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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Keoma enters ... no VHS!

Hugo Gomes, 24.06.25

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Ainda sobre Enzo G. Castellari, e em particular o seu “Keoma”, o western spaghetti apocalíptico, podem ouvir este episódio especial do podcast V.H.S (Vilões, Herois e Sarrabulho) em que discuto a minha experiência com cineasta ao lado dos anfitriões Daniel Louro e Paulo Fajardo. Há um excerto da minha entrevista (desculpas antecipadas acerca do meu “inglês empírico”) e os Encontros de Cinema do Fundão no coração. Um muito obrigado pelo convite e pela oportunidade.

Falando com Enzo G. Castellari: em danças com a morte e westerns apocalípticos no espírito

Hugo Gomes, 20.06.25

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Enzo G. Castellari

Cinco dias de cinema prezado e comungado no Fundão: assim se fizeram os 15.º Encontros de Cinema, e como recompensa aos cinéfilos devotos, a programação ofereceu um olhar atento sobre o cineasta e crítico de cinema espanhol Pablo García Canga, e uma tentativa de resgate de Pedro M. Ruivo (“A Força do Atrito”). Mas a “cereja no topo do festival” foi, sem dúvida, a vinda de Enzo G. Castellari, lendário cineasta do grindhouse, do poliziottesco, do western spaghetti e de outros subgéneros tantas vezes guiados ao preconceito dos snobs, mas amados por públicos das mais variadas geografias.

Aos 87 anos, o veterano mostrou as suas curvas e vitalidade, recebendo de braços abertos a audiência, entre aqueles que viam os seus filmes pela primeira vez e os adeptos de longa data, que atravessaram oceanos para não perder pitada desta oportunidade única de o ver ao vivo e a cores. Cumpriu quatro sessões de Q&A, nas quais foi “bombardeado” com questões sobre a sua vasta filmografia — especialmente a selecionada pelo festival — e Enzo, chamemo-lo assim, mostrou-se grato pelo afeto manifestado. Enquanto isso, negava ser político. Segundo as suas palavras: “nada de partidos, nem de ideologias”, para ele, o Cinema é a extensão do pugilismo. “Há que respeitar o oponente”, reafirmou, com os punhos erguidos. 

Na A Moagem, santuário cultural da cidade fundense, contemplaram-se quatro títulos fundamentais: “The Inglorious Bastards” (1978), esquadrão acidental de desertores e renegados da Segunda Guerra Mundial, numa missão suicida de corpos contra corpos de nazis empenhados, uma resposta a “The Dirty Dozen” (Robert Aldrich, 1967), mais tarde evocada e remixada — tarantinescamente falando — em “Inglourious Basterds” (2009). “The Big Racket” (1976), inserido na vaga de cinema justicialista e de policiais furiosos, onde um polícia se alia a um grupo de homens angustiados para combater uma quadrilha mafiosa. “Escape from the Bronx” (1983), a segunda parte da trilogia Bronx, onde Enzo, disparando sobre um certo filme de John Carpenter, oferece um arraial de tiroteios com pano de fundo pós-apocalíptico e comentário sociopolítico.

E por fim, a pedido do próprio realizador, nesta conversa com o Cinematograficamente Falando…, o amor declarado de “Keoma” (1976). O desejo de fechar o ciclo do western spaghetti gerou um Franco Nero mestiço, a combater a degradação e a corrupção humana no vilarejo que o acolhera na infância. Nesse retorno, terá de proteger uma mulher grávida, cuja vida no ventre carrega a esperança de um novo começo para a Humanidade. Castellari inspirou-se em Ingmar Bergman e na música que acerca para conceber um western à beira do fim da sua linhagem …

Fiquemos, então, com uma breve conversa, difícil de abarcar todos os pontos de uma carreira tão extensa. E sob o calor do Fundão, com capuccinos de máquina entre as mãos e uma multidão de curiosos em redor da obra do realizador, mantivemos “Keoma” no centro: no coração, no espírito, em direção ao sol-posto.

Numa das interações com público aqui no Encontros’ do Fundão, mencionou a comparação entre o boxe e o cinema, ligando-os com a necessidade de respeitar o oponente. No boxe, o qual foi pugilista, percebemos quem é o oponente. Mas em relação ao cinema? Quem é o oponente?

