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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Vamos jogar ao telefone estragado?

Hugo Gomes, 25.06.22

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Scott Derrickson conquistou desde cedo um punhado de adeptos que não tardaram em o consagrar numa espécie messias do género de terror, graças ao muy sobrevalorizado “Sinister” (2012), e os anteriores resquícios dos êxitos trazidos por “The Exorcism of the Emily Rose” (2005). Na trajetória para esta nova colaboração com o ator Ethan Hawke (e com a produtora Blumhouse), disse um “oi” ao Universo Marvel com “Doctor Strange” (2016), recusou a sequela, e sugeriu The Doors como a banda do Diabo em “Deliver us from Evil” (2014). Na sua cinematografia (com excepção daquele com carimbo Disney / Marvel) é visível a sua exaustiva fixação pela religiosidade, o cristianismo como salvação para os males do Mundo, deste e do outro, fazendo estranhar a sua não-contratação a um outro universo de nome “The Conjuring” (talvez pelo enfoque em charlatães médiuns do que propriamente em obra do espírito santo). 

Com “The Black Phone”, o projeto que trocou pela sequela de “Doctor Strange”, deixada à mercê do seu “padrinho” Sam Raimi, não foge daquilo que sempre nos acostumou, a evangelização como resposta para tudo, porém, os meios conseguem ser mais viáveis que os seus fins, e esta adaptação de uma curta história de Joe Hill, sobrepõe-se como um filme de terror mais interessado em aprofundar os pequenos protagonistas do que rechear de um sadismo gozável o antagonista. Hawke preenche os requisitos desse perverso vilão que pontua com escassas aparições no percurso “coming to age” da sua vítima (Mason Thames), que aprenderá desta lição de vida e de morte que a sobrevivência não é desconhecida da defesa. 

Fugindo para outros “universos” e territórios, “The Black Phone” estreia entre nós, na mesma altura que “Un Monde” da belga Laura Wandel se revela aos cinemas portugueses, apontando para a linha ténue entre agressor e agredido na mais tenra idade. Scott Derrickson usa este conto transformado (e nunca negando as tendências vintage à lá Stephen King, hoje popularizadas na série “Stranger Things") para acentuar uma moralizada aprendizagem. Da violência nasce mais violência, o atormentado é matéria, meio caminho-andado para ser agressor, e a sociedade venera este tipo de violência (como já se apercebeu neste mundo ao nosso redor), o revanchismo vigilante. 

Não entremos em pretensões de um tratado algum sobre estes assuntos, “The Black Phone” embarca nesta mesma violência para criar um selo de punição - a justiça divina - que nos é satisfatória face à natureza dos grotescos atos. A juntar a isso, dois pontos acrescidos, um para o elenco infanto-juvenil e outro para Hawke que preenche os monstros invocados nas nossas caves / “cellar door” (como refere, e muito bem, Drew Barrymore em “Donnie Darko”, a mais bela palavra em inglês).  

Please let the dreams be real!

Percorrendo um mapa emocional de Hirokazu Koreeda

Hugo Gomes, 01.07.20

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Após 20 anos de carreira no Japão, passando de documentarista televisivo a um dos mais respeitados cineastas nipónicos da atualidade, e depois de cumprir com distinção máxima o Festival de Cannes (Palma de Ouro com “Shoplifters”, em 2018), Hirokazu Koreeda utiliza essa experiência como pretexto de embarque em novas geografias. Aqui (França), um realizador estrangeiro perante um elenco de luxo como este facilmente seria “engolido” pelas diferentes manivelas desta indústria ou dos egos profundos dos seus “novos” atores. Koreeda, tão diluído na cultura-mãe, vê-se obrigado a adaptar-se a um novo ambiente, concretizando com este “ La Vérité” (“A Verdade”) o que aparentemente seria o seu filme mais anónimo, numa ode à resistência autoral.

Face ao egocentrismo de Catherine Deneuve num perpétuo jogo de reflexos (existe na sua personagem, não uma autobiografia, mas uma perceção da sua personificação cinematográfica), o nipónico taticamente opera num registo de engodos lançados à ficção. Desengane-se quem pensar que o realizador encontra-se absorvido nos ambientes de glamour da indústria francesa e das suas respetivas lendas vivas, até porque essas características são peões numa tremenda partida à moda de Koreeda. Poderemos percorrer o seu território em dois pontos.

