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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Charlie Shackleton: "Diria que 90% da crítica escrita não é particularmente interessante."

Hugo Gomes, 09.05.25

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O tipo da ‘tinta a secar’”, foi com estes termos que muitos reagiram à notícia da presença de Charlie Shackleton no 22º IndieLisboa, onde veio presentear os espectadores com a sua obra, incluindo as (in)fames dez horas de “Paint Drying”, o seu “filme-protesto” no qual forçou os censores britânicos a vê-lo esse tempo equivalente a “tinta a secar” na íntegra. A notícia desse feito corria entre nós em 2016 e, embora hoje esse trabalho seja tratado como um fenómeno viral, Shackleton é muito mais do que esse cognome: é um crítico tornado ensaísta e, por sua vez, um cineasta com uma personalidade singular, neste mundo em plena desconstrução e reflexão canónica.

Lida com as frustrações das obras inconclusas através de interiorizações sobre a indústria e a fórmula, essa “sopa quente” para espectadores passivos, uma ferramenta que o próprio realizador assume até apreciar, nem que seja para pensar nas suas próprias matrizes. Num encontro na Cinemateca de Lisboa, horas antes da abertura do ciclo que teria a honra de inaugurar com as jornadas do true crime em “Zodiac Killer Project” (2025), o Cinematograficamente Falando … conversou com o jovem das mil e um empenhos sobre o mais recente trabalho, outros projectos e, igualmente, sobre crítica de cinema e cânone… onde o colocar? Ah, e sem esquecer o fantasma godardiano dos “não-filmes”.

Para primeiro tópico desta conversa gostaria de tocar no “elefante na sala”: o ‘Paint Drying’. Vi várias entrevistas contigo em que referes este filme como a tua maldição, porque tudo o que fizeres a seguir não adianta, serás sempre relembrado como o “tipo que fez o ‘Paint Drying’”. O que no fundo é um filme de protesto, certo?

Sim, exatamente. Quando digo que é uma “maldição”, é com algum carinho. Porque foi um projeto que significou muito para mim. Foi pensado como um protesto contra o British Board of Film Classification (BBFC), o organismo de classificação britânico. A primeira vaga de atenção mediática, em 2016, esteve obviamente ligada a isso — ao que o protesto pretendia denunciar, e fiquei muito contente por ter tido tanta cobertura da imprensa na altura.

Pois, ouvi falar do filme ainda em 2016!

Ah, ouviste falar ainda nessa altura?

Sim, e queria por aí  mesmo... a tua visão sobre os mecanismos de censura no Reino Unido. Para ti, a entidade britânica BBFC é uma continuação dessa lógica censória?

Sim, acho que sim. A entidade britânica mudou de nome em 1984 — passou de British Board of Film Censors para British Board of Film Classification. Fizeram essa mudança de nome, mas, na minha opinião, o modo de funcionamento continua a ser o mesmo. Eles continuam a ter a palavra final sobre o que pode ou não ser exibido. É obrigatório passar por eles.

E tens de pagar por isso?

Exatamente, tens de pagar! E o impacto mais direto é para os realizadores independentes que querem exibir os seus filmes sem distribuidor. Nessas situações, são os próprios realizadores que têm de arcar com os custos, e muitas vezes esse dinheiro simplesmente não existe. Se quiser exibir um filme em três salas, posso nem conseguir recuperar o suficiente para pagar o certificado necessário. Sempre tive uma relação de confronto com essa entidade, mas mesmo assim, mesmo na altura em que o filme teve muita atenção mediática, nunca imaginei que as pessoas ainda falariam dele dez anos depois — e por tantas razões diferentes. Hoje em dia, o principal legado do filme é este fenómeno no Letterboxd, que na verdade nem tem a ver com o projeto em si. É só um acaso histórico: as pessoas escolheram aquela página para comentar tudo aquilo.

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"Paint Drying" (2016)

Mas depois desse protesto, o filme foi distribuído normalmente?

Não. Esta será apenas a segunda vez que o filme será exibido publicamente. Foi mostrado pela primeira vez há alguns anos, na Austrália, como parte de uma exposição. Aqui, conto como a segunda exibição. Até então, ninguém o tinha visto além dos censores.

O teu filme vai ser exibido na Sala Rank do Cinema São Jorge ... Bem, não numa sala qualquer, mas sim a que era usada para os censores durante o Estado Novo?

Sim, era mesmo a sala deles, não era? O que é incrível.

Ou seja, continua-se a manter o mesmo simbolismo da tua primeira acção de protesto, certo?

Exato. É o cenário perfeito. Nem consegui acreditar que estava disponível. E tem sido interessante, por causa daquele fenómeno no Letterboxd, que se tornou tão grande, as pessoas começaram a descobrir o projeto em si. E isso reacendeu o gesto de protesto, o que aprecio muito.

Vou confessar, ainda não vi o “Paint Drying”...

Ninguém viu. Não te preocupes. [risos]

Sobre o seu mais recente projeto, premiado no último Sundance, “Zodiac Killer Project”, o qual fez-me lembrar um conceito de Godard — os não-filmes. Filmes que só existem na mente do criador e que, por vezes, são melhores do que o próprio projeto materializado. Li sobre isso numa conversa que ele teve com a Marguerite Duras. Ele dava o exemplo do “Last Emperor” do Bertolucci, afirmava com “todos os dentes” que o filme imaginado pelo realizador, o não-filme, era um filme, e que o se concretizou deixou de ser um filme no momento em que se fez acontecer. É uma teoria arriscada, mas pertinente. E, no teu caso, senti que o teu projeto também começou como um não-filme, com a sua impossibilidade de adaptar aquele livro (“The Zodiac Killer Cover-Up: The Silenced Badge” de Lyndon E. Lafferty). E por isso acabaste por fazer uma desconstrução, usando essa tendência atual dos “true crime shows”, quase como um filme hipotético. Refiro isto, porque diversas vezes vejo este conceito dos não-filmes presente noutros trabalhos seus.

Sim, completamente. Acho que quase todos os realizadores têm vários não-filmes ao longo da carreira. Na verdade, é mais comum não conseguir fazer um filme do que conseguir, e eu nunca consegui aceitar totalmente essa frustração. No passado, peguei em ideias de projetos que não avançaram e transformei-as noutras coisas, ou usei a investigação que já tinha feito para criar algo diferente. Mas este foi o primeiro caso em que a inexistência do filme se tornou o próprio tema.

Obrigado por referires a Duras e o Godard, durante o processo vi “Le Camion” (1977) e “King Lear” (1987), ambos ótimos exemplos de filmes sobre não-filmes. Para mim, isso é uma extensão do desejo de fazer filmes que incorporam o seu próprio processo criativo dentro do próprio filme. Acredito que tudo o que fiz até agora, possui esse elemento.

Antes de fazer filmes, era crítico de cinema...

Queria mesmo ir por aí!

Pois, exatamente! [risos] Considero que tudo o que faço como realizador ainda mantém esse lado crítico, essa meta-textualidade.

É bom mencionar o teu passado como crítico, porque ao fazeres os teus ensaios audiovisuais, aliás curtas, são, de certa forma, uma nova forma de crítica. Queria perguntar algo isto de uma forma algo abstracta: sentes-te mais crítico ou realizador?

Acho que agora... Bem, para ser sincero, nunca fui um grande crítico de cinema. [risos] Durante algum tempo, quando comecei a realizar, continuei a escrever crítica em paralelo. Mas sempre achei a crítica escrita um pouco... difícil.

Penso que sou muito melhor a expressar ideias críticas através do audiovisual do que pela escrita. Hoje, já nem sei qual das duas categorias escolheria, porque para mim são quase impossíveis de separar. Não consigo imaginar fazer um filme que não seja, de algum modo, também um ensaio ou uma forma de crítica.

É engraçado... Hoje em dia, a única situação em que escolho um termo ou outro é em candidaturas a financiamento, e depende do que acho que a entidade quer ouvir. Se for um fundo que nunca financiaria um ensaio audiovisual, então escrevo “documentário” ou “longa-metragem” ou o que achar que vai resultar. Mas os termos, para mim, estão totalmente entrelaçados.

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Zodiac Killer Project (2025)

Porque o filme, ou o ensaio audiovisual, como preferires chamar, é seguro. Aqui dizemos que o audiovisual é "seguro", no sentido literal. Mas muitos críticos de cinema usam o próprio cinema como uma forma de expandir a crítica, como se o cinema também pudesse ser a linguagem da crítica. Só que, nos últimos tempos, surge sempre aquela dúvida: estamos ainda perante um filme ou apenas perante uma extensão dessa mesma crítica?

Sim, percebo o que dizes. É curioso que o ensaio audiovisual, tal como a crítica escrita, à medida que se tornou mais popular e dominante, acabou também muito monopolizado por trabalhos que, para mim, não são assim tão interessantes. Esse estilo didático dos vídeos no YouTubemea culpa também — que te dizem com certeza o que algo significa ou como funciona, não me atrai muito. Não explora aquilo que o formato pode realmente oferecer.

Mas isso é tão verdade para a crítica escrita como para o ensaio. Diria que 90% da crítica escrita também não é particularmente interessante. É nos restantes 10% que encontramos algo estimulante, aqueles críticos que têm uma forma especial de interpretar e compreender a arte.

Para mim, quando a crítica é boa, seja no formato que for, percebe-se logo. O meio usado, se é texto, vídeo, som, torna-se secundário.

Quero continuar por essa via da crítica, até porque és crítico e, ao mesmo tempo, muito crítico da própria crítica. Mas agora quero tocar noutro ponto. Só que antes disso … o teu nome é Charlie Shackleton, mas vários filmes teus estão assinados como Charlie Lyne.

Pois, é verdade. Cresci como Charlie Shackleton, mas por razões familiares complicadas comecei a usar o nome do meu pai, Lyne, durante os meus finais de adolescência e início dos 20 anos. Foi nessa altura que alguns dos meus filmes saíram com esse nome. Mais tarde voltei a usar o apelido da minha mãe, Shackleton. Portanto, essa diferença nos créditos é só isso, nomes de família, nada de alter-egos. Sou sempre eu, o mesmo autor.

Infelizmente, mesmo que quisesse, não posso renegá-los! Fiz aqueles filmes, goste ou não deles hoje.

Então há algum desses ensaios que hoje preferias não estar associado? Um com o qual já não te identificas?

Tenho uma relação complicada com todos os filmes mais antigos, como acontece com muita gente. Alguns têm mais de 10 anos e sou uma pessoa muito diferente da que era com 22 anos. Ver esses trabalhos hoje é um misto estranho de emoções. É como olhar para fotografias antigas da adolescência, reconheces a pessoa, tens carinho, mas também um certo desconforto.

Como as fotos do secundário? [Risos]

Exactamente! [Risos] E, ironicamente, um desses filmes é sobre filmes teen, o que intensifica essa sensação de proximidade e distância ao mesmo tempo.

Sim, o “Beyond Clueless" (2014). Em entrevistas sobre esse filme, o Charlie falou de "fórmulas" e como elas criam conforto no espectador. Porque quem vê sente-se seguro, sabe o que esperar, e no seu trabalho, mesmo quando identificadas essas fórmulas, parece que as destroi simultaneamente. Como se dissesses: “Sim, isto é uma fórmula, mas vamos olhar para ela de outro modo”. É isso?

Sim. Muito do que fiz acaba, de forma quase acidental, por ser sobre isso: como funcionam os géneros, as fórmulas do cinema. Para mim, o mais interessante é mesmo esse movimento de avanço e recuo — dar ao espectador algo familiar, para depois o surpreender ou desafiar com uma torção dessa familiaridade.

Dou-te um exemplo: no “Zodiac Killer Project”, o formato é bastante pouco convencional, é muito estático, não há grande coisa a acontecer visualmente, é apenas eu a falar de forma contínua. Pode ser alienante. Mas o que fiz foi usar as fórmulas dos true crime para criar uma falsa sensação de conforto. O espectador pensa que sabe o que está a ver, até perceber que está a ser conduzido por um caminho bem diferente.

Essa tensão é uma ferramenta poderosa. Porque todos nós, quer queiramos quer não, estamos sujeitos a essas fórmulas narrativas o tempo todo.

Penso muitas vezes sobre fórmulas, especialmente nos últimos dias, tenho pensado naquela fórmula dos filmes da Marvel, por exemplo. Vi recentemente o “Thunderbolt*”, e o que vi foi a mesma coisa, repetidamente. Muitas pessoas se sentem seguras com isso, e por vezes o formulaico gera consensos. Mas fico curioso sobre o “Zodiac Killer Project”, parece-me que é uma jornada para construir um filme, um filme de não-resistência na tua mente. Mas de certa forma, há críticas sobre essa tendência, sobre o próprio true crime, que continua a ser um subgénero muito confortável. E que cresceu, pode muito ser mais grotesco na temática, mas mantém-se como confortável para a maioria das pessoas.

Sim, acho que as pessoas realmente encontram conforto nisso. Em parte por causa daquele fascínio estranho pelo macabro, como também porque, se você viu um desses programas, já viu todos. Penso que parte do apelo de se fazer esse tipo de conteúdo para os grandes serviços de streaming, por exemplo, o qual exige muito pouca atenção. Você pode deixá-lo a “rolar” ao fundo, sair, voltar, e ainda assim saber exatamente o que está a acontecer. Não se vai perder o fio da narrativa, o que é uma maneira curiosa de pensar sobre entretenimento de conforto, quando, como disseste, é algo tão sombrio na maioria das vezes. Só que é uma história muito formatada, e dá para encaixar qualquer crime real nela, seguir os mesmos pontos narrativos com fiabilidade. Se observar... a maioria dos streamers disponibiliza guias ou livros de estrutura narrativa que dizem literalmente a uma produtora como estruturar uma história sem sequer saber qual é a história. Se for sobre um assassinato, está lá como dividir em cinco episódios, e claro que a realidade não devia encaixar-se num molde tão pré-definido, mas pode ser forçada a isso.

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Beyond Clueless (2014)

É como os biopics! As pessoas são diferentes, mas sentimos que as vidas são iguais.

Certo, exatamente. Haverá sempre algo que parece suficientemente próximo.

Mas és bastante crítico ao mundo do streaming. Mesmo em “Frames and Containers” (2017), fizeste uma desconstrução sobre o filme do Xavier Dolan, “Mommy”, e quando este foi parar à Netflix, em que eles cortaram a questão do enquadramento, que funciona naquele caso como uma elemento associadamente narrativo. Mas o próprio streaming parece não pensar para além das fórmulas, até nas produções exclusivas da Netflix, sentimos esse modelo construído com um só propósito, ser entendido da maneira mais leviana e sem distrações. Podemos ir à casa de banho, lavar a louça, e ainda assim não perdemos o fio do filme. 

É engraçado, pensar que quando fiz “Frames and Containers”, já parece que foi há mil anos que a Netflix adquiriu “Mommy” e colocou-o no serviço. Isso parece muito mais interessante agora do que a maioria do que se encontra lá. Houve um momento, certamente nos documentários, lembro-me em festivais de cinema por volta de 2017, 2018, quando a Netflix começou a investir a sério em documentários: o consenso era que eram os únicos dispostos a apostar em coisas fora da fórmula. Queriam ser ousados e diferentes, e ganhar prémios, então apostavam em coisas arriscadas. Tal desapareceu muito rapidamente. Como o próprio filme. Tornou-se tudo muito direto. Entenderam que podiam ganhar prémios com “My Octopus Teacher” em vez disso, e teriam muito mais audiência com algo assim. Não sou contra o streaming, em teoria, vejo muitos mais filmes em casa do que no cinema. Mas em termos do modelo de streaming dos últimos anos, o que tem sido favorecido é o trabalho replicável, baseado em fórmulas.

O que pensas sobre o algoritmo?

Sobre o algoritmo? É engraçado. Não sinto que saiba o suficiente sobre como ele funciona atualmente. As pessoas falam sempre de como estes algoritmos são super ajustados e sabem tudo sobre nós. Mas sempre que abro o Netflix, vejo exatamente as mesmas coisas que toda a gente. Não me parece... Suponho que, enquanto fazia o “Zodiac Killer Project”, vi tanto true crime que agora o Netflix só me mostra isso. Então, provavelmente, sou um espectador muito aborrecido para o Netflix. Tenho um interesse, e mostram-me aquilo repetidamente. Mas não sei. Já não parece haver conteúdo suficiente lá para ser hiper-específico.

E voltando à crítica, tens outra curta antiga intitulada de “Criticism in the TikTok Age” (2019). Também achei muito interessante porque usaste a estética do TikTok para fazer uma autocrítica ao TikTok.

Sim. Usei a forma dele. Aquilo já me parece tão desatualizado, obviamente, porque foi feito no mês em que ouvi falar do TikTok, que acho que já existia há algum tempo, mas só ouvi falar em 2019. Então pensei: “Ah, aqui está esta coisa nova, vou tentar entendê-la.” E agora o TikTok é este fenómeno inescapável. Tenho a certeza de que muitas das observações que fiz naquele filme já não são relevantes para o que acontece atualmente na plataforma. Eu nem tenho TikTok, então não sei bem. Mas lembro-me de ter achado fascinante que fosse essencialmente uma app de criação de vídeo, apesar de ser uma rede social. Foi isso que me levou a fazer o vídeo no formato vertical como do ecrã do telemóvel. Ainda assim acho isso fascinante. Não sei se todos os jovens no TikTok estão a criar vídeos ou se a maioria está só a assistir. Porque não entendo como funciona como rede social.

Como eles se comunicam entre si?

Estou completamente por fora agora. Tive uma janela breve em que percebia o que era, mas agora já não sei. [Risos]

Conheço pessoas muito jovens que fazem crítica de cinema no TikTok. Mais “reviews” do que ensaios. Do tipo sair de uma sessão e dizer “esse filme é assim ou assado”. Mas como isso funciona? Os vídeos são tão curtos.

Sabes uma coisa … quando a Letterboxd entrevistou-me sobre “Paint Drying”, e colocaram o vídeo no TikTok e Instagram, esse mesmo foi mais visto do que qualquer outro filme que fiz. Ou qualquer outra coisa em que estive envolvido. Já fui reconhecido por causa desse vídeo em apps de namoro, na rua... Nem sei quem é esse público, mas é enorme. É loucura. Tipo, 5 milhões de pessoas viram esse vídeo. Nenhuma delas sabe quem eu sou.

Honestamente, o número de pessoas que me disseram que viram esse vídeo por aí é surreal. Alguém está a ver.

Posso adiantar que vi esse vídeo! [Risos] Mas voltando à fórmula, tens outro filme que gostaria de falar: “Copycat”. Usas alguém [Rolfe Kanefsky] que fez um filme contra as fórmulas dos filmes de terror [“There 's Nothing Out There”, 1991] e depois volta, como espectador, a esse lugar seguro da fórmula. Porém, a história por detrás desse filme parece uma história digna de uma teoria da conspiração. E até tem direito a plot twist.

Sim, é engraçado. Porque o Rolfe sente que foi plagiado pelo Wes Craven [em “Scream”]. O que me interessava nisso é que é um sentimento muito reconhecível. Ter uma ideia e alguém aparecer com a mesma ideia, mas executá-la de um modo que tu não consegues. Acho que todos nós já sentimos isso de alguma forma. Especialmente, como disse, quando envolve algo que tantas pessoas conhecem — os tropos de um género — há mais probabilidade de várias pessoas terem a mesma ideia. Por isso é que tantos filmes de terror se parecem uns com os outros. Uma coisa de que me arrependo um pouco nesse curta é que, como era novo no cinema e ainda não tinha apurado o meu estilo, acho que o filme acaba por parecer uma defesa da tese do Rolf e um ataque a Wes Craven. O que não era realmente o que pretendia fazer. Estava muito mais interessado no impulso emocional do que em descobrir quem copiou quem.

Se fizesse hoje, acho que focaria mais nesse sentimento do que na questão factual.

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There 's Nothing Out There (Rolfe Kanefsky, 1991)

Mas é um filme muito interessante porque de alguma maneira nos faz refletir sobre “Scream” e o seu papel no cânone do género. Mas foi como disse, é um mundo pequeno. Todos estão a ser influenciados por todos. Hoje em dia já não acredito muito em plágios, mas é curiosa a ideia dele — de que o Wes Craven “roubou-lhe” o filme.

É um sentimento irresistível.

Sim, é um sentimento irresistível. Confesso que detenho uma espécie de sedução pelas teorias da conspiração em si. Não somente porque as acho maioritariamente engraçadas, mas porque é um tratado psico-sociológico o facto das pessoas acreditarem mesmo nelas. Não estou a dizer que metade do que ele diz [Rolfe] é verdade ou mentira, é tão obviamente falso ou verdadeiro — e mesmo assim é delicioso.

Sim, acho que é mais... Até porque o Rolfe conta essa história há 20 anos. Provavelmente já nem sabe quanto acredita nela, porque, para ser justo, ele não esconde essa incerteza: “Não sei se foi mesmo plágio ou se foi coincidência.” Mesmo assim, persiste em contá-la. Acho que agora ele está mais a repetir a história do que a sentir de novo, e isso é uma característica presente em muitas teorias da conspiração também. Decoramos a história, repetimo-la, e muitas vezes nem lembramos como nos sentimos da primeira vez. Só se tornou um refrão.

Vejo nesse filme um sintoma gradualmente presente hoje em dia, principalmente na crítica ou até nos meios acadêmicos, o de tentar recontar a história do cinema, o cânone e as devidas influências. Esse teu filme trabalha como se estivéssemos a refletir sobre essa reconstrução.

Não sei se tenho esse sentimento sobre recontar a história do cinema, para dizer a verdade.

Qual é o teu sentimento em relação ao cânone?

Na verdade, é exatamente isso que Rolfe estava a fazer: tentar inserir o seu filme no cânone. E, de certa forma, ajudei-o a fazer isso. Ainda não é canónico, mas está mais perto do que antes. Tenho muito interesse nisso: como os cânones se formam, e, em geral, sou bastante desconfiado deles. Comecei a aproveitar muito mais o cinema e a cinefilia quando deixei de lado essa ideia de “ver os 100 filmes obrigatórios”, ou “ver todos os filmes de um realizador”. Hoje tenho uma relação mais estimulante com o cinema porque aceito que é algo pessoal e idiossincrático. Vamos sempre ter lacunas. Todos morremos sem ver vários “clássicos”. Portanto, hoje em dia, aproveito muito mais tendo deixado esse sentimento de cânone para trás.

E quanto a novos projetos? O “Zodiac Killer Project” vai gerar outro projeto?

Há um filme que tenho tentado fazer há algum tempo, mas que pus em pausa enquanto fazia o projeto do “Zodíaco”. É um filme sobre a força policial britânica da obscenidade — que era uma divisão da polícia metropolitana de Londres chamada Obscene Publications Squad [também conhecido como Dirty Squad]. Basicamente, eles aplicavam a lei da obscenidade no Reino Unido. No filme proponho uma reflexão sobre isso, sendo o que é ou não obsceno como algo muito subjetivo, e o facto dos tipos de casos com que lidavam foram mudando ao longo das décadas.

Vai ser curta ou longa-metragem?

Será uma longa, sim. Ainda estou a trabalhar nisso, mas é um projeto que tenho vindo a desenvolver há vários anos e que continuo com muita vontade de concretizar.

