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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Hui So-Ying, a eterna Ah Ying numa Hong Kong em mudança: "Viver é representar, e representar é viver."

Hugo Gomes, 05.11.25

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Ah Ying (Allen Fong, 1983)

Uma jovem corta e amanha peixe num mercado em Hong Kong. Pela sua expressão, não é tarefa que lhe agrade, mas pouco pode reclamar. Ao seu lado, o olhar quase ditatorial da mãe, proprietária daquela banca de peixeira, impõe-se silenciosamente. Depois do trabalho, regressam ao asilo doméstico, abafado pela família numerosa, onde o espaço é mais requisitado do que o apartamento pode oferecer. É uma vida lotada e igualmente limitada. A jovem, que momentos antes esquartejava o possível jantar de alguém, suspira por uma alternativa, aquela que poderá ter encontrado nas aulas de interpretação, lecionadas pelo seu professor invisual, 'brinde' pelo trabalho no centro filmíco. Entre ambos nasce uma forte ligação, erguida sobre a performatividade, a mesma em que a peixeira, já agora de nome Ah Ying, deposita a esperança de um futuro sem o odor do peixe.

Não, não é o vosso típico “ascensão de uma estrela”, esse género que se formalizou por si só, feito para suspirar e inspirar espectadores, embriagados pelas frases motivacionais e histórias-modelo de veneração à resiliência e à determinação. Em “Ah Ying”, de Allen Fong (1983), somos conduzidos a um retrato quase social, e por vezes premonitório, de Hong Kong dos anos 80, num registo cinematográfico distante daquilo que a indústria local da época dava como garantido: dos policiais aos cineastas emergentes, muitos deles saídos do Hong Kong Film and Culture Centre, aqui a servir de cenário para o progresso dramático da protagonista.

Aliás, ela (a tal peixeira contrariada), Hui So-Ying, era também uma rapariga de mercado. Afiava facas como as testava nos peixes comprados pelo freguês e, à noite, seguia para as aulas de interpretação, com o desafio de ser atriz na mente, como entendia que devia ser. Sim, a história é dela, com um pseudónimo pelo meio, um docudrama, como a própria gosta de o definir. Peça importante na cinematografia hongkonguense, o filme enquadra uma época, uma geração, e os movimentos que fervilhavam e reivindicavam uma juventude inquieta — uma juventude em plena renúncia aos passos dos seus progenitores, desejosa de romper com a maldição social, afastar-se do precário e abraçar o artístico. O Cinema, como janela de fuga.

E foi também daí que nasceu uma atriz — Hui So-Ying — que nunca mais se libertou dessa personagem. Viu-se vencida pelas maldições da sua própria encarnação, regressando anos depois com pequenos papéis, passo a passo, até voltar ao protagonismo. Sempre será a nossa rabugenta Ah Yin!  Foi com a 2ª Mostra de Cinema de Hong Kong em Lisboa (25 a 28 de setembro) que voltou a ser lembrada assim. Os dois filmes mais recentes trazidos para o evento só comprovam que se mantém activa, firme no ofício. Se terá sucesso ou não, pouco lhe importa, como expressou abertamente, porque saberá sempre como cortar o peixe. Aquela jovem de rebeldias silenciosas ainda vive nela.

O Cinematograficamente Falando … conversou com a actriz a poucos dias da apresentação da sua Ah Ying no Cinema Ideal [28/09], praticamente inédita em solo português. O diálogo decorreu sob a sombra desse trabalho, revisitando outros desempenho, rindo no final diante do futuro “endeusado” que poderá surgir. 

Podemos resumir que “Ah Ying”, cuja sua popularidade foi bastante alavancada nos festivais internacionais e de ter deliciado a crítica de cinema na altura, continua pouco referido no Ocidente, principalmente quando se aborda a história do Cinema de Hong Kong dos anos 80. Acredito que isso deve-se ao facto de “Ah Ying” ser um produto, não apenas da sua geração, mas da sua geração local?

Basicamente, acho que muitos críticos no Ocidente (ou quem não conhece bem o cinema e a história de Hong Kong) não souberam interpretar o filme. Não têm noção da sociedade, das tradições e da realidade de Hong Kong naquela altura. Especialmente os valores familiares tradicionais. Por exemplo, porque é que ela tinha de ir ao mercado? E o mercado cinematográfico, naquela altura, era muito diferente do que é hoje.

Ah Ying”, não era um cinema muito… virado para o entretenimento, digamos assim. Na verdade, o cinema de Hong Kong era muito ambicioso. Havia muito apoio ao cinema local. Na década de 80, alguns realizadores da Nova Vaga fizeram filmes muito realistas. Claro que alguns foram bem recebidos e outros não.

Por exemplo, “Ah Ying”, sendo sobre uma jovem mulher e tendo algumas associações a certas políticas de esquerda, não recebeu grande atenção na altura. Isso, e porque não era um filme de entretenimento comum na linha das produções de acção que se fazia naqueles tempos.

Mesmo assim acredita que o “Ah Ying” tem lugar na história do cinema de Hong Kong?

Afirmativamente, de certa forma. Não se pode negar que, nos anos 80, a história do cinema de Hong Kong apoiava muito os realizadores da Nova Vaga hongkonguense. Havia vontade de investir em filmes realistas, não comerciais e não centrados na questão do entretenimento.

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Hui So-Ying na apresentação de "Ah Ying" no Cinema Ideal / Foto.:  Gonçalo Castelo Soares

Achas que o gosto do público de Hong Kong mudou desde então?

Mudou, sim. Hoje em dia é mais fácil estudar em Hong Kong. O nível de conhecimento e o nível académico melhoraram muito. Por isso, as pessoas não querem apenas ver filmes de entretenimento, também gostam de ver filmes mais profundos. Isso elevou o pensamento e o gosto do público no geral.

Se hoje “Ah Ying” fosse feito, seria bem recebido em Hong Kong?

Mesmo hoje em dia, não vejo muitos filmes de Hong Kong feitos daquela maneira. Filmes assim, tipo docudrama, praticamente não existem. Este ano, em 2025, tivemos algumas exibições especiais em Hong Kong e a reação foi muito positiva. Mas claro, não é o mesmo que a exibição regular, com várias sessões por dia … nesse caso, não sei se haveria assim tantas pessoas a ver. Não tenho a certeza. Mas em sessões especiais, nota-se que as pessoas gostam.

É descrito que “Ah Ying” tem como base muito da sua experiência pessoal. Como isso contribuiu para concepção para jornada vivente desta Ah Ying, e o que há nela de real à sua pessoa e vivência?

Não é uma obra totalmente dramática. Como é que digo? Não é só ficção. Mas se fosse apenas o meu registo pessoal, não funcionaria, porque não haveria esperança [risos]. Então foram acrescentadas coisas ficcionais nela. Por isso é que se pode chamar de docudrama: metade real e metade não. No filme, a minha família é mesmo a minha família: o meu pai, a minha mãe e a minha irmã. Só o meu irmão mais novo e a minha cunhada não são reais. O resto são mesmo os meus familiares.

E o mercado era o mesmo?

O mercado não é exatamente o mesmo, porque era difícil filmar lá. Encontrámos outro mercado para rodar o filme.

De peixeira a aspirante a actriz, a jornada de “Ah Ying” não é tanto de ascensão no meio artístico, mas a sua luta em evadir uma vida precária. Em um momento a mãe de Ah Ying perante o anúncio de uma nova audição da filha diz que ela deveria se dedicar ao mercado. O filme lida com essa visão pejorativa da classe trabalhadora para com a classe artística dos anos 80, hoje o cenário é o mesmo, ou existiu alterações?

Na verdade, quem vende peixe continua a vender peixe. A minha situação era muito específica, por isso o realizador pediu-me para contar a minha história. Em classes sociais diferentes, as pessoas não têm muito contacto com o cinema, nem vão as vezes que pretendiam às salas. Então, a diferença entre os anos 80 e hoje? Diria que é quase igual. Quanto à luta retratada no filme, também não mudou muito. Vender peixe até dá mais dinheiro do que muitos outros trabalhos.

Mas a sua personagem quis escapar dessa vida, como a Hui So Ying …

Pode-se dizer que sim, mas a principal razão para ter feito este filme foi o meu professor de interpretação ter falecido. Então pensei que devia fazer algo para o homenagear. Ele ensinou-me representação, e quando soube que tinha morrido, senti que precisava de fazer alguma coisa.

Se me perguntares se queria sair daquela vida, não consigo dizer concretamente. O meu principal objetivo era homenageá-lo. Vendia peixe porque os meus pais eram muito trabalhadores, e simplesmente queria ajudá-los. Essa era a razão de estar no mercado… e a razão pela qual entrei no cinema foi o facto do meu professor ter morrido.

Vender peixe é mais admirável do que ser atriz?

Não posso dizer isso. [risos] Não. São coisas diferentes. No meu caso, sempre gostei de representar. Por isso vendia peixe durante o dia, e à noite ia ao Hong Kong Film Culture. No filme consegues ver isso representado de alguma forma.

E acerca disso. A Ah Ying tem aulas de interpretação no Film Culture Centre, que foi um centro de formação importante para a vinda de uma nova vaga de cineastas de Hong Kong, o filme antecipa esses nomes e estilos, ou foi pensado para incentivar esse crescimento artístico?

O Hong Kong Film and Culture Centre ajudou muita gente com interesse em cinema. Essas pessoas trabalhavam durante o dia e iam estudar à noite. Na altura, não havia assim tantas oportunidades para aprender técnicas de cinema. O Fruit Chan, por exemplo, foi uma das pessoas que frequentou o centro. A Ann Hui, com a qual vim a trabalhar em “A Simple Life” (2011), aprendeu lá e entrou na indústria.

Por isso digo que o centro ajudou muitos cineastas, e também queriam mostrar que nos anos 80 existia esse espaço. Muitos dos professores eram realizadores e argumentistas da Nova Vaga de Hong Kong. Quando filmámos, voltámos ao centro, todavia, eles já tinham mudado para outro sítio, e ainda não estava renovado. Pedimos ao dono para alugar o espaço para terminar o filme.

Ah Ying (Allen Fong, 1983)

Então, essa cena em que eles destroem o carro pode ser entendida como uma metáfora ao fim do ‘Film Center?

Não exactamente. Eles mudaram-se para outro sítio, mas continuaram em Hong Kong. O espaço é que ficou mais pequeno. Havia menos produção, não havia tantas aulas. A razão principal foi o financiamento limitado.

O centro cultural ainda existe?

Continua a existir, mas é diferente. O nome mudou. Antes era Hong Kong Film Culture Centre, agora é Film Culture Center Hong Kong. Mudou porque houve dinheiro que desapareceu, ou algo assim, não estava muito claro na altura. Portanto, decidiram alterar o nome: puseram “Hong Kong” no fim. [risos]

Com os louros de “Ah Ying”, a sua carreira obteve o devido ‘empurrão’, poderemos considerar este o seu filme crucial? De algum modo ainda é reconhecida ou referida como Ah Ying em Hong Kong?

Na verdade, quem costuma me chamar para representar sabe que eu sou a Ah Ying. Claro, este é o meu filme mais importante. Muito especial na minha carreira.

Agora se a minha carreira ia ter o impulso que devia… estou só a ser sincera: se acontecesse, aconteceu. Se não acontecesse, não aconteceria. Não sou daquelas pessoas que tem de continuar a representar a todo o custo. Isso não faz parte de mim. Se alguém achar que este filme, ou que uma certa personagem, me assenta bem, vem falar comigo. Penso na proposta, leio o guião. Aceitar ou não depende do motivo.

Já disse isto: o meu objetivo principal com este filme era homenagear o meu professor, e tal feito consegui. Não estou aqui para procurar atenção ou outras regalias.

Depois de “Ah Ying” trabalhou em “No Regret” (Herman Yau, 1987), depois dessa obra deu-se um hiato, voltaria ao cinema em 2009. O que terá acontecido por essa ausência e o que motivou esse ressurgimento no Cinema?

Casei. [risos] E quando tive a minha primeira filha, ainda estava a trabalhar como assistente de produção, só que estava sempre a pensar nela. Então senti que tinha de deixar o trabalho para cuidar dela. Depois tive a segunda filha e aí já não dava mesmo para voltar. Só quando elas cresceram é que senti que podia, e estava na altura de regressar.

Nesta Mostra de Cinema de Hong Kong de Lisboa serão exibidos dois filmes com duas interpretações recentes suas, que proveito obtém de uma carreira longa de filmes como “Papa” (Philip Yung Chi-Kwong, 2024) e “All Shall Be Well” (Ray Yeung, 2024)?

Representar é como a vida, e a vida é como representar. Viver é representar, e representar é viver. Por isso, para mim, não há diferença de um filme ou de outro. Mesmo agora, neste momento, também estou a representar. [risos] 

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All Shall Be Well (Ray Yeung, 2024)

Em “All Shall Be Well” são abordadas questões delicadas, não apenas no contexto de Hong Kong, mas também em relação a outras realidades sociais, como as relações afectivas entre pessoas do mesmo sexo. Na sociedade de Hong Kong, continua a ser um tabu representar estes temas no cinema? Além disso, segundo o filme, essas relações permanecem num vazio ou desprezo jurídico.

Não é tabu  nenhum. Só que há pessoas contra. Hoje em dia pode-se falar, está aberto, mas o Governo de Hong Kong ainda não reconhece o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Esse é o ponto principal. Claro que há políticos que são contra. Acho que é um passo atrás, visto que em muitos sítios do mundo já é aceite. Portanto, não ser aceite, ou não ser legal, é injusto para os casais do mesmo sexo.

Pergunto isto porque o filme em si é muito tímido a mostrar a relação entre aquelas duas personagens. Discreto até.

Sim, porque algumas famílias não aceitam. Há famílias que aceitam, claro, mas há outras que não querem ter sequer um vislumbre dessa estrutura familiar. Esse é o problema. Por isso há casais do mesmo sexo, mesmo já com idade, que continuam a ter dificuldade em assumir-se.

O filme está a mostrar uma realidade verdadeira. Talvez na sociedade chinesa ainda não queiramos mesmo enfrentar isso. E a forma como o filme mostra é a forma como é na realidade.

Queria terminar com uma contemplação ao futuro: quanto a novos projetos? E vais voltar a ser a atriz principal nesses próximos trabalhos?

Sim, vou voltar.

Vai?!

Vou sim! Posso adiantar que vou ser uma deusa taoísta. Uma rainha celestial numa curta-metragem. É sobre a realidade, mas usa essa mitologia, essa lenda, para tornar tudo mais delirante.

 

Um agradecimento especial a Virginia Or, pela tradução do cantonês e pelo auxílio.

Yoko Kuno entre histórias de um gato espiritualmente amestrado: "transformar movimento em desenho pode amplificar emoções de formas inesperadas."

Hugo Gomes, 01.11.25

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A amizade acidentada e improvável entre uma menina, Karin, que se vê obrigada, dada às circunstâncias da sua vida, a crescer depressa e Anzu, um gato fantasma de natureza preguiçosa e fura-vidas, relação forjada através da partilha de um templo Sojoji onde residem. Em parte é uma história do universo de Takashi Imashiro, um mangá sobre essa criatura felina fantástica que se comporta como um humano, e em constante contacto com deuses e outras divindades e bestialidades (publicado pela primeira vez em 2006), que em jeito cinematográfico, oficializa-se nesta animação gerada por rotoscopia, dando credibilidade aos movimentos e às personagens em cenários fantásticos e muitas trapalhadas cómicas pelo meio, sem nunca esquecer do seu quê de moralismo. 

O filme chegou aos cinemas portugueses, marcando uma ruptura no habitualmente distribuído nas nossas salas com o selo nipónico, do qual contabiliza-se a tradição dos Ghibli ou dos agora milionários franchises que conquistam toda uma nova geração de espectadores. “Ghost Cat Anzu” revela-se num antidote, numa generosa curiosidade que passeia pelo realismo redesenhado e o fantástico sem condescendências. O Cinematograficamente Falando … desafiou a realizadora Yoko Kuno a responder algumas questões sobre a obra, o processo e as descobertas através deste felino peculiar. 

O que é que lhe mais interessou no mangá de Takashi Imashiro, e a inspirou para esta sua adaptação para cinema?

Adoro o mangá do Imashiro desde os tempos de estudante. As suas obras têm uma profunda sinceridade na forma como observam seres humanos guiados pelo karma, e, embora muitas vezes cómicas, conseguem comover-nos até às lágrimas. Entre os seus trabalhos, “Ghost Cat Anzu” destaca-se por ser algo bastante diferente. Talvez porque foi publicado numa revista infantil, o Anzu não carrega qualquer peso. Se fosse humano, a sua despreocupação até podia parecer fria, mas como é um gato, essa irresponsabilidade parece-lhe natural, e até querida. É uma obra estranhamente encantadora.

A ideia de adaptar a obra para cinema veio do produtor Keiichi Kondo, que convidou o realizador de imagem real Nobuhiro Yamashita [“Let 's Go Karaoke!”, 2023] e eu para a fazermos em rotoscopia. Achei o projeto invulgar, mas aceitei com entusiasmo porque adorava o mangá original e sabia que as personagens que o Yamashita retrata (sejam quem forem) têm sempre uma ternura e uma humanidade muito próprias.

A introdução da personagem Karin, ausente da obra original, rompe com o arquétipo da “rapariga idealizada” comum no anime japonês. Que reação esperava provocar no público ao apresentar uma protagonista tão imperfeita, quase desagradável, mas profundamente humana?

Quando começámos a adaptar “Ghost Cat Anzu”, o Yamashita sugeriu logo que introduzíssemos uma rapariga mal-disposta — como a protagonista de “Moving” (Ohikkoshi, 1993), do Shinji Somai — para dar à história uma presença mais cinematográfica. Tanto o Yamashita como o nosso argumentista [Shinji] Imaoka sentem afinidade com esse tipo de personagens, e assim nasceu a Karin. Da minha parte, sempre senti que raparigas comuns, ligeiramente ‘irritadiças’ como ela, praticamente desapareceram do anime contemporâneo. Mesmo que uma personagem assim não conquiste facilmente a empatia do público, acreditava que criar alguém como a Karin era importante e que valia a pena tentar.

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Nobuhiro Yamashita  e Yoko Kuno na Quinzena dos Realizadores em Cannes

Em relação à rotoscopia, a sua escolha é, dentro do panorama atual da animação, quase um gesto de resistência. Sente que essa opção técnica se torna também numa posição estética, uma espécie de manifesto contra a homogeneização digital e mesmo contra certas idiossincrasias da animação japonesa?

Como havia referido, foi o produtor Kondo quem propôs a rotoscopia, por isso acho que ele tinha, sim, essa intenção de afirmação.

Da minha parte, depois de trabalhar em rotoscopia em “The Case of Hana & Alice” (2015) e agora em “Ghost Cat Anzu”, fiquei muito tocada pela força crua das interpretações dos actores. Ver isso diante de mim fez-me perceber a importância profunda da interpretação, e comecei a achar que, se conseguíssemos transportar essa autenticidade para a animação, criaríamos algo verdadeiramente único.

O contraste entre Tóquio, o campo e o Inferno (Jigoku) parece construir uma geografia emocional mais do que literal. Até que ponto o espaço funciona como espelho do estado interior da Karin e da sua relação com o Anzu?