Bem... o boxe é algo que me ensinou, e acredito que ensina a todos que o praticam, o tempo da vida. O timing. Porque o boxe é isso: tempo e timing. Esperas... esperas… tentas algo com a esquerda… e depois entras com a direita. Há toda uma história que se desenrola na tua cabeça enquanto lutas. Portanto, esta ideia - fazer algo que te obriga a confiar na tua imaginação, no teu sentido de ritmo, no teu desenvolvimento da acção - isso é a vida. E isso é o cinema. O Cinema é o Cinema.

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Enzo G. Castellari e Franco Nero na rodagem de "Keoma" (1976)

“O Cinema é o Cinema”, até que gostei. Mantendo nesta sua experiência aqui no Fundão, quando lhe perguntaram sobre política, respondeu que não tem nada a ver, nem com partidos, ou ideologias. Mas parece impossível ver os seus filmes (seja em “The Big Racked”, seja em “The Inglorious Bastards”, entre outros) e não ver ali política.

Absolutamente! Tens razão, mas isso é consequência da história. Se a história fala de um comissário, e o comissário por acaso é de direita… então tudo bem, isso faz parte da vida. Mas não conte comigo para colocar ali uma grande intenção política. Não, estou apenas a narrar a história, não injectá-la nela minha imagem pessoal lá dentro.

Algo que também referiu, foi o facto de se considerar um “realizador-montador”. Disse que enquanto filma pensa muito na montagem, e quando deparamos com os seus trabalhos, notamos essa economia na montagem. Como também mencionou, por exemplo, que os novos realizadores, os de hoje em dia, filmam, filmam, filmam, e depois é que montam. No seu caso, já pensava com muito cuidado no que filmava, porque a montagem, para si, é essa questão de economia?

Antes de mais … sim! Devo dizer que a primeira ‘coisa’ que nos ensinam é a economia. O resto é a história. E a forma de fazer isso - através da montagem - é mostrar, tornar visível. Porque, sabe, o tempo é tudo. Quando viro a câmara tenho que ter noção desse tempo. Preciso de cortar e mostrar o que está a acontecer, e se o fizer apenas três ou quatro planos mais tarde… é muito simples, mas muda tudo.

Acredito que a montagem é a linguagem do cinema …

Exactamente!! Sem isso… qualquer pessoa pode filmar o que quiser. Só que aqui, o tempo, esse, deve ser encarado como o verdadeiro motivo. Em cada plano, é preciso conhecer o tempo certo. O tal timing

Porquê isso?

Por exemplo, adoro … sempre que vejo “Keoma” … aquele primeiro plano. Só preto… e uma janela. Para explicar isso ao diretor de fotografia, eu tive que desenhar. Depois encontrámos o local exacto. Há uma figura no fundo, muito, muito distante, e quando a janela se abre, e o vento se move… vemo-lo. É uma imagem que amo! Disse-lhe que tinha que começar o filme assim … apenas senti.

E sobre o “Keoma”, nunca escondeu que era o seu filme preferido. Mais, na sua opinião, o melhor que fez, a obra-prima! Um filme que, de muitas formas, simboliza o fim da era dourada do western spaghetti. Porque é que este filme deixou uma marca tão forte em si? Porque é que ficou consigo de forma tão profunda?

Porque o filme sou eu. Eu sou assim. Quando mostro ou tento explicar o meu filme… é difícil … porque estou a falar de mim próprio enquanto falo do filme.

Naquele momento, o realizador era eu. É ele que decide tudo. Que observa tudo.

E quando dirijo as pessoas — os técnicos, os figurantes, toda a gente — tento com que elas façam exactamente aquilo que estou a pensar, porque idealizo o filme na minha cabeça, tenho imagens em mim, só tenho que materializá-las.

Gosto quando diz: “o filme sou eu.” Identifica-se com a personagem do Franco Nero de alguma forma?

Sim. Sempre. É um sonho. Gostava de fazer aquilo, só que não posso… portanto, ele faz isso por mim [risos].