Gostas dessa ideia de desconstrução, aliás é uma característica bastante presente na tua obra?

Sim. Tem bastante a ver com... até com o projeto “Paint Drying”, obviamente, que também tratava de temas semelhantes. Sinto que este projeto já se vem a formar há muito tempo. Mas, por agora, continua a ser um não-filme.

Um não-filme! O Jean-Luc Godard ia gostar disso.

Esperemos que, um dia, se torne num filme verdadeiro. [Risos]

Denise Fraga: "quando reflectimos sobre a morte, no fundo, estamos sempre a reflectir sobre a vida."

Hugo Gomes, 07.05.25

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Sonhar com Leões (Paolo Marinou-Blanco, 2024)

"Terra à vista!" Do outro lado do Atlântico, a atriz brasileira Denise Fraga parece ter encontrado novos palcos onde se preencher enquanto atriz e artista. Pisou Portugal pela primeira vez como alguém entre os portugueses — e não como turista — com o filme "Índia", a emancipação de Telmo Churro no território da longa-metragem, onde interpretava uma visitante estrangeira com outras intenções para além de conhecer monumentos, datas históricas de uma cidade e um guia em plena crise existencial.

Contudo, não ficou por aqui. Fraga desenvolveu um gosto pela nossa cinematografia e, com um segundo chamariz, regressa a Lisboa com "Sonhar com Leões", o marcado regresso de Paolo Marinou-Blanco, uma comédia absurda e negra sobre a morte, a eutanásia e o que significa estar vivo numa sociedade que impõe uma felicidade consumida e para consumir. A atriz interpreta Gilda, mulher com desejo de morrer sem dor, assim lhe prometeram, que se inscreve numa empresa de aconselhamento de suicídio. No percurso, conhece Amadeu (João Nunes Monteiro), jovem empregador de uma agência funerária, marcado por um crónico medo de ser feliz.

A atriz falou com o Cinematograficamente Falando… numa conversa que atravessa, inevitavelmente, a morte, o tabu e a arte, talvez a de viver com dignidade. 

Isto será uma pequena conversa, muito centrada no filme Sonhar com Leões, mas queria começar com uma pergunta mais sobre a "génese". Ou seja, pelo que percebi, ultimamente tem tido uma ligação forte com Portugal - começou com o filme “Índia”, do Telmo Churro, e numa pesquisa rápida vi também que filmou em Aveiro um outro projeto, “Livros Restantes”, da Márcia Paraíso, que também parece ser uma coprodução luso-brasileira. Tendo em conta esse percurso, queria lhe perguntar: o que é que atrai agora Portugal?

Isso foi uma coisa curiosa que aconteceu. O convite do Telmo [Churro], do Luís Urbano, da produtora O Som e a Fúria, chegou em 2021, em plena pandemia. Achei curioso eles me encontrarem, porque no filme do Telmo eu era a única brasileira, ou seja precisava de uma atriz brasileira, portanto houve essa busca. Acredito que algumas atrizes foram indicadas, e o que realmente fez diferença foi um programa que criei no YouTube durante a pandemia, chamado “Horas em Casa”.

O meu marido também é cineasta [Luiz Villaça], meu filho também [Pedro Fraga Villaça], e nós os três estávamos trancados em casa. Temos um grupo de argumentistas com quem trabalhamos, e decidimos criar esses episódios curtos, escritos e gravados em casa, durante aquele momento tão angustiante. Esse programa acabou por ser o diferencial que levou o Telmo a escolher-me, e, curiosamente, quando o convite do Paolo [Marinou-Blanco] chegou em 2023, pensei logo que um tivesse indicado o outro … mas não, não houve essa ponte directa. Só que ambos chegaram até mim pelo mesmo caminho: o “Horas em Casa”.

O filme do Paolo já tinha uma coprodução com o Brasil e também com a Espanha, e o facto da Gilda ser brasileira não exigia, necessariamente, uma atriz brasileira - poderia ser de qualquer nacionalidade. Fiquei muito feliz por ter sido a escolhida, ainda mais porque tenho Portugal no sangue: minha família é toda portuguesa.

Fui criada numa casa com sotaque português, acho que mais para Norte: minha avó era de Matosinhos, meu tio casou com uma mulher de Trás-os-Montes, meu avô nasceu em Vila Nova de Gaia... então cresci ouvindo muito esse português. Até hoje uso expressões como "vou lá ter com vocês", que muitos brasileiros nem entendem [risos].

Na infância, passava o dia na casa da minha avó, porque minha mãe trabalhava. O meu tio era taxista, e muitas vezes me levava com ele pelo Rio de Janeiro, dizendo que ia levar a sobrinha ao dentista, mas que afinal era só um passeio. Então, quando vim filmar o “Índia” e fiquei dois meses em Portugal, tive uma sensação muito forte de "estar em casa". Já tinha visitado o país antes, mas sempre como turista e essa foi a primeira vez que estive mesmo entre portugueses.

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Índia (Telmo Churro, 2022)

Durante as filmagens do “Índia”, a Márcia Paraíso, que mora em Florianópolis (onde há uma forte influência açoriana, até com um certo "sotaque aportuguesado") me contactou para o seu novo projeto que estava a preparar. Curiosamente, era sobre uma brasileira que “larga tudo” para viver em Portugal, convidada para uma residência artística em Aveiro. O mais curioso é que ela nem sabia que eu estava em Portugal! É incrível como Portugal foi surgindo na minha vida. Hoje sinto uma conexão muito forte com o país, não só pela herança familiar, mas também pela comida, pelos sotaques, pelas experiências. Esses convites aqueceram meu coração.

Queria voltar também ao “Índia”, porque a sua personagem é, à primeira vista, uma turista brasileira, mas ao longo do filme percebemos que não é bem isso .. ela vem a Portugal para se aproximar da morte, do luto pelo marido, e em “Sonhar com Leões”, temos uma outra mulher que quer morrer, que procura o fim com dignidade. Apesar das diferenças entre as personagens, ambas se relacionam de forma muito intensa com a morte. Antes delas, a webserie "Horas em Casa", em que lida com um constante clima de incerteza, e de inevitável morte ao redor, visto tratar-se em tempos de pandemia. Queria falar sobre isso, e se vê esse fio condutor. E também ... quando leu o guião de “Sonhar com Leões”, se não pensou: “Isto é muito ousado”?

É verdade. Existe aí um fio comum. Até comentava isso noutra entrevista: os personagens não aparecem por acaso. Acredito mesmo nisso. Eles chegam em momentos em que temos algo a aprender, ou que nos ajudam a processar vivências que estamos a atravessar, ou então vêm como um aviso, uma preparação. A Gilda, por exemplo, apareceu numa altura em que precisava de força para lidar com a decadência física da minha mãe, que faleceu agora em janeiro. A minha mãe era extremamente lúcida, adorava viver, mas o corpo foi-se tornando uma prisão e isso tem muito a ver com a Gilda, uma mulher intensa, criativa na forma como vive. Para ela, não fazia sentido viver sem liberdade, sem prazer. A minha mãe também era assim.

Num festival na Arábia Saudita [Red Sea], onde exibimos o filme, um rapaz me disse: “Nunca torci tanto para que uma personagem que gostei morresse.” E isso diz muito sobre a Gilda. Ela tem um carisma tão grande que faz da morte uma vitória, é quase um pensamento paradoxal.

Então sim, acho que “Horas em Casa”, o filme do Telmo, “Sonhar com Leões”, a morte da minha mãe, o contexto da pandemia … aliás nós não vivemos a pandemia, nós vivemos a pandemia no Brasil, sob Bolsonaro... tudo isso se cruzou. Foi, talvez, a época mais reflexiva da minha vida profissional. Sempre fui uma pessoa inquieta, muito voltada para essas questões da existência — uma “filósofa de boteco” [risos], digamos assim. Gosto de conversar sobre a complexidade da vida e esses trabalhos vieram mesmo intensificar essa busca.

A Gilda foi uma das personagens mais ricas que já interpretei: ensinarem-me algo, de irem além da simples atuação. Ela tem um autoconhecimento muito grande, uma clareza sobre o que quer e o que não quer. E quando refletimos sobre a morte, no fundo, estamos sempre a refletir sobre a vida.

Sobre esse aspecto que acabou-me por contar sobre o festival na Arábia Saudita, curiosamente, aconteceu-me o mesmo. “Espero mesmo que a Gilda morra. Que consiga cumprir o seu desejo.”, pensei eu, pedindo para que o filme não enveredasse por um caminho mais moralista… No fundo, estamos a referir um tema muito delicado, e o humor do filme ajuda, não a branqueia-lo, mas suavizar o peso da questão. A eutanásia, aliás, ainda hoje … não sei como está no Brasil, mas creio que a situação é ainda mais complicada do que em Portugal … é um tema que continua a ser muito fracturante.

Não sei se houve algum momento, durante o filme, em que o argumento apontava para um desvio, um "rebound", nesse desejo mórbido da Gilda. Mas não … Adorei o argumento. Quando o li, a minha reação foi: “Quem é esse cara? Quem escreveu isso?” Quis logo conversar com o Paolo, e a primeira coisa que lhe perguntei foi: “Por que é que você escreveu isso?”. Sou muito curiosa sobre as motivações das pessoas, e é interessante a forma como ele resolveu abordar este tema.

Acho que é um filme único. Não existe outro igual. É difícil até de o encaixar numa categoria. Ele tem uma especificidade muito própria, de alguém que teve uma ideia original para tratar um assunto extremamente delicado, não só complexo, mas também tabu. É um tema sobre o qual, geralmente, as pessoas não conseguem aprofundar a conversa como deveriam, justamente por ser difícil.

Aconteceu uma coisa curiosa comigo. Durante todo o tempo em que estive envolvida com o filme, li muito sobre eutanásia, e tornei-me uma pessoa muito a favor do seu direito. Acho que todos deveríamos ter o direito de morrer. Ou melhor: o direito de viver dignamente … é mais por aí. Essa é a verdadeira questão. Porque o “direito de morrer” é, claro, um conceito relativo, ma medicina, hoje, permite-nos tantas formas de prolongar a vida que precisamos, sim, de refletir sobre o que significa estar vivo, diante de tantas possibilidades de continuar vivo... sem, de facto, viver.

A maneira como o Paolo decidiu abordar o tema, usando o humor, foi muito feliz. Porque, em nenhum momento, o espectador deixa de sentir a dor. Falávamos muito disso durante o processo. Acho que a morte continua a ser um tabu, talvez não tanto pelo nosso próprio fim, mas pelo fim das pessoas que amamos. É essa a grande dor — a perda. E nós evitamos de falar sobre o assunto porque não queremos encarar essa dor. É aquela velha história: é pior para quem fica. Porque, para quem vai, muitas vezes, a pessoa já está pronta.

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A webserie "Horas em Casa" (2020)

A minha mãe, por exemplo, falava com muita clareza sobre a morte. Dizia: “Estou cansada. Já deu. Aproveitei.” Ela parecia a Gilda. “Eu aproveitei. Eu vivi, minha filha. Fiz tudo o que quis. Mesmo casada com o teu pai, fiz tudo o que quis.” Essa consciência... é algo muito forte e foi muito claro que, para ela, quando o corpo virou uma prisão para tanta vida, para tanta pulsão e desejo, ela já estava pronta. Mas não tinha acesso à eutanásia, e penso que, se tivesse, teria ido antes, com dignidade.

Isso fez-me pensar muito, porque mesmo depois de ter vivido a Gilda, de ter feito esse papel, tudo o que vivi com a minha mãe nessa “sobrevida” que a eutanásia teria evitado... trouxe-me questões e inquietações. Será que, se ela tivesse esse direito, teria mesmo optado por ir mais cedo? E, se tivesse, será que teria feito disso um ritual? Uma celebração? O que todo esse processo me ensinou foi que a trajetória do fim — quando, por exemplo, a Gilda decide partir e começa a ver que aquilo está, de facto, a acontecer — desperta nela uma felicidade. É muito louco. Ela não desiste da ideia, mas, ao mesmo tempo, quando chega a Maiorca, encontra aquela beleza... e está a viver uma paixão. Algo surpreendente, até para ela.

É como se a vida invadisse aquele momento. Acho que isso também faz parte. Essa percepção aumentada do viver. Essa consciência do tempo e da existência. Isso também faz parte do fim. Pude ver isso com a minha mãe. Vivi momentos de uma intensidade muito bonita com ela nesses últimos tempos. Acho que, se tivéssemos um pouco mais de consciência de que todos vamos morrer, viveríamos melhor.

É muito difícil viver como se fôssemos morrer — porque não queremos pensar nisso, mas, se conseguíssemos viver com um pouco dessa consciência, daríamos mais valor às pequenas coisas. A vida é curta, e, muitas vezes, deixamos o essencial de lado por causa da correria, dos boletos, do trabalho… e, nessa demanda diária, esquecemos de viver plenamente. De saborear a vida como ela merece!

Se nós, seres humanos, soubéssemos exatamente o dia em que iríamos morrer, aproveitaríamos mais a vida do que nesta incógnita da existência?

Definitivamente! Pessoalmente, sinto que tenho uma certa tranquilidade em relação à morte.

Há pessoas que não gostam de falar sobre o tema, que o negam. Cada vez que se fala em morte, respondem logo: “Ai, para com isso, Deus me livre!” — e rejeitam o assunto. Mas acho que, se compreendêssemos melhor o ciclo da vida, se tivéssemos essa consciência... Não sei se seria preciso saber a hora exata, porque isso dá um nervoso danado. [risos]

Tem uma música do Gilberto Gil em que ele canta: "Eu não tenho medo da morte, tenho medo de morrer." Essa distinção é muito significativa. O momento da passagem — esse lugar misterioso — como no solilóquio do Hamlet: "To die, to sleep... To sleep, perchance to dream..." — ninguém nunca voltou para contar como é. E é aí que mora o medo. O medo não é só da morte, mas de não sabermos como é morrer.

Toda a gente deseja morrer dormindo. Então, sim, o momento da morte é uma grande interrogação. A Gilda, por exemplo, tem essa aflição: ela quer morrer sem dor, quer esse direito. E, mesmo assim, ela não consegue se atirar. É difícil atravessar esse limiar.

Mas se nós compreendêssemos melhor o ciclo da vida - que vamos morrer - talvez vivêssemos de outra forma. Cada aniversário que faço, penso: “Ai, meu Deus, não vai dar tempo...” Sabe aquela “síndrome da livraria”? Eu tenho isso. Sempre que entro numa livraria, fico angustiada. É tanto livro! “Não vou conseguir ler tudo. Não vou conseguir ver todos os filmes. Não vou conseguir rever todos os amigos.” E talvez o nosso medo da morte, ou mesmo a recusa em falar sobre ela, venha dessa angústia diante do tempo.

Porque, se tivéssemos total consciência do tempo, talvez vivêssemos angustiados com a sua finitude. A vida é múltipla demais, e vamos seguir o ritmo da música, na corrente do rio. Mas se soubéssemos exatamente quanto tempo temos, haveria quem agendasse tudo — os metódicos fariam um projeto de vida, um organograma do que fazer em cada ano...

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Denise Fraga e Paolo Marinou-Blanco durante a rodagem de "Sonhar com Leões"

E, nesse sentido, talvez o próprio medo da morte nos poupe de uma relação demasiado pragmática com a vida. Se falássemos mais sobre a morte, se compreendêssemos a vida como uma jornada, uma viagem que nos foi dada … uma oportunidade de experimentar, de aprender, de desfrutar tudo o que ela tem para nos oferecer … tentaríamos vivê-la da melhor forma possível.

Muito mais do que se estivéssemos distraídos, sem saber por que estamos aqui, sem querer pensar no fim. A verdade é que estar vivo é um privilégio. Esse bilhete que recebemos para esta viagem é algo precioso, e, sim, acredito que essa consciência nos faria viver melhor.

Sobre o filme, quero referir arrojo — especialmente para a nossa cinematografia, a portuguesa — que a tua relação, no filme, com o jovem Amadeu (João Nunes Monteiro). Esse relacionamento que se constrói no filme é bastante rara para o cinema português, porque pouco, ou quase nunca, lidamos com esses romances ou sexo como afronta ao “idadismo”.

Pois é. A diferença de idades não é tema do filme. O filme não trata disso e nunca se fala diretamente sobre o assunto. Até cheguei a dizer que queria tocar nesse ponto, mas o Paolo respondeu: “Não precisa, não é o tema.

E isso é muito interessante, porque, em qualquer outro lugar, isso se tornaria central, mas a coisa mais bonita do mundo é ver essas duas pessoas, que à partida, segundo o olhar preconceituoso que a sociedade ainda tem, não seriam “apaixonáveis” uma pela outra, a apaixonarem-se. É tão bonito ver a intimidade e a cumplicidade entre eles crescendo!

E vai crescendo... e tu nem sabes bem se eles vão mesmo tornar-se um casal ou não. Até que há um beijo, e aí percebemos que o amor entre as pessoas, e a paixão propriamente dita, está muito além daquilo que nós, culturalmente, definimos como “par romântico”, seja na dramaturgia ou na vida. As pessoas apaixonam-se umas pelas outras independentemente de género, de idade, e a vida mostra isso a toda a hora, nas experiências reais, mas continuamos a insistir em ver isso como um tabu.

Diz-se: “Ah, mas ele não se apaixonaria por ela.” Mas a paixão é surpreendente. Ela ultrapassa os desejos primários, os corpos até. Por vezes estás a conversar com alguém por quem, num primeiro momento, não sentes nenhuma atração, nenhum desejo sexual,  mas essa pessoa começa a dizer coisas que te tocam, e, de repente, aquilo desperta um “tesão danado” [risos]. É curioso como colocamos a paixão fora do lugar onde, de facto, ela pode acontecer.

Gosto muito disso no filme: ver o quanto eles vão criando cumplicidade — esse casal improvável — e, quando essa cumplicidade floresce, ela é ainda mais forte. Porque é fruto do impossível. Do absurdo.

Sim, e gostaria também de perguntar sobre algo que me fascinou no filme: toda a imagética da empresa de aconselhamento de suicídio, a Joy Transition International., que invoca — até pela parte de ser num armazém — das igrejas pentecostais, especialmente aqui em Portugal, as evangélicas e tudo isso… Mais a propagação dos movimentos de coaching, e outros palcos motivacionais.

Sim, sim. Nunca falámos diretamente sobre isso no filme. O Paolo escreveu e criou toda uma forma plástica muito singular. A direção de arte do filme nesse aspecto é preciosa. Os figurinos da Maria [Barbalho] são incríveis nesse aspeto, porque eles criam uma ambiguidade - nem sabemos ao certo o que aquilo é. É uma mistura de empresa, de culto, de algo meio místico… Mas depois há aquela mão imensa no armazém, que parece mesmo uma mão de marionete sobre as pessoas. E aquele sorriso... aquela máscara com o sorriso forçado … O Paolo está a falar de algo que vai para além das igrejas pentecostais ou de qualquer outra coisa definida. Ele fala da nossa era coach, dessa era que exige de nós uma felicidade histérica.

Hoje em dia, as leituras mais oferecidas são de autoajuda. Reparo nisso nas livrarias de aeroporto — como viajo muito, passo por muitas — e fico sempre a pensar: “Gente, isso é desleal!” O sujeito está cansado, estressado do trabalho, de andar a voar de um lado para o outro… e quando entra na livraria está tudo a gritar com ele: “Tire sua vida do rascunho”, “O Poder do Agora”…

Aí no vosso país também tem um que é “A arte de dizer o foda-se”?

Tem, tem sim.

O Poder do Hábito”, “Ganhe dinheiro agora”... São títulos de salvação e a verdade é que nós queremos uma salvação. Só que temos de ter cuidado com essa ideia de salvação.

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Sonhar com Leões

A Gilda, quando pega aquele panfleto que diz “Como morrer sem dor”, é óbvio que quer saber o que aquilo significa, e ela vai, mesmo desconfiando o tempo todo, mas depois o filme vai criando aquele teatro do absurdo maravilhoso.

Aquelas pessoas a dizerem aquelas coisas, aquela comédia que roça o absurdo — e os atores que são geniais … a Sandra [Faleiro], a Joana [Ribeiro] e o Alex [Tuji Nam]. Adoro todas as partes da Joy Transition. São quase como um spin-off dentro do filme…

Quando fazia o “trabalho de casa”, dei de “caras” com um podcast chamado Ribalta Podcast, em que Denise foi convidada para um dos episódios, e na altura da apresentação, há algo que diz, que gostaria de explorar um pouco consigo. Quando lhe pedem para se definir, para se apresentar, a Denise diz que é uma atriz, mas também se define como uma artista. Gostava de terminar com esta pergunta: Uma atriz não pode ser uma artista?

Pode, sim. Claro que pode. O que acontece é que nem todo ator aproveita toda a sua condição de artista. Um ator é um artista. Mas o que acontece, muitas vezes, é que — com os meios da industrialização da arte, com a força da televisão aqui no Brasil, e até mesmo no cinema — muitos atores acabam por se privar das suas potencialidades criativas. Privam-se da sua capacidade de dizer algo, da sua vontade de expressar através do trabalho. Privam-se da sua condição autoral.

Sempre que faço um filme, o “Sonhar com Leões” do Paolo é um exemplo claro disso, tento sempre imbuir-me do espírito do criador. Neste caso, a primeira pergunta que lhe fiz foi: “Por que você escreveu isto? O que você quer dizer com isto?” Isto porque o que mais quero, quando estou num projeto, é fazer aquele cineasta feliz. E para o fazer, não posso ser só uma marioneta morta nas mãos dele, tenho de estar cheia de vida, da alma, da razão que levou aquela história a ser contada.

Então, quando me aproprio, ou melhor, quando pego emprestada a alma do cineasta, tudo aquilo que ele quer dizer, tento compreender profundamente, para poder dizer junto com ele, da forma mais plena possível. Quando digo que agora já me considero uma artista, e não apenas uma atriz, refiro que no meu trabalho tenho procurado, cada vez mais, esse potencial de expressar, de dizer algo através daquilo que faço como atriz, da minha performance e da minha presença. Mesmo quando o projeto não é meu, arranjo uma forma de dizer algo com ele. E quando o projeto é meu — que geralmente é no teatro — escolho as peças que faço porque quero dizer algo com elas.

A escolha do texto já é, por si só, um discurso. A história que escolho contar já carrega em si o meu posicionamento no mundo. Acredito muito que os discursos, na maioria das vezes, servem mais a quem os profere do que a quem os ouve. Inclusive os livros de autoajuda, muitas vezes você só consegue mesmo transmitir aquilo que precisa quando conta uma história. Acho que as histórias dizem muito mais do que os discursos.

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Sonhar com Leões

E nós estamos a viver uma época em que estamos a levar um grande olé, como dizemos aqui … um embuste. Porque a internet está cheia de discurso e cheia de opinião… mas com muito pouca história, pouca vivência e pouca experiência real. E é pela experiência vivida de alguém que você chora, que você se emociona, já com a opinião, não. Você até pode absorver uma opinião, mas se ela não vier sustentada por uma vivência, corre o risco de ser uma opinião emprestada. Uma ideia que pousa num terreno frágil, sem a experiência necessária para a sustentar.

Até é generoso quando alguém escolhe dizer o que tem para dizer através de uma história, e é isso que tenho procurado fazer no meu trabalho. Talvez seja por isso que agora me defina também como artista.

