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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Rita Azevedo Gomes e o nevoeiro em três dimensões

Hugo Gomes, 21.03.22

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Há um sentimento de repetição, não em Rita Azevedo Gomes devo dizer, mas em mim, que tenho acompanhado a sua obra e que nunca obtive o privilégio de “presenciar” a realizadora das “imagens em transe” nem o “para aí além”. Sempre deparei-me com o fenómeno como uma espécie de exagero subtilmente implantado entre nichos como resposta a um cinema que tem se espalhado fora desse concentrado de adornos intelectuais e ócios comumente replicados, tendo como centro a Cinemateca (o qual trabalha como programadora), a raiz de toda uma ideologia cinematográfica que por aí expande ou fomenta. Basta verificar nos seus defensores do outro lado do Oceano Atlântico, que por um lado olham para o Cinema Português de uma forma limitada ou a encaram como uma homogénea demanda, nunca sobressaindo das linhas oliverianas ou cesarianas, e por vezes tendo em conta uma trajetória própria de Pedro Costa. 

Quanto a Rita Azevedo Gomes, novamente cito João Bénard da Costa, ator-convidado ao seu "Frágil como o Mundo” (a sua melhor obra até à data) em que explicita um nevoeiro que amedronta os corações dos Homens, essa mesma neblina, desconhecida salienta-se, empesta o potencial de uma realizadora em conseguir um cinema que seja seu por direito, e que não invoque as auras tidas de um Oliveira, de um César Monteiro ou até mesmo do artista plástico Luís Noronha da Costa (o qual Rita Azevedo Gomes trabalhou como atriz e assistente de realização no ainda muito obscuro “O Construtor de Anjos”, em 1978). 

Por outras palavras, sempre espero mais dela do que meros “filmes para amigos e para específicos amigos”, ou o reconhecimento por detrás daquele travelling serpenteado nos aposentos da decadente duquesa em “A Vingança de uma Mulher” (2012) ou do cuidadoso mise-en-scène em “A Portuguesa” (2018), exista um temor em desconstruir as suas práticas e conhecimentos em prol de uma linguagem própria e desafiante. No fim de contas, Rita Azevedo Gomes constrói quadros de natureza morta, de estagnada vida que por lá reside. Na chegada de “O Trio em Mi Bemol", com base numa peça de Eric Rohmer e o tormento que é em (re)adaptá-la à televisão e por sua vez ao cinema, sou hipnotizado com a seguinte imagem: Rita Durão (atriz-fetiche do cinema de Gomes), “escondida” na quietude da noite, fumando o seu cigarro anestésico, apenas “acompanhada” pela lua cheia que de “braços abertos” abraça-a assim como o mar de costas voltadas para a mesma. Bela imagem, confesso, ressaltando o olho pitoresco e de preciosa perspetiva renascentista da realizadora. 

Quanto ao resto … porém, o resto é fazer teatro escorrer em trajes cinematográficas, enriquecendo em planos conjuntos que desafiam o oscilar das diferentes dimensões. Só que a esta altura do campeonato, os involuntários propósitos de Rita Azevedo Gomes confundem com os propósitos do enredo, transformando tudo aquilo num programa televisivo. Se em parte os dilemas e bloqueios criativos do realizador empenhado à tarefa (Adolfo Arrieta) tentam conduzir o filme para além da sua matéria-prima, por outro, e aproveitando a deixa da assistente de realização a este veterano nos primeiros minutos de “O Trio em Mi Bemol” - “Tudo é uma grande farsa" - não poderíamos estar mais de acordo, os alicerces enferrujados estão à vista de todos, e nem sempre é por culpa da artesã, porque como a própria adianta em prólogo  -“Este filme só existe graças à colaboração desinteressada de todos os que nele participaram”. No fundo o que está implícito é um exercício, e como todos os exercícios não existe muito mais além do ato de exerção do mesmo. O nevoeiro continua por trespassar.

Feliz por fora, triste por dentro

O virar de mais uma página nos Cadernos de Cinema ...

Hugo Gomes, 03.03.20

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O Cahiers du Cinéma não inventou a crítica de cinema, mas reinventou a nossa ideia de crítica em cinema, colocando essa manifestação no patamar intelectualizado, pessoal e transgressor dos fixos métodos de mercado e que, por sua vez, rebelava contra os ensinamentos de uma vaga anterior (Marcel Martin, Georges Sadoul e Jean Mitry que esculpiam as terminologias da estética). 