Pessoalmente, não queria estabelecer uma hierarquia entre esses três lugares. De certa forma, há beleza em todo o lado, e também coisas triviais, até tolas diria. Mais do que onde se está, interessava-me quem está connosco e como nos sentimos. Dito isto, o nosso director de arte, Julien De Man, é excepcional a retratar a natureza, e as paisagens da cidade de Iketeru que ele criou ficaram tão belas que o filme acabou, naturalmente, por fazer o campo parecer maravilhoso! (O que, claro, me deixa muito feliz!)

Na sua visão do Inferno ou do Mundo dos Mortos, transformá-lo numa espécie de hotel evoca, por exemplo, o imaginário de Miyazaki (mais precisamente o “bordel” de “Spirited Away”, 2001). Como pensou e concebeu esta ideia de Jigoku, dado que já existe uma saturação de representações semelhantes no cinema e no anime?

A ideia do Inferno funcionar como um hotel onde os demónios vivem e trabalham como funcionários veio do nosso argumentista. É muito típico dele.

Mas tivemos dificuldade em visualizar isso, até que o assistente de realização das cenas de imagem real nos falou de um hotel bastante peculiar. Quando o visitámos, descobrimos que também tinha sido usado para casamentos e que misturava, de forma excêntrica, elementos japoneses, chineses e ocidentais. Achámos aquilo tão fascinante que decidimos recriá-lo quase tal como era.

A obra oscila entre tragédia e comédia, entre o real e o fantástico. Como conseguiram equilibrar estes tons para que um não anulasse o outro?

A Anzu e a Karin são opostos, tanto na personalidade como no aspecto. Criar uma história onde nenhum deles ficasse subordinado ao outro foi um grande desafio, e discutimos muito isso durante a escrita do guião. No fim, encontrar o equilíbrio entre as suas presenças acabou, naturalmente, por equilibrar tragédia e comédia, realidade e fantasia.

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Fazer cinema é um ato de observação”, referiu numa das suas notas de intenções. Tendo isso em conta, o que descobriu sobre o comportamento humano ao observar os atores antes de os redesenhar? A animação permitiu-lhe ver algo que o cinema real tende a ocultar?

Um dos animadores disse-me algo interessante: quando os actores têm algo importante a dizer, o queixo inclina-se ligeiramente para a frente. É verdade, e apesar de tornar o ângulo do rosto mais difícil de desenhar, essa imperfeição transmite mais emoção, resultando numa interpretação melhor. Além disso, em conversa, os actores fazem pequenos acenos inconscientes. Em imagem real, esses gestos são subtis, mas quando animados podem expressar emoção com enorme força. Percebi que transformar movimento em desenho pode amplificar emoções de formas inesperadas.

E quanto a futuros projetos? Veremos novas histórias com o gato Anzu, já que o final deixa essa possibilidade em aberto?

Mesmo antes do corte final, há uma cena em que o Anzu (interpretado pelo Mirai Moriyama) varre o chão sozinho, e a sua performance foi tão expressiva e comovente. Depois, no último plano, a forma como a Noa Goto (que faz de Karin), corre e sorri foi tão luminosa que acabou por criar um final perfeito, que não precisava de epílogo.

Por isso, não há planos para uma sequela do filme. No entanto, após a estreia, o próprio Takashi Imashiro criou uma nova continuação do mangá “Ghost Cat Anzu”, a primeira em 17 anos. A história segue um caminho diferente do filme, mas está cheia da paixão do Imashiro e tornou-se uma obra verdadeiramente maravilhosa.

"O filme deve deixar a sensação de ter vivido algo com a Rita Lee": uma conversa com os criadores de "Ritas"

Hugo Gomes, 30.10.25

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Um grande êxito de bilheteira brasileiro que nos informa, mesmo com a timidez dos nossos dias, que, passado um ano da sua derradeira despedida, o Brasil tem saudade da sua cantautora do Flagra: bailando como se baila na tribo e pelos amores em telepatia. Rita Lee, a Mulher-Sol, como bem dizia, dando lugar à Mulher-Lua - de cabelos grisalhos, vivências acumuladas e eras passadas - a mulher, por si só, que se descreve entre muitas variações. As várias Ritas, abordadas ao longo de hora e meia em “Ritas”, documentário a quatro mãos, de montagem cuidada e pensada, fugindo aos “rodriguinhos” do género. Não é elegia, é celebração.

Co-realizado por Oswaldo Santana e Karen Harley, “Ritas”, cuja estreia se marcou na passada edição do Curtas Vila do Conde, terá apresentação especial no Teatro Ibérico, em Lisboa (30 de Outubro), com a presença dos seus autores. O Cinematograficamente Falando … conversou com eles sobre o filme e, acima de tudo e de todas as ‘coisas’, sobre Rita Lee: a “mutante” que se fez ícone.

Antes de mais, devo salientar que este documentário foi um sucesso de bilheteira no Brasil …

Oswaldo Santana: Sim! Foi o documentário brasileiro mais visto do ano. Ficou 19 semanas em cartaz.

Karen Harley: Atenção, 19 semanas, e mais de 50 mil pessoas. Acho que foram cerca de 56 mil espectadores, o que, para um documentário no Brasil, é bastante.

Queria começar por aí, pela questão do sucesso deste filme, para vos lançar um certo exercício. O Brasil de hoje ainda é o Brasil da Rita Lee? Ou o país ainda guarda o espaço para o Brasil imaginado por ela?

OS: Para dizer a verdade, penso que o Brasil de hoje é, em parte, resultado de um processo que a Rita começou, mas que ainda tem muito a evoluir. Ela trouxe temas e colocou luz sobre questões que continuam relevantes e ainda não foram totalmente resolvidas. Por exemplo, o activismo pelos animais. Se ampliarmos, temos também a questão da voz feminina no rock, do prazer feminino num ambiente tão machista quanto o rock. Esse é um tema que ainda enfrentamos hoje. Então, ela abriu caminhos para muitos assuntos a precisar de desenvolvimento, infelizmente.

KH: Penso, de certa forma, que temos hoje um Brasil melhor, um Brasil que a Rita gostaria, mas também andamos para trás em vários aspectos. A nossa sociedade, de certa maneira, ficou mais ‘careta’. Por isso a Rita é tão atual. Em vários sentidos — como o Oswaldo disse — e também na forma como ela aborda as drogas. Ela falava disso sem hipocrisia. “Diga não, obrigada.” E lembrava que a bebida também é uma droga. Ela foi, e continua sendo, um farol em vários aspectos da sociedade.

Sim, é muito curioso mencionarem essa questão das drogas. No documentário deparamos com o discurso dela sobre o tema: ela critica esse tom moralista, quase como aqueles vídeos educativos meio caricatos, tipo “Pato Donald contra as drogas”. Ela expõe essa hipocrisia social. No filme ela confessa: “Eu experimentei todo tipo de droga. Hoje não uso mais, mas não me arrependo.”

KH: Ela não tem um discurso moralista nesse aspecto, ou mais que isso, ela não julga. O que tem é um discurso de consciência, de autenticidade.

OS: A Rita viveu intensamente todas as fases da vida dela. De verdade. Podemos achar certas coisas certas ou erradas, mas ela sempre viveu com intensidade, “com os dois pés dentro”, como dizemos no Brasil. Tratava de assuntos sérios com muito deboche. Isso era muito eficaz, a mensagem chegava forte, clara, e genuína.

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Passo agora para o início, a génese deste documentário. Gostava que explicassem por que decidiram avançar com o projeto. E, Oswaldo, faço uma nota especial: como foi montador de “Tropicália” (Marcelo Machado, 2012), pergunto-lhe se esse projecto foi um passo essencial para entrar neste projeto?

OS: Sem dúvida. Foi um óptimo aquecimento acrescento, mesmo sem percebermos na época. Em “Tropicália” mergulhei justamente nesse período em que surge a primeira “vitrine” da Rita Lee. Isso me ajudou muito, não só com o universo da Rita e a relação com a família Lee, que passou a ver meu nome como adequado, mas também com a Karen. Nosso diálogo foi facilitado. Mas foi a Karen que iniciou o projeto; quando entrei, ela já estava em andamento. Então nossas primeiras conversas passaram muito por “Tropicália”, sim.

KH: O projeto começa quando a Biônica Filmes (a produtora) compra os direitos da autobiografia da Rita. A ideia era fazer uma ficção, uma série para TV e um documentário, cada um com uma abordagem diferente. A série seria cronológica, mais jornalística; o documentário, que então se chamaria “Lado B”, correria por fora, com outro olhar. Fui convidada para co-dirigir, primeiro com o João Jardim (realizador de “As Polacas”, 2023), que depois não pôde, e depois com o [Fernando] Fraiha, director da Biônica. Começámos em 2018. Em 2020 sentimos a necessidade do Oswaldo, especialmente pela experiência com “Tropicália”, e porque era um trabalho primoroso.

OS: O processo de “Tropicália” ajudou muito a pensar linguagens para o filme da Rita. Comecei entre 2019 e 2020, e passamos por quatro estruturas diferentes até chegar a esta versão. O documentário é um processo vivo. Felizmente tivemos tempo para maturar e testar caminhos, e o resultado está aí.

Quanto ao processo criativo: como decidiram o que “entra” e o que fica de fora? Pergunto isso porque o título “Ritas” é alusivo, no filme ela menciona as personagens que cria ao longo da sua carreira, e vida também. Ela diz: “Eu talvez não consiga dizer não, mas uma personagem minha consegue”. Vocês quiseram trabalhar com qual Rita? Ou com várias Ritas?

KH: A ideia sempre foi ter a Rita de hoje no filme — a Rita idosa. Não queríamos um documentário de depoimentos de outras pessoas falando sobre ela, que era o que a família preferia. Então, no início (em 2018), o nosso grande trabalho foi convencê-la a estar presente, com toda a potência dela, inclusive a Rita velha, como ela dizia. Quando topou, começou a filmar-se com o celular e a enviar-nos imagens preciosas: da vida, dos animais, do estúdio, dos trabalhos. No depoimento, ela mesma nos deu a chave: existiam várias Ritas. Dizia que no início era tímida, “da coxia”, olhando a outra Rita, “porra louca”. No material vemos outras ainda: a pintora, a activista, a escritora, a avó, a feminista… A Rita trouxe essa pluralidade para nós.

OS: Foi ela quem nos deu essa pista. No processo do filme sentimos que não fazia sentido escolher só uma faceta. Ela é múltipla, rica, forte em tantos aspectos. Então decidimos abraçar isso e falar de quase tudo.

Algo que me chamou a atenção no filme é o trabalho de montagem, e de momento estou a falar com dois montadores. O vosso filme evita o formato, muitas vezes preguiçoso, dos documentários musicais, cheios de “talking heads”, intercalando com imagens de arquivo. Mas nota-se um trabalho pensado de montagem muito evidente. 

KH: Este é um filme de montagem, desde o início, antes mesmo de o Oswaldo chegar. Tínhamos um volume enorme de material, sabíamos o que não queríamos, e a Rita ia nos trazendo o que queríamos. Sabíamos que queríamos a Rita de hoje, isso era fundamental e muito batalhado. O filme virou essa costura, esse bordado entre fases dela: a Rita potente no palco, a Rita íntima, os depoimentos, as imagens caseiras. Desejávamos tempo para respirar, ouvir uma música, emocionar-se, não só uma colagem frenética. Equilibrar profundidade e pluralidade em uma hora e meia é um grande desafio. O resultado é totalmente fruto do trabalho de montagem.

OS: Sem dúvida. Com tanta diversidade e quantidade de material, é de esperar que seria um projeto a exigir esforço na montagem, e é o tipo de filme que nasce desse processo.

E que lições vocês aprenderam ao longo dos seus percursos enquanto montadores? Como já mencionei, o Oswaldo tem trabalhos importantes como Tropicália, entre outros, e a Karen tem uma filmografia de respeito: “Febre do Rato” (Cláudio Assis, 2012), “Zama” (Lucrecia Martel, 2017), “Que Horas Ela Volta?” (Anna Muylaert, 2015), além de filmes portugueses como “Raiva”, do Sérgio Tréfaut, e “Great Yarmouth”, do Marco Martins. O que levam dessas experiências de montagem, especialmente agora, que trabalharam juntos neste projeto, numa co-realização?

KH: Da minha parte, eu gosto muito de desafios, e esse foi um enorme, em termos de montagem. Mas também foi um presente poder mergulhar na obra da Rita Lee: ler tudo, ouvir de novo os discos… Eu, como a maioria dos brasileiros, sou super fã da Rita. Todo mundo sabe cantar uma música dela: da minha geração e das mais novas também. Ela é uma presença constante na cultura brasileira. Poder me dedicar profundamente a esse universo foi algo incrível.

Adoro, na montagem, trabalhar com materiais de origens diferentes, romper fronteiras entre documentário e ficção. Comecei o processo com essa ideia, de que a ficção seria o que a própria Rita nos entregasse, filmando a si mesma. Então há essa mistura de linguagens: em alguns momentos é um filme-ensaio, em outros um show, ou ainda um depoimento íntimo. O desafio era costurar tudo isso e encontrar o equilíbrio. É algo que me atrai muito.

OS: Sem dúvida. Um dos grandes desafios como montadores aqui foi contar um documentário com um arco emocional parecido com o de uma ficção. Criar envolvimento, não ficar só no racional. Queríamos que o público fosse conduzido mais pela emoção do que pela informação. Esse foi um dos nossos focos ao buscar a linguagem final.

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Depois de ver o vosso filme fica-se com a sensação de existência de uma espécie de hub criativo entre artistas naquela época, não apenas a Rita Lee, mas todo um grupo que convivia, trocava, criava ‘coisas’ junto. Acabavam por influenciar uns aos outros através desse ambiente e relações. No cinema, por exemplo, na Nouvelle Vague, é sabido que os cineastas conviviam, encontravam-se nos cafés, trocavam ideias. Hoje isso parece quase impossível — as “vagas” artísticas desapareceram. O vosso filme, mesmo indirectamente, também reflete sobre isso.

KH: Sim, é verdade. Hoje há alguns movimentos mais articulados entre artistas jovens, mas, no geral, perdemos muito desse convívio. Penso que estamos muito isolados, cada um na sua “caixinha”, com menos trocas, e essas trocas eram extremamente criativas.

A Rita conta que, em certo momento, ia à casa do Caetano e do Gil, quando eles viviam em São Paulo, antes do exílio. Ela ficava ali quietinha, observando, eles criavam músicas, e ela apenas “babava”, encantada. Eram vários artistas, uma turma que se reunia. Ela dizia que o Gil e o Caetano falavam para ela: “Você pode tudo. Pode misturar tudo: banana com Coca-Cola, com rock’n’roll, com feminismo.” [risos] Tudo isso nasceu de encontros. As pessoas precisam passar tempo juntas para que a criação aconteça.

OS: Concordo perfeitamente. E outra diferença daquela época para hoje é a diversidade de áreas envolvidas. O pessoal do teatro, das artes plásticas, da música, todos se misturavam. Era um movimento cultural amplo, que atravessava fronteiras artísticas. Era, como dizia o disco da “Tropicália”, uma “geleia geral”. Essa mistura dava uma força enorme para expandir o universo criativo.

No vosso filme há uma frase proferida de Rita Lee que podemos encontrar: “Como mulher, eu escancaro os tabus, mas não revelo os mistérios.” De certa forma, o vosso documentário faz o mesmo. É um filme sobre a Rita Lee, mas sem decifrá-la completamente, preservando a aura de mistério, o que, acredito, só aumenta o fascínio, especialmente para as novas gerações.

KH: Sim, e acredito muito nisso. Num documentário sobre uma personalidade, o ideal é que o espectador saia do filme querendo conhecer mais sobre ela. Acabei de fazer um documentário sobre o Cacá Diegues, e as pessoas saem com vontade de ver os filmes dele. Com “Ritas”, é a mesma coisa: a ideia é que o público queira ouvir mais suas músicas, se aprofundar na sua obra e também deixar espaço para o espectador viajar — ler o filme de maneiras diferentes. É esse equilíbrio de que o Oswaldo falava: entre informação e emoção. Para mim, a emoção precisa ser mais forte. A informação, o espectador pode buscar depois.

O filme deve deixar a sensação de ter vivido algo com a Rita Lee, de ter sentido um pouco da sua presença. A experiência emocional é mais importante do que o acúmulo de dados.

A Karen já adiantou um pouco, mas mesmo assim vos pergunto: depois de “Ritas”, quais são os novos caminhos a seguir? Vocês pretendem continuar juntos como dupla ou cada um seguirá o seu próprio rumo?

OS: Do meu ponto de vista, teria a Karen em todos os filmes! É um prazer trabalhar com alguém com a personalidade, o talento e a experiência dela. Por enquanto nós não temos nada fechado ainda. Sabemos como é difícil viabilizar projetos no momento…

KH: [Ao Oswaldo] Não sei… depois a gente conversa. [risos]

OS: Pois é. Mas acredito muito no processo colaborativo, especialmente no documentário. É um processo muito rico mesmo. Claro, mostramos cortes para colegas da área, trocamos ideias e isso faz parte dessa “sociedade” do cinema, e é muito enriquecedor trabalhar com pessoas com experiências diferentes. Eu e a Karen temos formações e trajetórias distintas, e isso fortalece o resultado. Então, sim, por minha vontade é sempre colaborar. Com a Karen e com outros talentos como ela.

KH: Gosto muito de colaboração. Agora mesmo co-dirigi um documentário sobre o Cacá Diegues com o Lírio Ferreira (“Para Vigo Me Voy!”, 2025). A minha longa-metragem como realizadora, “Lixo Extraordinário” (“Wast Land”, 2010), também foi em colaboração. E montar é, essencialmente, um trabalho colaborativo com o realizador, é quase um casamento. Por vezes dá muito certo, às vezes não, é como qualquer relação. A montagem é a “terceira escrita” do filme, atravessando fases muito intensas, e é um processo profundo, e gosto dessa intensidade criativa.

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Voltando ao início, sobre o sucesso do documentário: será que estamos a ver uma espécie de renascença da bilheteira do cinema brasileiro? “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, por exemplo, foi um fenómeno, e “Ritas” se destacou ainda mais por ser documentário, um género que costumava ser o “patinho feio” das bilheteiras. Como vocês encaram esse momento do cinema brasileiro para o seu próprio público?

OS: O cinema brasileiro está a viver um ano espectacular. É muito importante poder contribuir para isso. Acho que houve uma confluência de factores que reforçam o talento e a importância do nosso cinema, e a necessidade de mais holofotes, e também mais incentivos. No caso do documentário, estamos num momento muito criativo, realmente inovador na linguagem, e ver filmes brasileiros batendo recordes de bilheteira e chegando ao Oscar é muito gratificante. Lançar “Ritas” nesse contexto foi uma alegria enorme.

KH: Acho que os exemplos que você mencionou mostram casos pontuais — grandes sucessos, sim, mas ainda poucos. Temos um problema muito grande na distribuição e exibição. Existem documentários e ficções muito criativos sendo feitos no Brasil, mas ainda precisamos trabalhar muito para formar público. Muitos filmes têm apenas uma semana em cartaz, ficam restritos a festivais… “Ritas” foi um fenómeno, claro, muito por causa da Rita Lee, e tivemos retornos lindos. Mas esses fenómenos ainda são exceções.