Maia IFF 2025 promete cinema para tudo e todos para não se ficar "à mercê de blockbusters semelhantes"

Hugo Gomes, 29.04.25

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"Moon" (Kurdwin Ayub, 2024): exibido no dia 1 de Maio, pelas 18h30

A cidade da Maia acolhe, pelo segundo ano consecutivo, o seu festival de cinema internacional, provando que a sétima arte pode chegar aos mais diversos cantos, fora da tradicional centralização Lisboa-Porto. É com esta segunda edição que a resistência se faz sentir com mais força, não apenas no formato, mas também na própria presença do evento. Perante uma programação selectiva e diversificada, sem medos de exibir cinema português, com masterclasses, tertúlias e debates, o Maia IFF promete “fincar pé" nesse lugar cultural ainda por explorar.

O Cinematograficamente Falando... desafiou Gustavo dos Santos, director do festival e também realizador ("Zulmiro de Carvalho", "Percepção Delicada de um Raio de Luz"), a desvendar o evento, as novidades e os statements que marcam a sua razão de ser.

Maia International Film Festival arranca amanhã (30/04), no Forum da Maia. A programação poderá ser consultada aqui.

A segunda edição do Maia International Film Festival apresenta uma curadoria ambiciosa e cosmopolita. Num mundo saturado de festivais, o que é que distingue, para si, este festival da Maia enquanto espaço de resistência ou celebração artística?

O cinema (ou a sala de cinema) trava uma luta muito grande com os serviços de streaming. Nunca como dantes as pessoas preferiram tanto o conforto de sua casa ao (des)conforto do cinema. Os festivais devem-se distinguir exactamente como eventos sociais e espaços de visualização de filmes que não poderão ser vistos em casa.

O nosso festival não se pretende diferenciar de outros festivais de nenhuma maneira específica. O nosso objectivo é apenas oferecer uma programação de qualidade e exclusiva (a maioria dos nossos filmes são estreia nacional), e que faça com que o público se reaproxime da sala de cinema. Toda a gente que trabalha com cinema menos comercial depara-se sempre com dificuldades de público, mas se toda a gente desistir, ficaremos exclusivamente à mercê de blockbusters semelhantes!

A presença de realizadores como Margarida Cardoso [Portugal - Moçambique] e Algimantas Puipa [Lituânia] acena a uma ponte entre geografias e memórias distintas. Que tipo de diálogo espera que surja entre o público português e estas cinematografias menos "globalizadas"?

O cinema como arte deve ou deverá sempre despertar curiosidade. Uma pessoa que esteja menos habituada a este tipo de cinema poderá ter mais questões ou questões diferentes em relação a alguém cuja bagagem cinematográfica seja bastante maior. Na minha opinião, isso deverá dar azo a discussões interessantes entre realizadores e o público.

Com uma programação ecléctica e de múltiplo-públicos, como se equilibra o festival da sua vertente formativa com a curadoria para um público já cinéfilo?

Imagino que existam sempre pessoas mais elitistas, cujo conteúdo de alguns filmes não interesse. Mas como elitista eu próprio, acho que de vez em quando também faz bem uma comédia descontraída ou um filme mais "light". De qualquer maneira, mesmo este tipo de filmes, foram escolhidos com critério, são filmes que também têm a sua profundidade.

A escolha do júri é quase um manifesto estético e político: de João Nuno Pinto a Manuela Pimentel. Há aqui uma intenção deliberada em misturar sensibilidades e disciplinas artísticas? Como se cruzam essas vozes na hora de avaliar cinema?

Foi nosso objetivo desde o início ter um júri multidisciplinar. Nunca poderá haver 1 júri sem alguém do cinema, mas há muitas pessoas de outras disciplinas que adoram e entendem de cinema. Essa diferença de sensibilidade é o que nos interessa. Queremos olhos diferentes com visões diferentes. Desta maneira, penso que conseguiremos determinar vencedores de uma maneira mais equilibrada.

- "A Woman and Her Four Men" (Algimantas Puipa, 1983): 1 de Maio, 21h30, seguido por uma masterclasse com o realizador

- "The Hyperboreans" (Cristóbal León & Joaquín Cociña, 2024): 2 de Maio, 18h30

- "Banzo" (Margarida Cardoso, 2024): 3 de Maio, 21h30

Tendo no seu percurso uma forte ligação ao documentário e à videoarte, sente que essas linguagens encontraram já o seu lugar natural nos festivais portugueses, ou continuam, de certa forma, relegadas para as “secções alternativas”?

A minha área de formação é cinema. Sempre estive muito ligado à ficção e ao documentário, a Videoarte é uma paixão recente! A pergunta é pertinente e real e a resposta curta é (e penso que será sempre) afirmativa. Há festivais dedicados exclusivamente a cinema documental onde o documentário é o principal, mas em termos gerais o documentário é "empurrado" para uma secção própria por ser difícil de comparar e julgar em relação à ficção. São dois formatos com características muito diferentes, tempos diferentes, orçamentos diferentes. Numa competição, será difícil um documentário ganhar se estiver a competir contra uma ficção. Em relação a videoarte é pior ainda. Muitas vezes a videoarte não tem uma narrativa, e se tiver, não deverá ser uma narrativa literal ou de palavra. Eu vejo a videoarte como algo muito mais sensorial. Outra coisa são os tempos. A videoarte pode ter 5 minutos ou 24 horas, como comparar isso a um filme tradicional?

O seu próximo documentário aborda o artista Flávio Rodrigues. Como é que a experiência pessoal enquanto criador e programador interfere (ou ilumina) a construção de um festival como este, que parece querer desafiar tanto quanto acolher?

A minha visão como criador é diferente do que como programador. Cada um tende sempre a "puxar a sua sardinha para a sua brasa", e como programador, o objectivo não é agradar apenas a mim, mas a um conjunto de pessoas. Neste momento o júri de pré selecção são quatro pessoas, sendo a programação a visão de quatro pessoas e não apenas minha. Em conjunto, tentamos sempre ter critérios que nos levem a agradar o público, e obviamente que há um público alvo que é o público cinéfilo. Mas queremos que o festival seja para todos. Como criador, a minha visão de artista ajuda sempre a elevar o nível dos filmes que apresentamos no festival. Aquilo que exijo a mim, o critério, irei exigir o mesmo dos outros!

Como poderemos definir o MaiaIFF no futuro? Ambição para as próximas edições?

O nosso objectivo para o futuro é poder alargar o festival em termos de dias e poder termos mais convidados com filmes e mais masterclasses. Como já referi antes, o festival deve criar interacções humanas. Se tivermos mais realizadores, mais actores, mais equipas técnicas, poderemos ter muito mais conversas e muito mais aprendizagem.

Pretendemos também o alargamento de parcerias estratégicas, como instituições culturais locais e internacionais, universidades e colectivos.

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KULTURfest 2025: o 'K' que une cultura e cinema. Começa a segunda edição!

Hugo Gomes, 26.04.25

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"Solo Sunny" ( Konrad Wolf, 1980): exibido no dia 29 de abril, pelas 21h00, na Casa Comum | Universidade do Porto

Contemos cultura com “K”, à boa moda alemã, conectando também com a palavra “Kino”, cinema no linguajar germânico. A KULTURfest chega à sua segunda edição, partindo da cidade Invicta até à capital, com a missão de difundir essa cultura, atravessando as mais diversas artes. O cinema é apenas um dos ramos … e até um dos mais políticos.

O KULTURfest – Festival de Culturas de Expressão Alemã arranca já amanhã (27/04) no Porto, no dia 21 em Lisboa, e prossegue depois para outras cidades portuguesas. Toda a programação poderá ser consultada aqui. Entretanto, Teresa Althen e Jana Binder, programadoras do evento, responderam ao desafio do Cinematograficamente Falando…

Depois da primeira edição em 2024, que desafios encontrou na programação desta segunda edição do KULTURfest? Houve necessidade de limar algumas arestas ou repensar direções? 

O KULTURfest 2024 foi um projeto piloto para descobrir se um festival interdisciplinar, direcionado a diferentes públicos, poderia ter sucesso. No final da primeira edição fizemos uma avaliação do projeto e ficámos surpreendidos com o quão bem funcionou em Lisboa, o que nos encorajou não só a planear uma segunda edição, mas também a expandir o programa para outros locais, tentando sempre ir ao encontro das necessidades do público e das questões pertinentes da atualidade que ampliem o intercâmbio cultural. Este ano, o Porto dá início ao festival com um programa desenvolvido em colaboração com a Universidade do Porto – Casa Comum, onde terão lugar a maioria dos eventos. Já em Lisboa, o festival volta a dinamizar as instalações do Goethe-Institut em Lisboa. Mantêm-se, é claro, as parcerias, e os eventos fora de portas, quando as necessidades técnicas dos espetáculos assim o ditem.  

O KULTURfest propõe um cruzamento ambicioso entre cinema, performance, gastronomia e música. A intenção é construir um retrato abrangente da cultura germânica ou criar antes uma experiência sensorial que ultrapassa o plano meramente didático? 

A diversidade da cultura é mostrada através da junção de vários tipos de artes e ofertas culturais, abrangendo um público mais lato. Acreditamos que as duas coisas não se excluem mutuamente: o intuito não é a didatização, mas sim fazer parte da experiência de imersão cultural que propomos.  

Ao criar a programação do KULTURfest 2025, tivemos em mente diversos aspetos, dando prioridade à representatividade e ao diálogo intercultural. Em primeiro lugar, procurámos o que se destacou na produção artística na Alemanha no último ano e meio nas áreas da música, do cinema, da performance, das exposições. Depois, identificámos aniversários marcantes que nos permitem olhar mais de perto para uma determinada personalidade ou acontecimento histórico e que pudessem ser relevantes nos dias atuais. Também procurámos propostas que pudessem interessar não só a um público que já teve contacto com a cultura de língua alemã, mas aos públicos que o fazem agora pela primeira vez. E, finalmente, tentámos integrar propostas não só da Alemanha, mas também de outros países de expressão alemã: Áustria, Luxemburgo e Suíça

A partir destes conceitos, em 2025, desenvolveram-se diálogos entre as várias propostas culturais que incluímos tanto na programação do Porto, como na de Lisboa, sempre tendo em conta o que os diversos espaços onde o festival vai ter lugar têm para oferecer.  

Com tantas entidades envolvidas e um programa que se estende por várias cidades, como é que se assegura uma identidade coesa ao festival? O que impede o KULTURfest de se tornar apenas um mosaico de eventos isolados?

Um projeto feito a várias mãos é sempre um desafio, e a colaboração com muitos parceiros torna o processo mais complicado de gerir, porque é necessário dar resposta a necessidades e públicos muito diferentes. Mas sabemos que um bom trabalho cultural consiste em misturar o invulgar e pôr em contacto diferentes públicos. Isto pode levar a experiências emocionantes. As temáticas abordadas no KULTURfest 2025 - reunificação/divisão da Alemanha e da sua sociedade; migração; papel das mulheres - mantêm-se. Já a forma como abordamos os temas nas diferentes cidades varia. Em cada cidade por onde o KULTURfest 2025 vai passar, a oferta é diferente e adaptada aos parceiros locais, aos espaços que nos acolhem, que têm as suas especificidades e constrangimentos. O programa do KULTURfest não é, por isso, só um. É um programa adaptado a cada cidade e a cada realidade, e onde os elementos funcionam tanto em conjunto, como também de forma isolada.

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“Zwei zu Eins” (Natja Brunckhorst, 2024): exibido no 28 de abril, pelas 21h30, na Casa Comum | Universidade do Porto

Num momento em que a Europa volta a confrontar-se com temas como fronteiras, migração e identidade, de que forma o KULTURfest aborda estas questões, nomeadamente a (e)migração, sem cair em leituras simplistas ou mensagens unidimensionais? 

Estes são temas que nunca deixam de ser atuais e que são recorrentes no trabalho do Goethe-Institut por todo o mundo. Acreditamos que o intuito do festival é trazer à tona discussões aprofundadas sobre este e outros temas de interesse contemporâneo, construindo senso crítico e dando voz a diferentes experiências e concepções.   

A partir destes conceitos, em 2025, desenvolveram-se diálogos entre as várias ofertas do festival. Um programa de filmes e debates tenta abordar por que razão as duas Alemanhas ainda não se uniram completamente, mesmo 35 anos após a reunificação, o que levou a que uma parte da Alemanha hoje apoie um partido com fortes tendências antidemocráticas. O programa de exposições e debates foca-se no tema da migração, tanto no passado quanto no presente. Também temos propostas que convidam o público a discutir temas que há 100 anos também eram muito presentes, como é o caso da conversa sobre o autor Thomas Mann, onde se reflete sobre a resistência artística no passado e no presente. Isto, no entanto, sem esquecer que o KULTURfest continua a ser um festival cultural na sua essência. 

Na seleção cinematográfica nota-se uma forte presença de comédias e sátiras. Esta escolha reflete uma tendência no cinema germânico contemporâneo de lidar com a realidade através do humor, ou é também uma forma deliberada de provocar reflexão sem recorrer ao dramatismo? 

O cinema de expressão alemã não é conhecido por lidar com a realidade de forma humorística e leve. Durante o KULTURfest, foi importante podermos mostrar que existe uma maior variedade no cinema de expressão alemã, provar que existem ofertas para todos os gostos, o que contraria um pouco o estigma mais “pesado”. Os filmes que escolhemos para esta edição apresentam diversas formas de abordar a realidade (e a história), como é o caso do filme de abertura no Porto e em Lisboa, “Dois por um” (“Zwei zu Eins”), uma comédia mais “feel good”, mas ao mesmo tempo honesta sobre a reunificação alemã, e que junta um elenco de luxo, onde se destaca Sandra Hüller (“Anatomie d'une chute”). Já o filme de encerramento no Porto, “Veni vidi vici” (Daniel Hoesl e Julia Niemann, 2024) é uma sátira política austríaca bastante forte. Pode-se observar de facto um “talento especial” para este género no cinema austríaco, com realizadores como Ulrich Seidl (que produziu o filme em questão), e um humor bastante sarcástico e ácido, que é usado para refletir sobre questões pesadas da nossa sociedade.

O KULTURfest surge no rescaldo do desaparecimento do KINO – Festival de Cinema de Expressão Alemã. Este novo festival procura ocupar esse espaço ou representa uma evolução com um escopo mais alargado e interdisciplinar? 

O KULTURfest tem origem não só na mostra de cinema KINO, mas também no festival de jazz europeu JIGG – Jazz im Goethe-Garten. Devido aos graves cortes orçamentais no setor cultural alemão, ambos os festivais deixaram, infelizmente, de existir. A dimensão de ambos os festivais também significava que dificilmente conseguíamos não só explorar outros géneros, mas também levar estes festivais a outras cidades, dado que ambos os festivais se realizavam principalmente em Lisboa. O KULTURfest é, por isso, uma oportunidade de explorar algo novo – tanto em termos de formato e de temas, como de locais.  

Ambições para a terceira edição ou futuras? 

As nossas ambições são sempre muito elevadas, claro. Temos muitas ideias, muitos artistas e projetos que gostaríamos de trazer até Portugal, colaborações e conversas que gostaríamos de incentivar. Mas vamos primeiro avaliar como corre esta edição, e depois refletir sobre o mesmo. Também caberá aos nossos parceiros e patrocinadores fazerem a mesma avaliação e decidir se estão interessados em apoiar-nos no futuro. 

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"A política também é a nossa atitude perante a vida, a sociedade, onde estamos, o que fazemos, a nossa presença": conversa com Rui Pires, o realizador de "O Palácio de Cidadãos"

Hugo Gomes, 25.04.25

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O Palácio de Cidadãos

Pertinente será talvez referir a possível e equívoca caracterização deste documentário. Em vésperas de mais umas eleições legislativas — provocadas entre uma moção de confiança chumbada e a “persistência” de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) —, com os portugueses a questionarem o seu próprio ato democrático, chega agora às salas de cinema “O Palácio de Cidadãos”, um documentário que capta o último ano da chamada "geringonça".

Contudo, não se limita a uma representação meramente temporal: o realizador Rui Pires, sob a influência das lições de Frederick Wiseman, percorreu os corredores do Palácio de São Bento, captando os alicerces da democracia, o vínculo, por vezes instável, entre cidadãos e políticos, e a arte da política na representação de uma instituição, “pavoneando”, atento, os corredores, como um verdadeiro observador. É um documentário filmado em estâncias canónicas, mas que é, simultaneamente, político na sua forma de estar, como, aliás, é o caso de quase toda a obra de Wiseman.

A invocação do documentarista, aliás, cineasta norte-americano não é casual: a conversa entre Rui Pires e o Cinematograficamente Falando … passou inevitavelmente por algumas paragens obrigatórias na carreira de Wiseman, tanto como influenciador, como enquanto modelo de abordagem documental. Mas houve espaço para tudo: do politizado ao pavão que passeia livremente pelo Palácio e no cartaz, como também as intenções e a montagem, o que fazer dela e dessa “espada”?

O Palácio de Cidadãos” estreou num momento em que a política amplifica a natureza dos próprios espectadores: há quem veja o filme como um ato de ativismo, outros como uma expressão de conformismo. Para nós, é sobretudo um ato profundamente cinematográfico.

Depois da estreia no Doclisboa de 2024, o filme finalmente estreia em sessões comerciais …

Posso dizer que entretanto continuamos a trabalhar na montagem do filme, o qual acabou por ter uma pequena redução. Já não tem 2 horas e 12 minutos, e sim 2 horas concretas.

Ou seja, a versão vista no Doclisboa era uma versão “alargada”. Já agora, onde aconteceu essa redução?

Não foi nada de especial. Retirámos algumas cenas que nos pareceram ter pouca relevância. Vendo em retrospectiva, ao pensar que o filme ia estrear nas salas, queríamos que ele pudesse chegar ao máximo número de pessoas. Sentimos — e também nos diziam — que havia umas partes mais "chatas". Cada pessoa tem a sua opinião, mas consegui perceber que, ao tirar alguns elementos, o filme ficaria mais acessível. Até porque, dramaticamente, algumas cenas repetiam ideias: diferentes, mas próximas. Não queria que o público sentisse saturação. Preferia que pudessem ver o filme “bem”, essa acessibilidade era importante. E, aliás, foi uma concessão que aceitei perfeitamente.

Esta decisão de cortar o filme foi, de alguma forma, influenciada pelo prémio que ganhou no Doclisboa [Prémio Max - Para Melhor Filme da Competição Portuguesa]?

Não, sinceramente, o prémio foi um bocadinho irrelevante. Nem me lembrava que havia prémios. No dia, estávamos lá, foi completamente inesperado. Achávamos que havia tantos filmes bons no festival... Nunca imaginámos que houvesse interesse pelo nosso, mas depois disseram-nos que a decisão foi unânime. Foi uma surpresa!

Acho que o júri reconheceu o trabalho de tornar um tema tão árido, que diz respeito a toda a gente, mesmo sem se aperceberem, em algo com dimensão dramática. Nós não estávamos à espera. Fazer um documentário é um trabalho muito duro. Este filme foi muito trabalhado narrativamente e foi um processo laborioso. Houve cenas que demoraram semanas a montar: começavam com três horas de material, depois para meia hora, depois para 15 minutos, 11 minutos e meio... até ficar pelos 6 minutos e meio, por exemplo. Todo o processo de montagem durou quatro anos. Pode não parecer, porque o filme tem um fluxo contínuo, mas isso é fruto de um trabalho muito preciso de montagem, para tornar o esforço imperceptível. Narrativamente, sinto que conseguimos isso.

Achávamos que o filme não era assim tão "impactante", talvez também por saturação do próprio processo. Porque, de facto, é exaustivo trabalhar tanto tempo num projeto. Mas fiquei muito satisfeito pelo filme ter ficado acessível, e a estreia mundial no Cinema São Jorge foi extraordinariamente gratificante para mim. Poder sentir a reação das pessoas é fundamental. Quando fazes um filme — sobretudo no meu caso, em projetos mais profissionais ligados à montagem — queres que aquilo tenha um impacto nas pessoas. Não é pô-las a chorar, nem forçar emoções, mas sim transportá-las. E senti isso de uma forma incrível.

Quando as pessoas se riem durante um filme, mesmo que este não seja uma comédia, é porque conseguiram envolver-se. Isso é muito difícil de alcançar e foi muito estimulante para mim. Não se trata de contentar o público, mas de os conseguir transportar emocionalmente.

Para mim, isso é o que o trabalho de montagem procura: criar impacto. Seja ansiedade, seja desconforto, seja alegria, o que for. Nas sessões de teste que fizemos, até aqui na Casa do Comum, já intuía alguma coisa. Convidávamos pessoas que não conhecíamos, para termos feedback real. Mas numa sala cheia, com público desconhecido, essa reação coletiva torna-se muito evidente. E percebes porque é tão importante ver filmes em sala. Porque é contagiante. Isso é uma das experiências mais motivadoras para quem faz cinema.

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Rui Pires

Aliás, falando nisso: o filme parece ter como uma "corrente de ar" a atravessar os corredores do Palácio de S. Bento- ele flui muito bem - há essa energia interior com graças da montagem. Gostava também de perguntar o seguinte: muitos montadores dizem que têm muita dificuldade em “largar” o filme durante o processo de montagem, que é duro, demorado e, muitas vezes, insatisfatório. Houve algum momento em que foi necessário um produtor chegar ao pé de si e dizer: "Acabou, não mexes mais"? Ou possui uma disciplina interior que te guia?

Há sempre alguma pressão da produção, mas ela nunca foi determinante para tirar o filme das minhas mãos. Senti uma obrigação pessoal, especialmente para com as pessoas que aceitaram ser filmadas, de fazer o melhor filme possível.

Acho que isso é muito importante.

Sim. Quando fazes um filme com pessoas reais, sentes essa responsabilidade, sobretudo em documentário isso é permanentemente. Na ficção pode ser diferente, embora também haja um respeito pelo trabalho dos atores. No documentário, essa responsabilidade é ainda mais sensível.

Não é só uma questão de "dar voz" às pessoas ou fazer propaganda do que elas dizem. É mais que isso: as pessoas entregaram algo de si mesmas ao filme, confiaram em nós. Então, é meu dever representar isso de forma coerente com o filme. Não estou a dizer que é para agradar “a gregos e a troianos” — lembro-me perfeitamente de, na estreia no Doclisboa, um deputado me ter dito que não gostou do filme. Talvez porque aparecesse pouco, ou por outras razões. Mas o filme não pretende ser propaganda, nem uma representação dos partidos. É o que está publicado, e, sobretudo, dá a ver muitas “vozes” que são invisibilizadas no Parlamento.

Não sei se respondi totalmente à tua pergunta sobre largar ou não largar o filme... Mas, para mim, a sensação era constante: "Tenho de conseguir fazer o melhor filme possível." Sabia que isso exigia tempo.

Muitas vezes, o que sinto — por experiência — é que não há tempo suficiente para terminar um filme, por razões económicas: não há dinheiro para fazer filmes em Portugal, ou quase todo o orçamento vai para a rodagem, que é onde há mais despesa. Mesmo assim, neste projeto, feito com poucos meios e poucas pessoas , tanto a Monomito Argumentistas como a Terratreme Filmes conseguiram montar uma estrutura de produção que permitiu dar ao filme o tempo necessário para ganhar a sua forma certa.