Voltando, mais uma vez, ao tópico da política nos seus filmes. No final do “Keoma”, o homónimo protagonista declara como derradeiro acto perante a “nova vida”: “O bebé sobreviverá, porque ele é um homem livre.” Sinceramente, parece-me algo muito político [risos].

Algo assim [risos]. Para inventar essa frase… levou tempo, sabia? Porque tinha de fechar o filme com alguma coisa. Mas na verdade, não está terminado. É a vida!

O Oeste, aquela criancinha, nas mãos da Morte… imagem incrível, mas pensei em melhorá-la. E se dissermos: “Ele é um homem livre.”? [risos]

“Keoma” tem tanto de filme onírico, como conto apocalíptico. O Enzo aproveita o cenário e todo o pastiche do western e o envolve em um tom quase bíblico, vejo em Keoma e os seus três irmãos como uma espécie dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse: a Morte, a Guerra, a Peste e a Fome.

É isso mesmo.

A sério?

Quer dizer… a música. Começávamos por aí … a música é muito importante. Tens de colocá-la ao mesmo nível do diálogo, da história, porque a sonoridade mexe contigo. Por isso, quando quero mostrar algo com pujança, preciso de uma música com força. É difícil explicar isto antes. Tenho de mostrar. Por isso coloco a música enquanto estou a montar.

A música vem daí, mas tem de ter sentido com a cena. Não é só escolher a faixa certa … é usar a música com intenção.

Faço isso para mostrar ao músico o tipo de som, o tipo de suspense, o tipo de calor que preciso. Por isso, quando estou a montar, corto a música em partes, talvez o início de um som e o final de outro, só para capturar a atmosfera.

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Keoma (1976)

Mas nessa relação com a música, julgo que é importante referir que em “Keoma”, ela tem um papel mais do que atmosfera, do que um elemento decorativo. Faz parte da história.

Essa era a minha ideia! Comecei a dizer isso ao músico. Porque o Bob Dylan, o Leonard Cohen, contam histórias. Queria essa essência em “Keoma”. Não sabia como… mas queria isso. Por isso, fizemos a música a narrar a história. Claro que muitos disseram que é aborrecido, que teria que optar entre ouvir e ver. Mas respondia: “Preciso disso. Porque é para mim. O filme é meu e estou a fazê-lo para mim.

Numa entrevista, assumiu “roubar tudo” de outros filmes. Como muitos da sua geração, roubava de Peckinpah e Powell, de que esse pecado está presente em todos os seus filmes.

Isso é algo genuíno. Esse sentimento, de que estou a criar algo. Não tenho influência directa do [Sam] Peckinpah. Penso que… todos os filmes vêm de algum lado.

As influências estão atrás de mim. Trago-as comigo. Por isso que, quando desenho … aliás, também sou desenhador … desenho o meu sentimento.

Mesmo que assemelhe a Michelangelo ou Rafael, são minhas criações, fui eu que fiz, e para mim. Mais tarde mostro-lhe uns desenhos. Vai perceber o que estou a tentar dizer.

Falei disto porque em “Keoma”, e o Enzo não desmente, teve influências em outros westerns, sobretudo os americanos, em Ingmar Bergman e na música, com os cantautores que mencionou. Pergunto também, visto que em alguns momentos o filme traz-me à memória, com Akira Kurosawa.

Sim. Mas via Kurosawa só de vez em quando. Vi vários filmes dele, mas achei alguns aborrecidos a meio. Olho para eles para aprender, mas é impossível dizer que fui influenciado só por um. Sei disso.

“Keoma” apareceu numa altura em que o western spaghetti já estava no seu declínio, mas mesmo decidiu fazer um. Sentiu que estava a fazer o derradeiro do seu género, ou estava a tentar ressuscitá-lo?

Não fiz “Keoma" só como um western. Para mim e para o Franco, era um sonho fazer outro western juntos. Por isso, mesmo que o género estivesse acabado, tínhamos de o cumprir, e inventámos uma forma que talvez não fosse o último, mas sim o primeiro western de uma nova geração.

O facto de ter trabalhado muitas vezes com Franco Nero, pergunto-lhe porque é que ele nunca teve uma verdadeira carreira em Hollywood?