Os filmes pequenos, com menos verba para divulgação, muitas vezes não encontram o seu público. Além disso, ir ao cinema no Brasil está caríssimo. Uma família não consegue pagar bilhetes, pipocas… é inviável. Temos poucas salas, quase todas em centro comerciais, ou em centros de cidade. A rede de exibição é cara e limitada. É um cenário que precisa melhorar muito, com políticas de incentivo, acesso e formação de público.

Arranca o 12º Olhares do Mediterrâneo: "no cinema feito por mulheres a utopia surge como consequência necessária da resistência"

Hugo Gomes, 27.10.25

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The Brink of Dreams (Nada Riyadh & Ayman El Amir, 2025)

Os Olhares do Mediterrâneo regressam a Lisboa com a oferenda da sua 12.ª edição, uma programação que faz jus à luta, atravessando o Mediterrâneo, esse mar que conecta três continentes e diversas culturas, unidas por uma só linguagem: a cinematográfica. É essa a batalha que se apresenta em jogo, a resistência de um Cinema sobre resistências, sobre choques e guarnições, tudo sob o signo feminino.

Mais uma vez, é o Cinema com autoria de mulheres a marcar passo no espaço, seja na projeção de filmes, seja no debate sobre o acesso às nossas plataformas de viabilidade, ou nas estéticas que se querem longe da enfermidade.

A acontecer no Cinema São Jorge, na Cinemateca Portuguesa e, esporadicamente, em eventos ou sessões especiais no Museu do Aljube, ISCTE-IUL e Casa do Comum, o 12.º Olhares do Mediterrâneo (de 28 de Outubro a 6 de Novembro) deseja esclarecer um mal-entendido que atravessa quase um século de existência cinematográfica: existe, sim, (e sublinha-se o axioma) Cinema entre as Mulheres … aliás, existe sim, Cinema, ponto.

Sílvia Di Marco, co-diretora do festival, foi novamente desafiada pelo Cinematograficamente Falando… a responder a este novo ano sob os Olhares Mediterrânicos.

O mote deste ano é “Semear Resistências, Cultivar Utopias”. Quando olha para a selecção dos 63 filmes, sente que a utopia ainda tem espaço no cinema feito por mulheres, ou é já uma forma de resistência em si mesma?

Penso que neste momento no cinema feito por mulheres a utopia surge como consequência necessária da resistência. Ou seja, em geral neste momento não se fazem muitos filmes que apresentem uma proposta utópica de vida ou sociedade, mas, pelo menos na nossa programação, há muitos filmes que mostram formas de resistência grandes ou pequenas, e assim convidam a pensar que as coisas não devem ser necessariamente assim, seja qual for a situação. Este é o primeiro passo para pensar a utopia, aquele lugar que (ainda) não existe. 

Mas de facto, numa das sessões de warm up, apresentamos um documentário sobre uma revolução utópica em curso. “Jînwar - Women’s Village”, da realizadora curda Nadya Derwis, dá-nos a conhecer a revolução do confederalismo democrático actualmente em curso no Nordeste da Síria (Rojava), uma revolução que desde o início tem colocado no seu centro a convivência inter-étnica e a libertação das mulheres. Agora que a fase da luta armada parece terminada, acompanhamos com enorme interesse o que está a acontecer naquela região e esperamos poder apresentar mais filmes sobre esta utopia em construção nos próximos anos.

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My Sweet Land (Sareen Hairabedian, 2024)

O festival cresce em duração e em número de salas — seis espaços lisboetas. Esta expansão é um gesto político, uma necessidade logística, ou um grito cultural contra o estreitamento dos lugares de encontro?

As três coisas juntas! Reclamar mais espaços de encontro é um gesto político, ocupar estes espaços com filmes que fazem pensar e convidam ao diálogo é um gesto político. Ter mais filmes e acolher as pessoas é um gesto muito concreto, que requer tempo – daí ter mais dias – e impõe necessidades logísticas, ocupando mais salas. 

As questões ambientais ganham este ano um destaque especial, com sessões dedicadas e um workshop provocador — “Can Cinema Help Save the Planet?”. O cinema pode realmente salvar o planeta, ou apenas documentar a sua ruína?

O cinema não salvará o planeta (nem consegue salvar-se a si próprio…), mas pode contribuir para construir imaginários diferentes sobre a relação entre os humanos e o planeta que habitam, e desta forma contribuir para escolher viver segundo lógicas menos extrativistas e destrutivas. A nossa aposta é esta: ajudar a pôr o proverbial grão de areia na engrenagem do pensamento hegemónico.

A secção Travessias continua a explorar migrações, colonialismos e racismo. Depois de 12 edições, o que mudou mais — o olhar do público, o modo de contar das realizadoras, ou o próprio entendimento de “mediterrâneo”?

O olhar do público, sem dúvida, e a urgência de alguns temas. Quando nasceu a secção Travessias estávamos no auge da “crise” dos refugiados sírios e dos barcos à deriva no Mediterrâneo. Sentíamos – nós, como programadoras, e as realizadoras enquanto “fazedoras” de filmes – uma grande urgência de documentar e denunciar o que se estava a passar nas rotas migratórias e nos campos de refugiados. Entretanto começou a ter mais força o discurso anti-colonialista e começamos a ligar os pontos que unem migrações forçadas, colonialismo e racismo. Há uma sensibilidade nova tanto entre as cineastas como no público sobre estes temas, e os Olhares do Mediterrâneo acompanham com atenção esta mudança. 

Ao mesmo tempo continuamos à procura do inesperado, o escondido, o de que ninguém fala. É por isso que para a sessão que precede o já tradicional “Debate Travessias” escolhemos um documentário sobre uma guerra esquecida e de baixa intensidade, a do Nagorno-Karabakh. No documentário “My Sweet Land”, a realizadora Sareen Hairabedian acompanha com enorme ternura um miúdo de 11 anos, Vrej, que sonhava ser dentista e que instintivamente recusa qualquer forma de violência, mas que uma guerra multigeracional obriga a viver como refugiado e, quando regressa a casa, a ter treino militar para proteger a sua cultura e identidade. Filmado de forma delicada e atenta, sem cenas de grande violência, o documentário convida a uma reflexão profunda sobre a vida em países militarizados e consegue transmitir de forma incrivelmente límpida o olhar de uma criança sobre o mundo.

Na programação das mostras de Jasmila Žbanić e Mirjana Karanović, revisitamos as feridas da Guerra da Jugoslávia. Porque é que regressar à guerra — e às suas sombras — continua a ser tão urgente em 2025?

Para não esquecer. Para mostrar que a cegueira da “comunidade internacional” de hoje é igual à do passado e, por isso, ainda menos aceitável. Mas, por absurdo que pareça, a nossa escolha de programar os filmes de Jasmila Žbanić e Mirjana Karanović é um gesto de optimismo e confiança na potência do cinema. Jasmila Žbanić é bósnia. Mirjana Karanović é sérvia. Ambas viveram a guerra na sua pele e a guerra dizia que deviam ser inimigas. Mas escolheram não ser. Muitas vezes trabalham juntas. Mirjana Karanović, considerada uma das maiores actrizes sérvias de sempre, actua em vários filmes de Jasmila Žbanić, e esta tem produzido ou co-produzido as obras da colega. É isto, sobretudo, que queremos salientar nesta mostra. Mirjana Karanović estará presente e estamos muito impacientes por dialogar com ela.

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Quo Vadis, Aida? (Jasmila Žbanić, 2020)

Há 12 produções portuguesas em destaque, entre elas "Mulheres, Terra, Revolução" (Rita Calvário & Cecília Honório, 2025). É coincidência ou sinal de um novo fôlego do cinema português no feminino, mais comprometido com a memória e o território?

O novo cinema português no feminino é extremamente vital e comprometido com muitos temas diferentes, utilizando géneros e formatos diversos. O que nós apresentamos é uma amostra muito pequena do que as realizadoras em Portugal fazem hoje em dia. Por falta de tempo/espaço na programação, mas também por questões de coerência programática.

O festival afirma-se como um espaço de militância e de emoção, onde “há lugar para a denúncia, mas também para o riso e o optimismo”. Como é que se equilibra o cinema combativo com o prazer de ver e sentir?

Há prazer na luta! E agora fora de brincadeiras: o facto de um filme ser combativo ou engajado não o coloca em oposição nem à possibilidade de ser um filme “leve”, nem à de ser um objecto estético. Temos uma sessão de filmes experimentais na Casa do Comum, na noite de 29 de Outubro. Cada um deles é ao mesmo tempo um gesto estético e de denúncia ou reflexão. E o filme “Where the Wind Comes From”, de Amel Guellaty, da sessão de abertura oficial do Festival, é a demonstração de como é possível falar com humor e poesia do desamparo e raiva de uma geração.

Por fim, este é o mais antigo festival de cinema no feminino em Portugal. O que ainda falta conquistar? É mais difícil resistir à invisibilidade ou à institucionalização?

Respondo primeiro à segunda parte da pergunta: é mais difícil resistir à institucionalização. Que é uma forma sub-reptícia de invisibilização, porque define padrões de legitimidade que reproduzem, com pequenos ajustes, as dinâmicas de poder existentes, sem as pôr realmente em crise. Quanto a o que ainda falta conquistar: muito. Fizemos muito caminho, não há dúvida. As realizadoras têm hoje muita mais visibilidade do que há 13 anos, quando os Olhares do Mediterrâneo começaram. Mas há ainda muito trabalho a fazer sobre as condições de trabalho das mulheres no sector do audiovisual e a forma como as mulheres e as minorias são representadas no cinema. Este ano, juntamente com a MUTIM, organizamos um workshop de escrita e uma mesa redonda sobre a escrita e representação da intimidade. Penso que o futuro do Festival passa por dar mais peso à formação e à reflexão sobre todo o processo de criação de um filme e não só na sua exibição ao público. Temos um caminho longo e fascinante pela frente.

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Consultar toda a programação aqui

Oliver Chan: "o cinema tem romantizado a maternidade durante tanto tempo e de tantas formas"

Hugo Gomes, 24.10.25

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Montages of a Modern Motherhood (2024)

À primeira vista, podemos apontar “Montages of a Modern Motherhood” como um filme de maternidade sem brilho algum nos olhos quanto ao tema que aborda, e isso é um facto assumido. No fim de contas, a Maternidade tem sido, ao longo do último século, o melhor dos seus próprios publicistas: um período belo, crucial, “o mais justo e sublime dos eventos na vida de uma mulher”. Assim o mentalizamos, e assim o instituímos como um axioma da nossa existência.

Contudo, nos últimos anos, mais e mais vozes (maioritariamente femininas) têm amplificado as suas experiências, revelando os cantos mais sombrios da maternidade e alertando para a fabulação construída em torno dela. Resgatam, assim, a experiência individual, mostrando que, por vezes, ser mãe não é das mais belas ‘coisas’ de sempre.

Oliver Siu Kuen Chan, jovem realizadora de Hong Kong, viveu a maternidade e deparou-se com as suas adversidades, os seus obstáculos e o lado nada colorido desse estado. Dessa experiência nasceu a vontade de fazer um filme, “Montages of a Modern Motherhood”, a sua segunda longa-metragem (depois do bem-recebido “Still Human”, 2018), um retrato cinzento, de realismo incómodo, sobre uma jovem mãe ‘maltratada’ por uma sociedade que encara a maternidade como uma infortuna obrigação. Seja no campo laboral, no ócio ou na vida familiar, a protagonista cede à depressão pós-parto e ao desespero silencioso. Obviamente, se o(a) leitor(a) pensa em crescer a família, este não é o “feel good movie” recomendado para o efeito.

No âmbito da 2.ª Mostra de Cinema de Hong Kong, em Lisboa (25 a 28 de setembro), a realizadora esteve presente na estreia nacional do filme, no Cinema Ideal, sem, antes, ter se encontrado com o Cinematograficamente Falando… para uma conversa sobre o projecto e, sobretudo, para desmistificar essa “Maternidade com confettis”.

Encontra-se nos cinemas portugueses actualmente [à data desta entrevista] um filme espanhol chamado “Sorda”, que lida com a sua maneira particular com questões pertinentes sobre a maternidade. Entrevistei a realizadora, Eva Libertad, recentemente, e recordo dela referir que a Maternidade tem sido muito romantizada nos últimos anos no cinema, porque a maioria dos filmes são realizados por homens, e agora, com a vinda de mais mulheres na direcção, é possível assistir a uma desconstrução dessa visão no Cinema.

Sim.

Como no seu caso e especialmente este seu filme. Concorda com isso?

Sim, concordo. Acho que não há problema em realizadores homens ou criadores tentarem representar a maternidade a partir da sua perspectiva, mas precisamos também de vozes femininas, e sobretudo de mães reais. É uma questão de equilíbrio. O mesmo tema pode ser mostrado de diferentes pontos de vista e precisamos de todos eles.

Certo. E acredito que a próxima pergunta é uma continuação dessa. Porque, mesmo fora do cinema, culturalmente, a Maternidade ainda é...

Um tema delicado e até algo assustador de abordar.

Sim, quase sagrado.

Absolutamente. E, na verdade, no nosso cinema [na indústria de Hong Kong], até fui criticada por isso. Algumas pessoas diziam: “O teu filme é imoral, faz as pessoas terem medo de ter filhos.” Chegaram-me a dizer: “O teu filme vai afetar a taxa de natalidade em Hong Kong!” E eu pensei: o quê? É só um filme! Bem, não é “só um filme”, mas é curioso pensar que poderia ter esse tipo de impacto.

Como havia dito, acho importante termos o ponto de vista das mães reais. Talvez, se olhar para o meu filme isoladamente, ele pareça pesado, ou que demoniza a maternidade. Mas quando o colocas num contexto mais amplo, junto de tantos outros filmes (a maioria romantizados), percebes que é uma voz necessária.

Se tivesse feito um filme neutro, com cuidado para não incomodar ninguém, penso que não teria o mesmo impacto. Quero que as pessoas saiam da sessão a questionar-se: é mesmo assim? É tão difícil, tão doloroso? Que comecem conversas, perguntem às mães que passaram por isso, e muitas responderão: sim, é exatamente assim, sobretudo as que enfrentaram depressão pós-parto. Portanto, não sinto que esteja a exagerar. Claro que, se quisesse, podia incluir cenas mais leves ou felizes. Mas não achei necessário, o cinema tem romantizado a maternidade durante tanto tempo e de tantas formas... apenas quis equilibrar um pouco essa balança.

Mostrar o outro lado da história. Mas este filme nasce … penso que nascer é uma boa palavra para este caso … também da sua própria experiência de maternidade, certo

Sim. Tornei-me mãe há cerca de seis anos. Talvez tenha sido um pouco ingénua, mas achei que isso não me afetaria muito. Estava numa boa fase da carreira como realizadora e pensei: “Depois de dar à luz, volto logo a trabalhar, vou conseguir equilibrar tudo: carreira, família, vida pessoal.” Mas não foi nada disso que aconteceu. As pessoas mudaram completamente as suas expectativas sobre mim. Produtores e estúdios deixaram de me considerar para projetos, diziam: “Ela acabou de ser mãe, não a convides, não vai ter tempo, a prioridade dela agora é a família.” Anos depois, descobri que tinha sido considerada para alguns desses projetos, mas acabaram por escolher outra pessoa com esse argumento. Isto aconteceu várias vezes.

Mesmo quando comecei a levar o filme a festivais, outros cineastas me perguntavam: “Ah, estás aqui! Mas quem está a cuidar do bebé?” Respondia: “Temos ajuda — o meu marido, a família...” Não é como se, depois de ser mãe, tivesse de estar confinada ao lado do meu filho o tempo todo. Ainda tenho a minha vida, a minha identidade, o meu trabalho, os meus sonhos. O mais engraçado é que o meu filho já tinha cinco anos, e mesmo assim as pessoas perguntavam: “Onde está o bebé? Deve estar tão triste por estares longe dele...”

Percebi então que, mesmo na era moderna, quando acreditamos que todos podem fazer o que quiserem com esforço, a imagem idealizada do que uma mãe deve ser ainda nos aprisiona muito.

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Oliver Chan na apresentação de "Montages of a Modern Motherhood" no Cinema Ideal / Foto.: Joana Linda

Mas essa expectativa sobre a mãe é muito diferente da que se tem em relação à figura do pai?

Totalmente. É um duplo padrão. Um pai muda uma fralda ou dá um biberão e é logo elogiado. “Que óptimo pai!”, enquanto a mãe faz isso tudo e muito mais, além de carregar uma gravidez de nove meses. Se um pai estiver num McDonald’s a alimentar o filho com batatas fritas, as pessoas dizem: “Que querido, está a cuidar bem do filho.” Mas se for uma mãe, tiram-lhe uma foto e publicam nas redes a chamar-lhe “má mãe”, por dar fast food à criança.

Os padrões são completamente diferentes. Ainda assim, vejo que as coisas estão a mudar, especialmente em países asiáticos. Como as famílias têm menos filhos, os pais tentam estar mais presentes e participativos. Só que continua a ser difícil, porque todos os pais trabalham, e as mães também. Acho que é urgente mudar essa mentalidade.

Queria falar sobre o mundo laboral. Porque o teu filme denuncia o modo como a sociedade, não só em Hong Kong, mas de forma geral, trata as mães. As mães trabalham, têm as suas próprias vidas, a sua vida privada...

Sim. Acho que, hoje em dia, ser pai já é difícil, mas ser mãe é ainda mais complicado do que antigamente. Antes, a vida era muito mais sobre sobrevivência. As pessoas tinham muitos filhos e apenas esperavam que alguns crescessem saudáveis, recebessem uma boa educação e isso bastava. Agora é diferente. Há tanta investigação científica... Um especialista diz que o leite materno é o melhor. Outro diz que o bebé não deve usar chupeta porque afeta os dentes. Outro ainda defende que o parto natural é o ideal, porque a pressão ajuda o bebé a ser mais saudável. Há tantas teorias e muitas são completamente opostas umas às outras.

Como pais, passamos imenso tempo a ler e a tentar decidir em que acreditar. E, quando escolhemos um caminho, logo aparecem pessoas com opiniões contrárias, que nos criticam por essa escolha. Ao mesmo tempo, a economia é cada vez mais exigente. Normalmente, os dois pais têm de trabalhar. Então, quem é que cuida da criança? As creches são caríssimas. Trabalhamos, ganhamos dinheiro, cuidamos do bebé e ainda tentamos seguir todas essas “boas práticas” recomendadas.

E o mais irónico é que as chamadas “melhores opções” são sempre as que exigem mais esforço como amamentar, comprar comida biológica, evitar o tempo de ecrã. Tudo isso consome tempo e energia. Sabemos o que é bom para o nosso filho, mas parece que não há limites para o que é considerado “o melhor”. Sinto que é cada vez mais desafiante. Mas o problema é que as políticas e a sociedade não acompanham essa realidade. Por exemplo: incentivam a amamentação, mas as empresas não são obrigadas a ter salas próprias para isso. Não há dias de folga adicionais, nem apoio suficiente e a mãe pode até adoecer durante a amamentação.