Sim, e a montagem é uma questão essencial neste tipo de documentário, mas queria também perguntar sobre o contexto do filme: pelo que li, foi filmado durante um ano, certo? No último ano da chamada "geringonça"?

Sim, foi durante a quarta sessão legislativa. Normalmente, as legislaturas têm quatro sessões. Filmámos no último ano da "geringonça", daquele Parlamento, daquela configuração de forças na Assembleia.

Exatamente. Gostava de perguntar, a nível de género: de onde surgiu a ideia, ou o plano, de filmar dentro da Assembleia da República?

Que tipo de filme tinha em mente?

Não estou a insinuar que houvesse uma intenção de propaganda, não é isso. Mas acredito que tudo é político: mesmo quando as coisas não parecem políticas, são. Queria saber se essa dimensão política o acompanhou também na montagem do filme?

Talvez... talvez consiga chegar à ideia que estás a colocar. Se a política também está na montagem? Sim, de certo modo.

E a ideia política que tinha para o filme — conseguiu concretizá-la na montagem?

São coisas diferentes. Podemos ser pessoas politicamente ativas, sem exercer "política" no sentido tradicional. A política também é a nossa atitude perante a vida, a sociedade, onde estamos, o que fazemos, a nossa presença.

O filme começou há muito tempo. Se chegarmos a Maio deste ano [2025], fará dez anos desde que o processo começou. Na verdade, a ideia começou ainda no período da Troika, porque havia muitas manifestações, e eu, como muitas outras pessoas, participava. Essas manifestações acabavam quase sempre nas escadarias da Assembleia e contestavam o Governo. Percebi aí que talvez houvesse uma confusão: parecia que se protestava contra o Parlamento, mas era contra o Governo.

Achei, talvez ingenuamente, que muitas pessoas não compreendiam bem o funcionamento da democracia. Hoje vejo de forma diferente: as pessoas sabiam que a Assembleia é também um espaço de poder. O Parlamento representa efetivamente a sociedade através dos partidos. A partir daí, pensei: seria interessante mostrar o que acontece realmente dentro da Assembleia, desmistificando certas ideias, mostrar que existe um poder efectivo exercido ali, e isso já era uma ideia política.

Depois, quando fazemos cinema, procuramos outra coisa: o encontro com o outro, ver através dos olhos do outro, ou pelo menos reconhecer que há outros pontos de vista e empatizar com eles. Isto é comum ao cinema, tanto na ficção como no documentário: criar empatia. Claro que também podemos observar à distância, mas o que me interessa é criar ligação, proximidade. Foi mais ou menos conseguido no filme. Era uma intenção desde o início, mas também um desafio enorme: como chegar a estas pessoas dentro da Assembleia.

Então, a partir de 2015, começámos a fazer contactos, entretanto, houve eleições, o governo de Passos Coelho, sem maioria, caiu ao fim de duas semanas, e foi formada a solução política da "geringonça". Mas, para mim, a existência da "geringonça" era indiferente: o filme teria sido feito qualquer que fosse a configuração parlamentar. Começámos a contactar os grupos parlamentares, queríamos comunicar a todos que o projeto era para mostrar o Parlamento como um todo, e não apenas um lado político.

Inspirámo-nos na experiência do Frederick Wiseman: a ideia de fazer um filme coletivo, sobre uma instituição. Na altura talvez fosse ingénuo da minha parte, mas esse era o objectivo. Demorámos cerca de dois anos e meio a conseguir as autorizações de todos os partidos … houve muitas reticências, especialmente à direita. Até o Presidente da Assembleia, Eduardo Ferro Rodrigues, acabou por intervir publicamente, apelando à abertura da "Casa da Democracia" à sociedade civil. O filme não pretendia mostrar o lado "voyeurista" do Parlamento, nem o que se passa em segredo.

A matéria do filme é o trabalho público dos deputados: como representam pessoas, mesmo com opiniões divergentes. O núcleo é isto: como se debate, como se negoceia, como se chega a acordos. Parece, à partida, uma matéria super aborrecida e o desafio era torná-la cinematográfica e dramática.

Sim, exatamente! Há aquela ideia que associa o canal Parlamento ao aborrecimento televisivo...

E no entanto, há transmissões com dezenas de milhares de espectadores, por vezes até centenas de milhares.

Especialmente nos debates do Orçamento de Estado.

Sim, mas esses não me interessavam tanto. Há também comissões de inquérito, mas são temas muito específicos, muito datados. O que me interessava era algo que falasse a todos, que tivesse impacto na vida das pessoas. Claro que o Orçamento é central — filmámos isso extensivamente — mas acabou por não entrar no filme, porque não se adequava à narrativa que queríamos construir.

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O Palácio de Cidadãos

E quanto aos entraves? Falou há pouco da resistência de alguns partidos de direita. Que outras dificuldades surgiram na rodagem? Imagino que não pudessem filmar tudo livremente...

Sim, claro! Desde o início que respeitávamos as pessoas: pedíamos sempre autorização. Por exemplo, cidadãos comuns que iam a audições parlamentares: perguntávamos se podíamos filmá-los, e ninguém nos disse que não. Só uma senhora pediu para não aparecer e, obviamente, respeitámos isso. Também, por vezes, havia reuniões privadas entre grupos parlamentares e cidadãos.

Alguns partidos — especialmente à direita — só autorizavam captar imagens iniciais, como a imprensa faz, e depois pediam-nos para sair. Nesses casos, agradecíamos, mas optávamos por não filmar: não nos interessava imagens superficiais. Havia regras de transparência na Assembleia: reuniões com cidadãos são públicas, agendas são fixadas. Procurávamos sempre respeitar tudo isso. Não vejo essas limitações como verdadeiros "entraves", respeitar as pessoas fazia parte do projeto. Claro que, ao não termos acesso a certos partidos, isso sente-se no filme: há ausências visíveis.

Para quem vê o filme, essa diferença é notável...

O filme foi feito com quem quis participar.

O facto de estarmos a ter esta conversa é sinal de que vi o filme, como também referi anteriormente, mas quem ainda não teve contacto com “Os Palácios dos Cidadãos” poderá pensar que se tratará de uma parada dos partidos com representação parlamentar …

Obviamente.

Mas o filme foge dessa questão. Tenho comparado este trabalho com muitos do Frederick Wiseman — aquela abordagem às instituições, às entreposições, às zonas intermédias, às espiadas. E ele não intervém, e ao mesmo tempo, intervém, nem que seja pela sua subtil montagem. O filme não tem narração, é cru, é como, buscado novamente a ideia, uma corrente de ar.

Narrativo, como os filmes do Wiseman.

Já estou aqui a puxar uma ponta... O Wiseman foi uma influência para este filme?

O Wiseman é, provavelmente, a maior influência de todas as pessoas que fazem documentário, embora não precise generalizar, para mim é mesmo uma referência. Muitos filmes dele são referências. Um exemplo paradigmático é o “Belfast, Maine” (1999), um filme de quatro horas sobre uma cidade, feito também num período de viragem. Há outros, como o “Near Death” (1989), sobre pessoas nos cuidados intensivos — de seis horas cuja premissa é: devemos ou não prolongar a vida sem qualidade? Há cenas com 20 minutos. É absolutamente extraordinário!

O Wiseman é, para mim, quem melhor concretizou esta abordagem. Ele é um montador exímio. Outros exemplos: “Domestic Violence” (2001) e “Domestic Violence 2” (2002), que, embora diferentes na forma, se complementam. Um tem duas horas e quarenta, o outro quase três horas, e vejo-os com total entusiasmo. Ele continua a fazer filmes sobre instituições, que nos obrigam a repensar constantemente o seu próprio método. Quando comecei a pensar neste filme, estava muito próximo do “National Gallery” (2014), que foi também uma referência. Havia muitas visitas guiadas na Assembleia que filmámos e que poderiam remeter para o método dele, parece que houve uma colagem, mas foi um caminho natural. Estava a aprender com ele, sem dúvida.

Durante a filmagem e principalmente na montagem, percebi ainda melhor a profundidade do trabalho do Wiseman.

Julgo que o último filme dele até à data seja “Menus-Plaisirs, les Troisgros” (2023) — sobre a cozinha de um restaurante de luxo.

Exatamente. São quatro horas, divididas em segmentos de uma hora. Vi-o em Lisboa, há dois anos, numa sessão da DocLisboa, e fiquei absolutamente maravilhado. Não dei pelo tempo a passar. Para mim, o Wiseman é um dos maiores realizadores, pela forma como molda o material que recolhe e trabalha essa questão temporal. O “Menus-Plaisirs” é um exemplo de subtileza na maneira como ele filma. Vai absorvendo e aproveitando o que o material lhe dá. Claro que ele criou um certo cânone próprio, mas para mim é a referência principal.

Trabalhei também com o Fernand Melgar, na Suíça, por volta de 2010. Fiquei muito impressionado com o filme dele “Vol spécial” (2011), sobre um centro de detenção e deportação em Frambois. Um filme fortíssimo, e que está disponível no YouTube com legendas.

Depois, em 2013, fui viver para a Suíça e trabalhei como assistente de montagem com ele e a Karine Sudan (que monta quase todos os filmes dele). Trabalhámos num filme que foi selecionado para Locarno - uma experiência incrível [“L'abri”, 2014] - com cerca de 180 horas de material, organizando-o por blocos, procurando momentos especiais. A obra tinha imensas línguas diferentes.

Estar perto da Karine e do Fernand, que também é ótimo montador, fez-me perceber que sim, é possível fazer estes filmes que parecem impossíveis. Tu alimentas-te do próprio material. Não sei se há apoios para fazer filmes assim … acho que é um problema estrutural, não só apenas português, mas de quem financia e subvenciona este tipo de trabalho.

Mas o Wiseman consegue sempre trabalhar.

Com dificuldades, mas consegue. Ele tinha uma relação de confiança com a PBS [Public Broadcasting Service], nos EUA, que lhe dava uma certa liberdade. Por vezes pediam-lhe apenas para dividir filmes de quatro horas em dois blocos para a emissão, mas basicamente confiavam nele.

Já que falamos no Wiseman: ele estabeleceu praticamente o "cânone". Parece que criou as regras que todos seguiram depois.

Não concordo totalmente com isso. Ele surgiu fora do sistema, no final dos anos 60. Trabalhou como produtor da Shirley Clarke, que vinha da dança e passou a fazer cinema. O Wiseman estava imbuído daquele espírito vibrante das artes, como o Cassavetes, por exemplo. Ele também estudou Direito, esteve destacado na guerra, penso que tinha um forte sentido social. Não fazia ativismo declarado, mas interessava-se por examinar a sociedade americana, especialmente as instituições.

Começou a filmar com o que tinha — preto e branco, uma equipa mínima: um cameraman, um assistente para os gravadores e ele próprio fazia o som. Era tudo muito primário. Se virmos filmes como o "Juvenile Court” (1973), percebemos que não era grave se ouvisse o operador de som no plano. O importante era captar o que estava a acontecer à frente da câmara.

O “Welfare” (1975) foi outro que me surgia na mente enquanto montava o meu próprio filme. Um exemplo paradigmático de como construir dramaticamente algo apenas a partir da realidade, sem sair de um espaço. Para mim, é exemplar, não conheço outro realizador que tenha levado o trabalho de montagem documental a este nível. Nem falo só em documentários … falo mesmo em filmes, no geral.

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Welfare (Frederick Wiseman, 1975)

Mas se considerarmos o seu filme como um exemplar wisemaniano, é encarado como um elogio para si?

Se quiseres... Mas o Wiseman é o Wiseman, sou o imitador da sua arte, provavelmente. Este é o meu primeiro filme. Uso exemplos como referência, acho que toda a gente que está a começar os faz. Embora tenha 44 anos, nós aprendemos uns com os outros, roubamos as coisas uns dos outros. É assim também que fazemos a arte evoluir. Tenho uma bagagem talvez mais focada no argumento, então é algo que me interessa trabalhar. É óbvio que vou tentar aplicar os meus conhecimentos a moldar o material que recolhi.

Para contrastar com o Wiseman, há um filme para mim absolutamente incrível, “super” bem escrito, que é o “Erin Brockovich” (2000), realizado pelo Steven Soderbergh. É sobre a luta de uma mulher, a Erin [interpretado pela Julia Roberts], que quer combater uma injustiça que acabou de encontrar. Ela vive numa situação precária, sem trabalho, e de repente torna-se uma força gigantesca. Tenho pensado muito neste filme, porque sempre que o apanho na televisão, fico a vê-lo até ao fim. Para mim é absolutamente incrível. Nos últimos 2 a 3 anos, devo tê-lo visto umas, digamos, 10 vezes. Consigo apreciá-lo de diversas maneiras.

Era só para te dar um exemplo desestabilizador. O Wiseman é, sim, uma referência. Mas há outras. Se falarmos dos filmes do [Peter] Greenaway - foi quando comecei a adorar cinema -, parecem que não são uma referência, mas para mim foram muito importantes quando comecei. 

O lado simétrico de Greenaway é uma referência para o seu filme!?

Não sei se ele é muito simétrico...

Ele teve uma fase bastante simetria e obsessiva com o enquadramento, aponto até o final dos anos 80, com “The Belly of an Architect” (1987)  e “The Cook, the Thief, His Wife & Her Lover” (1989). Depois, nos anos 90, com “Prospero’s Books” (1991), tornando-se até muito mais plástico.

É um conceito bem da pintura. Ele passou a explorar o plano-sequência, misturando coreografia e efeitos de luz. Tinha um diretor de fotografia incrível, o Sacha Vierny, que vinha da velha guarda e tirava o máximo partido disso, como por exemplo o “The Baby of Mâcon” (1993). Depois, no “Prospero’s Books”, já era o fervilhar da televisão, do cinema, do visual, dos livros... era algo absolutamente extasiante. São influências, mas não me interessa copiá-las. Consigo apreciá-las, até ir lá beber, mas não me faz sentido aplicar essas formas diretamente a este filme. Há muitas outras referências. Podia falar também do David Lynch, pelo efeito de estranheza. Sempre que há espaço para captar isso, tento usá-lo como elemento narrativo. Há muitas oportunidades.

Sobre o seu filme: estreia no dia 24. Há alguma razão simbólica para estrear perto do 25 de Abril? Que mensagem quer trazer com esta estreia?

A ideia de fazer o filme tem a ver com colocar esta instituição - a Assembleia - em questão. Não fizemos isto apenas para "mexer" as coisas, mas é uma espécie de agitação própria, de manifestação, de colocar as pessoas em alvoroço. Isto porque sempre acreditei que a força da sociedade vem dos movimentos sociais. Isso está um bocado no filme, mas está sobretudo na voz das pessoas a quem damos espaço. Não é necessariamente na forma do filme, mas está lá, na narrativa que criámos.

É óbvio que tem a ver com a conjugação dos elementos que filmámos e com a sua coerência interna. A força narrativa do filme vem das vozes cá fora que se fazem ouvir lá dentro, quando são ouvidas. O filme é muito alimentado por isso.

Isto tem a ver, em coerência dramática, com o papel da representação dos deputados e das deputadas. É muito evidente em algumas figuras, menos noutras. O filme coloca isto em questão, é provocatório até, porque usa isso como material dramático. A instituição encerra a pergunta: "o que é isto da representação política?" Desde o início pensei que devíamos redefinir o que é política. Política não são apenas políticos a falar entre si; para mim, política é a população com ideias, que quer apresentá-las. É muito mais uma democracia participativa, feita de escuta ativa. A questão é, de que forma as propostas das pessoas cá fora ecoam, ou não, nas pessoas que estão lá dentro e têm poder? Há um contraste evidente entre quem está cá fora e quem está lá dentro.

A arquitetura da Assembleia também traduz isto. As escadarias monumentais foram construídas, segundo me disse um amigo arquiteto, numa lógica de repressão da contestação — escadarias fascistas. São fáceis de controlar manifestações, e curiosamente, hoje ainda se usa o mesmo método para reprimir protestos à frente da Assembleia.

Algumas mudanças simbólicas existiram, como a remoção da barreira no final da escadaria pelo atual Presidente da Assembleia, [José Pedro] Aguiar Branco. Mas para mim é pouco. O importante seria fomentar a participação ativa e a escuta ativa das vozes de fora. É essa a mensagem que queria passar com este filme.

De certa forma, esse ato do Aguiar Branco — vou usar só esse gesto dele — para buscar uma representação muito próxima à presença constante do pavão no seu filme … os cartazes fazem uso desse animal. Não sei se é um símbolo despropositado, mas o pavão, o que nós conhecemos dessa ave, ela abre a cauda e exibe um leque hipnotizante para com o fêmea, com o intuito de acasalar com ela, ou seja, é uma forma de atração. E aqui o que falamos é política vistosa, política chamariz, ou seja, o que você está a querer dizer é que os alicerces de poder ainda se mantêm, mesmo com as barreiras fora da escadaria? Tudo não passou de uma manobra da cauda do pavão!

As pessoas constantemente estão a colocá-las em causa, e nós estávamos a testemunhar isso. Era muito óbvio, todos os dias, quando estávamos lá. Sempre que havia pessoas que vinham reunir-se com partidos, elas estavam a colocar em causa e confrontavam os deputados e as deputadas com as suas posições. Isto é uma evidência. Projetam para fora uma outra coisa, mas as pessoas não estão muito contentes quando contactam com eles. Se calhar, à primeira vista, são cordiais e simpáticos, mas assim que percebem que as ‘coisas’ não estão a ser bem acolhidas, ou quando os políticos, basicamente, nunca dizem que não, mas tal nunca é desenvolvido, nunca vai a lado nenhum, isto leva a descontentamento. Nós sentimos isso constantemente.

Por isso, à medida que íamos filmando, e de repente já tinham passado três, quatro meses, nós começávamos a ver que havia pessoas que tínhamos começado a encontrar antes de começarmos a filmar, que só agora, passados cinco ou seis meses, é que estavam a ter a petição discutida, é que estavam a reunir com os grupos parlamentares. Acho que isto também faz parte da narrativa do filme. Ela está lá, subtilmente, porque é cinema, nós não gostamos de ter pessoas a dizer isto diretamente, mas ela está lá nos olhares, nas trocas de olhares, e até na própria presença.

Como acontece sempre nas portas abertas do 25 de Abril, naquele evento que é o Parlamento de Portas Abertas, realizado sempre na tarde desse dia, as pessoas entram ou com alegria, cheias de curiosidade para conhecer o espaço, ou então vêm quase como que para confirmar as suspeitas que já têm. É muito forte isso. Se olharmos com atenção — e era isso mesmo que me propunha a fazer naquele dia, tal como já tinha testemunhado no ano anterior —, percebemos que é exatamente assim: há filas de milhares de pessoas à porta da Assembleia, o que quase faz lembrar as primeiras eleições de 1976, que foram as mais participadas de sempre, com 98% de participação.

E isto é incrível, porque demonstra que não há esse distanciamento ou desinteresse das pessoas pela política. Pelo contrário, elas estão muito, muito interessadas. Este fenómeno é um reflexo do seu interesse, e também da vontade que têm de fazer ouvir a sua voz dentro da Assembleia, e isso deveria ser considerado seriamente para se melhorar o funcionamento da própria Assembleia. O que aconteceu, no entanto, foi exatamente o contrário.

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O Palácio de Cidadãos

Depois de terminarmos o filme, na legislatura seguinte, os deputados alteraram a Lei da Petição, mas no sentido contrário ao desejado: aumentaram o número de assinaturas necessárias para que uma petição pudesse ser discutida em plenário — passou de 4.000 para 8.000 assinaturas. Os partidos podem juntar projetos de lei a uma petição, mas isso não muda nada. Uma petição serve para que os deputados a debatam e eventualmente apresentem projetos de lei que possam ir ao encontro do que a petição propõe, ou não. É a partir desses projetos que pode surgir legislação. Mas, como disse, aumentaram o número de assinaturas exigidas.

O Presidente Marcelo [Rebelo de Sousa] vetou essa alteração e devolveu a lei à Assembleia, alertando que esta mudança era errada e que as pessoas não iam aceitá-la bem. Não foram exatamente estas as palavras que ele usou, mas a intenção era clara, e está público, no site da Presidência. Toda a gente a pode ler. Mesmo assim, o que fizeram foi apenas reduzir ligeiramente: em vez de 8.000 assinaturas, ficaram 7.500. Mas, ainda assim, passou de 4.000 para 7.500.

Isto demonstra uma enorme dificuldade em lidar com o assunto, porque há muitas, mesmo muitas petições — centenas! — para serem discutidas, e não se encontrar espaço para que isso aconteça é, a meu ver, um problema grave. Não estou a dizer que todas as petições tenham o mesmo peso, mas todas têm valor, e não deviam ser simplesmente ignoradas ou tratadas como meras questões "de património". Têm de ser levadas em consideração.

Entendendo agora que, com o seu filme pronto, com o seu filme mostrado… e revisitando essas imagens daquele parlamento. O que mudou desde a altura em que filmou para agora?

Penso que não mudou nada. Mas também estou um bocado afastado. Passei muito tempo, antes de começarmos a filmar, a ver o canal do Parlamento, a seguir imensas coisas, a ir à Assembleia e passar lá um dia inteiro a ver trabalhos de comissão, assistir a plenários que duram pelo menos duas horas, duas horas e meia, três, ou cinco, seis ou sete, por exemplo. Então passei muito tempo imbuído a tentar perceber o que é que ali acontece.

Hoje em dia tenho mais distância, só para me salvaguardar, porque foi um processo muito intenso. Também porque o de montagem demorou quatro anos, e já me confundi com estas imagens. Para mim, não existe diferença nenhuma entre o que era o Parlamento antes e o que é agora, porque a instituição em si está lá. Não vou fazer comentários sobre os partidos, conforme como estão ou não estão, porque é uma coisa que não me interessa. O que me interessa é ver se, de facto, existe repercussão. Portanto, não sinto que exista uma grande diferença de antes para cinco anos atrás. Quando estava a trabalhar na montagem do filme — como precisamos, recebemos o material que temos —, para mim é muito óbvio que este é um filme não sobre um tempo localizado. Não é sobre aquele período da "geringonça", que era o que estava a acontecer … por acaso era aquele, mas podia ser outro, podia ser o governo do Passos Coelho, e acho que teríamos um material muito parecido. Diferente, igual, seria outro, mas os assuntos estariam lá também, porque eles são sempre batidos, é sempre um ciclo.

E isto é muito fácil de verificar, porque os assuntos voltam: a violência doméstica volta outra vez, por exemplo, a habitação volta sempre, mesmo que de maneira diferente voltam sempre. De repente, tiraram uma lei, mas a sociedade adaptou-se ou já não está a conseguir responder ao problema, e de repente têm que intervir outra vez. As leis laborais estão constantemente a ser atualizadas, mudadas, provavelmente para se adaptarem às mudanças na sociedade. Provavelmente elas não são garantistas, porque às vezes parece que regredimos. O filme também mostra isso.

Isto é muito importante que as pessoas consigam perceber, porque são os partidos que tomam a iniciativa de colocar isto e sabem perfeitamente qual é o efeito que tem. A quantidade, o volume de informação que passa na Assembleia da República é impossível de seguir para quem está fora.