Realmente, não tive mesmo nenhuma carreira em Hollywood! Isso é verdade. Porquê? Bem… teria de perguntar a ele. Ou ao Destino… ou talvez a nós enquanto público.

Tirando algumas personagens bem secundarizadas e residuais, Franco Nero teve o seu ponto alto em Hollywood através do Tarantino enquanto cameo especial em “Django Unchained” (2012). Mas é só isso. Não o vemos muito mais do que isso. 

Pois. 

Já agora, alguma vez imaginou repescarem Nero para representar o seu “Keoma” como Tarantino fez com Django?

Acho mais difícil… sobretudo no início, quando queres apresentar a personagem de uma forma diferente, não como as outras. Tens de encontrar uma maneira de chegar ao ator e explicar-lhe: tu não és tu. És outro. E essa outra pessoa - essa personagem - quero mostrar-te quem ela é. 

É exactamente isto que tento fazer. É incrível. É fantástico. É o Cinema. É a parte que mais gosto de fazer. Porque quando faço o meu filme, até a personagem se torna minha. Não é a tua personagem. Nem a personagem de um outro filme. É a minha personagem! Minha!

Alguma vez teve o sonho ou o desejo de trabalhar em Hollywood durante a sua carreira?

De uma maneira ou de outra tive. Filmei dois ou três filmes lá, mas uma carreira dessas não integrava o meu sonho.

Porquê?

Porque tinha de discutir… e lutar… com demasiada gente. A indústria de Hollywood é muito… Se eles dizem: “Tem de ser assim”, e eu não gosto… então não consigo fazer.

Em Itália quem manda sou eu. Sou o chefe, e sê-lo também significa assumir todas as responsabilidades. Aceito isso.

Quero ajudar a produção, os atores, todos, só que à minha maneira.

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Escape from Bronx (1983)

Julgo que uma das suas marcas autorais, está na forma como os duplos / stuntmen reagem quando são baleados, esfaqueados, golpeados, aliás, como “morrem”.  As suas acrobacias incentivam a uma espécie de bailado, uma dança com a morte, digo …

Dança! Foi exatamente isso que o Tarantino me disse, que gostava da minha dança, porque cada tiro é como se as pessoas estivessem a dançar — não a morrer ou a disparar, mas a dançar. É estar a preparar um grande espectáculo, quase uma fantasia, à beira desse fim.

É verdade.

Mas se me pedires para explicar, não consigo fazê-lo. Mais uma vez, tudo vem de mim, de um sentimento meu. E quando estou no set, explico isso através da acção. Crio cada personagem assim. Brinco com o exagero. Apenas o suficiente para mostrar que tudo o que dirijo é exagerado, mas só para me destacar, diferenciar, criar algo único, nada frio. Quando isso se encaixa com o ator, torna-se uma dança extraordinária.

Sobre “The Big Racket”, esse seu zénite do poliziottesco, disse que foi filmado com agressividade, como um golpe. Então, vou fazer a pergunta desta maneira quase abstracta, mas ao encontro, da, mais uma vez, política dos seus filmes: podemos considerar o golpe num murro, de mão fechada, ou um “chapadão”, de mão aberta?

Ambos [risos]. 

Como assim?

É verdade [risos]. Até apareço no filme. Não sei se me reconheceu, mas surjo como um dos lojistas. Abro a cancela da loja, entro, e começam a bater-me. Sou eu [risos], e tenho uma arma, da qual puxo-a e aponto-a aos vândalos que me atacam. Curiosamente, era uma arma verdadeira, a minha arma. Isto porque nos anos 70, toda a gente podia andar armada assim. Vivíamos um tempo de grande violência na Itália. Era real naquela altura, podíamos senti-la.

O apelo do cinema italiano em géneros como o western e os filmes pós-apocalípticos ressoava bem com o público da altura. Sabe-me dizer o porquê?

O cinema ainda é uma surpresa. Apenas não sabes como vai correr. Não sabes se será um sucesso, será um fracasso, ou a nova tendência. Não podes prever se o que estás criar vai ser amado ou não. Por isso tens de esperar pelo lançamento.

Só por mera curiosidade para este ”cair da cortina”: quando o Tarantino anunciou que iria, à sua maneira, refazer o seu “The Inglorious Bastards”, qual foi o seu primeiro sentimento?