Portanto, todo o peso recai sobre os pais e, principalmente, sobre as mães. Temos de lidar com tudo: o trabalho, o bebé, as expectativas. É como se estivéssemos constantemente a ser puxadas em várias direções ao mesmo tempo.

Imagino que seja ainda mais difícil para as mães da classe média e das classes mais baixas do que para as de classes mais altas. É também uma questão de contexto laboral?

Sim, sem dúvida. Quando se tem dinheiro, muitos problemas resolvem-se. Pode-se contratar ajuda, ter acesso a melhores cuidados de saúde e toda a experiência, desde o parto até à amamentação, torna-se mais fácil.

No filme, a protagonista pertence à classe trabalhadora, mais próxima do operariado. E isso mostra muito bem o tipo de sacrifício que uma mãe tem de fazer. Quando há algo que precisa de ser posto de lado, quem é que abdica primeiro? É quase sempre a mãe. O filme evidencia essa desigualdade.

Percebo. Li numa outra entrevista — penso que era na CUHK Business School — que revelou que o ambiente no set era cheio de risos, apesar de o filme ser tão intenso.

Sim, é verdade. O contraste era enorme. Ríamos muito durante as filmagens, às vezes porque a situação se tornava mesmo absurda, especialmente porque filmámos com bebés verdadeiros. Queria que tudo parecesse real. Não queria que o público olhasse para o ecrã e pensasse logo: “Ah, aquilo é uma boneca.

Por vezes os bebés mexem as pernas, fazem pequenas expressões...

Exactamente. Queria captar isso. Mas é muito difícil, porque por vezes só precisava que a actriz expressasse uma emoção e de repente o bebé chorava... ou ria... ou soltava um som qualquer!

Estávamos todos concentrados numa cena séria e o bebé fazia algo completamente diferente. Nesses momentos, podíamos ficar frustrados, ou rir. Nós escolhemos sempre rir. Há uma história que costumo contar nas conversas pós-exibição. No guião, havia uma cena à beira de um lago, à noite: a mãe tenta acalmar o bebé, mas ele não para de chorar.

Sim, recordo dessa cena. Fiquei inquieto, parecia que ela podia deixar cair o bebé!

[risos] Sim! Foi uma cena trabalhosa. Montámos toda a iluminação, as câmaras, tudo levou quase duas horas, e quando começámos a filmar... o bebé não parava de rir! Era uma bebé super feliz. [risos]

Tentámos, com cuidado, deixá-la um pouco desconfortável — nada de agressivo, claro — só para ver se ela chorava um bocadinho, o suficiente para a cena. Mas assim que a actriz começava a embalá-la, a bebé sorria de novo. Completamente imprevisível. Rimo-nos imenso. Passámos cerca de quatro horas a tentar gravar aquele plano e acabámos por não o usar. Substituímo-lo por um plano mais aberto, em que quase não se vê o rosto da bebé. E situações assim aconteceram várias vezes. [risos]

Sim, reparei que em muitas cenas o bebé não aparece, apenas se ouve o choro.

Quando o bebé está fora do plano, o som do choro é normalmente adicionado na pós-produção. Mas sempre que se vê o bebé, mesmo que seja só uma mão, ou a parte de trás da cabeça, esse momento foi filmado com um bebé real, e o choro é verdadeiro, captado em cena. Há, portanto, dois tipos de momentos: os recriados no som e os genuinamente reais.

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Montages of Modern Motherhood (2024)

Falando agora do argumento, já referiu que o filme nasceu da sua própria experiência enquanto mãe. Mas mesmo assim, entrevistou outros casos para auxiliar o guião, ou desenvolver o enredo?

Sim, digamos que o ponto de partida veio da minha própria transição para a maternidade. A maior parte (talvez uns 90%) do que aparece no filme vem de muita pesquisa. Falei com imensas pessoas, li casos reais em jornais, de mães que se suicidaram por causa de depressão pós-parto. Também houve casos de mães que mataram os filhos e tentaram tirar a própria vida. Algumas não chegaram a morrer e foram a tribunal. Segui esses processos, queria perceber o que tinha acontecido.

Conseguia compreender a dor, mas queria perceber o que as tinha levado a esse limite, e o que, às vezes, as fazia regressar. Fiz imensa pesquisa, conversei com muitas mães, li estatísticas e tentei entender quais são as pressões e os sintomas da depressão pós-parto, e quais os desafios da maternidade moderna. Depois, tentei incorporar tudo isso no filme.

E quando é que escolheu a actriz principal? Numa breve pesquisa reparei que ela, Hedwig Tam, faz muitas comédias, digamos, papéis mais comerciais.

Sim, é verdade, trabalhos mais comerciais.

O seu filme ela está completamente diferente do habitual: muito contida, melancólica, à beira de uma corrosiva tristeza. Até a fotografia do filme adquire tons entre o azulado e o acinzentado para aliar-se a essa depressão. Como é que surgiu a escolha da actriz? Foi a primeira opção?

Quando escrevi o guião, não tinha uma atriz específica em mente. Sabia que a escolha seria crucial, porque praticamente todo o filme gira à volta dela e é uma personagem com uma carga emocional muito forte. Então decidi fazer um processo de casting muito sério. Convidei várias actrizes de Hong Kong em determinada faixa etária, actrizes que já vinha a acompanhar há algum tempo. Foram dezenas. Pedi-lhes que lessem partes do guião e fizessem improvisações.

A Hedwig foi uma delas, na verdade, foi a primeira [risos]. Curiosamente, ela não é mãe. Quando apareceu, estava muito magra, com o cabelo curtíssimo, uma aparência quase andrógina. A forma como interpretou a cena convenceu-me imediatamente. Tem uma amplitude emocional enorme, uma sensibilidade que não se ensina. Mesmo sem ser mãe, compreendia a personagem. Acho que é uma pessoa muito empática, trouxe para o teste observações sobre a própria mãe e integrou-as na interpretação.

Pensei: “Isto é interessante.” Até porque, no mercado local de Hong Kong, o público associa-a a papéis de mulher forte, quase “tomboy”. Participou em filmes LGBT, e até numa série muito popular sobre Taekwondo.

Taekwondo?

Sim, de luta! [risos] Por isso achei que seria um desafio curioso vê-la num papel tão diferente: o de uma mãe. O mais importante é que ela me convenceu. O resultado final mostrou isso: muitos ficaram impressionados com a sua interpretação.

Gostava agora de lhe perguntar sobre a figura masculina no teu filme. Como disse — e penso que também referiu numa entrevista para a Alumni School — a presença masculina é quase ausente. Considera que o cinema asiático, e talvez o cinema mundial, ainda não abordou devidamente a responsabilidade masculina no pós-parto, insistindo antes no cliché da mãe como centro absoluto?

É exatamente isso que disse. Sobretudo nas culturas asiáticas, há uma divisão muito clara das funções entre pai e mãe. Como a maioria dos realizadores ainda são homens, acabam por fazer filmes sobre homens. Homens que salvam o mundo, polícias, cientistas, advogados, mestres de kung fu... sempre figuras heroicas. As mães, ou as personagens femininas, aparecem quase sempre na memória, à espera de serem salvas, ou como vítimas sacrificiais. Dizem coisas como: “O papá vem já”, “O papá vai voltar”, “Estamos à tua espera.” A função delas é apenas ser salvas, ou morrer para que o protagonista masculino tenha uma motivação emocional.

Depois o público sente pena do herói — “coitado, perdeu a mulher” —, mas ninguém pensa na mulher que ficou a cuidar da criança até morrer. Hong Kong está muito habituado a esse tipo de narrativa, porque durante muito tempo não tivemos alternativas. Mas agora, com mais realizadoras e até realizadores mais jovens com mentalidade feminista, acho que essa narrativa vai mudar. Vamos começar a ver filmes com heroínas, e talvez, quem sabe, homens a serem salvos.

Vindo de uma formação em Gestão, e reparando que aborda o cinema quase como se fosse uma espécie de gestão de crises: emocionais e logísticas. Por isso pergunto: o que é mais difícil de liderar - um set de filmagens em colapso ou uma família no meio de fraldas e birras?

[risos] Pois... honestamente, prefiro um set de filmagens em colapso. Tive o meu filho em 2019, demasiado cedo, diria. Quando ele tinha apenas seis meses, chegou a COVID e tudo parou. O meu outro projeto teve de ser interrompido. Ficámos todos confinados. Fiquei presa em casa, sozinha com o bebé. Só passado um ano e meio é que tive oportunidade de voltar a filmar uma curta-metragem. Lembro-me de estar no exterior e sentir-me tão feliz. “Voltei. É aqui que pertenço.”

É engraçado, porque quando estou fora de casa, sinto falta de casa, mas quando estou em casa, sinto falta do trabalho. No fundo, esta é a minha confissão pessoal: prefiro um set de filmagens em colapso. [risos]

Mesmo nos dias em que tudo corre mal (claro que isso estraga o histórico do projeto), pelo menos posso tentar novamente. Com um filho, é diferente: cada dia é único. Não há repetições, não há “segundos takes”. O que acontece fica contigo para sempre, molda a tua identidade, a tua relação com o teu filho e quando te tornas mãe, és mãe para sempre. É um papel muito desafiante, e, sim, por vezes confesso que prefiro estar a trabalhar.

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Montages of a Modern Motherhood (2024)

Mas há algo curioso no que disseste, quando cuidamos de uma criança, estamos sempre a aprender, a ganhar experiência, porque nada é estático...

Sim, e está sempre a mudar.

Mas o set de filmagens também não é estático, porque de filme para filme também mudas, evoluis, cresces com a experiência.

Absolutamente! Acho que cresço sempre que faço um filme e depois da COVID, passei a sentir que cada projeto é precioso. Nunca sei se será o último. O cinema em Hong Kong não está numa fase fácil, está mesmo mal. Por isso, valorizo muito cada oportunidade e tento sempre desafiar-me, experimentar coisas novas. Criar um filho é diferente, não há “projetos”, é contínuo, está sempre a evoluir, estamos sempre a aprender.

Mas quando voltei ao set, mesmo com noites sem dormir e dias de rodagem sem fim, dizia à equipa: “Isto não é tão difícil como a fase do recém-nascido!” [risos] Pelo menos aqui não dói em todo o lado, nem há um bebé a chorar no outro quarto e, no cinema, pelo menos sei que o dia acaba, há um fim.

Então termino com esta conversa com a pergunta clássica … quanto a novos projetos?

Sim, na verdade já tenho dois guiões escritos, de estilos diferentes. Um deles é um filme de baixo orçamento, uma história quotidiana, terna e calorosa, sobre uma mãe solteira e o seu filho. Acho que o público vai gostar, especialmente quem gostou do meu “Still Human”.

Não é que queira estar sempre a falar sobre mães, mas esta é uma situação especial que quis explorar. É sobre uma mãe que, para sobreviver, faz entregas tipo Uber Eats, e leva o filho com ela. O público vai perguntar-se: “Porque é que ela tem de levar o filho? O que está por detrás disto?” Aos poucos, o filme vai revelando essa razão. É uma história muito terna, e o outro guião no qual estou a trabalhar é um romance, algo que já não faço há muito tempo.

Paolo Marinou-Blanco: "Fala-se muito de uma 'terceira via': um cinema inteligente, mas ainda acessível ao público. É nesse espaço que gosto de estar"

Hugo Gomes, 18.10.25

Denise Fraga e Paolo Marinou-Blanco durante a rodagem de "Sonhar com Leões"

A Morte é um tabu, um assunto a evitar, apesar de estar inserida nos nossos pensamentos constantemente, até porque duvidamos que exista alguém que não pense, direta ou indiretamente, sobre a morte no seu dia a dia. Gilda (Denise Fraga) fá-lo de uma forma intensa: deseja morrer e tudo tenta para cumprir esse desejo, mesmo que o seu redor a impeça cada vez mais, ou que a promessa de um abraço lhe dissipe essa vontade de finitude.

Como solução, Gilda inscreve-se na Joy Transition, uma empresa clandestina que promete guiá-la para um suicídio rápido e indolor. Lá conhece Amadeu (João Nunes Monteiro), um jovem com a capacidade de falar com os mortos, dom (ou maldição) que lhe arrancou qualquer traço ou ambição de felicidade, e ambos formam uma dupla improvável nessa busca incessante pelo seu ponto final.

Paolo Marinou-Blanco regressa a Portugal, 18 anos depois da sua longa (“Goodbye Irene”), com uma obra tragicómica que aborda temas pesados através de uma troça satírica e caricatural de uma sociedade ultra-capitalista. O filme “Sonhar com Leões”, estreado entre nós em maio deste ano, integra-se na programação do 10.º Cine-Atlântico, mostra de cinema português promovida pelo Cineclube da Ilha Terceira.

O Cinematograficamente Falando… celebra a passagem do filme à beira do Atlântico plantado com um encontro com o realizador e uma discussão sobre a obra, o guião, a comédia enquanto tratado social e o sonho, não com os felinos africanos, mas com uma terceira via no cinema português.

Começo pela seguinte questão: o seu filme, “Goodnight Irene”, estreou entre nós em 2008. No meio disso, houve uma curta [“Nada nas Mãos”, 2021], e agora chegamos a “Sonhar com Leões”. Porquê tanto tempo até uma nova longa-metragem?

Sim... Depois do “Goodnight Irene” fiz um telefilme para a RTP, que estreou em 2010, mais ou menos, e nessa altura decidi tentar trabalhar nos Estados Unidos. Fiz o mestrado de cinema na NYU e tinha vários amigos e contactos lá, por isso pensei: “Por que não tentar?”. Passei meio ano em Nova Iorque, a trabalhar como produtor associado em programas de televisão, mas percebi rapidamente que não era o meu caminho. Depois mudei-me para Los Angeles e comecei, aos poucos, a estabelecer-me como argumentista. Entrei para a WGA [Writers Guild of America], vendi guiões à Paramount e à MGM, fiz script doctoring, vendi pitches... enfim, comecei a criar uma vida como argumentista lá e acabei por me especializar em certos géneros — dramas históricos e thrillers de espionagem, normalmente baseados em factos reais, mas ficcionalizados. 

Dois géneros muito difíceis de fazer em Portugal [risos].

Sim, exatamente. Mas há imenso material cá para isso. Aliás, o “Glória”, do Tiago Guedes, a primeira série portuguesa da Netflix, tentou explorar esse tipo de território: histórico e de espionagem.

A grande diferença é que lá [EUA] não tens a liberdade que existe no sistema europeu ou latino-americano. Nunca entrei muito na realização lá, porque vi muitos amigos meus, realizadores, que passavam anos à espera de conseguir financiar um filme. Mudava o actor, o orçamento caía, os investidores desistiam… e tinham de começar tudo de novo. Enquanto argumentista não é assim. Claro que também há momentos difíceis, mas no fim do dia ninguém te pede para trabalhar anos de graça “pela tua visão”.

Pois, nos Estados Unidos não há muito essa ideia da “visão do autor”. É quase tudo um sistema.

Sim, alguns realizadores conseguem ter liberdade, os que tiveram muita sorte com o primeiro filme, como o Wes Anderson, só que no geral, é como dizes, é um sistema. Por isso há uma grande atração pelo modelo europeu ou latino-americano, onde há financiamento público e maior liberdade criativa. Os Estados Unidos são o único país do mundo sem financiamento público para a cultura.

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Então, desse sistema europeu, porquê regressar a Portugal para fazer um filme?

Porque sou português: metade grego, metade português, mas ainda assim português. Onde é que faria este filme? Não seria na Bulgária [risos].

Ou na Grécia? [risos]

A questão da eutanásia, que está no centro de “Sonhar com Leões”, parte de experiências pessoais mais ligadas a Portugal do que à Grécia. Além disso, a Grécia é mais conservadora nessas questões sociais. Ter uma conversa sobre eutanásia lá seria quase impensável, estamos décadas atrás desse debate. Aqui, senti que podia contribuir de forma mais concreta para a discussão. O filme não é um manifesto político, nasce de algo pessoal e também da minha estética, mas em Portugal faz sentido. Na Grécia, seria como falar de naves espaciais [risos].

É triste ouvir isso da Grécia, o país dos filósofos, da política…

Pois é [risos]. Mas, em resumo: fiz o filme aqui porque sou português.

Tendo em conta que já tinha trabalhado em Portugal com “Goodnight Irene”, e sabendo que é um país difícil para certas actividades artísticas, o que te levou a voltar a filmar cá?

Sim, é verdade, e é uma pena. Fala-se muito de uma “terceira via”: um cinema inteligente, mas ainda acessível ao público. É nesse espaço que gosto de estar, e espero ter conseguido com este filme.

Gosto muito dessa ideia da terceira via. Também não gosto da trincheira entre “cinema de autor” e “cinema comercial”, muitas vezes o que se chama cinema comercial é quase uma prima afastada da televisão…

Exacto, e esse é o problema. O apoio ao cinema em Portugal está muito dividido. Temos uma tradição forte de cinema de autor, e com mérito, mas falta um cinema que tente atrair o público às salas sem deixar de ser inteligente e exigente. O chamado cinema “comercial” muitas vezes tenta apenas replicar modelos televisivos. Acho que o caminho devia ser outro: contar boas histórias, bem escritas, com substância, mas que também comuniquem com o público. Nenhum termo é perfeito, mas é isso que falta cá.

Falando então do seu projeto … e do teu trabalho de argumentista … nota-se que “Sonhar com Leões” possui um guião sólido, muito bem trabalhado. Foi por aí que começaste o projecto?

Sim, claro. O começo é sempre o argumento. Como dizia o Hitchcock: “argumento, argumento, argumento”. Trabalhei muito o guião. Acho que, para podermos quebrar regras, temos primeiro de conhecer bem a tradição da escrita. Só assim se pode inovar de forma consciente. Só quando o argumento está realmente sólido é que podes chegar à rodagem com liberdade para improvisar, adaptar, alterar. O guião não deve ser seguido de forma rígida, mas para isso tens de o conhecer profundamente, só assim sabes o que estás a mudar e porquê.

Sim, e é uma ideia interessante. Sou fascinado pela questão do humor. Recordo que o humorista Ricardo Araújo Pereira, que também é um obsessivo pelo tema e tem imensos livros publicados sobre isso, define que o humor foi criado pela humanidade como forma de lidar com a sua consciência da mortalidade.

Aliás, há uma frase de um escritor francês (não me lembro agora qual) que me ficou desde miúdo: “O homem pode estar à beira da falésia, mas tem de rir.” E é isso. Até pus uma citação do Mark Twain na capa do guião quando ele circulava: “A humanidade só tem uma arma verdadeiramente eficaz: o riso.

É curioso, porque o filme ri do tema, mas ri connosco. Não ri de nós, mas connosco.

É isso mesmo. Ao mesmo tempo, é preciso ter consciência de que estamos a lidar com temas muito sérios. Nunca quis, e penso que consegui, não menosprezar as experiências das pessoas que realmente vivem situações de doença terminal ou sofrimento psicológico. Elas estão “dentro da piada”, por assim dizer, participam dela connosco. Sobretudo a Gilda.

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E era aí que queria chegar. A personagem da Gilda, enquanto argumentista, como é que a construiu? E olhando agora para a Denise Fraga no papel, foi ela a tua primeira opção?