Por exemplo, recordo, na altura de antes começarmos a filmar, de que se geravam mais de 60 … ou até centenas de horas de comissão só numa semana. Porque há muitas comissões a acontecer, há muitos plenários também, muita coisa a acontecer e há mesmo alturas em que uma comissão de inquérito, cada reunião, por exemplo, tinha cinco a seis horas. Só essa reunião já fazia as outras todas somadas chegarem às centenas de horas.

É impossível alguém, que tenha um trabalho fora, conseguir acompanhar tudo isto. Não sinto que exista grande diferença no que é fundamental: de que forma é que a Assembleia responde aos anseios e não regride nos direitos das pessoas, porque é isso que permite que a sociedade funcione. Isso talvez seja também eu a pensar enquanto cidadão, mas tenho expectativas muito maiores desta instituição. As pessoas às vezes me dizem: "Vai agora ver o que está a acontecer para teres noção de como mudou", mas… consigo ter essa noção, mas não tenho interesse porque o sinto repetitivo.

E é muito curioso, para mim, que tenha esta perspetiva — dediquei imenso tempo a tentar perceber como isto funciona —, que os deputados mudam, mas acho que seria mais útil se tivessem todas as gravações e os novos deputados revissem tudo o que já foi discutido, porque a matéria não é muito diferente. Os assuntos são cíclicos, às vezes de quatro anos, às vezes mais, às vezes menos, e posso dar o exemplo da Helena Roseta, que tem 50 anos de dedicação à vida ativa política e social, e ela tem de facto um conhecimento, podemos dizer enciclopédico, sobre o que é a habitação. Ela conhece porque ouviu, porque está interessada, porque leu, porque procurou, e acho que é das pessoas que consegue falar imediatamente sobre habitação e dizer: "Estas foram as respostas naquela situação, para isto, para aquilo." Acho que se calhar não existe o tempo ou o interesse para ouvir essas pessoas que sabem.

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O Palácio de Cidadãos

E quanto a novos projetos, já tem alguma coisa em mente?

Já há algum tempo que estou a trabalhar em investigação. Ao mesmo tempo que estava a fazer a montagem do filme, precisava de me divertir com outras coisas e fui encontrando outras matérias, e é nelas que estou a trabalhar agora. É ficção, têm a ver com a condição feminina. É um filme sobre mulheres e o papel da mulher na sociedade. Não se restringe à sociedade portuguesa, mas esse é o meu interesse. 

Este projeto tem a ver com o papel, ao longo dos tempos, da Mulher. Parece muito genérico, mas estou deliberadamente a dizê-lo assim, porque não queria dizer claramente o que é, porque acho que... a mim estraga-me o efeito. Mas sim, é um projeto de ficção para desenvolver.

O projeto pode ser alterado ao longo...

...do processo, não é?

Sim.

Estamos sempre à procura, é uma das mais-valias de quem trabalha nas artes, o de conseguir ser permeável a tudo o que aparece e conseguir abarcar. Obviamente que está encapsulado numa ideia, não é? Mas a ideia de conseguirmos estar abertos a coisas que nos surgem, sem acharmos que são descabidas. E isso também foi um processo de aprendizagem neste filme. Porque, se conseguimos aceitar o que as pessoas nos estão a dar, conseguimos transformar aquilo em algo único, efetivo, icónico, podendo mesmo marcar a vida das pessoas, por mais pequenas que sejam essas coisas. Acho que é quase uma aprendizagem: não é preciso ser uma ‘coisa’ bombástica. É preciso apenas perceber que algo tem impacto, se calhar, para aquela pessoa. 

De repente, conseguimos ver isso e perceber a abrangência dessas pequenas coisas. Considero que são esses pequenos momentos que nos são mais gratificantes de perceber. Não é preciso, de facto, ir atrás das bombas a explodir. Espero que as pessoas consigam ver isso neste filme, porque parece que é um filme institucional sobre a Assembleia… Espero que consigam dissipar isso do pensamento. Nós estamos a fazer um esforço para comunicar que isto não é um filme que vai enaltecer a Assembleia. Não. Mas também não é um filme contra a Assembleia. É óbvio que partimos deste conceito, porque de facto é sobre isso, mas acho que fala muito mais. É um retrato da sociedade portuguesa, mas feito a partir de um ponto de vista diferente — de lá de dentro. 

E é muito interessante porque o filme está agora a começar a entrar em festivais e vai passar no dia 26 de abril na Alemanha. É um pequeno festival em Hamburgo, já com 22 anos, o Dokumentarfilmwoche Hamburg. Eles fazem uma seleção muito criteriosa dos filmes que passam. Nem é por submissão, são eles próprios que escolhem. Eles fizeram uma sinopse bastante curiosa: descreveram “O Palácio dos Cidadãos” como: "O filme começa com uma ocupação do Parlamento. Mas estas não são imagens ameaçadoras, são pessoas ávidas de democracia."

Para mim, isto quer dizer que eles perceberam a essência do filme, ou seja, o filme comunica universalmente e eles conseguem entender a sua força, mesmo parecendo falar de uma realidade portuguesa. E o contexto cultural na Alemanha é muito diferente. O sistema parlamentar, quem são os personagens... eles não precisam de saber isso para que o filme tenha eco lá. Fascinante! O filme também vai começar agora um percurso na América do Sul.

É muito interessante, porque, se o filme de facto consegue comunicar universalmente, quer dizer que daqui a 20 ou 50 anos ele continua a ter validade, não é apenas num período determinado no tempo.

Paulo Carneiro: "precisamos estar juntos, e isso também serve para os cineastas". Uma luta por Covas do Barroso e pelo cinema.

Hugo Gomes, 23.04.25

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Rezam lendas e histórias de aura autoral, que é ao terceiro filme que um realizador se afirma no tipo de cineasta que pretende ser. Para Paulo Carneiro, porém, a questão é mais profunda do que simplesmente ser cineasta e de que tipo, colocando antes a interrogação essencial: o que é um cineasta? Sobretudo nos tempos que correm, em que a aceleração do nosso mundo se faz sentir em todas as esferas. Contra os malefícios dessas mudanças repentinas, resta o activismo, a luta, a câmara — como arma, como poder, mas também como aliada. Em Covas do Barroso, a poucos quilómetros de Bostofrio, onde Carneiro e as suas memórias inscreveram a sua primeira longa-metragem, encontrou uma população disposta ao combate contra um inimigo poderoso e multinacional: a Savanna Resources Inc., empresa britânica com intenções de explorar o lítio naquele território. Paulo Carneiro uniu-se a este povo, a esta aldeia, ergueu a bandeira do companheirismo e registou o seu duelo ao pôr-do-sol.

A Savana e a Montanha”, depois de uma passagem pela Quinzena dos Realizadores no ano passado, chega às vésperas do 25 de Abril — sem coincidências… O Cinematograficamente Falando… conversou com o realizador sobre o filme, sobre a resistência do cinema e, voltando ao ponto de partida, sobre o que é ser cineasta com “sangue na guelra”.

Começo por recordar que, na nossa última conversa, referiste que este filme surgiu a partir de outro projecto no qual trabalhaste durante três anos, mas cujo resultado final não te agradou, levando-te a regressar a Covas do Barroso e a desenvolver este “A Savana e a Montanha”. Que filme era esse? O que procuravas inicialmente nessa obra para, ainda assim, sentires que não estavas satisfeito com o que tinhas alcançado?

Um pouco dos outros filmes, mas com um engenho novo, um efeito especial. É complicado explicar agora, mas havia uma novidade na forma — nova no sentido do que vinha antes. Acho isso importante. Já não queria filmar da mesma maneira. Obviamente, nunca se colocou a hipótese de, do ponto de vista formal, filmar algo académico. Isso não interessa, não é desafiante, não acrescenta nada, e acho que, quando nos divorciamos da forma e trabalhamos apenas o tema, a história, parece-me que é menos cinema. É quase uma batota. Percebi rapidamente que o caminho não era esse … a que tinha proposto inicialmente.

Porque sentia que, no filme, o olhar da câmara, o gesto cinematográfico, não captava a força das pessoas. Era preciso encontrar um dispositivo para que essa força fosse sentida. Essa ideia do épico, que vem deles também, dessa ironia do Carnaval, ajudou. A mise-en-scène dialogada, tudo coreografado, permitiu que a câmara se posicionasse de forma a que as pessoas estivessem em relação a ela como queria que os espectadores as vissem.

Recordo que referiste também que o teu montador de som apelidou esta tua obra de “western social” … Portanto, quando foste atrás do olhar destas pessoas, optaste pelo género western para poderes, vou usar a expressão, injetar no teu filme as idiossincrasias do género. Aliás, faço a questão de outra maneira: o porquê do western? Ou é o género que mais se identifica com a questão do ativismo que queres trazer para o teu filme?

Não, e sabes porquê? Como havia dito, ia acontecer este desfile de Carnaval, e o que acontece é que observo os preparativos e depois a cerimónia dou-me de caras com todo aquele festim de cowboys e índios. Aliás, gosto do western, mas não sou um obcecado, não tenho essa coisa do cinema de género, nem do género drama, se quiseres, ou o género documental. Não tenho isso. Gosto de cinema, isso é o que me importa. Foi então que percebi isso, que ia haver este desfile, e peguei no tema e trouxe-o ao expoente máximo, no sentido de que a própria forma como a câmara se desloca, a ideia dos duelos, etc. Fazer um pouco esse jogo com o género, e, ao mesmo tempo, perceber que, com esta coisa do género, há uma relação muito próxima — não, muito longínqua — das pessoas com o que é fazer cinema em Portugal. Ponto.

Nos anos 80 e 90, na televisão, os filmes que as pessoas viam eram sobretudo westerns, muitos filmes norte-americanos, aquele cinema que ainda não era o dos planos de dois segundos, e, automaticamente, usando as ferramentas desse género, eles sentiam que estavam a fazer cinema. Havia também um lado social no próprio ato de fazer o filme, como o ativismo de luta.

O próprio filme, a própria ideia de rodagem, de feitura do filme, conseguia, de certa forma, abstrair-nos daquilo que se estava a passar. Então, o filme tem esse lado social. Era quase como se estivéssemos a fazer um filme e a ouvir-nos, ao invés de irmos ao principal e filmarmos diretamente. Não queria tanto exagerar, e a coisa do género, esta coisa inteira, divertia as pessoas. Era uma maneira de conseguirmos trazer as pessoas para o coração do filme. No sentido de estarem a participarem nele, de ser também um filme deles.

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Paulo Carneiro

É uma forma de trazer o filme, não apenas para estas pessoas, mas para o público e igualmente direcioná-los para esta causa?

Gostava, mas é muito difícil saber isso. Mas era bom que fosse. Daí também a questão do musical, este surgiu porque percebemos - quer dizer, basta olhar para a história - que houve momentos-chave, como na madrugada de Abril, com músicas, cenas … Toda essa carga histórica mostra que, através do entretenimento, da música, também se pode fazer política.

Sim, sim. Aliás, o Rui Simões diz algo como: “Todo o cinema é político, e o cinema de entretenimento também é político

Pois, não sei se concordo totalmente, talvez daqui a 30 anos, quem sabe.

Mas sobre esse ativismo, esse lado de luta… há um certo zeitgeist no filme. Primeiro, porque estreia um dia antes do 25 de Abril. Foi uma data escolhida por ti?

Sim, havia outras datas possíveis, mas acho que a simbologia da data tem a ver com a proposta do filme. Fica ali bem, faz sentido.

Também senti isso. No “Via Norte”, no último plano em frente ao quartel da Pontinha, já havia uma porta aberta para toda essa simbologia. E por outro lado, o filme surge num bom timing — hoje fala-se imenso sobre as tarifas, a comercialização, a mineração na Europa e na América, especialmente com todo aquele clima político nos Estados Unidos. Questões ambientais, e o teu filme mexe com essa nova água.

Sim. Acho que é um filme que, como disse outro dia, quer tirar-nos da impotência política. Mas acima de tudo, não é um filme de números, de dados, nem sequer explicita qual é a dimensão das ambições da empresa. Isso foi intencional. O que me importava era esta ideia de que, sozinhos, não contamos. Se não houver um sentido de grupo, de comunidade, não se tem força. Estamos sempre a lutar contra algo invisível. Se formos só indivíduos, ainda somos mais transparentes. A ideia de comunidade pode tirar-nos dessa transparência. Porque, além disso, estamos sempre a lutar contra inimigos invisíveis.

Sim, é um pouco essa questão do ativismo nos dias de hoje.

Claro. Mas o filme quer mesmo passar essa mensagem: a importância da união. Acho que esse é o ativismo essencial e nem sei se tem de ser sempre uma luta ecológica.

Era isso que queria perguntar: se a luta destas pessoas é pela ecologia ou, antes, pela preservação do seu estilo de vida e do lugar onde vivem?

Acho que é pelas duas coisas. O filme tenta inspirar várias leituras. Também há uma luta pelo cinema. Em certos momentos, queria mesmo passar isso. Como naquele último plano, com o trevo e o som — pensar na relação entre o som diegético e não diegético, e como o fora de campo pode acrescentar significado. Isso acompanhado por um gesto muito austero. O plano dura uns três minutos... queria que o filme dissesse: “Isto também pode ser cinema.” Uma imposição de uma forma de filmar. Que não tenhamos de estar todos formatados. É também uma luta pelo cinema, pela sala de cinema, pela sua forma. Não quero afastar o público de ver filmes na televisão, claro, mas faço filmes para passarem no cinema. E o filme também quer ser uma arma de luta nesse sentido.

Mas voltando, sim, é uma luta ecológica, na medida em que se tenta defender um estilo de vida. Aquele estilo de vida, naquele lugar. Mas é também uma luta pelo cinema, e acho que isso pode inspirar outras lutas. Mostrei o filme noutros contextos, a pessoas confrontadas com projetos que, embora diferentes, também tocam questões ambientais — como a poluição sonora, por exemplo. O que quero dizer é: sozinhos, contamos pouco. E o filme repete isso muitas vezes: “Estávamos sozinhos, apanharam-nos pelas costas...” Temos de nos organizar. Como aquela cena em que se vêem as carrinhas e o tipo lá em cima desce e forma-se a aldeia: as pessoas começam a falar, a organizar-se. É essa ideia de que precisamos estar juntos, e isso também serve para os cineastas.

Estamos cada vez mais sozinhos, e parece que, em vez de nos ajudarmos uns aos outros, andamos a puxar uns para baixo.

Sobre essa questão do “inimigo invisível”, até porque recusas filmar o “inimigo”, digamos assim, deste povoado. Temos aquela carrinha branca, obviamente… mas não passa disso. Porquê esta decisão?

Não estava interessado nele, apenas nas pessoas que o ‘combatiam’, como também queria transmitir algo, por exemplo, podes estar descontente com certas políticas culturais, mas tu nunca chegas ao Ministro da Cultura.

Exato. Ou seja, há uma sensação de impotência.

Exatamente, uma impotência real. Estamos constantemente a ser confrontados com essa impotência, com a impossibilidade de ver, de tocar o inimigo. “Inimigo” no sentido das pessoas que estão sempre a impor decisões. Não são auto-imposições, são imposições externas. É essa impotência constante que acho que o filme quer mostrar. Muita gente não entende isso. Ficam frustrados por não “verem” o vilão. Mas essa é precisamente a proposta do filme. Poderia filmar a Savannah, claro. O Frederico, por exemplo, não filma os tipos a abrir buracos. Eu também não filmo isso. Não me interessa. O que me interessava era mostrar como é que as pessoas vivem com isso.

Para referência, estás a falar do Frederico Lobo?

Sim, mas atenção, o filme dele [“Quando a Terra Foge”] é outra coisa. 

Voltando à questão da impotência — e agora passando também para o cinema como tema — deixa-me perguntar-te isto, só para esclarecer: este teu filme não foi apoiado pelo ICA?

Não, não.

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Era só isso que queria confirmar. Porque falas disto também como sendo um filme sobre cinema e quando trazes à luz estes temas da impotência, isso não é também uma impotência enquanto cineasta?

Epá, tem sido. Tem sido muito difícil. Não sei bem o que dizer mais... mas tem sido mesmo difícil. Não sei se é inglório, mas sim, difícil. É um problema geral em Portugal. Quer dizer, são três filmes estreados em sala [dia 24 estreia em sala além de “Savana e a Montanha”, “O Palácio de Cidadãos” de Rui Pires e “Camarada Cunhal” de Sérgio Graciano], um percurso longo, muitos projetos cuidados… Mas no fundo, não há muito mais que possa fazer. Só posso continuar a fazer filmes.

E falando nisso, do “só posso continuar a fazer filmes”, como vai esse projeto de detectives em Cabo Verde?

Está quase pronto... ou mais ou menos pronto. Considera-se.

A minha parte está feita, agora é tentar perceber como é que vai ser. É tentar perceber onde é que o filme pode estrear... sei lá, seguir o processo normal. Mas as coisas estão cada vez mais difíceis. Em tudo. O cinema está a transformar-se noutra coisa. Quando em 1993 … foi aí que passou o “Vale Abraão” [de Manoel de Oliveira], não foi?

Sim, correcto, em ‘93.

Naquela altura, as pessoas iam ao “Vale Abrãao” e achavam aquilo uma obra tremenda. Hoje em dia, ninguém aguenta mais um plano acima dos 15 segundos. É complicado. Ou seja, já não estás a trabalhar numa coisa complexa. Está mesmo difícil. Concordo que o cinema se democratize — mas não é essa a questão. É cada vez mais difícil porque vivemos nesta cultura digital, de toque, de estímulo rápido, dos 5 segundos. Claro que também temos de nos adaptar. Hoje em dia, as redes sociais influenciam muito a produção dos filmes, e nós acabamos por nos adaptar. Mas esta cultura digital, em que estamos constantemente a ser bombardeados com imagens, com som, com essa facilidade toda, está a fazer com que os jovens, que ainda são um dos grandes públicos do cinema, tenham cada vez menos interesse em ir à sala. Quando fazes cinema para sala, começas a perceber que tudo se está a afunilar.

Tenho notado isso cada vez mais. Até estudantes de cinema me dizem que já não vão ao cinema.

Pois. Tens pessoal que anda aí em cursos de cinema e que não põe os pés numa sala. Como é que é possível? Mas o problema é deles. Eles é que perdem. Porque ver um filme assim, numa sala, é completamente diferente. É outra coisa. 

Para trazermos aquele tema recorrente das nossas conversas: o “cinema de rua”. Como disseste uma vez, o cinema com “sangue na guelra”. Porque quando se fala de “cinema de rua”, pensa-se logo numa abordagem estética muito concreta — o cinema espontâneo, do momento, uma coisa quase documental, quase crua. Mas como disseste e bem, ninguém hoje aguenta um plano de sete minutos, e ao ver os teus filmes, especialmente este, algo que me saltou à vista no visionamento foi: “ele sabe onde pôr o tripé”. Ele sabe quando e onde deve estabilizar uma câmara. Ou seja, há uma certa escola, uma certa “old school” na tua forma de filmar — de pensar as imagens — mas, ao mesmo tempo, consegues ser moderno, encaixar nesta vaga do cinema mais espontâneo e realista, talvez muito marcado pelo digital.

Foi bonito ter lido a entrevista entre o André Gil Mata e o Vasco Câmara — e ele [Gil Mata] tem toda a razão quando diz: talvez se não fosse o Oliveira, nós não estivéssemos aqui a fazer filmes para cinema. Há uma herança portuguesa, mas não só, também uma certa seriedade no ato de fazer cinema. E é essa seriedade que respeito muito — na ideia de filmar, no olhar para o ato de filmar. Isso também passa para a forma como filmo.

Mas ao mesmo tempo, o filme se liberta disso. Não porque queira necessariamente libertar-se, mas porque acompanha a minha forma de estar, a minha maneira de trabalhar com as pessoas. Essa forma precisava desse lado mais ... espontâneo. Não no sentido de “documentário”, mas espontâneo no sentido de leveza, de mobilidade da câmara, de poder adaptar-se às circunstâncias. Porque muitas das pessoas tinham o tempo contado e quando há pouco tempo, tens de inventar vários planos dentro de um único plano, e aí, a câmara tem de ser mais “enxuta”, no sentido de se poder mover, de acompanhar mais ações dentro do mesmo enquadramento.

Sim, e acho que o filme distingue-se nesse aspeto dos teus anteriores, precisamente por esse movimento — e também por ir mais para o lado da ficção.

Sim, e por trabalhar com animais, por exemplo, que não se controlam. Isso também foi importante para mim. Sabia que podia usar zooms, criar vários enquadramentos, mas desta vez usei mais o movimento da própria câmara.

E isso ajuda, porque os animais não se coreografam. Nós não tínhamos treinadores, nem me interessava ter. Não é isso que procuro. A câmara, nesse processo, acaba por se libertar de uma certa “muleta”, que é filmar tudo muito fixo. Claro que ainda há planos fixos, muitos até, mas há também esse movimento. É um desafio.

É isso que me leva a fazer filmes — desafiar-me. Não só na narrativa, mas também na forma e nas fórmulas. Tento sair daquilo que tenho vindo a fazer. Cada filme é um desafio e cada território obriga a encontrar uma nova fórmula para filmar. Porque os filmes são sobre os territórios.

Sobre os territórios, exatamente. Parece-me uma ideia muito Raul Ruiz.

Sim, os filmes são todos sobre o lugar. Há uma ligação muito forte ao território. Isso, para mim, é fundamental. A câmara também tem de respeitar isso. Tem de se adaptar.

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E agora, à terceira longa-metragem... já te consegues ver enquanto cineasta? Que tipo de cineasta és tu?

Não sei se isso quer dizer muito. “Que tipo de cineasta”? Sou um tipo com duas pernas. [risos] Sei lá, faço os meus filmes. É para isso que estou aqui.

O que é que é “ser cineasta”? Gostei dessa pergunta.

Será que interessa esse título? Ser cineasta? Não sei... É tudo tão frágil. Continua a ser frágil. É difícil. É como tu, que escreves — sentes isso na pele também. Tudo é tão precário e pensar nessa ideia de cineasta enquanto figura... 

O mais importante é continuar a trabalhar. Fazer filmes. Porque aquela ideia da “obra do artista” está a desaparecer, pelo menos em Portugal. Acho que estamos a ir por esse caminho. Cada vez mais. O artista já não é o “autor”, é um fazedor. Alguém que tenta dominar os meios, que são sempre escassos.

É esse cinema que tem sobrevivido: o da reinvenção. Procurar outras formas, outras portas, mesmo que ‘pequeninas’ e mais arcaicas. Se se quer filmar com frequência, já nem interessa tanto filmar “bem” — interessa filmar com urgência. Com sentido. Ter algo a dizer. Não andar à procura de histórias para contar, mas sim ter mesmo algo para dizer.

Paul Harrill: "a espiritualidade que mais me atrai é aquela que está enraizada na simplicidade."

Hugo Gomes, 20.04.25

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Paul Harrill / Foto.: Fundação Luso-Americana

Paul Harrill já se encontrava há alguns dias em Lisboa, ministrara uma masterclass sobre “cinema regional” e apresentara uma sessão de um dos seus filmes na breve retrospectiva do festival “Outsiders”. Tínhamos combinado esta breve entrevista, e foi no Cinema São Jorge, ao abrigo da chuva, que nos introduzimos por iniciativa própria “Prazer, Hugo” … “Paul”, seguido por um aperto de mão. Enquanto aguardávamos pelo responsável do evento, na esperança de nos ser atribuído… quem sabe, um espaço mais “sossegado”, que pudéssemos conversar … deu-se um breve chat de tempo (e que temporal!).