Sentir-me um Rei! [risos] Se um génio como ele escolhe um filme entre milhares feitos e escolhe o meu, é uma honra. Recordo que na altura não acreditava, mas depois fiquei totalmente satisfeito. Naquele momento, olhas para trás e vês que vais deixar um legado.

Os (Re)Encontros de Cinema do Fundão: uma força de atrito na cinéfila do nosso tempo

Hugo Gomes, 25.05.25

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Keoma (Enzo G. Castellari, 1976)

O Fundão quer-se cinéfilo!! Anotem nas vossas agendas: os 15º Encontros de Cinema do Fundão arrancam já no próximo dia 28 de maio, deixando para trás Agosto (o “querido mês” que acolheu as edições anteriores) e olhando para o verão de 2025 nos seus primeiros passos, para nos transmitir uma mensagem clara. À medida que o mundo muda a olhos vistos, e se pressentem períodos sombrios, o Cinema manter-se-á uma certeza.

Até 1 de Junho, A Moagem – Cidade do Engenho e das Artes (com apoio do Cineclube da Gardunha) estenderá a sua passadeira vermelha, recebendo convidados ilustres como Enzo G. Castellari e o madrileno Pablo García Canga, não apenas cabeças de cartaz, mas orientadores para a temática destes Encontros. Porque do grindhouse ao western, da poesia rural ao cinema a conservar e assimilar, da crítica à cinefilia das paixões — algo velado, pessoal — refletido fora das grandes cidades e dos centros culturais habituais.

Como já vem sendo tradição neste espaço, o Cinematograficamente Falando… desafiou José Oliveira, realizador e crítico, cinéfilo irrequieto, mas sobretudo programador, para desvendar o que se poderá antever desta nova jornada … deste Encontro ou (Re)Encontro.

Prosseguindo nas perguntas da anterior edição e tendo foco essa mesma, que desafios encontraram para os Encontros de Cinema do Fundão de 2025, em comparação com os de 2024?

Os desafios da programação são para nós iguais aos desafios da vida: tem de ser uma aventura. E tem de ser divertido, mesmo que seja bem duro. Não nos deixarmos ofuscar pelos brilhos do contemporâneo, mas sim escavar na história, tentar fazer um pouco de justiça, resgatar preciosas constelações há muito soterradas pelo imediatismo do espetáculo e do jornalismo (anti-jornalismo!) básico que nada tem a ver com a crítica nobre nem com qualquer tipo de paixão. O resto, como arranjar financiamentos e quem acredite, aparecerá. O que tem de ser (porque está certo) continua a ter muita força.

Enzo G. Castellari é um dos três realizadores convidados e à mercê de uma retrospectiva-homenagem. Pegando na estética do realizador: como é que o seu universo punk e barroco ressoa num espaço como o Fundão, onde a ruralidade e a memória histórica se entrelaçam? Há aqui uma espécie de fusão entre o grindhouse italiano e a melancolia beirã?

Obras-primas como o “Keoma” (1976) ou o “Johnny Hamlet” [“Quella sporca storia nel west”, 1968] poderiam ter sido feitas neste território, claro. Meios naturais gigantescos e omnívoros combinados com estruturas poeirentas e obsoletas existem a rodos. Talvez haja acordes, harmonias, sensações secretas e correspondências subterrâneas entre territórios e memórias. Talvez os montes e vales de Almeria ou de Abruzzo falem com estes, estejam ligados internamente ou espiritualmente. E sem dúvida que muitas das contendas políticas e puramente humanas são as mesmas… Mas a razão é que descobrimos, de repente, e como uma revelação óbvia e epifánica, que um dos maiores cineastas que alguma vez mexeu a câmara, uniu planos e deu significado às histórias e à História através dos puros e exclusivos meios cinematográficos, está aí para as curvas e gostou da nossa abordagem. 