Sempre quis que a personagem não fosse portuguesa. Sempre a imaginei estrangeira, porque, em parte, é inspirada em aspectos da minha mãe, que também não é portuguesa, e, para a história da eutanásia, fazia sentido que Gilda fosse uma outsider, alguém isolada.

Se fosse portuguesa, o público iria naturalmente pensar: “Mas ela não tem família? Um primo? Um sistema de apoio?”, e isso criaria outra camada de leitura. Sendo estrangeira, essa solidão é mais credível.

Quanto à Denise, descobri-a durante a pandemia. Vi uns trabalhos que ela fez com o marido, o realizador Luís Vilaça, pequenos filmes caseiros que acabaram por virar uma série [“Horas em Casa”]. Ela falava diretamente para a câmara, num tom muito poético, muito íntimo, muito parecido com o da Gilda. Não havia uma narrativa linear, mas percebi logo: “É ela.” Foi uma sorte tremenda. A Denise Fraga é uma dádiva ao mundo da representação.

Em relação ao tema, e porque o filme joga constantemente com ele,  há uma grande coragem em abordá-lo desta maneira. A opção de Gilda não ser portuguesa reforça esse isolamento, essa falta de rede afetiva. E isso faz-me lembrar certos debates sobre eutanásia aqui em Portugal, quando surgem artigos contra e dizem: “Essa pessoa precisa é de um abraço.

Sim, sim! Lembro-me de ter escrito, numa versão inicial do guião, uma cena de manifestação pró e contra, e usava slogans reais que achava absurdos. Um deles era “Vida sim, morte não”. Sempre achei graça, quer dizer, é uma ótima ideia, mas expliquem-me como é que isso se faz [risos].

E essa coisa do “abraço como solução para tudo”... Confesso que, a certa altura do filme, temi que o final fosse cair num moralismo, ou que ela acabasse por sobreviver.

Exactamente! [risos]

Torcia para que isso não acontecesse. [Risos]

Pois, isso seria a pressão americana [risos].

Mas há algo no filme: na relação entre Amadeu (João Nunes Monteiro) e a Gilda (Denise Fraga), que traduz isso muito bem: pode haver afeto, pode haver humanidade, mas isso não obriga ninguém a continuar a viver “por arrasto”.

Ou por obrigação. A vida é uma dádiva fenomenal, maravilhosa, mas também deve haver certos requisitos para que valha a pena vivê-la, e esses variam de pessoa para pessoa. Por exemplo, alguém com um diagnóstico de demência iminente pode não querer continuar se perder aquilo que considera essencial — a lucidez, a ligação intelectual ao mundo. Outra pessoa, para quem o corpo é central, pode definir a mobilidade como esse limite.

Temos de aceitar isso. Dizer “não, temos de viver a qualquer custo” não é defender a vida, é o contrário. Paradoxalmente, ao defender o direito de escolher, estamos a afirmar o valor da vida, a dizer que ela é preciosa e deve ser vivida plenamente. Se isso não é possível, deve existir o direito de decidir.

Queria falar agora da personagem do João Nunes Monteiro, porque acho-a fascinante. A certa altura é-lhe atribuída uma espécie de “fobia à felicidade”.

Sim … chama-se “anhedonia”.

O papel parece ser uma crítica viva à ideia de felicidade consumista em que vivemos, à indústria que nos vende um conceito vazio de “felicidade”.

Há hoje quase uma obrigação de ser feliz, mesmo sem se saber bem o que isso significa. A palavra “felicidade” é tão vaga que pode significar tudo e nada. Um psicopata pode sentir prazer em matar. Será isso felicidade? É absurdo. O Amadeu representa essa crítica a uma sociedade que impõe a felicidade como dever moral. E isso alimenta uma indústria bilionária: quanto mais falta de felicidade crias, mais produtos e experiências vendes para tentar suprir essa ausência. Esses dois lados estão interligados, e a Joy Transition International [a empresa fictícia do filme] faz parte dessa crítica.

Sim, porque a Joy Transition tem uma estética muito próxima das igrejas pentecostais. Dentro daquele barracão, há todo um ritual…

É inspirado nesse tipo de ambientes. Já estive em vários retiros, de naturezas diferentes, alguns bons, outros mais ao estilo da Joy Transition [risos]. Faz-se lá de tudo: mantras absurdos, frases como “Eu sou o mundo, o mundo sou eu” ditas em coro... há sempre um tom quase religioso. A crítica do filme é mais a esse lado, ao fervor quase espiritual que o capitalismo consegue apropriar, do que a uma religião específica.

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Porque tudo se transforma em negócio: os retiros, os coaches, o “sair da zona de conforto”... No fundo, até na morte, é tudo capitalismo.

Sim, exatamente, “como saber morrer” também vira um produto. E a única forma, ainda que nunca totalmente eficaz, de nos protegermos disso é através de legislação, de supervisão civil, que, em democracia, é o Estado. Sem isso, é a lei da selva — o capitalismo puro —, e abre-se o espaço para este tipo de exploração, inclusive no fim da vida.

Mudando de assunto. Tenho pena que a personagem da Victória Guerra apareça tão pouco. Aquela influencer de funerária possui um absurdismo que podia ter sido mais explorado.

Tens razão, concordo. Mas há sempre o dilema do “kill your babies” … tens de cortar coisas de que gostas.

Podemos então dizer que o filme, de certa forma, é também sobre esta sociedade ultracapitalista? Onde a morte é lucrável e mercantilista?

Sem dúvida. E acrescento hedonista. Uma sociedade onde a procura constante de felicidade e prazer está sempre ligada ao lucro, tudo é subordinado a isso. É uma crítica, sim, mas feita através da sátira, que por sua vez é uma forma de crítica, sem dúvida.

Por vezes a comédia é muito eficaz nesse ramo. Mas sobre a constante quebra da quarta parede — essa comunicação direta da Gilda para com o público. Veio um pouco da ideia da Denise Fraga, do programa que ela fazia durante a pandemia, certo? E o facto de termos uma personagem assim… e isto talvez seja spoiler… mas esse narrador, a Gilda … já está morta?

Pois, essa é uma boa pergunta… [sorri] mas não quero revelar essa questão, estaria a descortinar em demasia o final do filme.

[risos] Está bem, não insisto. Então, para última pergunta. Fiquei muito curioso com o título — “Sonhar com Leões”. Tentei perceber se havia alguma metáfora escondida.

Há, um bocadinho, mas é tangencial.

Porque o leão, e a associação mais próxima que encontrei está igualmente presente “Crónicas de Nárnia”, do C.S. Lewis, onde o animal é uma representação de Deus. Encarei o título do seu filme como uma espécie de “sonhar para além da vida”.

É uma leitura próxima, sim. Mas deixa-me explicar. Apesar de ser uma pessoa bastante analítica, gosto de seguir o instinto. Se algo me parece forte numa certa direção, sigo-o, seja na escrita ou na encenação. Por exemplo, a cena em que o cão morto fala nunca foi uma decisão prévia, simplesmente estava a escrever: o Amadeu entra numa sala vazia e, de repente, há uma voz. Perguntei-me: “Que voz é esta?” Percebi: só pode ser a de um cão. E se é um cão, então é a de um cão morto. Continuei a partir daí. Foi puro instinto. Inspiração e prazer em seguir uma ideia que surge do nada.

Com o título aconteceu o mesmo. “Sonhar com Leões” vem de “O Velho e o Mar”, do Hemingway. A imagem dos leões aparece no início e no fim do romance. O velho pescador vive uma existência miserável (pobre, esgotado, derrotado), mas tem essa recordação de juventude, quando navegava na marinha mercante e viu uma família de leões a brincar na costa africana. Essa imagem representa paz, refúgio, a fuga à dor. É o seu lugar de serenidade.

Quando encontrei essa imagem, senti que era perfeita. Comecei por instinto. “Vamos por aqui”, e ficou. Curiosamente, durante todo o processo de financiamento que foi longo, com apoios difíceis de conseguir, como da Eurimages, do Ibermedia, e várias idas a mercados de coprodução, ninguém nunca nos questionou o título. Achei engraçadíssimo, porque pensei que seria a primeira coisa que nos iam perguntar: “O que é isto de ‘Sonhar com Leões’?” Mas não. O título ficou, e ficou mesmo.

Para finalizar, tenho uma questão em duas partes. A primeira toca, indiretamente, nos “novos projetos”, embora imagine que, com “Sonhar com Leões”, ainda esteja a repousar sobre ele…

Não senhor. É o contrário, já estou a pensar no próximo! [risos]

[risos] E a segunda parte é: como é que este filme pode funcionar, ou relacionar-se, com o público português? Tendo em conta que o público português, muitas vezes, é um pouco preconceituoso com o seu próprio cinema.

Sim, esse é um grande problema. Espero, e voltamos aqui à questão de tentar criar um cinema narrativo, inteligente e acessível que “Sonhar com Leões" funcione como um passo nesse sentido. Mesmo sendo um tema difícil, eu reconheço isso e não fujo dele. Quando é suposto doer, dói.

Acredito que a cultura deve estar na vanguarda da mudança. Caso contrário, o que estamos aqui a fazer? Se for apenas para validar o que já está validado, então nem vale a pena começar. Mas atenção: não se trata de “quebrar ídolos” por quebrar. A questão é, se tens uma ideia que diverge do status quo, então propõe, arrisca, faz.

Isso faz-me lembrar o Dias Gomes, dramaturgo brasileiro que escreveu “Roque Santeiro”, primeiro como peça, depois como novela. Ele dizia: “Toda a gente nasce para irritar alguém, e se não estás a irritar ninguém é porque não estás a fazer nada.

[risos] O George Bernard Shaw tem uma parecida: “O segredo do sucesso é ofender o maior número de pessoas.

A minha esperança é que, mesmo sendo um tema sensível e polémico, a linguagem narrativa e o ritmo do filme sejam suficientemente acessíveis para que um público alargado se queira sentar, ver e partilhar essa experiência, e, com isso, a criar um pouco de erosão nesse preconceito contra o cinema português: dessa ideia de que é sempre lento, pesado, distante.

E o tal novo projeto?

Estou a trabalhar em vários neste momento, mas o mais avançado segue um pouco o mesmo caminho deste filme, em termos de produção e também com a Denise. Será uma comédia negra e satírica sobre os lares de idosos e a crise habitacional que estamos a viver.

Doclisboa '25: daqui consigo ver o mundo lá de fora. Uma conversa com Hélder Beja, sobre programação e imagens a (re)descobrir

Hugo Gomes, 15.10.25

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En la alcoba del sultán (Javier Rebollo, 2024)

O Doclisboa arranca não apenas sob a ideia de um cinema documental em desconstrução ou em permanente reinvenção sintática, mas como uma espécie de bola de cristal dos nossos tempos: dos movimentos que despontam às memórias que se preservam, passando pelos conflitos que se reconfiguram numa nova lavagem imagética, das “guerras infinitas” às múltiplas violências sociais. Tudo condensado em dez dias de cinema… sim, sobretudo Cinema.

Como sempre, o Festival Internacional de Cinema não se assume como uma mera mostra documental. Aliás, em tempos de streaming e de facilitismo de acesso, o género documental popularizou-se, e, com isso, formatizou-se, standardizou-se, em remessas de conteúdos que pouco têm de experimental ou transgressor. O Doclisboa tem batalhado para contrariar essa tendência: entrega-nos cinema para lá da “estética Netflix” e das suas pedagogias fáceis.

É uma janela para o mundo, esse cliché tantas vezes gasto pelo mercantilismo cinematográfico, que aqui faz pleno sentido. Porque nestes filmes não vemos “olhares de ninguém”, mas sempre um “olhar de alguém”. De William Greaves a Ross McElwee, da Palestina à Ucrânia, dos Riscos ao tão amado Heart Beat, em português ou noutra língua, o Doclisboa reafirma-se como um festival de classe.

O Cinematograficamente Falando… conversou com Hélder Beja (nesta que é a sua primeira edição como director e programado) para nos guiar pelo meio da programação: das sugestões às surpresas, das novidades aos imperdíveis. O documentário, aqui, não como género fechado, mas como abertura.

Em comparação com edições anteriores, este ano parece não haver uma temática unificadora, aliás existem variadíssimos temas que o festival quer intensamente abordar, tendo em conta que os vários filmes apoiam nessa teoria. Penso que isto se liga um pouco à minha primeira pergunta: ao fazerem a seleção de documentários, num tempo em que tudo parece cada vez mais difícil, quase com um certo fatalismo sobre o que nos pode acontecer, vocês pensam nesse ato de programação em criar uma espécie de “sintaxe”, um resumo da nossa contemporaneidade?

Sim. Desde que estou na equipa (e isso desde 2023) sinto sempre, e também este ano, que apesar de existirem algumas linhas orientadoras, o festival nunca foi muito temático. Agora, o que disseste no final é exatamente isso: o Doclisboa é uma espécie de cápsula do nosso tempo. É isso que tentamos fazer, às vezes com melhor resultado, outras vezes com menos bom, mas é esse o objetivo. Este ano, a programação é especialmente extensa, o que também é uma característica do festival pela sua natureza e pela dimensão que foi ganhando ao longo dos anos. O Doclisboa quer ir para lá do dogma do cinema documental, e isso nota-se bastante (particularmente este ano). Há o que já se chama o “género híbrido”, e até para lá disso: o festival tem várias ficções na programação, e nós gostamos disso. Apesar de termos “doc” no nome, o festival acaba por acolher muitas ficções.

Mas também porque o mundo é um lugar cada vez mais complicado, mais difícil de ler. Se tivesse de apontar alguns fios condutores nesta programação, diria que há um esforço para falar do que está a acontecer sem mostrar exactamente o que está a acontecer. Temos muito poucos filmes gráficos — se pensarmos, por exemplo, nas guerras, nos conflitos, em toda a histeria e destruição que vai pelo mundo, o festival tem muito poucas imagens explícitas. O que está fora de campo é tão importante, ou quase tão importante, quanto o que está em campo. Essa foi uma nota importante para nós. Por outro lado, quisemos também dar espaço a filmes que abrandam, que não se compadecem com a voragem do nosso tempo e deste consumo imediato. Há muitos filmes, incluindo portugueses, em que esse respiro se sente. Penso que todos nós temos essa necessidade: de parar, pensar, observar e perceber o que andamos aqui a fazer.

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With Hasan in Gaza (Kamal Aljafari, 2025)

Pegando nessa ideia — dessa convulsão moderna que estamos a viver — e também nesse ponto de que programar um festival é um acto político: o facto de abrirem o Doclisboa com um filme sobre a Palestina também é um gesto político, uma espécie de alerta para o mundo. Hoje em dia fala-se cada vez mais da Palestina, já não em modo sussurrante, mas em forma de grito.

Sim, acho que chegámos a esse ponto … Do ponto de vista da consciência global, o mundo percebeu finalmente que era preciso falar disto a toda a hora, até que acabe. Esperemos que esteja prestes a cessar. O que foi feito não é apagável, mas que termine seria muito importante. Mas, sinceramente, há uns meses não era nada líquido que, ao chegarmos agora ao Doclisboa, este conflito estivesse já na boca de toda a gente. Fomos vendo festivais, cá dentro e lá fora, acontecerem com algum espanto, sem grande posicionamento em relação aos grandes temas. Este é, claramente, o grande tema, a grande mancha da Humanidade neste tempo: o que está a acontecer em Gaza.

Falámos muito sobre isso ao longo dos meses. A equipa (sobretudo o comité de selecção) estava muito alinhada em que não se podia perder uma característica essencial do festival: o seu posicionamento político. Tanto nas questões ligadas ao cinema em si, como nas questões globais que nos tocam a todos. Sabíamos que, num momento tão grave como este, não podíamos deixar que essa dimensão desaparecesse. É verdade que, entretanto, a realidade aconteceu. Felizmente, como dizia, há agora uma consciência, mesmo que às vezes soe um pouco hipócrita da parte de governos ou instituições, de que é preciso travar esta chacina em Gaza, e foi já há poucos meses, antes do festival, que encontrámos o filme do Kamal Aljafari [“With Hasan in Gaza”].

Não estávamos à procura de um filme sobre a Palestina e isso é importante referir. Tivemos muitas outras hipóteses em mente, pensámos noutros filmes para a sessão de abertura, com conotações diferentes, mas também sabíamos que não queríamos um filme “cool”, só porque sim. Não queríamos apenas um filme com pinta, que enchesse a sala e pronto. Este filme foi escolhido por duas razões. A primeira, e mais importante, é que cinematograficamente é um belo filme, um gesto cinematográfico muito bonito, de um realizador com uma carreira interessante e já relativamente conhecido em Portugal. É um filme cheio de vida e de esperança.

Não é um filme sobre a Gaza que existe (ou deixa de existir) hoje. É sobre uma Gaza de há mais de 20 anos, já então um lugar complexo, difícil, sitiado, ocupado, mas ainda assim um lugar de vida, não de morte. E isso é muito bonito. Além disso, o filme chega a ser divertido: é um road movie em que o Kamal regressa para tentar reencontrar um homem com quem filmou no passado, e acaba por criar uma relação com o condutor que o leva pelos territórios de Gaza. Portanto, a primeira razão foi o valor cinematográfico. A segunda, claro, é o gesto político. Estamos muito contentes por poder fazê-lo e esperamos que, no dia 16, o São Jorge esteja cheio. Não é um filme fácil de atrair público à primeira, porque as pessoas estão muito saturadas deste tema.

Mas deixo mesmo essa mensagem: é um filme cheio de vida, não de morte. Não vai assolar as pessoas. É um filme de memória e de resistência.

Os filmes que falam, de certa forma, sobre alguns conflitos que estamos a viver neste momento… Vou citar um exemplo que vi na altura da Berlinale: “When the Lightning Strikes Over the Sea”, da Eva Neymann, sobre a Ucrânia. Ela filma de uma forma muito distante da linguagem televisiva habitual. Quando programam este tipo de filmes, que, directa ou indirectamente, falam destes conflitos ou destas guerras, muitas delas quase infinitas, também procuram fugir ao formato visível e às imagens já cansadas, ou acrescentaria também pornográficas, que o público tem desses mesmos conflitos?

Sim, sem dúvida. Por um lado, há esse cuidado. Por outro, e talvez relacionado com isso, há a ideia de que a repetição do mesmo pacote visual, aquele mesmo grupo de imagens que circula em todo o lado, acaba por se tornar amiga da indiferença. Acreditamos que um filme como o da Eva Neyman, com a carga humanista que tem, consegue quebrar isso. Há logo nos primeiros minutos um rapaz que vagueia pelas ruas, aparentemente normais, mas onde se veem alguns prédios destruídos de Odessa. É muito impressionante. Estou aqui a falar disto e arrepio-me, porque atinge-nos de uma forma que já não sentimos ao ver, por exemplo, um prédio em ruínas no telejornal. Já estamos tão habituados a essa pornografia televisiva — como lhe chamaste — que deixámos de ser tocados. Por isso acreditamos que, através de histórias mais ligadas às pessoas e à vida, porque a vida continua, mesmo em meio à carnificina, conseguimos gerar debate, pensamento crítico e reflexão sobre estes conflitos sem recorrer a imagens gráficas. Essa foi precisamente a ideia de programar o filme da Eva, que é um dos filmes de que mais gostamos este ano. Também o vimos em Berlim e ficou logo connosco.