Percorremos verbalmente pela precariedade do cinema. De um lado, Paul referiu que, não fossem as aulas que leciona, não conseguiria viver apenas do seu cinema e a partir daí, mergulhamos numa discussão hipotética: de qual seria o mais resiliente dos cinemas, o independente americano ou o português? O nosso venceu de “forma magnífica” o debate, mas é em relação à cinematografia portuguesa que o realizador americano se acende no que conhece — Pedro Costa. A conversa se alongaria mais, até que, por fim, alguém, aliás “o ‘alguém’ que aguardávamos”, se aproxima de nós, acena e aponta para o piso de cima. Decidimos então levar este diálogo para a cafeteria-bar do São Jorge.

Não achas que está muito barulho aqui?”, pergunta Paul, algo alarmado. “Garanto-te que já fiz entrevistas em sítios bem mais barulhentos. Este não é, certamente, o primeiro nem será o último. Mas confio no meu gravador.” Instalámo-nos na mesa mais afastada do balcão e da esplanada — inactiva pela precipitação — e carrego no play do captador de voz. Arranca assim a breve conversa com e sobre Paul Harrill, os seus filmes, o seu cinema regional e, mais do que isso, o cinema adulto!

Queria começar pela masterclass. Não te vou pedir um resumo completo, mas gostava que falasses um pouco sobre o que foi a assunto nela, as tuas intenções com ela. E já agora, que também me desses uma definição de cinema regional. O que é, para ti, o verdadeiro “cinema regional”?

Na forma mais simples possível, diria que o “cinema regional" são filmes feitos por realizadores que vivem fora de Nova Iorque e Los Angeles, e em que a história é moldada por um forte sentido de lugar. E os realizadores, por viverem nesses locais, têm uma relação íntima com o sítio, e isso influencia diretamente a forma como contam a história, portanto, é uma espécie de cinema “de fora”.

Nos Estados Unidos, este tipo de cinema é muitas vezes difícil de produzir, por várias razões, e uma delas é que os realizadores, por não estarem ligados diretamente à indústria, têm mais obstáculos. Esta seria uma definição curta, e é disso que falei na masterclass — desse percurso no cinema americano, referir alguns nomes importantes e falar sobre os desafios que enfrentamos ao tentar fazer filmes fora do sistema, especialmente fora o domínio nova-iorquino e L.A. No fim, partilho também algumas notas e reflexões pessoais sobre trabalhar desta maneira.

Queria pegar que havias afirmado numa noutra entrevista — o Carlos [Nogueira, programador da Outsiders] mencionou isso na tua biografia. Disseste que fazes cinema “para adultos”, mas que não recorres a elementos normalmente associados a esse rótulo, como a violência, o sexo ou a nudez. Queria voltar a essa ideia: o que é, para ti, cinema verdadeiramente adulto?

Bem, acho que isso começou com uma entrevista que me fizeram — penso que foi o C. Mason Wells, numa conversa para a Film Comment. Acho que foi ele que disse que eu fazia filmes para adultos. Não sei se alguma vez disse isso assim, diretamente, mas entendo o que ele quis dizer.

Aquilo que tento é fazer filmes para pessoas que procuram uma experiência emocional, mas que também sejam levadas a pensar sobre o objeto-fílmico depois de o verem. Isso até pode parecer uma ideia simples, mas hoje em dia talvez já não seja assim tão comum, acima de tudo, pretendo que o espectador pense na sua própria vida depois do visionamento, em relação à história que acabou de acompanhar. Talvez até tenha uma experiência mais contemplativa … sei que essa palavra assusta algumas pessoas [risos] … mas é exatamente isso que procuro. E, não apenas sobre pensamento e reflexão, mas preciso que as pessoas tenham uma reação emocional ao que veem.

Quanto à ideia de “ser para adultos”, não acho que tenha necessariamente a ver com a idade, talvez sim, com um certo espírito que nos remete para uma geração anterior de cinema. Nos Estados Unidos, as obras da década de 70 — tu sabes, aqueles que abordavam temas mais maduros — sempre me marcaram muito. Tal como muitos filmes internacionais também me inspiram nessa jornada de “cinema adulto”.

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"Something, Anything" (2014)

Faço esta pergunta porque tenho uma certa fascinação e, ao mesmo tempo, alguma preocupação com o chamado “público adulto”. O que é, afinal, o “público adulto”? Há uns meses, estive a ler um artigo na “The Economist”...

No “The Economist”?

Sim. O artigo dizia que a nossa geração — os novos adultos — são, no fundo, muito infantis, porque estão e sempre estiveram “contaminados” por vários elementos que os impediram de “crescer” emocionalmente. E um desses elementos, segundo o artigo, é a dominância da cultura pop. Dizem que estas pessoas já não conseguem ver um filme “adulto” — no sentido em que tu falavas há pouco — porque simplesmente não se ligam a esse tipo de histórias, necessitam de outros estímulos e escapismos. A nostalgia é um desses factores que os aprisiona, por exemplo. Fico muito curioso: o que é, hoje em dia, o tal público adulto?

Essa é mesmo uma boa pergunta! Tenho alguma hesitação em fazer generalizações sobre diferentes faixas etárias: sobre se estão mais ou menos desenvolvidas, ou não. Não acho justo fazer generalizações sobre uma geração inteira, apenas que é possível que as gerações mais novas tenham tido, por vários motivos, menos experiências “adultas”. Algumas dessas razões são culturais. Outras têm a ver, por exemplo, com o facto de terem chegado à idade adulta durante a pandemia, ou com questões económicas — como não conseguirem comprar uma casa, ou até pagar uma renda, e por isso viverem mais tempo em casa dos pais. 

Há vários factores que moldam isto, e não acho justo culpar os jovens por não terem alcançado certos “marcos” daquilo que tradicionalmente se entende como vida adulta. Falo por mim: quando era miúdo, adorava os filmes do “Star Wars”, mas, com o tempo, à medida que comecei a fazer cinema e a ver mais filmes, comecei a interessar-me por outros tipos de histórias. É quase como aquela frase da Bíblia, em que São Paulo diz: “Quando era criança, falava como criança, mas depois deixei as coisas de criança.” Fui perdendo o interesse pelo “Star Wars”, embora continue a ter um carinho especial pelos primeiros filmes — porque foram eles que me despertaram o entusiasmo pelo cinema. Cresci com eles.

O que sei é que as histórias que conto provavelmente já são, à partida, para um público mais pequeno.

Queria agora ir aos teus dois filmes, mas com mais foco no “Something, Anything” (2014), porque a questão económica é um elemento muito importante no percurso da Peggy (Ashley Shelton).

Sim, claramente …

Ela embarca numa jornada existencial à procura de respostas - o filme não as dá, o que é uma coisa boa - mas a primeira decisão que toma é deixar de depender do factor económico. Ou seja, escolhe por trabalhar numa biblioteca. Queria começar por aí porque, apesar de não ser uma experiência “radical”, é uma decisão muito classe média e acho que um dos temas de que o cinema adulto deveria abordar é, precisamente, sobre as classes sociais.

Concordo!

Podemos considerar os teus dois filmes como políticos, de certa forma?

Sim e devemos. O “Something, Anything” é, nesse sentido, mais explícito do que o “Light from Light”, mas penso que os dois abordam temas políticos. 

No caso das questões económicas em “Something, Anything”, vemos essa transformação da Peggy — que passa a chamar-se Margaret — e que entende que, para viver de forma ética, tem de mudar a sua forma de viver, economicamente falando. Há uma ligação clara entre dinheiro e ética, e isso é, sem dúvida, um tema muito adulto. Quando começas a trabalhar, tens ideais... e esses acabam por ser postos à prova, ou comprometidos, ou então nem tens mais ideais e acabas por despertar para eles quase de forma epifânica. Acho que é mais isso que acontece com a Peggy: ela percebe que, para seguir a jornada espiritual em que se encontra, tem de simplificar a vida — a nível económico — e proteger-se de certos compromissos que o capitalismo, sobretudo, nos pressiona a aceitar.

Sim, respondeste — e levantaste ainda mais curiosidade [risos]. Porque usaste a palavra capitalismo ligada ao espiritual … aquilo que nos chega da América é precisamente essa ideia de que o capitalismo e a espiritualidade estão, de certa forma, “casados”. Claro que não é só nos Estados Unidos, mas a América é quase sempre o ponto de partida dessas tendências que depois se espalham pelo mundo e o que vemos é que a jornada espiritual acaba muitas vezes por ser comprometida por lógicas capitalistas — com esses coaches motivacionais, cursos espirituais pagos, até religiões que entram nesse jogo político-capitalista.

Sim… mas confesso que tenho alguma hesitação em falar sobre esse tema, porque sinto que é algo que preferi explorar através dos filmes. Consigo expressar essas ideias melhor em cinema do que em palavras, porque o que sinto em relação a isso é demasiado complexo para uma frase feita ou uma posição clara. E sim, são temas muito presentes nos filmes. O que posso dizer é que, pessoalmente, a espiritualidade que mais me atrai é aquela que está enraizada na simplicidade.

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"Something, Anything" (2014)

E quando falaste há pouco em cinema internacional, gosto mesmo dessa expressão. Prefiro dizer “cinema” do que “filmes”, sabes? E mesmo no “Something, Anything”, quando entramos naquele espaço religioso - o mosteiro - Senti algo ali... pode ser coisa minha, mas pareceu-me que havia uma espiritualidade muito próxima dos filmes do Robert Bresson.

Sim, é impossível falar de cinema espiritual sem, a certa altura, falar do Bresson [risos]. Ele é um mestre e é um dos meus realizadores preferidos de sempre. Mas, nesse mesmo espírito, diria também que adoro o trabalho do Carl Dreyer e do Roberto Rossellini. Há muitos cineastas internacionais que, não querendo comparar-me a eles, me inspiram.

Não é aquela inspiração direta, como, por exemplo, o Paul Schrader que vai buscar referências ao “Pickpocket” vezes sem conta nos seus filmes, mas é uma inspiração no sentido de que são realizadores que viam o cinema como um espaço para explorar estas questões e foi ao descobrir esses autores, quando comecei a fazer filmes, que senti que também podia explorar esses caminhos.

Falando em Schrader, já leste o livro …

Sim, o “Transcendental Style”…

Exatamente. Bresson, Dreyer e Ozu …

Adoro o Ozu também. É incrível.

Agora queria mudar um pouco de espírito e falar sobre o “Light from Light” (2019).

Quero começar com uma piada que te contei antes desta conversa — alguém recomendou-me o filme dizendo que era uma história de fantasmas.

Fui vê-lo e… era algo completamente diferente do que estava à espera, mas, para mim, acabou por ser uma experiência — adoro quando um filme trai as minhas expectativas e me leva para um outro caminho. Por isso pergunto-te diretamente: como surgiu a ideia para o “Light from Light" e a utilização desses elementos sobrenaturais? Porque, ao mesmo tempo, é um filme muito seco, diria até, muito terreno.

Terreno … gosto dessa expressão! Olha, para mim, a inspiração para um filme nunca vem de um único lugar. Vem de vários sítios. Já usei esta metáfora antes: é como um pássaro a construir o ninho. Vai juntando raminhos de vários lados e isso acaba por formar a ideia.

No meu caso, estava a passar por um período de luto e perda pessoal e, nessa altura, ouvi uma entrevista na rádio. Numa estação AM daquelas de baixa frequência nos EUA. Aquelas em que só se ouve talk radio ou coisas muito locais, quase universitárias ou amadoras…

Uma “rádio pirata”?

Não tanto, era oficial, mas com um alcance muito limitado.

Então uma rádio regional.

Exatamente! Rádio regional, é isso mesmo. Vês não só o cinema que tem direito de ser regional. [risos]

Estava a conduzir numa autoestrada numa zona rural da Virgínia e, durante uns cinco minutos em que apanhei sinal, ouvi uma mulher a falar sobre o seu trabalho como investigadora paranormal. Fiquei mesmo intrigado com aquilo. Gostei da ideia de fazer um filme muito… como é que disseste?

Terreno?

Sim! Muito terreno. Ou melhor, muito enraizado na realidade. Mas gosto da tua palavra também.

Então pensei: “E se contássemos uma história muito assente na realidade, mas com personagens que estão a lidar com algo que pode ou não ser um fenómeno sobrenatural?” Sem partir do princípio que os fantasmas existem ou não existem. Simplesmente explorar as personagens através dessa possibilidade. E, na verdade, muitas das nossas perguntas sobre fantasmas podem funcionar como metáforas para perguntas mais profundas, espirituais. E isso me interessava bastante.

Outra surpresa  no filme, foi a maneira como apresentas a investigadora paranormal (interpretada por Marin Ireland). Completamente diferente do retrato habitual do arquétipo preferido pelos grandes estúdios. Vou fazer uma comparação tola… mas por exemplo, para com os filmes do “The Conjuring”.

[Risos] Sim…

Light from Light (2019)

Porque nesses filmes, a investigadora paranormal é toda ela certezas. Ela pode não ter as respostas, mas acredita que elas existem. Em “Light from Light”, a tua personagem investiga, mas está sempre a duvidar — até de si própria. Ela duvida, mesmo quando faz perguntas, e isso liga com o “Something, Anything”, porque nenhum deles possui uma resposta definitiva de algo que seja, nem da própria crença dos protagonistas. Tu colocas os temas no terreno do espectador.

Exactamente. Isso liga-se muito bem com a ideia de cinema adulto — um cinema que levanta questões e confia no espectador para encontrar as suas próprias respostas. Claro que também tenho as minhas ideias e opiniões sobre estes temas, mas não quero impô-las.

Há uma certa arrogância nisso, e evito a todo o custo. Prefiro confiar que o público se vai encontrar a meio caminho com o filme.

E gostei da tua comparação com o “Conjuring”, porque  gosto desse franchise, mas queria contar uma história diferente. Aliás, um amigo meu, também realizador e fã de filmes de terror, leu o argumento do “Light from Light" e ligou-me furioso. Disse-me: “Tu desperdiçaste todas as oportunidades para fazer disto um filme de terror!” E eu respondi: “Ótimo. Era mesmo isso que realmente queria.

[Risos] Isto está a tornar-se uma ótima conversa, mas estão a acenar-me ali do lado porque tens outra entrevista à espera. Mas quando estavas a falar, lembrei-me de uma frase famosa do Bresson, julgo que já a ouviste ou leste-a: “Primeiro, sente-se um filme. Depois, compreende-se.

Sim… adoro essa citação. É mesmo isso.

Bem, até uma próxima talvez …

Absolutamente, gostaria de continuar esta conversa numa outra ocasião …

Falando a uma só voz(es): Zsófi Paczolay e Dorian Rivière, realizadores de "Estou Aqui"

Hugo Gomes, 19.04.25

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"Estou Aqui", o título, ou talvez o manifesto de quem deseja fazer-se ouvir perante um ruído social, diante da sua condição, da sua sociedade, da sua própria intenção. Em 2020, no auge do confinamento provocado pela pandemia de COVID-19, a Câmara Municipal de Lisboa decide activar o maior pavilhão gimnodesportivo da cidade, o Casal Vistoso, para albergar temporariamente desde pessoas em situação de sem-abrigo até outros “seres” em condição supra-precária. No seio dessas operações de reabilitação, dois alunos de documentário partem em voluntariado, num gesto que viria a culminar neste filme: um objecto que procura, nestes corpos (e em tantas das suas não-presenças), algo habitável. Algo que se expanda para lá do mero acto de solidariedade.

Depois de Tiago Hespanha — produtor, realizador e tutor —, é agora a vez da dupla de realizadores, a húngara Zsófi Paczolay e o francês Dorian Rivière, aceitar o convite do Cinematograficamente Falando... para falar sobre este projecto, como também o desafio de responderem a uma só voz, tal como haviam feito em "Estou Aqui".

O filme documenta um abrigo que, apesar das dificuldades, conseguiu estabelecer um raro sentido de comunidade no panorama social português. Como foi lidar com a transitoriedade deste projeto, sabendo que podia desaparecer a qualquer momento?

É muito bonito da tua parte destacares essa qualidade do projeto, é algo que só percebemos verdadeiramente mais tarde, depois de terminarmos as filmagens, quando os coordenadores originais tiveram de sair e o abrigo foi entregue a outras organizações. Com o tempo, o projeto foi perdendo a sua essência, até quase desaparecer por completo da cidade. Na altura, não tínhamos plena noção de quão precioso e fugaz era tudo aquilo.

Quando voltámos, um ano depois, para visitar a versão "permanente" do abrigo, que já tinha mudado imenso, sentimos que o espírito era outro. A emergência provocada pela pandemia abriu subitamente um espaço, na cidade e na sociedade, onde se reuniram condições muito específicas que tornaram este lugar único possível. Era uma sociedade em choque com a súbita e profunda disrupção da pandemia, uma autarquia que respondeu com rapidez, e uma coordenadora visionária e multifacetada, a Teresa Bispo, com a sua equipa extraordinária, que conseguiu pôr tudo a funcionar com uma rapidez e um cuidado incríveis.

E também havia o estado emocional das pessoas em situação de sem-abrigo na altura — pessoas que, em circunstâncias normais, talvez não tivessem optado por entrar num abrigo, mas que, pelo medo e pela incerteza, decidiram arriscar. O facto de o abrigo estar instalado num pavilhão desportivo, onde todos partilhavam um espaço comum, também teve um impacto. Aquilo parecia um acampamento: não havia espaços privados, e todos tinham de colaborar nas tarefas diárias. Isso gerou um sentido de comunidade muito forte. As pessoas criaram laços profundos entre si.

Esse sentimento não se transportou para o abrigo permanente. Em parte porque o espaço já não era tão interligado, e os rituais do dia-a-dia eram diferentes. Olhando para trás, percebemos que foi mesmo um momento muito especial nas nossas vidas.

“Estou Aqui” observa a realidade da população em situação de sem-abrigo num contexto de pandemia, mas a crise da habitação e a marginalização são problemas que já existiam muito antes da COVID-19. Sentiram que este abrigo foi um verdadeiro experimento com potencial para soluções futuras, ou apenas um alívio temporário?

Sentimos que foi mais do que um alívio temporário, foi um ponto de partida especial, que mostrou o potencial para soluções de longo prazo. Não só no que diz respeito a futuros abrigos, mas também a nível social, enquanto comunidade. O que tornou este abrigo tão poderoso foi a forma como os coordenadores o geriram.

Para nós, o valor mais importante deste projeto é que ele trouxe soluções reais, mesmo para os problemas mais complexos. Mostrou que, com vontade e ação por parte de indivíduos, num contexto de comunidade inclusiva e horizontal, é possível fazer a diferença. Durante a pandemia, todos estávamos com medo, numa enorme incerteza, e por causa disso muitas barreiras habituais foram ultrapassadas. A cidade teve de responder a um problema que, em circunstâncias normais, costuma evitar ou não consegue enfrentar devidamente.

De repente, surgiu um espaço. Havia algum (embora limitado) financiamento - vindo do município, de organizações, de empresas grandes e pequenas - e tudo isso acabou nas mãos de trabalhadores da Câmara Municipal de Lisboa que tinham vontade genuína de ajudar e uma visão clara do que era preciso fazer. Um dos pilares dessa visão foi a estrutura horizontal do projeto, um modelo não hierárquico, onde as responsabilidades eram partilhadas e todas as vozes contavam. Havia uma transparência real entre a equipa e os residentes: todos comiam a mesma comida, todos eram bem-vindos, independentemente do passado ou da situação de vida. Essa abordagem criou confiança, e com essa confiança, abriu-se uma dimensão rara.

Uma dimensão de cuidado, onde o estar junto fazia sentido, onde a cura era possível, e onde a solidariedade e a curiosidade podiam crescer.

Zsófi Paczolay e Dorian Rivière

O documentário acompanha Tiago e Plácido como figuras centrais desta comunidade. O que vos atraiu especificamente nas histórias deles, e até que ponto sentiram o peso da responsabilidade em retratá-los de forma justa?

Inicialmente, imaginávamos o filme como um retrato do abrigo em si, como funcionava, e como seria a experiência de alguém desde a chegada até à saída. Mas desde cedo percebemos que seguir alguém em tempo real seria demasiado intrusivo. As pessoas estavam a atravessar momentos muito íntimos e delicados. Quando apresentámos a ideia do filme à comunidade, o Tiago e o Plácido foram dos primeiros a aproximar-se de nós, mostraram abertura e curiosidade, e ajudaram-nos a mover-nos com cuidado naquele espaço. O que nos atraiu verdadeiramente foi a forma como participavam ativamente na gestão do abrigo.

O Tiago estava sempre disponível para assumir responsabilidades, especialmente com reparações e tarefas técnicas. Ele partilhava connosco o que ia vivendo, com uma abertura que era rara. A história dele tocou-nos muito, porque vinha de muitos anos a viver na rua, e agora víamos nele uma esperança real nesta nova estrutura, enquanto começava a fazer planos para o futuro. A forma como refletia sobre a sua própria vida era rica e generosa, o que nos fez querer acompanhá-lo mais de perto. O Plácido, por outro lado, revelou-se um verdadeiro performer, cheio de energia, sempre o primeiro a ajudar, a limpar, a reorganizar o espaço. Era muito divertido, adorava brincar connosco e com os outros, mas também conseguia mergulhar fundo em si próprio e contar histórias da sua vida que nos impressionaram profundamente. Tinha uma força e um orgulho que nos tocaram desde o início.

À medida que ficávamos mais tempo e continuávamos a filmar, eles foram-se tornando naturalmente as personagens principais do filme, a representar-se a si próprios, nos seus próprios termos. Com o aprofundar da relação, eles também se envolveram mais com o projeto do filme. Sentíamos todos que havia ali uma missão partilhada: deixar um registo daquele lugar e da sua experiência, independentemente do que viesse depois. O nosso processo foi sempre baseado na confiança. Íamos verificando com eles se queriam partilhar determinadas coisas, se se sentiam confortáveis com a nossa presença em certas situações. E à medida que a relação crescia, tornou-se também importante estar lá para apoiar, nos momentos mais difíceis. A generosidade deles acompanhou-nos em todo o processo e deu-nos força para assumir a responsabilidade de os retratar com o máximo de respeito e justiça.

Na fase de montagem, trabalhámos com a editora Joana Góis, cuja sensibilidade para histórias humanas foi essencial. Filmámos durante mais de seis meses, captando inúmeros elementos e pessoas que poderiam ter enriquecido ainda mais o retrato daquele espaço. Embora o foco principal tenha ficado no Tiago e no Plácido, também documentámos o trabalho da Teresa na coordenação do programa e aspetos únicos do abrigo — como a liderança transparente, as decisões participadas e os rituais coletivos do dia-a-dia.

Ao optar por centrar a narrativa neles, significou, infelizmente, deixar de fora muitos momentos e histórias valiosas de outros participantes. Essa dor diária durante a montagem foi necessária para manter a clareza da narrativa. A forma como o Tiago e o Plácido aparecem no filme — com dignidade e cuidado — deve-se, em grande parte, ao trabalho preciso e sensível da Joana. Chegar à versão final levou mais de um ano de montagem rigorosa.