Também é o grande representante vivo e a síntese de um cinema italiano inesquecível, operático, cheio de ação, risco, carregado de dramaturgia e de tragédia, de vitalidade e constante surpresa, onde pontificaram Sergio Leone, Sergio Sollima, Sergio Corbucci ou Lucio Fulci.  E como esquecer o seu trabalho com Franco Nero, Woody Strode, Fabio Testi, Henry Silva, Fred Williamson… os amadores e os duplos… Stefania Girolami, Ennio Girolami…

A retrospectiva de Pedro Ruivo levanta uma questão rara no cinema português: por que é que a ficção científica continua a ser tratada como um corpo estranho? “A Força do Atrito” (1993) será uma anomalia ou um prenúncio ignorado? Terá lugar nesta atual vertente de reavaliação do nosso património cinematográfico?

“A Força do Atrito” é tanto uma anomalia - no sentido dos grandes filmes portugueses únicos, desalinhados, protótipos e acabados em si mesmos - como um risco sem cálculo, visto que o realizador quis fazer tanto um comentário sobre os tempos da altura como um conto romântico da juventude eternamente à deriva. Um filme tão frágil como belo no sentido do cinema do Nicholas Ray – tem de ser frágil porque tudo dentro dele o é, desde o ambiente até à dimensão temporal, passando pelos seres planantes, e assim é belo pela sua verdade despida de subterfúgios. Na altura foi tratado como lixo por toda a gente, mas isto continua a ser o pão nosso de cada dia – quem não faz os contactos certos nem fala (e como deve ser) com as pessoas certas, quem não vai às festas nem pratica os lobbys oficiais, não vai aos “grandes” festivais nem tem a papinha da crítica toda feita. O que descobrimos na entrevista ao Pedro Ruivo é que é um homem e um cineasta honesto.

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A Força do Atrito (Pedro M. Ruivo, 1993)

Pablo García Canga propõe uma poética do silêncio e da palavra contida. Como é que o seu olhar dialoga com o legado de Ozu, especialmente num tempo em que o ruído parece ser o novo realismo dominante?

Creio que essa será uma boa questão para colocar ao Pablo García Canga no Fundão. Mas julgo que parte da resposta, pelo menos, está no seu magnífico livro "Ozu, Multitudes", que será apresentado no dia 1 de junho, na livraria Livros Tintos. É um dos mais belos e apaixonantes livros dedicados a um cineasta, onde os fotogramas dos filmes de Ozu são como cartas de tarot, permitindo efabulações, tergiversações, histórias, sobre a ilusão, a felicidade, as contradições, os segredos, a amizade, o cómico, a espera, o tempo que passa sem fazer ruído, etc., como se estivéssemos a ler (ou a ver através das palavras) um autêntico vade-mécum para a vida de todos nós. E às vezes o drama contido nos pequenos gestos e movimentos, como a lata que cai da escadaria em “Uma Galinha no Vento” (“A Hen in the Wind”, 1948) e que conta toda uma história. Como disse o Mário Fernandes, “se imaginarmos um Montaigne cinéfilo estaremos próximos deste maravilhoso e original livro de Pablo García Canga”. 

Estes encontros celebram também a cinefilia enquanto gesto coletivo. Que papel ainda pode ter um cineclube, como o Gardunha, num país onde a política cultural parece esquecer o interior?

Não temos pensamentos de inferioridade, programamos com toda a lógica e coração: como não temos cinema comercial no Fundão, tanto tentamos dar uma imagem do panorama actual, como estar atentos às injustiças, para que filmes como “A Força do Atrito” ou “O Movimento das Coisas” não precisem de esperar trinta anos para serem vistos como devem ser. Nos últimos anos tanto tivemos no Fundão o Víctor Erice como o Raul Domingues, o Pedro Costa como o Diogo Costa, tratando-os como iguais. Claro que as políticas desta cidade foram cruciais, mas temos de tentar fazer o melhor trabalho possível na recepção de cada cineasta e de cada obra, de cada músico ou convidado de outra área: desde a produção de textos, entrevistas, diálogos, espetáculos; sentindo que o tempo e o ar do interior propícia a delicadeza e a pulsão necessária para tudo isto. Mostrar o filme certo da maneira certa é uma questão grave.

Os concertos que evocam Castellari trazem uma performatividade sonora que ultrapassa a sala de cinema. Esta aproximação entre imagem e som pode ser vista como um novo tipo de crítica? Uma crítica que se faz com guitarras e distorção?

