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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Laetitia Dosch: "tento fazer humor com algo que me assusta bastante: o modo como estamos tão separados uns dos outros"

Hugo Gomes, 10.07.25

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Le Procès du Chien (Laetitia Dosch, 2024)

Levante-se o réu… ou, neste caso, sente-se… isso, lindo menino!

O absurdo de um julgamento a um cão não é uma ideia insólita na nossa história humana. Na Idade Média, era comum realizar julgamentos a animais domésticos, sendo o mais notório o de um suíno por infanticídio, no século XIV, terminado com o enforcamento do ‘pobre animal’. Contudo, não estamos a falar de períodos negros da História, ainda que atravessemos uma negritude por dissecar,  e "Le Procès du Chien" leva-nos justamente a isso… aos tempos modernos, reflectida num hipotético caso de tribunal a um cão.

Vencedor do Palm Dog no Festival de Cannes de 2024, o filme assinala a estreia na realização da actriz e encenadora Laetitia Dosch. Por cá, conhecemo-la como protagonista de obras como "Jeune Femme", "Passion Simple" ou aquela mãe que tantas iras contrariam no espectador, no encantador "Le Roman de Jim", de Arnaud Larrieu & Jean-Marie Larrieu. Aqui, para além de assumir a batuta da produção, é também ela a protagonista — uma advogada de causas perdidas que aceita este trabalho irrisório, em andanças igualmente irrisórias. "Le Procès du Chien" mescla variantes de esperança e temor nesta contemporaneidade de diferenças e desuniões.

A actriz feita realizadora conversou com o Cinematograficamente Falando … sobre os seus medos, e como foram eles a origem deste filme de “patudos” a conquistar um júri. Quem sabe… à mercê de 12 Homens em Fúria!

Deixa-me iniciar esta conversa com uma das mais genéricas questões, acredito que já tinha sido recorrente a pergunta, mas cá vai: enquanto actriz por que decidiu dar esse grande passo e tornar-te realizadora?

Bem, também já escrevia peças de teatro, isso era um facto. Escrevi muitas e também as interpretei. Sempre tive o gosto de imaginar histórias.

Gosto de histórias e gosto ainda mais de estar dentro das histórias dos outros, mas também de imaginar as minhas próprias. Durante muito tempo não acreditava que seria capaz de fazer um filme, até que um dia, um produtor veio ter comigo depois de assistir a uma peça o qual contracenava com um cavalo em palco … estava sozinha com o cavalo [risos] … e ele disse-me: “Se sabes trabalhar com um cavalo, então consegues fazer um filme.

A sério?

Sim! Não sei se é mesmo verdade [risos], mas, pronto... acabei por avançar num filme!

Então esta não foi também a tua primeira experiência a dirigir um animal em set? [risos]

Na verdade, foi a segunda vez que dirigi um animal. Mas não foi a minha primeira experiência a dirigir atores, nem a trabalhar com guarda-roupa ou cenografia. Já tinha essa sensação de estar a construir um mundo.

Algo claro no seu filme e que ele não oculta tal facto, é o de “Le Procès du Chien” ser inspirado numa história verdadeira. Foi você que se deparou com essa mesma história?

Não, na verdade a história veio até mim.

Através do tal produtor?

Não, foi de outra forma. Estava a apresentar o meu espectáculo com o cavalo, e no final uma mulher da plateia veio ter comigo, abraçou-me e disse que era advogada. Contou-me que tinha tido um caso em que teve de defender o dono de um cão, e aí partilhou-me essa história.

Era praticamente a história do filme. Pela lei, o cão era considerado uma ‘coisa’. E como o cão tinha mordido três vezes, foi o dono que foi a julgamento, não o cão. Mas a forma como ela me contou tudo, com tanta emoção, tocou-me. Percebi que podíamos falar, de forma séria e até divertida, sobre questões muito importantes: a nossa ligação com outras espécies, por exemplo.

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Le Procès du Chien (Laetitia Dosch, 2024)

Sim, há esse lado absurdista nesta história, contudo, na sua ficção quem é julgado não é o dono, mas sim o cão.

Exato. Porque todos sabemos que um cão não é uma "coisa". Mas então... o que é? Há um momento estranho no filme em que a juíza, ao reconhecer que o cão não é uma coisa, diz: “Muito bem, então talvez ele seja alguém.”, a partir daí, decide-se que o cão deve ser julgado, para se apurar o seu grau de responsabilidade.