A presença da câmara num espaço tão delicado poderia ter criado uma barreira entre os realizadores e as pessoas retratadas. Como foi o processo de construção de confiança e integração nesta comunidade?

Chegámos ao pavilhão desportivo do Casal Vistoso no final de abril de 2020, mesmo no início da pandemia, com a intenção de sermos voluntários. Queríamos conhecer e apoiar pessoas em Lisboa de forma direta e significativa. Desde o primeiro dia, ficámos profundamente tocados e inspirados por aquele lugar. Era algo que nunca tínhamos vivido antes. Partilhávamos refeições, histórias, gargalhadas, cigarros; ouvíamos, jogávamos, conversávamos, e sentíamos o pulsar de algo raro. Durante os dois primeiros meses, nem sequer pensávamos em filmar, parecia impensável apontar uma câmara a pessoas num momento tão vulnerável.

Mas, aos poucos — até porque estávamos a estudar cinema documental no programa DocNomads — a ideia começou a tomar forma. Quando a partilhámos com a Teresa, ela mostrou-se entusiasmada e encorajou-nos a apresentar a proposta à comunidade, durante um dos encontros regulares. Explicámos as nossas intenções, convidámos à colaboração, e deixámos claro que qualquer preocupação era bem-vinda e deveria ser partilhada.

A resposta foi profundamente comovente. Muitas pessoas expressaram que era importante serem vistas. A partir daí, o processo foi acontecendo de forma gradual. Uns dias continuávamos como voluntários, outros dias filmávamos. Com o tempo, passámos a fazer parte da “mobília” do lugar. Claro que, por vezes, chegavam pessoas novas que não sabiam quem éramos ou que não queriam ser filmadas, e isso foi sempre respeitado. Um desses momentos até acabou por entrar no filme, refletindo também as nossas próprias dúvidas sobre presença e percepção.

Foram situações delicadas, e mantivemo-nos sempre atentos, a fazer perguntas a nós próprios: Como honramos a confiança que nos foi dada? Como evitamos causar qualquer dano? E como podemos contar esta história de forma a respeitar todos os que fazem parte dela?

Apesar de toda a resiliência demonstrada pelos protagonistas, o filme também sugere uma certa inevitabilidade do fracasso institucional. Enquanto cineastas, qual foi o maior dilema ético: captar a esperança ou expor a negligência sistémica?

O nosso objetivo foi retratar a complexidade de uma situação onde a esperança e o fracasso coexistem. O ponto de partida foi, de facto, a sensação de falência sistémica — o subfinanciamento crónico dos programas sociais, a falta de uma política de habitação coordenada — realidades que nos rodeiam constantemente. Mas o que mais nos inspirou neste projeto foram os momentos de resistência e resiliência, tanto por parte das pessoas que viviam no abrigo como das que lá trabalhavam. É aí que reside algo poderoso. A negligência institucional pode estar sempre presente e continua a estar. Mas há sempre algo que podemos fazer. Podemos escolher como responder. Podemos influenciar quem nos rodeia.

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Foi exatamente isso que a Teresa e a Madalena fizeram, de forma extraordinária. O amor e a confiança que trouxeram moldaram profundamente o ambiente do abrigo. No fim de contas, talvez essa seja a ação mais significativa que se pode ter: levar cuidado a um sistema quebrado e mostrar o que ainda é possível dentro dele.

Mantendo o foco na ética, tendo consciência do poder que uma câmara de cinema carrega, houve preocupações ou reflexões específicas sobre como filmar estas pessoas em situação de sem-abrigo?

Como já referimos, os primeiros meses que passámos no abrigo foram dedicados ao voluntariado: servir cafés e refeições, conversar com as pessoas, simplesmente estar presentes. Quando, mais tarde, nos apresentámos como realizadores, alguns até brincaram: “Vocês deviam mesmo fazer um filme sobre este lugar.” Mas, nesse momento, a ideia de filmar ainda nos parecia contraditória. Estávamos muito conscientes da história, e do risco, da forma como pessoas em situações precárias foram tantas vezes retratadas: com pena, julgamento moral, ou por um olhar distante.

Sentimos que precisávamos de aprofundar a relação com o lugar antes de levantar uma câmara. Fomos muito inspirados pelo trabalho do realizador português Pedro Costa, especialmente pela sua relação prolongada com comunidades marginalizadas e pela sua sensibilidade às dinâmicas de poder na imagem. O filósofo Jacques Rancière escreveu sobre essa abordagem, destacando como Costa desafia a divisão tradicional entre quem fala e quem é observado. Em vez de reforçar hierarquias, ele cria espaço para que as pessoas se expressem nos seus próprios termos.

Esse entendimento moldou a nossa própria consciência: refletir constantemente sobre o nosso olhar, a nossa posição, e o que significa representar o outro. As nossas experiências anteriores em trabalho social e em projetos performativos em contextos diversos também contribuíram. São projetos que exigem uma presença prolongada e relações sustentadas, que não terminam com o fim da filmagem. Vimos as conexões que criámos ali como algo que ultrapassava o projeto, não queríamos que fossem relações extrativas ou temporárias.

Ao ouvirmos tantas histórias, fomos confrontados com o nosso próprio privilégio: a sorte de não sermos nós a viver ali naquele momento. E, logo no início, ao discutirmos a ideia do filme com a Teresa, ela mostrou entusiasmo, mas também nos alertou: “Há muitas histórias difíceis aqui, mas este filme não deve focar-se apenas nelas, deve mostrar o quotidiano e a possibilidade de mudança.” Essa frase teve um grande impacto e fez-nos deslocar o foco para o cuidado, a transformação, e a intenção, mais do que para a dor individual.

Um dos métodos que surgiu naturalmente foi tratar o filme como uma espécie de reencenação colaborativa. Começámos com cenas inspiradas em rotinas que observávamos, com pessoas como o Tiago e o Plácido a participarem ativamente. Expúnhamos as nossas ideias, eles propunham os melhores momentos para filmar, escolhiam o que queriam dizer. Por exemplo, uma das primeiras sequências que filmámos foi a “chegada” do Tiago ao centro. Ele recriou esse momento, preparando a mochila com um cobertor, como se tivesse acabado de chegar da rua. Foi tudo pensado em conjunto, com base nas suas memórias.

Filmámos também atividades que para eles tinham significado: arrumar, consertar coisas, manter o espaço, formas de mostrar que se importavam. Estas pequenas ações foram a base da nossa integração: não éramos observadores passivos, mas participantes num quotidiano que nos acolheu. Aos poucos, passámos a filmar momentos coletivos - refeições, conversas, jogos, reuniões de grupo - onde se revelava um forte sentido de ligação e agência.

Houve um momento particularmente tocante em que os residentes, sentados em círculo, davam feedback sobre o programa. Pessoas que tantas vezes foram privadas de voz estavam agora a moldar algo juntas. Decidimos não filmar momentos aleatórios da vida, nem situações de dor, nem planos voyeuristas. Escolhemos focar-nos em situações com um propósito claro, que mostrassem como funcionava a comunidade, o esforço diário para mantê-la viva, e como era o envolvimento de cada um. As decisões éticas que tomámos moldaram a própria forma do filme: o ritmo narrativo, o foco visual. Mesmo assim, a pergunta permanece: será que podemos realmente mostrar este filme? O que significa, para cada pessoa, aparecer nele? E que custos invisíveis poderão surgir (agora ou no futuro) por essa exposição?

Não há uma resposta definitiva ou segura. Nenhuma reflexão ética ou cuidado formal dissolve completamente a complexidade de representar alguém. Só podemos continuar presentes nesse desconforto, manter-nos responsáveis, e continuar a perguntar: o que significa filmar alguém?

Falando do modelo Housing First, existe uma perceção de que estas soluções "experimentais" têm pouco espaço numa Europa onde o mercado dita as regras. Sentem que este filme pode funcionar como um manifesto político por um modelo de habitação mais humano?

Seria maravilhoso se o filme pudesse servir como um manifesto político, e, na verdade, foi algo que procurámos conscientemente. Estruturámos a narrativa com o objetivo de desafiar a ortodoxia económica dominante que encara a habitação como uma mercadoria de mercado, em vez de um direito fundamental. Durante a pandemia, muitas rotinas e restrições do sistema capitalista foram temporariamente suspensas, e isso permitiu intervenções públicas que, em tempos normais, enfrentariam resistência burocrática ou ideológica.

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A filosofia do abrigo de Casal Vistoso aproximava-se bastante do modelo Housing First — que prioriza o acesso imediato à habitação, sem pré-condições, mesmo tendo surgido num contexto de emergência. O que esta experiência demonstrou, e o que esperamos que o filme articule com clareza, é que a falta de habitação não é uma inevitabilidade: é uma escolha política. Os recursos e o conhecimento para enfrentar o problema existem. Quando a Teresa e a sua equipa receberam um mínimo de recursos e alguma autonomia, criaram algo que funcionou. Isto mostra que o principal obstáculo não é prático, mas ideológico.

Queremos amplificar as vozes por detrás destes programas, porque o que elas estão a fazer comprova que soluções eficazes e humanas são possíveis, sobretudo num momento em que cada vez mais pessoas enfrentam dificuldades no acesso à habitação. O filme não documenta apenas um abrigo; documenta um sistema de valores alternativo que funcionou dentro dos limites da nossa ordem social atual.

O mais poderoso é a abordagem em si: oferecer ajuda real e concreta, que não se limita a um tecto. É também o acompanhamento, o cuidado contínuo, o reconhecimento da complexidade de cada pessoa: a saúde, o bem-estar mental, o sentido de pertença, a capacidade de trabalhar e de se sentir parte significativa de uma comunidade. São esses valores, essas práticas, que esperamos que o filme consiga trazer para o debate público como algo vivido, possível e merecedor de ser replicado. Uma alternativa concreta às abordagens individualistas e orientadas pelo mercado, que já provaram falhar perante a insegurança habitacional crescente na Europa.

O documentário adota uma estética observacional à la Wiseman, evitando intervenções diretas. No entanto, houve momentos em que sentiram a necessidade de intervir na realidade que estavam a filmar, ou mantiveram sempre uma postura estritamente documental?

Usámos diferentes abordagens durante as filmagens, incluindo reencenações e, de facto, métodos observacionais na sua maioria. Também houve muitos momentos em que conversávamos diretamente com o Tiago ou o Plácido, trocas que surgiram de forma natural e humana. Durante a edição, explorámos o uso de todos esses elementos, mas, eventualmente, percebemos que a linguagem observacional servia melhor o filme. Isso significou que tivemos de abrir mão de uma certa intimidade proporcionada pelas nossas conversas, mas, por outro lado, permitiu que o foco permanecesse no programa e nas trajetórias dos protagonistas, em vez de centrarmos a atenção em nós, enquanto cineastas. Pareceu-nos mais honesto dessa forma, permitindo que as suas ações e palavras falassem por si mesmas.

Num momento em que a crise habitacional afeta cada vez mais pessoas, vê "Estou Aqui" como um filme ligado a um momento específico, ou como uma representação atemporal de um problema estrutural que continuará a repetir-se?

Acreditamos que "Estou Aqui" capta um momento crucial que reflete uma tendência mais ampla nas nossas sociedades capitalistas modernas: o agravamento da crise habitacional e a crescente falta de resposta à situação dos sem-abrigo. A epidemia de COVID foi apenas um "acelerador", um momento de crise que trouxe à tona uma realidade subjacente que já vinha a piorar há anos. Estivemos no lugar certo, na altura certa, para testemunhar isso: uma forte vontade de encontrar respostas alternativas para a negligência sistémica, possibilidades de soluções conscientes e a longo prazo. 

Nos tempos que pareciam mais desesperançados, nasceu uma comunidade que propôs uma metodologia crescente e sustentável. Insistimos no termo "metodologia" porque o que aconteceu naquele lugar foi muito bem pensado e organizado ao longo de mais de um ano de existência; definitivamente não foi uma questão de sorte ou acaso. O programa Housing First fez parte de toda uma metodologia inovadora, apoiada e aprimorada pelo programa, que tentámos transmitir através do filme. Por exemplo, esse programa não foi adequadamente apoiado e financiado nos últimos anos, embora um relatório de 2016 da Comissão Europeia conclua que os resultados foram muito bem-sucedidos. Relatórios mais recentes continuam a apoiar o Housing First como uma solução significativa e sustentável. 

Desde que a iniciativa Casal Vistoso foi encerrada, em 2021, não foram fornecidas soluções comparáveis em Portugal. Tudo aponta para uma falta de transparência e vontade política em relação a este problema na Europa, e com as mudanças políticas e os tempos vindouros, a situação só tende a piorar.

Em relação aos novos projetos, irão continuar como dupla ou seguirão caminhos diferentes?

A pandemia foi um momento único para nós: estávamos a viver juntos em Lisboa, e essa experiência partilhada levou-nos naturalmente a fazer voluntariado e, eventualmente, a fazer este filme juntos. Hoje, vivemos em países diferentes e não temos nenhum projeto cinematográfico conjunto planeado no momento. Estamos a explorar os nossos próprios caminhos pessoais, a ver onde a vida nos levará a seguir.

"A câmara é sempre um instrumento de poder": uma conversa sobre a dignidade em "Estou Aqui" com Tiago Hespanha

Hugo Gomes, 11.04.25

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"Estou Aqui" (Zsófi Paczolay e Dorian Rivière, 2024)

Em 2020, com o primeiro confinamento devido ao COVID-19, que instaurou um clima de medo e inquietação, o maior pavilhão desportivo da cidade de Lisboa transformou-se num abrigo de emergência para sem-abrigos e outras situações de precariedades. No seio dessa “experiência” municipal, encontram-se dois alunos de documentário [Zsófi Paczolay e Dorian Rivière], que, pela sorte da ocasião, se convertem em realizadores. Decidem pegar numa câmara e registar um projeto solidário. O que captam é mais do que uma mera observação: há ali pessoas, e estas tornam-se o centro de criação e os desafios artísticos para estes jovens, ainda verdes na cadência do Cinema.

“Estou Aqui”, documentário celebrado na última edição do Doclisboa [Prémio Escola - Prémio ETIC para Melhor Filme da Competição Portuguesa], chega às salas de cinema com uma proposta humanista, mas também inquisitiva, em relação à natureza deste espaço, agora devolvido ao seu propósito original, e ao projeto, que, infelizmente, se reduz a uma ideia não-praticável.

Em conversa com o produtor Tiago Hespanha, também realizador da casa Terratreme, passeamos pelo pavilhão inexistente, numa discussão sobre criatividade, ética e humanização, com ainda espaço para coletividades.

Quero começar pelo facto do Tiago não ser realizador do filme, mas enquanto um dos fundadores da Terratreme possui um trabalho bastante próximo ao projeto, visto que a natureza da produtora é quase de colectivo. Podemos designar a Terratreme nestes termos, mais colectivo de realizadores do que produtora?

Na verdade, diria que somos uma produtora que nasce de um coletivo: ou seja, um coletivo de realizadores-produtores. Somos cinco integrantes fixos, aos quais se junta um coletivo mais amplo de realizadores com quem colaboramos frequentemente. No fundo, somos uma empresa de produção gerida por cinco, ou talvez doze, produtores.

Refiro-me a essa ideia de coletivo porque, em uma entrevista com a Susana Nobre, também produtora e realizadora, ela destacou bastante essa natureza da Terratreme. Ela mencionou que, por exemplo, um realizador pode colaborar brevemente em um projeto, depois trabalhar na montagem de outro, e assim se constrói uma espécie de comunidade cinematográfica. No entanto, este esclarecimento se dá pelo facto de o Tiago estar diretamente envolvido com o projeto [“Estou Aqui”], embora o seu nome não figure diretamente nos créditos de produção do filme.

Nós assinamos sempre os filmes em conjunto, como Terratreme e com os nossos nomes de produtores. O que acontece com frequência é que, devido ao grande número de nós e aos muitos filmes que produzimos, há sempre um dos sócios-produtores que está mais envolvido num filme ou num conjunto de filmes, mas não em todos, ou seja, eu não acompanho todos os projetos e filmes em detalhe. 

Este caso, em particular, não é inédito, mas é especial. Também dou aulas no mestrado internacional em Documentário, o DocNomads, que é uma parceria entre a Universidade Lusófona, a SZFE (de Budapeste, na Hungria) e a LUCA School of Arts, em Bruxelas. Este mestrado reúne alunos de todo o mundo e tem a duração de dois anos e foi nesse contexto que conheci a Zsófi [Paczolay] e, mais tarde, o Dorian [Rivière], alunos do mestrado em momentos diferentes. Este projeto nasceu nesse ambiente: começou como um trabalho de graduação da Zsófi, em 2020. Na fase final do programa, cada aluno tem um mentor, um professor que acompanha o seu projeto, e, neste caso, fui eu. Por isso, acompanhei este filme desde a sua génese.

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"Estou Aqui" (Zsófi Paczolay e Dorian Rivière, 2024)

Mas tendo conhecimento que este filme acontece em 2020 — um ano bastante sui generis, assim por dizer — também houve um certo timing para fazer este projeto. Ou seja, eles iam trabalhar a sua proposta de graduação em 2020, acontece a pandemia, dá-se as mudanças sócio-políticas que bem sabemos e sobretudo no nosso quotidiano, e com esse testemunho   “encontraram o filme”?

O que aconteceu foi o seguinte: a Zsófi chegou no final de fevereiro desse ano e, como todos os colegas, iniciou o seu projeto de graduação, começou a pesquisa e, poucas semanas depois, deu-se o confinamento. Todos os seus planos, que nesse momento ainda estavam numa fase muito inicial, caíram um pouco por terra, porque, de repente, todas as pessoas tiveram de ficar fechadas em casa. O Dorian, que ficou confinado com ela nesse momento, expressou-me a necessidade de sair de casa e encontrar as pessoas que, justamente, não tinham casa para se fechar. Havia aquele slogan propagado do "fique em casa", mas, depois, havia as pessoas que não a tinham. Diante dessa preocupação, falámos sobre isso intensamente. 

Na altura, uma amiga minha estava a fazer voluntariado no projeto do Casal Vistoso, no pavilhão desportivo, e falou-me sobre o projeto municipal. Então, propus a ideia: "Tenho conhecimento desta experiência, conheço pessoas que estão lá dentro e tenho contacto com elas." A Zsófi e o Dorian aceitaram e foram para o Casal Vistoso fazer voluntariado. Mas, naquela altura, ainda não havia qualquer ideia de filme.

Não havia ideia, mas havia uma certa observação.

Ela tinha que fazer um filme, mas todos os processos foram interrompidos, não é? Foi para o Casal Vistoso como voluntária e ao fim de duas a três semanas — não sei ao certo, mas foi relativamente rápido — falámos, perguntei-lhe como é que estava a ser o dia-a-dia ali, etc. E foi nessa mesma conversa que se começou a definir a ideia de propor ao projeto Casal Vistoso filmar e fazer um filme a partir daquela experiência. A proposta foi aceite, eles deixaram de ser voluntários e passaram a ir como realizadores.

Isto começou em março de 2020, e depois a Zsófi terminou o mestrado. Houve um ligeiro atraso justamente por causa do confinamento e em vez de acabarem em julho, acabaram em setembro, mas o projeto não acabou nessa altura. Eles continuaram a filmar já depois de ela ter acabado a graduação, mais tarde entendemos que aquele filme atravessava os limites temporais. Havia algumas características dos filmes de graduação: têm que ter uma determinada duração - não podem passar os 24 minutos - e são produzidos num determinado espaço de tempo. Este, pelas suas características, atravessava isso, então decidimos continuar a trabalhar juntos. Continuaram a filmar até início de 2021, quando o projeto saiu do Casal Vistoso. Tentaram filmar até ao final, mas acabaram mais a seguir.

A minha questão também com este filme — e com o que ele levanta — é o facto de aquilo ser um abrigo ou, vamos dizer, uma espécie de abrigo provisório para pessoas em condições de sem-tecto ou extremamente precárias. Há também uma questão, um debate ético: se vamos filmar estas pessoas e de que maneira vamos filmá-las, porque muitas delas, claro, nem querem ser filmadas. Isso levanta também um ponto — claro, não sei se é a melhor pessoa para responder, talvez os alunos — mas na Terratreme também têm um filme que se chama "A Morte de uma Cidade", do João Rosas, e nele recordo de uma frase: “a câmara é uma arma de poder”. Neste caso, sempre sentiu — orientando estes realizadores, que vamos já chamar de realizadores — houve essa questão de poder? Ou se houve uma forma de mediar o que se podia filmar e o que não se podia filmar, em honra da dignidade humana? 

A câmara é sempre um instrumento de poder. Em todas as situações, e não é nesta em particular. O que acontece nesta é que as pessoas que estavam à frente da câmara encontravam-se numa situação de maior fragilidade, porque estavam dependentes de uma estrutura para garantirem as suas necessidades básicas. Claro que essa foi uma questão durante todo o processo, desde logo como é que se entra, e por isso é que também fiz questão de explicar este processo, porque ele vem de uma experiência, de uma presença diária ali da Zsófy e do Dorian enquanto voluntários. Portanto, é aí — ainda antes de pensarem fazer um filme ali — que eles começam a relacionar-se com as pessoas, tanto as em situação de sem-abrigo que estavam ali a viver, como as pessoas da coordenação do projeto — porque isso depois é uma outra conversa que se pode ter, há muita gente a circular ali, há ali muita coisa a acontecer. Este estabelecer de laços, conhecer as pessoas, ser reconhecido, é fundamental para o que vem a seguir. Quando há uma mudança de estatuto da relação deles, e eles passam a vir com a câmara, é claro que tudo muda.

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"A Morte de uma Cidade" (João Rosas, 2022)

Há outro instrumento de mediação dessa relação, que é a câmara, e, portanto, há que reafirmar os termos dessa relação com cada pessoa. Cada pessoa filmada tem que autorizar a filmagem, mas isto é feito de uma forma muito mais orgânica, porque já havia um conhecimento mútuo. Portanto, é mais fácil, os limites  e as intenções já são conhecidos de alguma forma. É mais fácil fazer essa gestão, porque é muita gente. Aliás, há uma cena no filme em que há uma pessoa que diz, em off, que foi filmada sem saber. Essa cena não está no filme por acaso. Está porque numa situação como aquela, como em qualquer situação, estar a fazer um “filme na rua”, nem sempre é possível ir perguntar às pessoas se podemos filmá-las ou não. Porque a pessoa passou ou apareceu numa reunião que já estávamos a filmar, como é o caso no filme — aquelas assembleias — e à hora de início da assembleia, quando se coloca a questão, não está lá toda a gente. Portanto, há pessoas que se vão somando.

Não quero dizer que essa conversa não possa ser tida a certo momento da filmagem, ou no final, ou num momento posterior, que foi o que aconteceu naquele caso. Não acho que seja muito diferente de outras situações de filmagem. A questão da ética é muito curiosa porque não há propriamente um manual. Existe nas nossas vidas pessoais também. Nós sentamo-nos aqui os dois a conversar e não estabelecemos um pacto: “vou fazer estas perguntas”, “vou responder desta maneira”. Nós vamos nos entendendo. E isso tem a ver com uma ética que é muito pessoal e que se transporta para quando fazemos filmes que vivem da subjetividade do autor, estamos a trabalhar com a ética dele e das relações, da forma como ele estabelece as mesmas. Não há propriamente um manual para isso.