É uma boa imagem essa, obrigado. Será com certeza uma grande descarga sónica de emoções e de considerandos. Um novo tipo de crítica, com certeza. Tal como uma outra maneira de transmitir as sensações de algo que foi marcante. A Marta Ramos interpretará o tema-mãe de “Keoma”, que é um filme fascinante e obsessivo para ela tanto em termos dramatúrgicos como musicais, que no caso são inseparáveis. Ao longo dos anos ouvimos esse tema a reverberar na sua voz. E outros do Dylan, que obcecaram também o Castellari na montagem dos seus filmes. E assim, tal como o grande historiador Tag Gallagher disse recentemente na Cinemateca que deixou de escrever quando descobriu que conseguia mostrar com um plano o que muitas vezes necessitava de dizer em dez páginas, produzindo agora vídeos críticos e poéticos ao invés de textos, também a música parece um tipo de crítica muito mais forte do que a que lemos diariamente nos jornais ou na net.

Com “Há uma Sombra”, do realizador e poeta radicado no Fundão, Alejandro Pereyra, continua-se a explora a cinematografia que despoleta na região. Existe esforços, e se há frutos colhidos, sobre esse constante sublinhar do cinema fundanense?

Não creio que haja um "cinema fundanense". O que tem acontecido no Fundão nos últimos anos, felizmente, é uma concentração de cineastas muitos diversos e de diferentes gerações, que aqui residem ou que aqui têm produzido algumas das suas obras, muitas delas marcantes. Cineastas tão diferentes como Nelson Fernandes, João Dias, Rodolfo Pimenta, Joana Torgal, Manuel Mozos, Mário Fernandes, Marta Ramos, Alejandro Pereyra (poeta, músico e também realizador do agora programado “Há uma Sombra”), Aurélie Pernet, Raul Domingues, Manuel Melo, Leonor Noivo, Margaux Dauby, Gonçalo Mota, Mariana Neves, Hugo Pereira, Ana Pio, Fernando Carrolo, entre muitos outros. Creio que os Encontros de Cinema do Fundão também têm desempenhado um papel de relevo na atracção e descoberta da região por vários destes cineastas, uns mais conhecidos, outros mais invisíveis que importa revelar. É realmente uma sorte, ou talvez não seja uma questão de sorte, se olharmos para a história cinematográfica do concelho do Fundão

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La nuit d’avant (Pablo García Canga, 2019)

Recordemos, a título de exemplo, que há registos de projecções de filmes no Fundão desde 1903; que o cartoonista, escritor e pintor José Vilhena realizou aqui o seu único filme, “O 5º Pecado” (1959), antecipando nalguns aspectos o que viria a ser o cinema novo; que o Jornal do Fundão teve quase desde o início crítica de cinema (um dos primeiros jornais portugueses a defender realizadores tão diferentes como Manoel de Oliveira ou Sam Peckinpah, quando estavam longe de ser consensuais); que o “Jaime” do António Reis teve a sua primeira exibição pública no Cineteatro Gardunha do Fundão, em Janeiro de 1974, com a presença do próprio António Reis, mas também de Fernando Lopes, Margarida Cordeiro, Carlos Paredes, Eugénio de Andrade, José Cardoso Pires, Lagoa Henriques, Óscar Lopes, Alice Vieira, etc; que à época, por iniciativa da equipa do IMAGO - Festival Internacional de Cinema, o Fundão teve um dos primeiros festivais do país dedicados exclusivamente ao cinema documental - o Festival Dok. Portanto, diria que o filme do Alejandro Pereyra é um dos frutos colhidos de uma árvore imensa com diversas ramificações. 

Voltando a uma questão recorrente, mas quem sabe: há planos de expansão, de alguma forma, do Encontros de Cinema do Fundão em edições futuras?

Existe todos os anos uma extensão na Cinemateca Portuguesa, e este ano não fugirá à regra. De resto, não há planos para aumentar ou diminuir os Encontros, mas apenas, reforço, embarcar sempre numa aventura, rio ou montanha acima ou abaixo, para que depois o público possa participar em eventuais perigos ou maravilhas.

Toda a programação poderá ser consultada aqui