O primeiro, sendo o mais evidente – a família como vetor de toda a trama. Aqui, Juliette Binoche interpreta uma filha que a passos tenta reencontrar-se com a sua mãe (Deneuve), não através da distância física que se encontra exposta nos caminhos paralelos que ambas seguiram (ela vivendo nos EUA, enquanto a progenitora continuava celebrizada como atriz na França), mas pelos afetos negados, negligenciados e sobretudo desencontrados. “ La Vérité” usufruiu dessa aproximação como cadência própria da sua espessura dramática, esta melosa e sorrateira como é habitual no cinema de Koreeda.

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O segundo ponto, este mais “tricky”, remete-nos à memória ilustrada que a obra do realizador sempre nos pontuou. Quem se lembra da urgência de registar fotograficamente uma separação em “Like Father, Like Son” (2013)? Ou, ainda mais longínquo, o paraíso hipotético de “After Life” (1998), onde as almas recém-falecidas têm de optar por uma das suas queridas recordações como um eterno loop de “existência” (estas, curiosamente, não seriam autênticas, mas encenações de uma equipa de anjos-cineastas). Pois, é através desse trabalho, ainda inédito em Portugal, que deparamos com os propósitos da persuasão de Koreeda na criação da memória através da imagem replicada. O dispositivo requerido é a rodagem de um filme dentro de um filme e a extração emocional de uma invocação memorialista. É o dedo do cineasta, com cumplicidade de uma Deneuve pronta para desarmar-se das suas “armas de resistência”.

Na “A Verdade” (mata-se aqui dois coelhos duma cajadada só) são esses os dois pontos que nos fazem, enquanto espectadores, aproximar do filme em si, demonstrando que o cinema de Koreeda está mais universal que nunca.

"First Reformed" e a epifania do autor incompreendido

Hugo Gomes, 29.06.18

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Paul Schrader sempre fora estudado como um curioso caso isolado. Cinéfilos de gema e com profundos conhecimentos da natureza cinematográfica, por norma, nunca geram grandes cineastas e o invocado é exemplo disso. Por mais esforços que cometa (até mesmo o próprio admite), será relembrado no fim dos seus dias como o argumentista ao invés da sua carreira a solo, esta diversas vezes subestimada na indústria que insere.

Em todo o caso, Schrader é um "outsider'' duma Hollywood que não acredita em si própria, e os seus filmes [dirigidos] são a prova de uma total descrença no sistema como na emanada cinematografia. Contudo, eis que nos chega “First Reformed”, que diríamos ser o fim de uma dificultada maratona, uma corrida de resistência que culmina numa fadiga constante de um autor decepcionante perante os obstáculos que sucedem a (ainda) outros obstáculos. Provavelmente esta é a sua epifania, a desilusão ao tomar conta da figura, e esta projetada no destino da Humanidade por via da sua ferramenta mais íntima.

Sob o protagonismo envolvente de Ethan Hawke (possivelmente o seu papel mais visceral, inerentemente falando), “First Reformed” nos leva, como as palavras indica, a passos cuidadosos para uma igreja secular, o travelling de espera na passagem dos créditos iniciais nos transmite um efeito de reconhecimento perante o cenário que servirá mais que template da narrativa, uma aura fantasmagórica, a ponte invisível entre mortal e o divino imortal. Nela, Hawke, um “pároco” (reverendo Ernst Toller) que perdera o seu filho na Guerra, fustigado por uma angústia silenciosa somente tranquilizada pela fé pregada, ou sem rodeios, uma espécie de analgésico espiritual. Mas é ao encontro de um dos seus “cordeiros”, um ambientalista desesperado pela descrença na tão negligenciada humanidade, que Toller despertará para uma nova realidade, um fosso que parece interligar o seu luto que se revolta para com o estado das coisas que o rodeiam.

Por mais referências que encontremos neste espiritualismo mutilador, de Bresson a Ozu (passando por Dryer e Bergman), que transcrevem os planos e os movimentos destas personagens suicidas, é a autorreferência de Schrader que “First Reformed” triunfa como uma meta atingida. É o “Taxi Driver” do novo século, inserido num mundo no qual têm que partilhar com os imensos “rebentos” do mundialmente conceituado filme de Martin Scorsese (que o próprio Schrader escreveu). É a estrutura intacta a servir de fortalecimento a este grito de ajuda, tal como a igreja que assume -se como vetor narrativo, é a reconstituição moderna perante um “esqueleto” de outros tempos, assim, “First Reformed” sob um tremendo ar bafiento de ’70 (não com isto insinuar que o Cinema precisa diariamente de lufadas de ar fresco) ergue-se numa ousadia modernizada.