O que você está-me a querer dizer — e de certa forma concordo — é que nenhum filme é verdadeiramente objetivo.

Absolutamente! Nenhum filme é objetivo.

Deixa-me só fazer uma ponte, vi este filme no DocLisboa, também com outro filme que vocês [Terratreme] vão lançar pouco tempo depois, que é “O Palácio dos Cidadãos” (Rui Pires, 2024), e com ambos, noto uma questão de estética observacional para os diferentes espaços, mas sentimos em todo o lado que não é objetivo, não é uma coisa imparcial o que se está a fazer. Mais evidente em “Estou Aqui”, um bocadinho mais subtil, exigindo interpretação, em “Palácio dos Cidadãos”. Por isso é que gosto destas questões sobre ética, porque, a nível do documentário, é um debate que leva-nos a algumas rasteiras, de certa forma.

É totalmente isso, ou seja, a objetividade não existe. A neutralidade não existe. A partir do momento em que se liga uma câmara e se entra com uma câmara, tudo mudou. Por isso é que disse: estamos a falar de filmes que assentam na subjetividade do autor. É a sua visão, a sua relação com aquela realidade, com aquelas pessoas, com aquele contexto e é a forma como representa isso. Que será uma para aquela pessoa e outra para a pessoa ao lado, que vê as coisas de forma diferente — como em todas as situações da vida. Isso é um ponto de partida.

Gostei dessa ideia do autor, porque falamos no singular, mas este filme é realizado por duas partes. Isso é um desafio também na busca dessa perspetiva autoral.

Sim, mas atenção: são poucos os filmes que se fazem a solo. Falamos no autor, mas o autor não quer dizer que seja uma pessoa que faz as ‘coisas’ sozinha. No cinema — e na maioria dos filmes — há um conjunto de relações entre pessoas que confluem num processo de trabalho, que é liderado por uma visão. E essa mesma pode ser partilhada, como é o caso deste filme. É um desafio maior e particular, porque estas duas pessoas vão definindo e construindo o seu ponto de vista sobre aquela realidade. Isso é algo que acontece sempre no documentário. Mesmo quando faço filmes sozinho, a minha forma de me relacionar com as pessoas, com as situações, com os lugares, vai evoluindo ao longo do tempo. Não me relaciono com as pessoas que filmo da mesma maneira no primeiro dia e no último. Ela evolui. A minha visão daquele contexto altera-se. Vai-se construindo. O filme vai-se definindo. O documentário tem esta ‘coisa’ particular: não são filmes escritos à partida para depois serem apenas executados. São filmes que se vão escrevendo. Vamos descobrindo como podemos desenvolvê-los.

Neste caso em particular, há uma comunidade, mas dentro dela desenham-se três figuras que funcionam como âncoras para o espectador, que guiam o filme e o desenvolvimento da história. Não estavam definidas à partida. Quando começámos, não sabíamos ainda que o filme se ia centrar no Plácido, na Teresa e no Tiago. Isso foi algo que se foi descobrindo, também com a disponibilidade do outro lado para entrarem nesse processo. Não foram os únicos. Houve mais pessoas que participaram e que construíram com eles um percurso no filme. Alguns, a montagem colocou mais no centro; outros, menos. Mas tem a ver com esse evoluir das coisas. 

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Zsófi Paczolay e Dorian Rivière

Sendo dois, há duas sensibilidades, duas formas de relação. Mas, nesta construção progressiva, há também um certo apoio. Porque, de alguma forma, a visão complexifica-se. Não é só a forma como entendo as coisas, mas também o diálogo com a outra pessoa que está ao meu lado, a viver o mesmo processo, atenta a outras coisas, com outras ideias. E esse diálogo é muito produtivo e criativo.

É essa a ideia de coletividade que estava a falar no início. 

Só por curiosidade: o título “Estou Aqui” surge numa altura em que facilmente é confundível com o sucesso brasileiro “Ainda Estou Aqui” (Walter Salles, 2014). [Risos] 

[Risos] O filme já tinha saído quando percebemos isso. Mas sim, o título “Estou Aqui" já existia em 2020, quando os realizadores terminaram o mestrado. Ainda houve tentativas de outros títulos, mas acabou por ficar este.

Mas este título tem qualquer coisa... Voltando à dignidade … de trazer essa dignidade a estas pessoas que são uma "não presença" na cidade. Só quando chegam ao pavilhão adquirem uma identidade, essa mantida através da câmara, através destes filmes. O filme dá-lhes uma certa identidade, de facto. Então o título é quase como um manifesto.

"Eu existo e estou aqui." Neste ponto no espaço, neste ponto no tempo, neste ponto na vida. É uma afirmação de presença. Porque sim, há muita invisibilidade, há muitas estratégias para que pessoas em situação de sem-abrigo, em enorme fragilidade, sejam remetidas para a sombra, para o desaparecimento — até do espaço público. O que aconteceu naquele momento muito particular foi que não se via ninguém na rua. Mas de repente via-se uma fila de pessoas à porta de um lugar, de uma igreja, de um centro de acolhimento, ou de várias estruturas que estavam a prestar algum apoio. Isso trouxe-nos essa presença. 

O filme tem essa carga. É como se dissesse: “E quem não tem casa? Onde está? Para onde foi? Como faz?”. Houve até casos não só com pessoas em situação de sem-abrigo — mas também pessoas que viviam sozinhas e não tinham capacidade de fazer a sua gestão diária, de ir ao supermercado… e que de repente, ficaram sem rede. Toda a rede que tinham desapareceu.

Portanto, o filme tem essa chamada, essa afirmação.

Sobre o curso de documentário. Porque — e vou dizer talvez a maior banalidade de sempre — ao ver este filme, a primeira coisa que senti foi que havia quase um... e acho que é um dos grandes documentaristas no nosso tempo, Frederick Wiseman, e o estilo observacional dele, de quase “descascar” as instituições... É um pouco o que se sente neste filme. Gostava de saber mais ou menos quais são os autores que vos influenciam na área documental, ou se o curso é mais prático ou de vertente mais teórica?

É muito prática. Neste mestrado em particular, é muito prático. São quatro semestres em que os alunos estão sempre a ser desafiados a filmar. Começam com exercícios, e cada semestre termina com um filme, um exercício um pouco maior. O programa termina com um filme final que ocupa um semestre inteiro. Tem várias características: uma delas é que reúne cerca de 24 alunos de todo o mundo. Na mesma turma, há pessoas de todo o lado. Poucos europeus. É um mestrado financiado pela Agência Erasmus+, que privilegia determinadas regiões. Isso vai mudando a cada edição.

Como assim?

A Agência Erasmus atribui bolsas aos estudantes. Essas bolsas pagam as propinas e dão algum dinheiro para viver. Em cada ano, a agência define as regiões e os países elegíveis. Imagina que há 20 bolsas para distribuir: 5 são para a América do Sul e, dentro do continente, para um conjunto de países que, no ano seguinte, serão outros. Não é algo fixo. O que acontece é que há poucas bolsas para o espaço europeu, porque a vocação do programa é internacional, direcionado para regiões mais afastadas. Estas 24 pessoas chegam e começam imediatamente a filmar. E quase todas não falam a língua. Isso é uma constante.

É um obstáculo.

Sim. Depois há a Hungria, onde também não falam a língua. Alguns falam espanhol ou português e conseguem perceber, mas a maioria não. O inglês torna-se aqui a língua universal.

É muito curioso ver as estratégias que encontram para lidar com isso. Mas também, por não perceberem a língua, a atenção foca-se noutras coisas. Não passa tanto pelas palavras. E isso é interessante, porque falaste no Wiseman — que tem esse processo de observação intensiva, de passar muito tempo num lugar. Curiosamente, o Wiseman faz o som dos seus filmes e dirige a câmara com a perche. Essa ideia de escuta — de uma escuta relativa — é muito importante neste filme.

Porque é uma realidade muito dispersa. Há muita gente, muitas situações. É preciso encontrar um caminho ali no meio: dentro de tudo o que acontece, onde concentrar a nossa atenção. Isso é um processo.

Com essas multitarefas todas, ainda há espaço para realizar?

Ser realizador é a minha principal tarefa. Tudo o resto que faço vem a partir daí.

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Tiago Hespanha

O seu último “Campo, foi realizado antes da pandemia, em 2019. Mantém esse desejo de realizar para breve, ou já tem algum projeto?

Sim, já estou a filmar. Tudo o que faço — as aulas, a produção — tem como centro a criação. E a Terratreme, voltando ao início da nossa conversa, também carrega essa ideia: é uma produtora de produtores que são realizadores. Isso coloca o centro de tudo na criação e nas suas necessidades. Não é uma criação estanque, separada da produção e das outras dimensões do filme. São processos que colocam a criação nesse mesmo centro. É a partir dessa sensibilidade, desse desejo, que tudo o resto se começa a articular para formar o filme, no meu trabalho é um bocadinho assim também. É curioso: agora que estamos a falar do "fazer" — se é prático ou teórico —, é muito prático, mas são processos práticos que também são muito reflexivos. Têm muita investigação. Teoria, se quiser.

É um processo que me levou ali [ao Campo de Tiro de Alcochete, no filme “Campo”]. O início não era aquele. O início era um filme. Não era um filme, era uma ideia de saber mais sobre... Quando comecei esse processo, tinha acabado de ser anunciado que o aeroporto ia ser ali.

Há uma dimensão deste filme [“Estou Aqui”] que acho que é importante e que nem sou a melhor pessoa para falar. Mas que tem a ver não tanto com a forma do filme, mas com aquele contexto em concreto, com o teu projeto em particular. Porque aquilo foi uma experiência e foi uma que durou aquele tempo. Não existia antes e não passou a existir.

Falamos do projeto do Casal Vistoso no “Estou Aqui”? 

Sim. O centro de acolhimento do Casal Vistoso foi um projeto inédito, conduzido pela Teresa Bispo, que era técnica da Câmara, e que criou condições muito particulares para este tipo de apoio. Espero que ao longo deste processo de promoção e de estreia do filme consigamos ter essa conversa em vários contextos, porque foi realmente especial, inovador e um bocado incompreensível como é que não teve continuidade e como é que esse tipo de experiência não criou uma espécie de hábito da sociedade. Era um projeto em que eram admitidos casais, e até eram admitidas pessoas com animais.

Era um projeto que colocava as pessoas no centro. Ou seja, em vez de uma pessoa em situação de sem-abrigo, que se encontra numa enorme fragilidade, com grandes dificuldades e pouca autonomia, sendo constantemente obrigada a ir ao encontro das respostas que lhe são apresentadas, este projeto fez exatamente o contrário. Em vez de exigir que a pessoa tivesse conhecimento das respostas disponíveis, soubesse como cada uma delas funcionava e estivesse em constante movimento, o projeto reuniu, no pavilhão, as várias respostas existentes. As pessoas estavam ali e tinham contacto direto com os diferentes programas.

Era uma visão profundamente humanista desta situação, que depois desapareceu. Desapareceu, não porque deixou de ser necessária, e esse é o drama. Já se sabia que a ocupação daquele espaço era temporária e que, posteriormente, ali ficaria um projeto desportivo. Não é isso que está em causa. O que realmente se perdeu foram os princípios do projeto, as suas linhas estruturais, que não foram levadas adiante.

Hoje temos mais pessoas em situações sem abrigo do que tínhamos naquele momento. Portanto ... terminou não porque deixou de ser necessário, mas porque deixou de haver interesse, vontade política para que ele continuasse. A Teresa Bispo costuma dizer que tudo isto são decisões políticas, como é que se lida, como é que se gera estas situações. É muito curioso porque no filme há uma técnica que explica isso numa assembleia, em que uma pessoa em situação de sem-abrigo sai mais caro de estar num centro de reabilitação.

Agora, de forma pertinente, gostaria de saber se me podem falar sobre a questão da distribuição, que tem sido, aliás, tema de uma conversa recorrente nos últimos dias nos círculos cinéfilos. A Terratreme funciona quase como uma distribuidora independente também. Queria perceber os desafios que enfrentam na distribuição dos vossos filmes, porque, há umas semanas, estreou um filme português distribuído por uma grande distribuidora, mas que, segundo o ICA, teve apenas 70 espectadores e já não está em exibição nas salas. Em comparação com os filmes que vocês distribuem, que fazem muito mais espectadores (e vida em sala), sendo uma distribuidora pequena. Gostava de saber se estão presentes nesta questão da distribuição dos filmes e como é o desafio de ser uma distribuidora.

Nós tornámo-nos uma produtora que também faz o trabalho de distribuição dos nossos filmes, e já fizemos um ou outro filme que não poderia ser produzido por nós, um pouco... empurrados para essa função. Ou seja, não nascemos como distribuidores. No entanto, isso surge de um conjunto de constatações e uma delas tem a ver com a precariedade do circuito de distribuição em Portugal. Existe um circuito de distribuição, mas ele é bastante limitado: há dois grandes operadores, algumas, muito poucas, salas independentes, e depois um circuito considerável de cineclubes e outras estruturas que fazem programação de cinema. Essas estruturas mostram filmes, mas não atuam como uma sala de cinema comercial, porque não mantêm os filmes em exibição durante uma semana, que é um critério obrigatório para que os estúdios de cinema considerem a distribuição de um filme. O que temos é uma realidade diferente.

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Campo (Tiago Hespanha, 2019)

No caso dos filmes que fazemos, ou conseguíamos que fossem distribuídos por um dos operadores — o que é extremamente difícil, também devido ao tipo de cinema que fazemos, gerando um desencontro — ou desistíamos de os distribuir. Como o objetivo de fazer filmes é mostrá-los, e só faz sentido se forem vistos, decidimos começar a tentar, por nós próprios, criar essa rede. Queremos construir as relações necessárias para fazer um filme circular, criando um circuito o mais abrangente possível, embora cada filme tenha a sua própria especificidade.

O que temos vindo a observar ao longo destes 15 anos em que estamos na produção de filmes, desde o início, é que realmente há cada vez menos espectadores nas salas comerciais. Mas é um erro pensar que não há público para estes filmes, porque, quando vamos aos cineclubes, aos cineteatros, a uma série de estruturas que fazem programação de cinema, vemos que as sessões são bastante compostas. O problema é que é difícil pedir a um cineclube, seja na cidade ou no interior, para exibir um filme durante uma semana inteira.

Outro ponto é que não há público suficiente para encher uma sala durante seis dias seguidos, portanto... Enfim, tentar encaixar este tipo de cinema num modelo de distribuição importado, que é um modelo comercial baseado numa série de características que todos acabámos por perceber que não funcionam, não é viável. Portanto, andamos sempre a tentar lidar com esta realidade.

Para nós, é extremamente importante estrear os filmes em sala, em cinemas, porque fazemos filmes para o cinema. É muito pouco gratificante mostrar um filme sem as condições adequadas: sem uma projeção de qualidade, sem um bom som, sem a presença das pessoas. Por isso, é crucial conseguirmos exibir os filmes nas salas de cinema. E é igualmente importante o que estamos a fazer agora: a partir do momento em que conseguimos estrear um filme, isso abre a possibilidade de os meios de comunicação darem visibilidade ao filme. Isso é essencial para que o filme seja conhecido e para que as pessoas se desloquem às salas para o ver.

Nos "Intervalos" do cinema, o Cinema não foge! Arranca o 1º Encontro e Mostra de Cinema nas Caldas da Rainha

Hugo Gomes, 09.04.25

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"Rhoma Acans" (Leonor Teles, 2012), a ser exibido no dia 10 de abril

Alexandra Ramires, Laura Gonçalves, Leonor Teles, André Guiomar, Filipa Reis, João Miller Guerra, Mário Macedo e, sem sombra de dúvida, Manuel Mozos — entre outros — compõem a equipa reunida para preencher a edição inaugural do Intervalos: Encontro e Mostra de Cinema nas Caldas da Rainha, no mais apetecido sumo da cinefilia e cinematografia.

A acontecer na conhecida cidade de uma certa peça de olaria bem característica, entre os dias 10 e 12 de abril, no Centro Cultural & Congressos, esta mostra surge como uma nova iniciativa para descentralizar estas propostas culturais das metrópoles, trazendo um rol de debates, discussões e convergências para apimentar o Cinema nos seus lugares — e fora deles.

Para melhor “cortar a fita” deste novo espaço cultural, o diretor Mário Branquinho, que sob convite do Cinematograficamente Falando… teve a honra de nos oferecer uma breve visita guiada por esses três dias de Luzes, Câmara… Ação!

Antes de mais, gostaria de começar pelo princípio: qual foi a génese desta iniciativa, deste evento ou festival, como podemos ou devemos apelidar? No fundo, como e quando surgiu e começou a ser desenvolvida a ideia?

Estou como diretor do Centro Cultural das Caldas da Rainha há pouco mais de dois anos e, desde o início, quisemos dar continuidade ao trabalho já existente na área do cinema. Até porque tenho uma ligação de longa data ao meio – fui fundador e diretor de um festival de cinema durante mais de 20 anos [CineEco – Festival Internacional de Cinema Ambiental da Serra da Estrela, de 2000 a 2020]. Por isso, fazia todo o sentido incluir o cinema de forma estruturada na programação do Centro Cultural, não apenas com sessões ao ar livre no verão ou acolhendo pontualmente outros festivais, mas com algo mais próprio e identitário.

Foi assim que surgiu a ideia de organizar não exatamente um festival, mas uma mostra, um encontro de cinema. A intenção é que este evento se consolide anualmente como um marco na programação cultural das Caldas da Rainha. Uma mostra focada no cinema português, que promova o diálogo entre realizadores, críticos, distribuidores e o público – e que crie espaço para refletir sobre o estado atual do nosso cinema e um retiro cinéfilo.

E quanto ao nome "Intervalos"? Porque escolheram esse título?

Foi uma escolha do coletivo que organiza esta mostra. É uma alusão à ideia de pensar nos "intervalos" entre os filmes, mas também nas margens onde se encontram o espectador e a obra. Os intervalos são momentos de pausa, de reflexão, de diálogo – e é precisamente isso que queremos propor: um espaço de encontro entre filmes, pessoas e pensamentos. Após muita discussão, o nome acabou por surgir naturalmente nas conversas do grupo.

Como o próprio nome sugere, esta mostra pretende convocar múltiplas relações possíveis com o cinema, explorando o jogo de encontros e intervalos que se desenham e se estabelecem, a cada edição, seja entre imagens, entre filmes, entre filmes e espectadores, ou entre realizadores e público, em função de uma ideia ou proposta de programação específica.

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"A Glória De Fazer Cinema Em Portugal" (Manuel Mozos, 2015), a ser exibido no dia 12

Ao ler a carta de intenções do festival, chamou-me a atenção a aposta quase exclusiva no cinema português. Há aqui um lado claramente pedagógico, de formação de públicos. Pode falar um pouco mais sobre essa escolha e os seus objetivos?

Sim, sem dúvida. Há ainda um longo caminho a percorrer na valorização do cinema português, e isso exige um esforço coletivo: dos realizadores, dos programadores, dos distribuidores, das instituições. No meu papel como programador, sinto essa responsabilidade – e esta mostra é mais um contributo nesse sentido.

Já vínhamos a promover sessões regulares de cineclube no CCC, muitas delas com filmes portugueses, e também nas sessões ao ar livre temos tentado dar espaço ao cinema nacional. Mas com a Intervalos, queremos ir mais além: criar um verdadeiro encontro, um espaço de debate, onde diferentes obras e gerações de cineastas se cruzem.

Um exemplo disso é a proposta de darmos “carta branca” a um realizador, permitindo-lhe escolher um outro filme que dialogue com o seu, e assim gerar um momento de reflexão partilhada. Esta mostra quer ser um contributo vivo para a promoção, discussão e valorização do nosso cinema.

Falou há pouco num “retiro cinéfilo”, e fiquei muito curioso com essa ideia, e como também em entender no que consiste esse retiro cinéfilo?

[Risos] Chamamos-lhe “retiro cinéfilo” de forma informal, claro. Mas a verdade é que queremos criar um espaço e um tempo concentrado, durante três dias, em que nos dedicamos por inteiro ao cinema português. Um momento de imersão.

É um encontro onde conflui o olhar dos realizadores, dos críticos, dos académicos e do público. Onde se criam condições para refletir, debater, pensar novas direções. Um espaço onde, esperamos, possam surgir ideias novas e contributos para o futuro do cinema português. Se conseguirmos tornar isto uma prática anual, acredito que será extremamente relevante para o panorama cinematográfico nacional.

Estamos então perante a primeira edição de uma mostra que se quer duradoura. Fale-me um pouco da programação e da escolha de Manuel Mozos como figura homenageada.

Desde o início quisemos que cada edição homenageasse um realizador português. No diálogo do coletivo que organiza a Intervalos, o nome de Manuel Mozos surgiu naturalmente. É uma figura incontornável do cinema português – realizador, montador, pensador do cinema – e tem uma obra que merece ser destacada e celebrada. Foi uma escolha unânime.

A programação estrutura-se em torno dessa homenagem, mas também inclui outros momentos importantes: sessões de filmes em diálogo, onde duas obras se confrontam e se complementam; debates com realizadores; a presença da Associação Portuguesa de Realizadores (APR), que vem apresentar uma publicação sobre a sua história; e a participação da ESAD.CR [Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha], que traz um contributo académico muito importante, incluindo uma mostra dos trabalhos das residências artísticas dos alunos do Mestrado em Artes do Som e da Imagem.

A abrir, teremos por exemplo “Rhoma Acans” de Leonor Teles em diálogo com “Cama de Gato” de Filipa Reis e João Miller Guerra. Acredito que será uma sessão muito rica, com debate posterior. Ao longo dos três dias, teremos outros diálogos entre filmes, conversas e até uma sessão final de live cinema protagonizada por estudantes.

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"Cama de Gato" (João Miller Guerra e Filipa Reis, 2012), a ser exibido no dia 10 de abril

Na programação, encontramos a informação de uma visita guiada, um momento para “descomprimir” do retiro [risos]? Pode contar-nos um pouco mais?

Sim, haverá uma visita especial ao espólio cinematográfico de Mário Lino, que está exposto numa sala do Museu do Centro de Artes das Caldas da Rainha. Trata-se de uma coleção pessoal, reunida ao longo de anos, que certamente irá surpreender. É uma forma de ligar o cinema à cidade, de abrir o festival à comunidade e proporcionar outros olhares sobre a história do cinema.

E no futuro? Ainda antes da primeira edição acontecer, já se pensa no que pode vir a seguir? Quais são as ambições para a Intervalos?

Claro que sim. Só o facto de termos conseguido convencer parceiros importantes como a Câmara Municipal das Caldas da Rainha e o ICA a apoiarem esta primeira edição é já motivo de grande satisfação. Isso dá-nos confiança para o futuro.

O modelo da mostra é sólido, os parceiros estão envolvidos e entusiasmados, e sentimos que há espaço para crescer. A nossa ambição é consolidar a Intervalos no calendário cultural da cidade e da região. E, acima de tudo, contribuir ativamente para que o cinema português continue a afirmar-se, a renovar-se e a dialogar com o público.

Toda a programação poderá ser conseultada aqui