When Lightning Flashes Over the Sea (Eva Neymann, 2025)

Sobre a competição portuguesa, a nacional, acho que há aqui um grande esforço em reunir uma seleção coesa, e, como falava há pouco sobre o docudrama e o género híbrido, que estão cada vez mais presentes, pergunto: há uma certa disputa com o IndieLisboa, já que também programa vários documentários portugueses? Não há o receio de que alguns filmes se “percam” antes de chegar ao Doclisboa?

Sim, claro. Os calendários dos festivais, sendo diferentes, têm os seus benefícios e também os seus desafios. Há vantagens em realizarmos o festival em Outubro, por exemplo, acontece depois de Veneza, o que permite, às vezes, conseguir filmes grandes que reforçam a programação. Mas também há desvantagens: é já tarde no ano, e alguns filmes, por várias razões, preferem estrear mais cedo. Depois há factores mais práticos - o clima, por exemplo. Fazer um festival em Maio é mais agradável do que em Outubro [risos]. Mas pronto, esperamos que este ano corra bem.

No fundo, acho que há espaço para todos. Lisboa tem a sorte de ter dois festivais muito importantes e muito diferentes — o Doclisboa e o IndieLisboa —, e até o LEFFEST logo a seguir, que também acaba por partilhar alguns filmes. No caso do LEFFEST, a natureza é bastante distinta, mais eclética, e com outra capacidade de apoiar os filmes do ponto de vista da distribuição, por exemplo. De modo geral, não temos tido grandes dores de cabeça com isso. Acho que o trabalho que o festival tem feito, e que tentámos reforçar este ano, foi o de uma aproximação ainda maior às produtoras e aos realizadores portugueses. Não lhe chamaria “reaproximação”, porque o Doclisboa sempre esteve perto do cinema português, mas quisemos aprofundar esse diálogo.

Pessoalmente, tive a oportunidade de me encontrar com muitos produtores ao longo do ano (até porque este é o meu primeiro ano como diretor do Doclisboa), e, embora já conhecesse boa parte deles, foi importante conversar e perceber o que estavam a preparar, o que lhes interessava ou não. A verdade é que, por isso e por outras razões, conseguimos uma competição portuguesa de que estamos mesmo muito orgulhosos. Temos sete filmes em estreia mundial, talvez o número mais alto dos últimos anos. Não é que estejamos obcecados com as estreias mundiais, mas é um sinal de confiança: os realizadores e produtores confiam no festival para lançar os seus filmes.

Além disso, temos cineastas muito diferentes, em fases muito distintas das suas carreiras, desde a Rita Azevedo Gomes até ao Duarte Coimbra, por exemplo. Essa diversidade, entre alguém mais sénior e alguém mais jovem, é o lugar onde queremos estar. Também temos bons representantes desse registo híbrido, do docudrama, como o novo filme do Carlos Conceição, “Baía dos Tigres”, “Andar com Fé” do Coimbra, o “Explode São Paulo, Gil”, de Maria Clara Escobar, todos eles a explorar esse território que não é apenas documental, mas que tem os seus próprios passos e ritmo, e isso é muito estimulante.

Agora, passando talvez a um grande regresso no vosso festival — que esteve em Veneza e estará também presente no Doclisboa —, falo do Ross McElwee. Não só o regresso dele ao ativo, com o filme “Remake”, mas também aos circuitos dos festivais.

Sim, sem dúvida. O Ross McElwee é um autor muito querido do Doclisboa. Eu não estava no festival no ano em que lhe foi dedicada uma retrospectiva, mas já me contaram muitas histórias sobre essa passagem dele por Lisboa.

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Remake (Ross McElwee, 2025)

O Ross McElwee esteve vários anos sem filmar, e, embora isso não seja o mais importante, vale a pena referir que esteve afastado por razões pessoais muito duras, que estão, de certa forma, ligadas ao novo filme. Agora regressa ao ativo, passou já por alguns festivais importantes, como Veneza, e vem também ao Doclisboa, que, claro, é o seu espaço natural.

Enquanto Veneza foi a estreia, o Doclisboa é o segundo festival por onde o filme passa?

Não acompanhámos o percurso exacto. Quando não temos a estreia mundial ou internacional de um filme, não nos preocupamos tanto em seguir o circuito dele antes de vir até nós. Claro que, quando queremos garantir uma estreia mundial, isso é discutido diretamente com a produtora. Mas no caso de estreias internacionais, às vezes há dúvidas e é preciso confirmar se o filme não vai passar antes noutro país. De qualquer forma, creio que o filme já pode ter passado em mais alguns festivais.

O certo é que o próprio Ross, de forma muito honesta, anunciou em Veneza, numa conversa ao Público, que viria cá, e quisemos preparar tudo com cuidado para o receber bem. Ele ficou muito entusiasmado com a ideia de regressar a Lisboa. Vem acompanhado pela esposa e traz este filme muito pessoal, em que retrata a relação com o filho — entretanto já falecido. Obviamente, é uma dor que quase nenhum de nós consegue imaginar, mas podemos supor o que significa ter um filho e deixá-lo de ter. É uma das experiências mais duras da vida.

O Ross McElwee vem, portanto, não só mostrar o novo filme e retomar o contacto com os festivais, mas também participar num momento simbólico: uma conversa entre ele e a Cíntia Gil [dia 19 de outubro], que, como sabes, foi diretora do Doclisboa durante muitos anos e é agora programadora associada. Ela teve um papel fundamental neste desenho de programação que apresentamos este ano. E, além disso, já estava no festival na altura em que o Ross veio pela primeira vez, por isso vai ser um reencontro muito especial.

Aproveito para dizer que essa conversa com o Ross McElwee vai acontecer no Fórum de Debates da Culturgest. Criámos este ano um novo espaço de conversas com realizadores, algo que, pessoalmente, sentia que fazia falta. Muitas vezes, quando acompanhava o festival como parte da equipa, percebia que tínhamos convidados muito importantes a passar por aqui, mas, tirando os poucos minutos de Q&A depois das sessões (que muitas pessoas até evitam porque já estão cansadas), não havia um verdadeiro momento de diálogo. Então decidimos organizar seis conversas com realizadores este ano: quatro com cineastas internacionais e duas com realizadores portugueses. Entre as portuguesas, teremos o Eugène Green, com “A Árvore do Conhecimento”, e o Pedro Pinho, com “Riso e a Faca”. Entre os realizadores estrangeiros, teremos: Ana Negri, com “Toni, Meu Pai” (“Tonio, My Father”), e Deni Côté, realizador de “Paul”, que vai conversar com o Boris Nelepo, um dos nossos chefes de programação (a outra é a Cecilia Barrionuevo). E claro, entre essas conversas, está também a do Ross McElwee, que vem mostrar o seu novo filme, fará depois uma masterclass no Porto, na Universidade Católica, na Escola das Artes, e participa nesta conversa pública em Lisboa.

Acho que vai ser um regresso muito bonito e cheio de significado. Esperamos mesmo que o público apareça para ver este novo filme de um cineasta fundamental.

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Duran Duran: Unstaged (David Lynch, 2011)

Deixa-me só tocar num ponto … senão começam a bater em mim! [risos] … há uma secção muito querida aqui no Doclisboa. Refiro-me, obviamente, ao Heart Beat. Gostava que me falasse um pouco dela, nem que fosse um pequeno tour pela secção.

Sem dúvida, o Heart Beat é uma das secções favoritas do público. É uma secção que vai muito para lá da música, e por vezes as pessoas têm aquela ideia de que é “a secção de filmes sobre música”, mas na verdade é sobre expressões artísticas no seu sentido mais amplo, são filmes que nascem dessa relação entre o cinema e outras artes, e este ano isso é particularmente visível, desde logo nas três homenagens que organizámos: Uma delas é ao Robert Wilson, recentemente falecido, alguém muito conhecido do público português, do teatro, da performance, dos palcos. Temos um filme sobre a obra dele, uma recuperação de um filme dos anos 80, “Robert Wilson & the Civil warS" (Howard Brookner, 1986) e depois dois filmes mais experimentais realizados pelo próprio Wilson. Acho que vai ser uma das secções mais especiais deste ano.

Depois, celebramos também o centenário do Luciano Berio, figura incontornável da música contemporânea, e trazemos dois filmes à volta da sua obra. Há ainda dois filmes ligados ao David Lynch“Welcome to Lynchland”, em estreia portuguesa, e uma reposição de “Duran Duran: Unstaged”, um concerto filmado por Lynch, que já não passava em sala há imenso tempo. O Heart Beat também serve para isso: revisitar coisas que têm uma energia única e que vale a pena voltar a ver em grande ecrã.

Mas a secção também olha para o cinema português, e isso interessa-nos muito, sobretudo porque é uma secção mais festiva, mais celebratória. O festival, no seu todo, tem essa dimensão de celebração, mas o Heart Beat tem-na de forma ainda mais marcada. Por exemplo, vamos ter um filme da Solveig Nordlund sobre o Teatro da Cornucópia (“Memórias do Teatro da Cornucópia); um filme muito inesperado do Diogo Varela Silva, “Soco a Soco”, sobre o Orlando Jesus, um ex-boxeur que ainda dá aulas; e ainda um filme da Aline Belfort sobre o trabalho do João Fiadeiro, que passa aqui na Culturgest. É um filme que vai surpreender muita gente, navega entre várias expressões artísticas e reflete muito o espírito da secção.

Mas há outro momento que queria destacar, porque representa algo que o festival quer reforçar neste novo ciclo: a convocação de outras expressões artísticas para dentro da programação. Sempre com o cinema no centro, claro, mas abrindo espaço ao teatro, à literatura, à música e às artes visuais. Um bom exemplo é o filme da Joana Botelho, “Estava Escuro na Barriga do Lobo”, acompanhado por uma performance da Sara Carinhas, cuja prática artística o filme acompanha. Durante a projeção, a própria Sara vai intervir ao vivo, aqui na Culturgest.

Depois há momentos absolutamente imperdíveis: o novo filme do Pippo Delbono, “Bobò”, que é belíssimo; e “Cast of Shadows”, sobre a família Flaherty, uma homenagem aos primórdios do cinema. O último filme a entrar na programação, já mesmo no fecho, foi o “Megadoc” de Mike Figgis sobre a rodagem de “Megalopolis”, do Francis Ford Coppola. Foi uma verdadeira corrida contra o tempo para o conseguirmos ter, e só vai passar uma única vez, não é o filme de encerramento, mas será uma das últimas projeções, no dia 26, aqui na Culturgest. Achámos que terminar o festival com um filme de um mestre como o Coppola fazia todo o sentido.

 

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Megadoc (Mike Figgis, 2025)

Ainda por cima, cheio de dramas de bastidores! E em relação aos Riscos? A secção que adquiriu uma aura especial no ano passado, com a despedida do Augusto M. Seabra.

Sem dúvida. Os Riscos são, por excelência, a secção de curadoria do festival. Enquanto a Da Terra à Lua é quase uma panorâmica do que se faz no mundo, com filmes de autor, mas também alguns de maior público, os Riscos dão total liberdade criativa a quem programa. Pensamos a programação como um acto político, mas também como um ato criativo e essa secção traduz isso na perfeição. Os Riscos são programados sobretudo pela Cíntia Gil, embora haja contributos de várias pessoas do comité de seleção. Há também colaborações especiais e programas paralelos.

Por exemplo, temos artistas convidados muito interessantes este ano. Um deles é Trương Minh Quý, realizador vietnamita pouco conhecido em Portugal, de quem mostramos três ou quatro filmes e recomendo começar por “Hair, Paper, Water …” (2025). Do Egipto, chega a Hala El-Khoussi, uma realizadora que para mim foi uma verdadeira descoberta. Há nela algo de felliniano — mistura teatro, cinema, palavra, tudo. Os filmes têm uma energia incrível e ela vai estar connosco no festival. Depois há um programa de que gosto particularmente, Shadowboxing, feito em parceria entre a Cíntia e o Jean-Pierre Rehm, que foi durante muitos anos diretor do Festival de Marselha e estará também presente em Lisboa. O ponto de partida é o filme “Two Meters of This Land”, do palestiniano Ahmad Natche, já falecido, e a partir daí criaram um jogo dialético de sessões que se respondem entre si. É um dos momentos mais especiais da programação, vale mesmo a pena seguir.

E, claro, há muitas outras descobertas: destaco, por exemplo, “As Aventuras de Gabriel Veyre pelo Mundo”, sobre uma figura fascinante do cinema primitivo, e “Na Alcova do Sultão” (“En la alcoba del sultán”), do espanhol Javier Rebollo, que dialoga com esse mesmo universo. Portanto, um breve sobrevoo pelos Riscos, que estão cheios de coisas incríveis para descobrir.

Queria que falássemos sobre o William Greaves, a retrospectiva. Até porque a informação que tenho, já agora, de um dos responsáveis pelo ciclo, Luís Mendonça, que afirma que Greaves é bastante desconhecido, até mesmo nos Estados Unidos.

O William Greaves surgiu dessas conversas sempre muito frutíferas que temos com a Cinemateca. Costumamos “bater bola” até chegarmos a um consenso, e gostamos mesmo que seja um consenso entre o festival e a Cinemateca, no que toca à retrospectiva. O Doclisboa chegou a ter duas retrospectivas por edição, mas percebemos que fazia mais sentido dar espaço a pequenos focos e concentrar esforços. Duas retrospectivas exigem muita energia, e achámos que não era produtivo.

A relação com a Cinemateca já dura há muitos anos e é muito equilibrada para ambas as partes. Este ano, tivemos um verdadeiro final feliz — chegámos ao nome do Greaves. Alguns de nós conheciam-no vagamente, outros nem isso, e fomos todos mergulhar no trabalho dele. Foi uma grande descoberta! Percebemos logo duas coisas muito rapidamente: primeiro, nunca houve uma retrospectiva completa do William Greaves, nem nos Estados Unidos nem fora. E, ao mesmo tempo, ele tem um seguimento quase de culto — há muitos textos de críticos norte-americanos influentes sobre a obra dele, pequenos programas em que se mostravam um ou dois filmes, e títulos de culto como “Symbiopsychotaxiplasm: Take One” (1968) e “Symbiopsychotaxiplasm: Take 2 ½ ” (2006).

E o curioso é que, quando a maior parte de nós esperava encontrar um cineasta afro-americano que tratasse sobretudo de questões raciais ou da luta de classes e dos direitos civis, o que encontramos foi um artista incrivelmente experimental. Claro que esses temas estão presentes, mas o que mais se destaca na obra dele são os gestos de maior rasgo artístico: a invenção formal, a ousadia, o olhar criativo sobre o real. Há filmes belíssimos sobre o conflito social e racial, sim, mas o que impressiona mesmo no Greaves é o facto de ele ser um artista completo, quase um homem renascentista, como dizia o Luís Mendonça numa conversa. Ele escreveu canções, foi actor (e vamos mostrar vários filmes em que ele atua), realizou documentários e experimentou formatos que, ainda hoje, parecem modernos.

Por isso, esta retrospectiva é muito especial. Fizemos um investimento maior do que o habitual, não só na programação, mas também para trazer a família do Greaves: o filho, David Greaves, e a neta, Liani Greaves, vão estar cá em Lisboa. Curiosamente, sem sabermos no início, acabámos por antecipar um grande programa internacional de homenagens, porque, ao que tudo indica, o próximo ano marca o centenário do nascimento do William Greaves, ou, pelo menos, uma data redonda (se não forem cem, serão noventa anos). Portanto, o Doclisboa, de certa forma, está a abrir esse ciclo de redescoberta.

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Frederick Douglass: An American Life (William Greaves, 1985)

Acho que o festival vai ter um papel importante nessa redescoberta do Greaves, tanto em Portugal como lá fora. É uma obra singular, de uma liberdade e modernidade impressionantes. O trabalho de curadoria feito pelo Luís Mendonça e pelo Scott MacDonald, que convidámos para ser o programador associado desta retrospectiva, foi excepcional e contou também com o apoio da equipa toda do festival. Tenho mesmo a certeza de que quem se der ao trabalho de acompanhar esta retrospectiva vai descobrir um cineasta absolutamente surpreendente.

Para último tópico. O Tribeca apareceu no ano passado, decorreu em simultâneo e, digamos, quase roubou o foco ao Doclisboa. Mas Paula Astorga, directora do Doclisboa no ano passado, em algumas entrevistas, desvalorizou o evento e insistiu sempre que o Doclisboa era o único festival de cinema a acontecer naquela altura. Tendo em conta que este ano o Tribeca cresceu, e parece querer afirmar-se como festival de cinema, para apaziguar o flop no ano passado, este cruzamento não vai interferir com o Doclisboa, nem em termos de fundos?

Começando pelo ano passado, acho que foi um ano infeliz para a Câmara Municipal. Terem decidido lançar um evento como o Tribeca sem olhar para o calendário foi, acima de tudo, uma falta de atenção. Não creio que tenha sido propositado, mas isso não o torna menos grave. Aliás, é até mais preocupante: ninguém pareceu reparar que as datas coincidiam com o primeiro fim de semana do Doclisboa.

Foi, de facto, uma decisão infeliz. A APORDOC fez questão de o assinalar imediatamente junto da Câmara, e a verdade é que este ano não voltaram a cometer o mesmo erro. A Câmara reconheceu o problema, desculpou-se formalmente com o festival, o que, a meu ver, é o gesto correto. Agora, olhando para o presente e o futuro: a decisão da Câmara foi continuar com o evento, e não lhe chamo “festival” porque, sinceramente, não me parece que seja um festival de cinema, é outra coisa.

Claro que, quando vemos os valores que foram atribuídos ao Tribeca e os comparamos com aquilo que o Doclisboa recebe, é inevitável sentir que há algo que não está certo. Mesmo assim, o Doclisboa do ano passado manteve-se forte: não acho que o Tribeca tenha conseguido roubar-nos o foco. Tivemos mais de 20 mil espectadores, um número semelhante aos anos anteriores. Mas não deixou de ser um episódio desagradável, um erro infeliz da Câmara, como disse.

Quanto aos fundos — já o disse há pouco tempo ao Público, num artigo sobre os atrasos nos apoios a alguns festivais —, o Doclisboa já recebeu o valor atribuído pela Câmara Municipal para este ano, e esse valor aumentou 15%. Não era atualizado há bastante tempo. No ano passado, o presidente da Câmara chegou a dizer que o financiamento ao Tribeca tinha sido compensado com um aumento aos outros festivais, o que não era verdade, e nós desmentimos isso publicamente. Este ano, sim, houve finalmente uma atualização real.

E é um sinal positivo. Ainda assim, acho que o Doclisboa — e também outros festivais sérios da cidade — merecem um investimento maior. Porque o Doclisboa tem uma escala e um impacto indesmentíveis. Estamos a falar de centenas de convidados internacionais, não de 20 ou 30 pessoas. Isso significa ocupação hoteleira, movimento cultural e económico na cidade durante várias semanas. Mesmo que esse não seja o nosso foco principal, o festival tem um peso concreto na vida cultural e social de Lisboa.