Durante anos, os ditos “cadernos amarelos” tornaram-se gurus do próprio ato de pensar em cinema, enquanto fomentam um novo leque de cineastas-escrivães que iriam lançar-se na indústria e perpetuar novos “movimentos” cinematográfico – A Nova Vaga, o Cinema Novo ou Vanguarda – que teria epicentro em território francês, nos anos ‘60, e como pássaros estivais “migrariam” para outras regiões do mundo (Portugal foi um deles). Os EUA embarcou na aventura na década seguinte, após as constantes resistências ao “cinema estrangeiro”, criando assim a Nova Hollywood. Foi essa publicação que acolheu alguns dos maiores pensadores cinematográficos de que há memória, desde o “pai” André Bazin, até aos seus mais fiéis “filhos” Jean-Luc Godard e François Truffaut, até ao marginal que encontrou palco para a sua voz Serge Daney, que viria experimentar em 1991 o slow-critic da revista Trafic.

Obviamente que mais se seguiram, os “filhos”, os “usurpadores”, os “anarcas” e os “fieis”. A crítica ramificou-se para vários estilos, formatos e correntes ideológicas muito graças à Cahiers, pela sua representação de crítica livre e pensada. E com isso, é triste depararmos-nos com o seu presente. Com as notícias de uma demissão em bloco devido a novos acionistas e a iminente intervenção de produtores que anseiam uma revista “chique”. Os jornalistas e críticos da Cahiers du Cinéma temeram pela sua liberdade, e devido a esse ato de bravura e de ética, que vai para além do código deontológico, mereceram fortes aplausos de coragem, o de “heróis” num tempo em que a comunicação social, seja de que plataforma seja, tem estado constantemente diluída nas grandes corporações e à mercê do constrangimento político-social pelo qual se regem.

Cahiers du Cinéma é por si uma marca histórica associada a essa mesma história, e devido a isso muitos cinéfilos têm sido solidários a esta luta, a esta prova de risco que colocará a crítica de cinema numa posição (ainda) mais fragilizada. Mas recordo que não há muito tempo, esta publicação revelava um top de década que fora repudiado por muitos dos que hoje abraçam a sua causa. E essa renegação foi acompanhada por um constante invocar da história, de Bazin a Truffaut, Godard a Rivette, Rohmer a Daney, e também a memória de Douchet. Porquê?

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Jean-Luc Godard e François Truffaut

A grande lição da Cahiers esteve sempre na grande emancipação e com isso a própria responsabilidade dos seus escritos em relação ao cinema contemporâneo. Os ditos ‘Cadernos Amarelos‘ são prova disso, do cinema pensante que não necessitava do academismo, nem das leis de mercado, mas hoje, com a difusão das redes sociais e a inabalável legitimidade da opinião (cada vez mais confundida com a arte da crítica de cinema) torna-se difícil separar a cinefilia da própria presunção snob (ou vaidade, esse tal pecado fatal e fatalista), ou do vampirismo dos ‘filosofares’ de outros. Tornou-se mais fácil apontar o dedo à Cahiers e não apenas questionar as suas ideias, mas desprezá-las à luz de outras, muitas delas vencidas pelo tempo e pela sua cadência. A crítica tornou-se irrelevante. É triste pensar e sublinhar isto, mas é bem verdade que essa arte, que muitos tentavam erguer como tal, encontra-se ameaçada pelos mais diferentes inimigos.

O mar de opiniões, a indústria predominante e interveniente (tido como subsistência), o consenso que muitos desejam construir como instituição e até mesmo a “necrofagia”, némesis que vêm contaminar a auto-estima da dita crítica de cinema, tornando-a uma peça sobresselente de qualquer publicação ou meio. Perde-se a agressividade, perde-se a noção, o bom-senso e acima de tudo, a honestidade intelectual.

Os jornalistas que abandonaram a Cahiers por princípios éticos, certamente serão visto como guerreiros da última estância da crítica cinematográfica, porém, todos nós devíamos fazer “mea culpa” neste cenário, pois desprezamos toda essa jornada ao encontro de novas formas de pensar no cinema, modernamente falando, para alimentar o respetivo ego. Sim, hipocrisia, e nisso não devemos esquecer.

Enquanto isso, a crítica de cinema não morreu … continua a resistir em algumas “habitações”, só que não anda bem de saúde.