “La Sapienza” e “Faire la parole” em digital, embora tenha sido acordado que os filmaria, tal como os outros filmes, em película. Os meus filmes são como se fossem os meus filhos, amo todos eles. Mas tenho uma ternura particular pela “A Religiosa Portuguesa”, porque foi aí, segundo a minha perceção, que fui mais longe em direção àquilo que procuro.

Em relação a Portugal, pode explicar este seu apego pela nossa cultura e pelas nossas pessoas?

É algo natural e espontâneo, que não procuro analisar intelectualmente. Portugal, o seu povo, a sua cultura e a sua língua tocam-me e despertam em mim uma memória que, sem dúvida, é mais antiga que o meu próprio nascimento.

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La Sapienza (2014)

O que pode nos dizer sobre o projeto “Lisboa Revisitada”?

Era “uma encomenda”, não no sentido em que me ditaram o tema, mas simplesmente porque me pediram para criar algo novo para a exposição, e o orçamento modesto do filme era financiado pela Serralves – o que significou que não houve a necessidade de esperar cinco anos para a sua realização. Também foi interessante enquanto experiência, pois é o meu primeiro filme de “montagem” – justapondo imagens de “A Religiosa Portuguesa” com imagens dos mesmos lugares, em Lisboa, filmadas em abril de 2019. É, portanto, um filme sobre os danos do turismo em massa e como este destrói a vida e a civilização. Mas espero desenvolver esse tema de maneira mais profunda, bem como o da violência no mundo contemporâneo, através de uma ficção que quero filmar em Portugal e em português … isto se pudermos encontrar o financiamento antes que o mundo acabe.

O que pode-nos dizer sobre o seu novo filme – "Atarrabi & Mikelats"?

É uma longa-metragem inspirada nos principais relatos da mitologia basca, sobre os dois filhos de Mari, a grande deusa basca, que adaptei para expressar alguns temas importantes para mim. E é inteiramente falado em basco. É um filme do qual me orgulho e espero que seja lançado em Portugal.

A temática desta exposição é a Palavra. No seu cinema, são as palavras que controlam a vida e não os gestos…

O tema realmente é – como o título diz – “A Imagem da Palavra“, que é a minha definição de Cinema, pois para mim o plano cinematográfico funciona como o discurso que existia na civilização europeia antes do triunfo, no século XVIII, da cultura racionalista e materialista. Existem muitas palavras nos meus filmes, mas elas visam tornar perceptível a vida interior daqueles que as falam. E tudo isso faz parte do plano cinematográfico. As minhas personagens podem não fazer muitos gestos, mas todo o processo do filme constitui uma ação.

Com exceção de “Tout Le Nuits” – baseado na obra ‘A Primeira Educação Sentimental‘ de Gustave Flaubert – os seus projetos foram inteiramente escritos com as suas palavras. Acha que com isso consegue controlar melhor um filme?

Nunca fiz essa pergunta, mas como acho que a ficção é a maneira mais eficaz de expressar a realidade, em toda a sua complexidade, gosto de criar ficção. Acredito que a “adaptação” de uma obra literária ao cinema, como geralmente a consideramos, é prejudicial e, sim, gosto de ser completamente livre para desenvolver as minhas ficções e determinar as palavras que dizem as personagens.

No “Le Monde Vivant”, existe aquilo que podemos considerar uma (re)alfabetização do real. No mundo em que vivemos, esta nova alfabetização do real é realmente necessária?

Não sei se entendi bem a pergunta. Você evoca as poucas referências como “Jules Ferry” e “bruxa lacaniana”? Não precisa conhecê-los para apreciar o filme. A prova é que, na França, está no catálogo de uma associação chamada “Infância e Cinema”, que organiza exibições de filmes para grupos escolares. Já foi visto e geralmente apreciado por cerca de 70.000 crianças entre oito e dez anos, as quais duvido que saibam o nome de Jules Ferry e das quais espero que nenhuma tenha sido colocada nas suas mãos de uma bruxa lacaniana.

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Ana Moreira em "A Religiosa Portuguesa" (2009)

Gostaria que me falasse sobre as suas escolhas cinematográficas na carta branca, em particular na indicação de “Mimosas”, de Oliver Laxe.

Por razões alheias ao meu controlo, a seleção final não reflete totalmente a minha ideia inicial, que era programar três clássicos representativos da minha cinefilia e três jovens realizadores que fazem parte da minha “família” cinematográfica. Dos três clássicos, um filme de Ozu não estava disponível (e o segundo filme de Ozu, que propus, também não estava disponível). Entre os três jovens, queria programar o último projeto do Oliver Laxe,O Que Arde”, mas o distribuidor português não autorizou a exibição. Então programei o seu penúltimo filme, “Mimosas”, o qual também gosto muito, mas que pode ser considerado mais difícil para alguns espectadores.

Todos esses cineastas, mortos ou vivos, têm em comum uma ideia elevada do cinema como arte, uma linguagem pessoal e, sob diferentes formas, os respetivos trabalhos têm uma dimensão espiritual. Obviamente, entre os clássicos, também poderia ter escolhido uma obra de Bresson, Oliveira ou Fellini, cineastas que admiro muito, e entre os vivos, [um trabalho de] Bruno Dumont, Miguel Gomes, Pedro Costa, Apichatpong ou Eloy Enciso. Programar uma carta branca é como decidir que amigos vamos convidar para uma festa.