Mas, mais do que números, o que nos importa é fazer o festival bem: tratar bem os filmes, os cineastas e o público. São esses os três vetores que nos guiam, e não a obsessão com quantidades. Ainda assim, é importante reconhecer o que o Doclisboa representa: é o único festival português com uma competição internacional de cinema, com estreias mundiais e internacionais, o que é um trabalho árduo e muito desafiante.

Por isso, sim, acho que o Doclisboa merece ser tratado com carinho e respeito pelos agentes políticos e culturais da cidade. O sinal deste ano foi bom, mas veremos o que acontece a seguir, até porque teremos eleições antes do festival. Quanto ao Tribeca, a Câmara tomou as suas decisões e decidiu continuar com o evento, apesar do que aconteceu no ano passado. Mas, sinceramente, o Tribeca tem muito pouco a ver com cinema, e ainda menos com o cinema que nós defendemos no Doclisboa.

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Confira toda a programação do Doclisboa '25 aqui

Cinéfilos, unir! Close-Up chega à 10ª edição com David Lynch, Margarida Cardoso e de olhos bem fechados

Hugo Gomes, 10.10.25

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Uma década de Close-Up!". Como celebrar? Talvez a resposta resida no seio desta edição, através de relações, matrimónios, o toque definitivo ou o romance para lá do ideal e da sua ideia. O Observatório do Cinema de Famalicão está pronto para o seu “Close-Up”, descendo escadaria abaixo como Norma Desmond em “Sunset Boulevard”, de Billy Wilder, rumo à sua triunfal entrada em cena. Neste caso, longe das ficções e dos sonhos molhados e febris de Hollywood, esta montra de cinema vive o seu próprio devaneio, deambulando pelos labirintos oníricos e surreais de David Lynch. Promete-se que o seu “fantasma” estará presente, nem que seja pela melodia trazida por Dean Hurley, o seu fiel colaborador musical, com concerto e masterclass já agendados para o município de Vila Nova de Famalicão.

Como todos os anos, a celebração faz-se com cinema, convidados e intervenções, filmes e categorias, e um público pronto a (re)descobrir os segredos bem guardados da Sétima Arte. Mas convém amplificar: como em qualquer casamento, cujos segredos é ‘coisa’ que abunda.

Mais uma vez, o Cinematograficamente Falando… conversou com o programador Vítor Ribeiro sobre o que nos espera neste novo “Close-Up” (de 11 a 18 de outurbo na Casa de Artes).

Da Infância passamos ao conforto e segurança da Família e atravessamos agora o Domicílio Conjugal com todas as harmonias e atribulações. Com isto pergunto se o Close-Up pretende ser uma família ou um casamento? Garantir segurança à comunidade cinéfila nestes tempos incertos ou casar as suas diferenças para gerar um lugar de familiaridades?

Os vários motes das edições anteriores procuraram uma relação entre os filmes e os autores que pretendíamos mostrar, enquanto procurávamos que o cinema, e a programação, participassem da atmosfera do nosso tempo. Daí o elogio anterior à comunidade e à família, que era também uma reunião alargada dos espectadores de cinema. Nesta edição, ao escolhermos como mote o Domicílio Conjugal, procurarmos dar a ver as tensões intrínsecas à dinâmica do casal, ao pedir emprestado o título a um dos filmes de Truffaut da série Antoine Doinel, mas também usar o palco do domicílio para explicitar as tensões do mundo exterior ao casal, como Ingmar Bergman, por exemplo, concretizou em muitos dos seus filmes.

David Lynch será um rosto familiar, ou melhor, um fantasma neste 10º Close-Up, seja a retrospectiva da sua obra de 70’ até ao final dos anos 90’, a exposição no foyer, ou a presença do músico e colaborador desse universo lynchiano, Dean Hurley, que garantirá um concerto e ministrará uma masterclass. Tendo em conta a temática do Close-Up, onde podemos enquadrar o cinema de David Lynch?

A obra de David Lynch, o seu importantíssimo legado para a história do cinema, teria de obter um destaque no programa deste ano. Trata-se de um realizador que boicotou a submissão do cinema às directrizes do romance do século XIX e das histórias bem resolvidas, para nos convidar a seguir outras estradas, a aproximar o cinema à pintura, e à interpretação de significações, quadro a quadro. 

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Blue Velvet (David Lynch, 1986)

Este programa também se desenhou na importância conferida por Lynch à música e ao som e por isso a importância da presença de Dean Hurley, que trabalhou com o cineasta durante 20 anos, desde “Inland Empire” (2006), até se tornar numa das figuras mais influentes no som e na música dos filmes (e dos discos) de Lynch, o que culminou na riqueza da banda sonora da terceira série de “Twin Peaks”, que ficou como o testamento do cineasta norte-americano. Este programa inclui a exibição das suas mais importantes longas-metragens, desde “Eraserhead” até “Uma História Simples” (“A Simple Story”), passando por “Veludo Azul” (“Blue Velvet”) ou “Um Coração Selvagem” (“Wild at Heart”), num ciclo que fechará no início de 2026, numa réplica do Close-up, com as duas últimas obras de Lynch: “Mulholland Drive” e “Inland Empire”.

Em Fantasia Lusitana, Margarida Cardoso é a destacada, e parte da sua obra (re)avaliada em Famalicão. O porquê da sua escolha para a secção deste ano, e, permita-me o reparo, num ano em que a realizadora é, coincidentemente, fruto de retrospectivas, masterclasses e outros olhares nos festivais de cinema nacionais?

Este programa dedicado a Margarida Cardoso começou a ser desenhado há mais de um ano, nas vésperas da estreia de “Banzo”. Com a secção Fantasia Lusitana procuramos destacar um cineasta ou um movimento do cinema português, incluindo por vezes realizadores emergentes. No caso de Margarida Cardoso trata-se de uma obra com mais de 25 anos, composta de ficção e documentário, que a torna uma das nossas mais importantes cineastas. Além das escala da sua filmografia, o conjunto dos seus filmes revelam uma coesão indiscutível, na entrega ao tema das heranças coloniais. Serão sete sessões, incluindo uma masterclasse, em que mostraremos pela primeira vez documentários como “Natal 71” ou “Kuxa Kanema – O Nascimento do Cinema”, que estão na génese do percurso de Margarida Cardoso, mas que mantêm o vigor, nesse permanente diálogo com a memória, com as relações com os territórios de Moçambique ou de São Tomé e Príncipe, na História que liga a Europa Colonial a África.  

Na secção Paisagens Temáticas somos convidados a espreitar Domicílios Conjugais em seis obras. Como foram selecionadas e com que parâmetros?

Tal como adiantamos na resposta à primeira questão, a dinâmica de casal permite explicitar tensões interiores e exteriores ao casal, como um reflexo do mundo. Procuramos selecionar um conjunto de filmes, a que se adicionarão outros nas réplicas do Close-up em 2026, que cruzam o cinema do presente com a história do cinema, dentro dessa temática. Por isso, encontramos por exemplo Jonas Trueba, em “Volvereis”, um cineasta que tem feito o seu cinema das convulsões entre as relações humanas e o cinema. Mas também voltaremos a “De Olhos Bem Fechados” (“Eyes Wide Shut”), o derradeiro Kubrick, que transportou para dentro do ecrã um dos casais mais significativos da Hollywood do final dos anos 1990: Nicole Kidman e Tom Cruise, numa secção em que também reencontremos “O Piano” (“The Piano”), de Jane Campion. Haverá filmes de Stephane Brizé – “A Vida Entre Nós” (“Hors-Saison”) - , numa ponte do melodrama entre França e Itália, com o casal Guillaume Canet e Alba Rohrwacher, mas também a revelação de um actor cineasta alemão, Fabian Stumm, em “Ossos e Nomes” (“Bones and Names”), e um dos títulos mais curiosos da produção norte-americana estreada este ano, “Amor em Sangue” (“Love Lies Bleeding”),  um casal de mulheres em fuga, da lei e do crime.

O que pode dizer sobre os convidados deste ano, e se a família Close-Up está de alguma forma montada?

A família de comentadores do Close-Up nunca está fechada. Se compararmos o elenco deste ano com o da edição passada, apenas dois nomes se repetem. Há uma procura permanente na identificação de vozes, de quem escreve sobre cinema, de investigadores, de outros artistas que se relacionam com o cinema, de novos e já reputados cineastas, de forma a alargar essa família de que falas, do círculo de pessoas que possam, pela sua participação, singularizar a experiência da sala de cinema. 

Nesta edição há nomes que já poderiam ter aparecido antes, como a investigadora Ana Isabel Soares ou o crítico (e psiquiatra) António Roma Torres, que abrirá a sessão de “O Homem Elefante” (“The Elephant Man), de Lynch. Destaque também para um núcleo de investigadores, nas áreas do som, da imagem e da literatura, designadamente Nuno Fonseca, José Alberto Pinheiro, Margarida Pereira e Márcia Oliveira. Há também novas vozes da crítica, como o radialista (e agora editor da página À Pala de Walsh) Rui Alves de Sousa, ou uma reputada pianista, Joana Gama, na introdução ao “The Piano” de Jane Campion e da música de Michael Nyman.

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The Piano (Jane Campion, 1993)

O Close-Up decorrerá lado a lado com as eleições autárquicas, e tendo apoio da Câmara Municipal de Famalicão, teme que o resultado das mesmas condicionará as futuras edições, ou este encontra-se assegurado?

O Close-Up integra a programação da Casa das Artes de Famalicão, um teatro municipal, que tem financiamento do Município de V. N. de Famalicão, mas também da Direcção Geral das Artes, através da Rede de Teatros e Cine-Teatros Portugueses, e ainda do nosso público que, com a sua participação, suporta o nosso trabalho. Este trabalho nunca está terminado, é um permanente recomeço, também na procura pela garantia de condições para continuar a promover o cinema e os seus autores, num diálogo continuado com o público, com o público do presente e na conquista do espectador do futuro.

O que nos pode dizer sobre a 11ª edição, quais os preparativos ou planos para trespassar a década de existência?

Já identificamos as directrizes para a edição 11, que se realizará a meados de Outubro de 2026. Como nesta e nas anteriores, procurará relacionar o cinema com o mundo, no entrelaçar dos autores do presente com as retrospectivas dedicadas à memória do cinema, com destaque também para os nomes emergentes do cinema produzido em Portugal. Também os cruzamentos entre o cinema e as outras artes estarão presentes, pelo que haverá cine-concertos, alguns deles apresentados pela primeira vez, resultado de encomendas da Casa das Artes de Famalicão.

Para mais informações sobre a programação, ver aqui

“Um festival com filmes que mudam o mundo". CineEco arranca com 31ª edição sob o mote da urgência, educação e ambição

Hugo Gomes, 09.10.25

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A New Kind of Wilderness (Silje Evensmo Jacobsen, 2024)

Não é nenhum “31”, apenas a 31ª edição do CineEco Seia - Festival Internacional de Cinema Ambiental, a decorrer na referido município da Serra da Estrela (de 10 a 18 de Outubro), por entre o selvagem, por entre a lembrança de um ecossistema a merecer preservação, com a máxima urgência. Mas é no cinema que nos debruçamos, ou melhor o festival debruça sempre com olhar para o horizonte da sua temática, e nesta 31ª mostra, com claras atenções à emergência climática, e com foco no debate, na educação, formação e na construção de novos públicos que coexistem com a cinematografia e a ecologia. 

Tiago Alves, programador e crítico, avançou-se para responder pelo festival ao Cinematograficamente Falando …, da longevidade, do legado, do futuro, do presente em construção e ainda sobre a memória. CineEco, que ao 31º ano de existência, renova os seus votos de festival único, mas não exclusivo, neste panorama nacional e … como também internacional. 

O CineEco celebra 31 edições, um número notável. Qual considera ser o segredo da sua longevidade e que principais desafios surgiram na concretização desta 31.ª edição?

Penso que um dos segredos para a longevidade do CineEco é a presença do Lauro António. Pensando um pouco, é a consistência de programação, que se deve, obviamente, à forma como o Lauro António consolidou o festival durante grande parte do seu tempo de existência, mas também ao Mário Branquinho, que foi programador no CineEco durante 24 ou 25 edições, reforçando o espírito do festival, posicionando-o num lugar bem distinto, com relevância internacional, do ponto de vista destes eventos que se dedicam às programações ambientais.

Nesse sentido, o CineEco foi pioneiro, e é pioneiro, em Portugal. Ninguém retira a um festival de cinema documental, com essa característica temática, esse lugar. Mas deu também muita atenção internacional, e isso se sente hoje, quando nós fazemos o nosso trabalho de programação. Continuamos a receber muitas propostas de realizadores que estiveram presentes, como também de produtores e distribuidores que conhecem o festival, mas, sobretudo, de uma rede de contactos que se estabelece a partir desses fóruns, desse espaço, e também de outros festivais que não têm a mesma antiguidade, que surgiram noutros países depois do CineEco e até com inspiração nele, e hoje continuam ligados ao festival.

Não é uma rede evidente. Os filmes produzidos com uma especificidade ambiental, ou com uma preocupação relacionada com o ambiente, não fazem forçosamente o circuito dos festivais principais. Muitos deles encontram dificuldades de exibição, porque podem ser feitos em condições muito precárias, do ponto de vista produtivo. Enfim, alguns encontrarão esse espaço em festivais mais generalistas de cinema documental, mas há, verdadeiramente, um circuito de festivais com temática ambiental e o CineEco, aí, tem um peso muito específico.

O que temos feito, em anos recentes, para prolongar, dar longevidade ao CineEco, enquanto programadores que chegámos ao festival e, de certa forma, recebemos esta herança do Lauro António e do Mário Branquinho, é, obviamente, manter essa ligação. Sobretudo, procurar afirmar, através da programação, o espaço do CineEco no panorama dos festivais nacionais. Torná-lo mais relevante para o público em Seia primeiro, mas também para o público além de Seia (um público interessado em cinema, profissionais do próprio cinema) e encontrar aqui algumas opções de programação que posicionem o CineEco no contexto dos festivais nacionais.

Olhando para outros festivais mais generalistas de cinema documental, olhando para o CineEco e, em simultâneo, para esses festivais, procurando que o CineEco tenha uma relevância maior na relação com os seus congéneres que acontecem sobretudo em Lisboa e no Porto. Mas há também outros exemplos de festivais de cinema documental, ou até com preocupação ambiental, a acontecer fora das duas grandes cidades.

A presença de alunos das escolas de Seia é sublinhada como essencial nestes debates. Tendo conhecimento da expansão de movimentos negacionistas climáticas, inclusive a sua popularidade em camadas mais jovens, com associações de certas frentes políticas, que impacto terá estes debates ou formações na conscientização ambiental e até cívicas? Ou, de uma forma mais abstracta e pertinente, o cinema deve deter um papel formador ou pedagógico?

O cinema tem uma relação muito forte com o público escolar. Ou seja, com os professores do agrupamento de Seia, mas sobretudo com os jovens, de todas as faixas etárias, de todas as idades. Enfim, começando pelos mais novos: nós temos, durante o próprio festival, uma programação de curtas-metragens de imagem animada, com uma diversidade de propostas do ponto de vista estético-visual, mas também temático e narrativo, que os envolve. Durante a semana do festival, nas manhãs, organizamos sessões em que os alunos vão ao cinema — saem da escola e vão ao cinema — os mais novos, para acompanhar a nossa programação de curtinhas.

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After the Snowmelt (Yi-Shan Lo, 2024)

O termo “de estudo” pode até não parecer adequado, porque estamos a falar de filmes de animação, mas depois podem ser trabalhados (isso já depende dos professores, claro) em contexto educativo, em sala de aula, nos meses seguintes. É óptimo, porque o festival acontece no início do ano letivo, o que permite esse prolongamento pedagógico. Alargamos também essa programação, tentando promover hábitos de frequência de cinema: criar momentos que sejam satisfatórios, do ponto de vista da ida ao cinema. Expandimos aos alunos mais velhos, do básico e do secundário, portanto além do ensino primário e pré-escolar, com uma programação que podemos considerar, obviamente, mais adulta.

Nesse eixo, não fazemos apenas exibição de filmes com uma proposta ambiental, procuramos enriquecer as sessões com a presença de convidados. Tentamos todos os anos que as temáticas sejam relevantes, com um foco nacional, mas também trazendo uma ou outra proposta que introduza um olhar mais amplo sobre problemáticas noutros territórios. Neste ano, essa programação está até mais bem estruturada do que em anos anteriores. Por vezes o que acontecia era o envolvimento dos alunos em sessões integradas na programação competitiva principal, promovendo o encontro com o realizador convidado. 

A programação está mais definida: nos dias úteis da primeira semana do festival (de segunda a sexta-feira) vamos propor quatro documentários que integram o “Cinema em Debate”. São quatro filmes que, do nosso ponto de vista, têm qualidade cinematográfica e são inéditos em Portugal, mas que não foram incluídos na competição, nem na de língua portuguesa, nem na internacional de longas-metragens, e permitem encontrar realizadores que, no último ano, abordaram temáticas ambientais que nos parecem relevantes. Esse ciclo “Cinema em Debate” está estruturado com perspectivas muito diferentes: temos uma dimensão etnográfica (muito habitual no cinema documental exibido no CineEco) mas também abordagens mais dirigidas para a restauração dos ecossistemas, para questões hídricas, energéticas, ou seja, utilização, preservação e gestão sustentável dos recursos. Essas são as quatro grandes temáticas que vamos apresentar.

Curiosamente, não sentimos, indo à tua observação, que o pensamento negacionista seja algo presente, ou que esteja em crescimento. Não é, de todo, dominante. Encontramos aqui um público que, pela vivência num espaço natural como é a Serra da Estrela, e também pela própria cidade de Seia, possui uma sensibilidade particular para estes temas. Quase já estão “convencidos”, digamos assim [risos]. Os filmes apresentam-se sempre, claro, mas não sentimos que nos debates haja surpresa face ao que os filmes propõem. É um público sensibilizado … diria até esclarecido … e que muitas vezes faz caminho ao lado do CineEco.

Porque, se pensarmos que estamos a trabalhar com turmas que têm alunos que vão crescendo, transitando de ano, e que no seguinte voltam ao CineEco, percebemos que são claramente espectadores do futuro. São espectadores que ganham essa consciência, dando verdadeiro sentido ao nosso lema de ser “um festival com filmes que mudam o mundo.”

A exibição de “Terra de Pão, Terra de Luta” (José Nascimento, 1977) e “Linha Vermelha” (José Filipe Costa, 2012) convoca a Reforma Agrária e a memória coletiva do pós-25 de Abril. É um gesto de resistência à amnésia cultural ou um sintoma de nostalgia que recorre ao arquivo sempre que o presente se revela demasiado complexo para ser lido no imediato?

Começando pela curiosidade do arquivo. Sim. Em anos recentes, a Cinemateca e o ANIM, o Arquivo Nacional das Imagens em Movimento, criaram condições, técnicas e humanas, para restaurar mais cinema português. Isso é conhecido, pelo menos, no meio do cinema. Esse processo foi desenvolvido através de um projeto de financiamento estruturado pelo FILMar, que entretanto terminou, mas que nos deixou um importante conjunto de filmes restaurados em dois ou três anos. Sobretudo, deixou um processo em andamento, todos os anos a Cinemateca vai entregando mais cinema “reencontrado”. Gosto muito desta expressão, que vem de um festival italiano de cinema clássico [Il Cinema Ritrovato, em Bolonha], talvez o mais relevante no mundo dedicado ao cinema restaurado.