Enquanto “Taxi Driver” resumia aos grunhos e ao seu ativismo algo anárquico, esta nova chance de Paul Schrader remete-nos ao ativismo dos sábios. Impulsores divergentes, causas percorridas em iguais pisadas. É na descrença que a verdadeira fé é atingida, poderemos contar com isto num filme religioso, mas a crença não se baseia em teologias fundamentalistas, “First Reformed” olha para o mundo deixado por “Taxi Driver”, e o atualiza, refletindo-o numa dolorosa agonia. É a política, sob as agendas anti-trumpistas, fervorosamente renegando outras politizadas tarefas, como o ambientalismo a fugir dos panfletarismos Al Gore (possivelmente, e em certa parte, o mais sóbrio dos filmes ecológicos).

Não saindo da temática das causas, “First Reformed” liberta-se do filme-ficção para endurecer como a causa que Paul Schrader fervelhava no seu negro íntimo. E sob o reflexo das suas paralelas criações (First’ e Taxi’), eis a redenção encontrada de um autor que nunca se confirmou (até então).

Atenção, daqui fala um anterior cético (à imagem da descrença absoluta de Ethan Hawke) que, também graças à bênção divinal nos braços de Amanda Seyfried, tornou-se num crente. Devastador e destemido. Existem atualmente poucos filmes assim.

O novo Taxi Driver?

Hugo Gomes, 02.09.17

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A fragmentação espiritual leva First Reformed aos caminhos reconhecíveis de Taxi Driver. Contudo, se o filme de 1976 resumia aos grunhos e ao seu ativismo algo anárquico, esta nova chance de Paul Schrader na realização remete-nos ao ativismo dos sábios. Eis a redenção encontrada de um autor que nunca se confirmou (até então). E daqui fala um anterior cético que tornou-se num crente perante a descrença absoluta de Ethan Hawke. Devastador e ousado.

 

Boyhood: O 'indie' em estado de maduração

Hugo Gomes, 01.12.14

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Boyhood tem conquistado a atenção global pelo seu "how I made it", ou seja, o badalado procedimento das filmagens. Aliás, não é todos os dias que nos surge um filme que fora rodado em 12 anos, muito mais um drama no qual é possível testemunhar o crescimento natural da sua principal personagem, Mason (Ellar Coltrane, em gradual fase de evolução como ator), ao invés de nos depararmos com um artificialismo cinematográfico. 

Richard Linklater, o mesmo homem por trás da trilogia Before (Antes do Amanhecer), entrega-se a um drama tipicamente virtuoso da tendência "coming-of-age", que evidencia os diversos fatores de crescimento de um ser. Neste caso, assistimos primeiramente a uma criança de 6 anos a chegar à tenra idade dos 18 e os passos cruciais na construção da sua personagem.

É uma narrativa esquemática que é beneficiada pelo seu modus operandi, uma biografia fictícia que termina por ser identificável pela maioria do seu público, visto ser fácil encontrar algum facto ou elemento que nos remeta à nossa infância ou juventude. Talvez seja por isso que a aclamação mundial tornou-se evidente, mas é verdade que Boyhood tem as suas próprias virtudes, longe do "12 anos de produção" que serviu como marketing.

Eis um filme que nos faz olhar não para a sua personagem mas para o seu exterior, o biótopo que o rodeia. Pois bem, Linklater minou a sua epopeia dramática com todo o kitsch possível de cada época retratada. É cultura pop encruzilhada com as temáticas sociais correspondentes a cada atualidade e a influência que esses ditos fatores possuem no derradeiro crescimento de Mason, cuja chegada aos 18 anos encerra um filme, e inicia outro, apenas disponível na nossa memória e premonição.

Se Mason é realmente uma figura que interliga o público com a trama exposta no ecrã, Patricia Arquette como a mulher fracassada, mas mãe esforçada, serve de alicerces para com o desempenho de Coltrane e de Lorelei Linklater (a filha do realizador que interpreta a irmã de Mason). Por sua vez, o pai ausente, o "duque do indie norte-americanoEthan Hawke, é visto e salientado pela câmara de Linklater como um herói "sebastianino", cujas escassas presenças trarão conforto e estima à vida de Mason, ao mesmo tempo que culmina metáforas de foro vivente. Ambos os atores que preenchem o papel de progenitores, também eles vitimas do envelhecimento transposto pelo realizador, polvilham o universo deste "boy" em algo verdadeiramente dinâmico e, ao contrário da sua narrativa, longe da farta esquematização.

Mais do que criar coincidências com as quais nos identificamos de forma nostálgica, Boyhood é o espelho da sociedade norte-americana ao longo de 12 anos, para que não resumíssemos o filme no somente processo de "12 years in making". Quando a vida torna-se no verdadeiro espetáculo cinematográfico.

 

"You know how everyone's always saying seize the moment? I don't know, I'm kind of thinking it's the other way around, you know, like the moment seizes us."