Portanto, sim, há essa relação com o cinema reencontrado, redescoberto, e uma relação que o CineEco criou com a Cinemateca Portuguesa nos últimos anos. É uma opção de programação afirmada por esta equipa de formas diferentes. Já fizemos, há três anos, sessões de abertura com cinema clássico, ainda no contexto do FILMar. Temos procurado, dentro da nossa programação, criar momentos, sejam curtas, longas, ou sessões duplas, que relacionem filmes de tempos diferentes: um mais antigo, mais clássico, e outro contemporâneo que o complemente. Fizemos isso nos últimos dois anos, e é o que voltamos a fazer agora.

Portanto, há aqui uma atenção ao trabalho da Cinemateca, mas também, como dizias e muito bem, um gesto de resistência: uma programação que resiste, que olha para o território, para o que foi preservado, para o que se manteve positivo ao longo do tempo. Tentamos perceber o que determinados filmes nos dizem sobre o passado, e que relevância isso tem para o nosso presente e para o futuro. É um gesto de resistência, não no sentido de dizer que precisamos de uma nova reforma agrária, como a de há 50 anos, em vários latifúndios e territórios, feita de forma quase armada, com os próprios instrumentos agrícolas como ferramentas de luta. E sim para lembrar que “isto aconteceu”. Em boa verdade, a reforma agrária teve o seu epílogo, no contexto político, social, económico e ambiental da época. Não produziu todos os efeitos esperados, mas teve virtudes. É isso que queremos revisitar: perceber, através dessa memória, que virtudes e que lições ficaram.

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Terra de Pão, Terra de Luta (José Nascimento, 1977)

Se calhar, em 50 anos, a reforma agrária não cumpriu totalmente a sua promessa: a de uma agricultura mais sustentável, mais ligada às pessoas. Tal leva-nos, naturalmente, a reflectir o agronegócio. Num país como Portugal, o agronegócio não tem a dimensão quase “diabólica” que se vê no Brasil, nos Estados Unidos ou na Ucrânia — grandes produtores agrícolas — mas ainda assim temos hoje grande parte do território agrícola em regime de monocultura. É um problema que, ano após ano, se reflete na programação do CineEco. Eu diria que há dois temas recorrentes: os direitos dos povos indígenas sobre o seu território e a forma como preservam a natureza e os habitats, nomeadamente na Amazónia , e a questão do agronegócio, que está muito ligada a essa vivência e à relação das comunidades com o território.

Esta programação, para além do gesto político de lembrar os 50 anos da reforma agrária, que também coincide com os 50 anos do 25 de Abril e do próprio ciclo democrático, é também uma forma de dizer que há hoje um “cansar-se” da prática agrícola atual. É isso que nós pretendemos mostrar.

Sendo o único festival português exclusivamente dedicado ao cinema ambiental, não teme o CineEco ficar preso a uma bolha temática, quando as questões ecológicas hoje atravessam praticamente todas as áreas do cinema contemporâneo?

É uma boa questão, sabe? Porque nós sentimos que o CineEco pode, de facto, ficar nesse lugar mais fechado, digamos assim, do ponto de vista temático, mas, curiosamente, não deve abdicar de o fazer, porque foi um festival pioneiro — o primeiro a colocar na sala de cinema filmes que refletem sobre as nossas preocupações ambientais — e, de repente, tornou-se… ou seja, foi um festival à frente do seu tempo, e continua a procurar acompanhar este tempo. Muitas vezes, encontramos no cinema ambiental as melhores respostas para as nossas preocupações. Mesmo não estando hoje “à frente do tempo” (porque este é um tempo em que todos nos preocupamos com a extinção das espécies, ou vivemos com essas preocupações), o festival continua a apresentar propostas que estão muito à frente daquilo que vemos no cinema que não tem esta temática ou agenda ambiental.

Portanto, sim, estamos dentro de uma bolha (para usar a tua expressão) mas é uma bolha que cada vez mais reflete problemáticas, histórias e narrativas que vão além da agenda climática. Exemplos disso encontramos, por exemplo, na nossa programação deste ano. Há uma presença muito humana nos dez filmes que vamos estrear na competição internacional. Só para olhar para esses dez: há um filme chamado “A New Kind of Wilderness” (2024), um filme norueguês de Silje Evensmo Jacobsen, que acompanha uma família que procura romper com uma vivência mais urbana e encontrar uma existência mais livre e selvagem.

Julgo que a maior parte das pessoas nem imagina que, em certos pontos da Europa, sobretudo no Norte, as raposas são usadas como animais domésticos e é isso que vemos num thriller, “Pet Farm” (Finn Walther & Martin A. Walther, 2025). Mas há também um filme surpreendente na programação, que nos remete para uma dimensão eco-ansiosa, chama-se “Climate in Therapy” (Nathan Grossman, Olof Berglind & Malin Olofsson, 2024), que coloca sete cientistas do clima em sessões de terapia, onde procuram lidar com as suas emoções. Ou seja, percebem que têm as respostas para os problemas ambientais do planeta, mas que ninguém as aplica devidamente, e isso gera uma “eco-ansiedade”.

Portanto, sim, estamos dentro de uma bolha, mas é uma que se expande, porque reflete cada vez mais sobre o mundo, as pessoas, as emoções, e não apenas sobre o clima em si. O festival não pode sair desse lugar, mas temos procurado, nos últimos anos, encontrar caminhos que retirem o CineEco dessa bolha, ou, melhor dizendo, que a façam crescer. Dou-te um exemplo: há sempre filmes que nos colocam nesse lugar de dúvida, em que de repente nos perguntamos “qual é a relevância ambiental deste filme?”.

Este ano, na sessão da meia-noite, decidimos estrear em Seia — fora de competição — o “Sirât”, de Oliver Laxe. Simbolicamente, porque o Oliver Laxe foi premiado aqui em 2018, com “O Que Arde”, em competição internacional. O filme já tinha estreado em Portugal, por isso não o poderíamos apresentar como estreia nacional, mas ainda assim decidimos integrá-lo fora de competição, nesta nova linha de programação: a sessão da meia-noite, algo inédito no CineEco. Normalmente, quem vê “Sirât”, ou mesmo “O Que Arde”, pode não identificar imediatamente a sua dimensão ambiental. Mas ela está lá, é uma dimensão de apocalipse, que passa pela nossa ação e pela nossa relação com o território e o lugar onde vivemos. É uma proposta não ambiental no sentido estrito, mas que nos permite refletir sobre o colapso e o apocalipse ambiental.

Sim, acredito muito que a ecologia tem mais a ver com a preservação da nossa espécie do que propriamente da Terra, porque a Terra já nos deu sinais de que é capaz de recuperar de toda uma extinção em massa, nem que precise milhões de anos para o fazer. Já uma espécie, depois da extinção …

Exactamente. Só para concluir … Ou seja, a nossa programação tem procurado encontrar caminhos, através de algumas propostas, que retirem o cinema que apresentamos dessa bolha que referiu, ou da possível existência de uma bolha.

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Sirât (Oliver Laxe, 2025)

Que caminhos o CineEco poderá desbravar nas futuras edições? Quais os objectivos ou projecções?

Um dos desafios que o festival enfrenta, e isto, obviamente, diz mais respeito à Câmara Municipal, enquanto entidade organizadora, mas, do meu ponto de vista, enquanto elemento da programação, e alguém que já acompanha o festival há alguns anos, posso afirmá-lo publicamente, mesmo sem ter essa responsabilidade direta: é tornar mais densas as extensões, chegar a mais cidades.

Nós temos dez filmes em estreia na competição internacional. Vamos estrear em Portugal Linha de Água”, de Rui Simões, um filme sobre o artista Vítor Gama, que vai dar também um concerto na noite de abertura. Este é um cinema que pode — e deve — ser programado em qualquer cidade, porque desperta o interesse de qualquer público. Se há um gesto de urgência na nossa programação, ele deve ser levado mais longe. Os filmes são suficientemente interessantes para chegar a um público muito mais vasto. Muitos deles não estreiam depois da exibição no CineEco, deixam de ser visíveis. Alguns ainda estreiam noutros contextos, mas há um número considerável de filmes muito interessantes que, simplesmente, não chegam às salas nacionais.

Outro objetivo, que também reforça a programação e a relação com o público (especialmente o mais especializado) é o Mercado de Cinema, que lançámos na 30.ª edição, há um ano. Vamos agora promover a segunda edição, no dia de abertura. É um espaço de encontro entre jovens criadores, profissionais, alunos das academias e escolas superiores de cinema, que apresentam os seus projetos a um painel de convidados com experiência na área, sobretudo na distribuição e produção.

É um encontro que permite, a partir dos filmes já concretizados ou ainda em desenvolvimento, trocar impressões e contribuir para que estes alunos e jovens realizadores saiam dali mais preparados, mais confiantes, e com vontade de continuar a criar. Fazer uma reflexão que não é maioritariamente ambiental mas que pode obviamente passar por esse tema nos filmes que procuramos apresentar nesse espaço mais fechado de mercado. Mas é sobretudo um espaço para estes jovens estudantes de cinema em Seia, e uma oportunidade para se encontrarem e debaterem com profissionais do nosso cinema, como é o caso deste ano de Rui Simões, que dá-nos o prazer da sua presença e de Pedro Fernandes, dois produtores diferentes. Curiosamente um deles é um dos antigos na área documental em Portugal [Simões] e o outro, um jovem [Fernandes] que tem a sua produtora, A Primeira Ideia, com uma visão bem enquadrada no território e na paisagem. É um brilhante painel, a servir de reforço para os alunos presentes, oriundos de três escolas de cinema: UBI, Lusófona e ISMAT.   

Toda a programação poderá ser consultada aqui

O Film Noir continua cool! Arranca o 4º Screenings Funchal Festival, na companhia de Bogart e Stanwick.

Hugo Gomes, 03.10.25

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In a Lonely Place (Nicholas Ray, 1950) / 4 de Outubro (Forum Madeira, 21h00)

A Madeira será, nas próximas semanas, uma ilha rodeada por neblina: ruas escuras, detetives privados de gabardine e poses cool, crime, castigo e mistério. Tudo a preto e branco, resguardado nas sombras e nos becos escuros. É o cliché do film noir o que descrevo, mas é precisamente aqui que o genuíno subgénero será apresentado, numa retrospectiva cuidadosamente selecionada.

Contratou-se o seu inspetor na capital do arquipelago: o Screenings Funchal Festival, que chega à quarta edição e a um novo caso, melindroso caso, talvez sob os olhares atentos daquela mulher de passado longínquo, a habitual femme fatale, em quem qualquer homem sonharia perder-se e igualmente temer. Armadilhas, diríamos.

Mas não nos desviemos. Voltemos ao ciclo: Humphrey Bogart e Barbara Stanwyck surgem como protagonistas num prolongado noir na Madeira, narrado por Pedro Pão, programador que rompe a lógica dos festivais de cinema e apresenta, de bandeja acinzentada … para não contrariar o monocromatismo … oito obras, a representar Hollywood no seu esplendor e intriga, a partir do dia 3 de outubro e prolongando pelo resto do mês.

O Cinematograficamente Falando… desafiou o programador a apresentar o seu caso… eis-lo:

O film noir surge na ribalta nesta 4.ª edição do Screenings Funchal Festival. Porquê este subgénero na programação? E, dentro dele, por que motivo estes títulos foram escolhidos como representantes desse universo tão vasto?

O noir não foi o ponto de partida, foi o de chegada. Gosto que haja uma razão estruturada para cada edição, mas às vezes as coisas surgem por acaso, e foi o caso desta. Durante a pandemia, descobri que ninguém do meu grupo próximo de amigos tinha visto o “Casablanca”. Tendo em conta as restrições em vigor, resisti à tentação de arranjar amigos novos, e organizou-se uma sessão privada com projector, Blu-ray num atelier bem amplo. Depois fui-me lembrando de outros filmes que gostava muito com o Bogart, e fiquei com uma ideia (muito embrionária) de um dia fazer um ciclo dedicado ao Bogart

Nesta fase as possibilidades eram demasiadas, e foi preciso pensar em restringir o tema. Assim que decidi que o ciclo não deveria ser exclusivamente focado no Bogart e que deveria ser partilhado com uma protagonista do género feminino achei que só poderia mesmo funcionar dentro do film noir, e a Barbara Stanwyck era a escolha óbvia. Desta forma, foi mais fácil escolher este conjunto de filmes, que apesar de se tratar de uma pequena amostra do noir, representa bem as histórias e personagens que me interessam, e que se encaixa na proposta do ciclo.

O ciclo parece orbitar em torno de dois espectros: Barbara Stanwyck e Humphrey Bogart. Acredita que um subgénero pode ser sintetizado em dois intérpretes? Ou foi antes um atalho para trazer obras prestigiadas, populares e que, ao mesmo tempo, sintetizam o estilo?

O ciclo orbita de facto em torno de Stanwyck e Bogart, mas nunca foi a minha intenção resumir o noir nem aos actores nem ao limitado número de filmes exibidos. Acho que a ideia de “atalho” é perfeita. Achei que eles representam os arquétipos mais emblemáticos do noir e quis usá-los para criar um fio condutor. Além disso, sendo figuras icónicas, (o Bogart provavelmente mais) quis aproveitar isso para que o ciclo fosse o mais apelativo possível. Outro objetivo foi dar visibilidade a uma actriz incrível, a Stanwyck, que creio ser muito menos reconhecida pelo público em geral.

No campo dos realizadores, encontramos nomes distintos e percursos muito diferentes, com exemplos de ecletismo dentro de Hollywood. Teve em conta este factor artístico? E, perante esta diversidade, considera o film noir um subgénero de transição mais do que um corpo coeso?

Depois de ter restringido o tema como referi anteriormente, fiquei com um painel de luxo, no que toca a realizadores, para selecionar obras. Achei a diversidade de realizadores muito interessante, e é por isso que se defende que o noir não é tanto um género, mas antes um estilo. Mesmo pela amostra reduzida dos que conheço, isso é notório e fascinante. Wilder, Ray e Lang, entre outros, mostram abordagens muito distintas dentro do noir, e ao longo da década de 40 o noir transformou-se através de experimentações formais, estéticas e influências diversas, tornando-se um território cinematográfico muito rico e interessante por essa diversidade.

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Clash by Night (Fritz Lang, 1952) / 24 de Outubro (Forum Madeira, 21h00)

Relativamente à masterclass de Luís Miguel Oliveira: não lhe peço apenas que fale das intenções de criar este “intervalo” reflexivo no meio da programação, mas também da importância (ou irrelevância) da crítica no papel da curadoria de festivais que, como este, não seguem a lógica dominante do mercado.

A masterclass parte de uma necessidade e lacuna muito grande, do contacto do público madeirense com especialistas, neste caso da área do cinema, mas que se aplicaria igualmente, a muitas outras áreas. Acredito que este esforço de complementar o ciclo com o contributo do LMO enriquecerá não só os espectadores, mas também o próprio festival. Esta lacuna não é exclusiva da insularidade, reflete uma condição de periferia cultural, que no nosso caso se agrava pela nossa condição ultraperiférica e que teria uma solução muito simples chamada: “investimento”.

No que diz respeito à crítica, é difícil imaginar alguém que desempenhe um papel de programador que lhe seja indiferente. Acho o trabalho da crítica inestimável e muitas vezes pouco valorizado. Socorri-me várias vezes dela para ajudar a organizar e justificar a escolha de alguns filmes neste ciclo e sou constantemente enriquecido por ela tanto como programador como espectador.

Enquanto programador e cinéfilo, houve algum filme que gostaria de incluir neste ciclo, por corresponder ao espírito do evento, mas que acabou por ficar de fora?

Falta-me descobrir, ver e aprender demasiadas coisas para me sentir bem com esse intimidante título de cinéfilo. Trabalhar neste ciclo, fez-me perceber que existem muitos mais filmes que ainda quero ver do que aqueles que já vi. Tem sido sempre assim, e isso é algo que eu aprecio imenso no processo. Gostava de ter incluído o “Casablanca”, que acabou por inspirar o festival, mas, não sendo um noir, não se enquadrava na proposta. Outro filme que considerei foi “The File on Thelma Jordon”, mas acabei por optar pelo “Clash by Night”. Apesar de ser um melodrama com elementos noir, pareceu-me mais pertinente para este ciclo, na medida em que explora não o arquétipo da femme fatale, mas uma mulher com consciência social, que procura autonomia e se sente insatisfeita com as expectativas que a sociedade lhe impõe.

É sabido que eventos culturais desta natureza dependem muitas vezes do apoio autárquico. Sente-se apreensivo sabendo que as eleições locais, a decorrer no mesmo mês, podem condicionar a continuidade de futuras edições do festival?

Essa dependência é real e, no nosso caso, decisiva. Este festival nunca poderia realizar-se nestes moldes sem o apoio fundamental da Câmara Municipal do Funchal, ao qual estamos muito agradecidos.

Não me sinto apreensivo por várias razões. Em primeiro lugar, porque o departamento de cultura da CMF é composto por uma equipa cujo trabalho fala por si e que, mesmo numa eventual mudança partidária, dificilmente deixaria de ser reconhecido e continuado. Além disso, acredito que aquilo que temos vindo a oferecer à cidade do Funchal é culturalmente significativo, e o facto de estarmos já na 4.ª edição parece indicar que essa convicção é partilhada. No pior cenário, iremos nos adaptar, como sempre fizemos até hoje, focando e reforçando as nossas sessões regulares.

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The Big Sleep (Howard Hawks, 1946) / 18 de Outubro (Forum Madeira, 21h00)

O Screenings Funchal Festival vai-se consolidando edição após edição. Que linhas de força gostaria de ver no seu futuro? E persistindo; John Waters continua na sua lista de desejos?

Gostaríamos que o festival crescesse (e não me refiro a after parties e cocktails) e tivesse mais condições para trazer com mais frequência realizadores e outros convidados, pois esse contacto direto com o público é importantíssimo. Mesmo fora do festival, na programação regular, seria possível ter cá com mais regularidade cineastas se tivéssemos algum tipo de apoio mais alargado. 

Em relação ao Pope of Trash, acho imensa piada que tenhas retido isso e que me relembres de vez em quando. É sinal que é uma excelente ideia, e se correr mal, posso sempre alegar ter sido incentivado e induzido em erro pelo crítico. Não sei se o Liarmouth ficou de vez na gaveta, mas poderia ser um incentivo adicional. Gostava mesmo muito de ter um festival dedicado ao John Waters. A Madeira é um dos sítios menos apropriados para o fazer e é exactamente isso que faz da ilha o sítio perfeito para o receber. Não será em 2026, e de forma a evitar que eventuais repercussões possam encurtar o tempo de vida da iniciativa, ainda gostava de ir ao Herzog primeiro. Mas continuo a achar que o “Pink Flamingos" seria o filme perfeito para a última sessão do Screenings Funchal. Um último gesto de celebração e provocação. Podem haver formas melhores de acabar, mas não me ocorre nenhuma de momento. 

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Toda a programação poderá ser consultada aqui.