É absurdo... mas ao mesmo tempo não é assim tão absurdo. Porque se um cão não é uma ‘coisa’, juridicamente não sabemos muito bem o que ele é. Existe um momento no seu filme em que está a tentar decidir se o cão é uma ‘coisa’, uma pessoa, ou algo mais. E a discussão prossegue para o terreno da alma… Tens ali filósofos, professores, cientistas a discutir o que é um cão, ou melhor, o que é um animal. Isso fez-me lembrar um caso na Índia, onde existe uma lei que classifica os golfinhos como “pessoas não humanas”, para que possam ser protegidos e detenham alguns direitos. Legalmente, não são humanos, mas algo que caminha entre …

Sim, mas se começamos por aí, criamos uma hierarquia entre os animais: uns mais importantes, outros menos. Isso complica tudo. Agora, se dissermos que todos os animais são semi-humanos... então não podemos mais comer carne, e isso levanta grandes questões. Não sei qual é a resposta certa, mas acho que chegou a altura de tentarmos responder. Porque não se trata apenas dos animais, trata-se da nossa relação com todas as outras espécies. Com as plantas, até com a água. A forma como nos relacionamos com os outros habitantes deste mundo está a causar muita destruição… e muito calor no verão.

O seu filme levanta muitas questões, mas não oferece respostas. Nem o final dá certezas, é quase desconcertante. Há algo que me parece muito inteligente: ao atribuíres humanidade ao cão, e ele acaba por ser... misógino.

Sim, porque ele só morde mulheres [risos].

Esse é o problema. Ao longo do filme, muitas personagens tentam definir o cão, dizem que ele é isto, aquilo, o outro, mas a verdade é que ninguém sabe realmente quem é este cão.

Essa ambiguidade é muito interessante. Se o cão for comparado a um humano, e é declarado um macho misógino, então, por esta lógica, ele merece o perdão da sociedade? Porque se no caso de um homem misógino, por exemplo, a sociedade não demonstraria igual clemência? São perguntas que o seu filme parece incentivar.

Sim. Mas o julgamento não é sobre o cão ser misógino, é sobre ele ter mordido a cara de uma pessoa. O facto de o cão parecer misógino, ou ser acusado de o ser, é mais um sintoma do problema. Porque isso acaba por dividir as pessoas, cria tensão entre activistas dos direitos dos animais e feministas, por exemplo.

Sim, existe uma separação, ou talvez até exposição, dessas divisões entre diferentes formas de ativismo no filme.

Sim, tento fazer humor com algo que, na verdade, me assusta bastante: o modo como estamos tão separados uns dos outros. A dificuldade que temos em comunicar, em construir uma sociedade em conjunto.

Fala-se muito hoje em dia de como vivemos numa sociedade “extremamente polarizada”, que já é frase recorrente. Basta ver as notícias, ou olhar à volta...

É verdade. O filme tenta fazer humor sobre o nosso tempo, sobre tudo o que me assusta neste tempo.

Partimos então para o seu processo como realizadora. Como surgiu a decisão de se colocar como protagonista na sua estreia na direcção? Foi uma escolha imediata, quando começaste o projeto? Ou considerou outras atrizes?

Inspirei-me muito em realizadores como Nanni Moretti e Woody Allen. Eles colocam-se no centro das histórias, como se dissessem ao público: “vou mostrar-te o que se passa na minha cabeça”. Também redescobrimos essa lógica na série “Fleabag durante este processo, como também pensei em Louis C.K. Gosto muito de retratos íntimos, e então tentei fazer o meu. Porque adoro ver esse tipo de obras.

Acredita que este tipo de abordagem — realizar e atuar ao mesmo tempo — será um modus operandi que repetirá nos seus próximos projetos? Ou este salto para a realização poderá ser visto como algo único?

Por um lado, tenho algum receio. Mas não se trata só de medo. Hoje, quando vejo o filme, já não o sinto como “meu”. Pertence a um momento específico. Agora, sou uma pessoa diferente daquela que realizou este filme. Contudo, tenho de perceber quem sou agora, para poder fazer um novo filme.

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Le Romain de Jim (Arnaud & Jean-Marie Larrieu, 2024)

Quando vê o seu filme hoje, há algo que gostaria de mudar? Podemos considerar a Laetitia como um daqueles realizadores que não gosta de rever os próprios filmes?

São duas coisas diferentes. Por um lado, olho para o filme como um objeto e penso: “isto podia estar melhor, aquilo podia ser diferente”. Mas, por outro lado, sei que se fizesse o filme agora... não seria o mesmo filme. Seria muito mais lento, por exemplo.

Quanto à sua carreira como atriz, já trabalhou com várias realizadoras e realizadores distintos como Justine Triet, em “La Bataille de Solférino, Léonor Serraille, em Jeune Femme, e, devo mencionar, porque foi um filme que estreou em França no ano passado, mas só este ano chegou a Portugal, “Le roman de Jim dos irmãos Larrieu. Mas voltando ao tema da realização: aprendeu com os realizadores com quem trabalhou?

Sim, aprendi imenso com todos eles. Como atriz, aprendi muito sobre mim própria. Sobre como estar num set, sobre como criar um bom ambiente de trabalho. Cada um tinha uma abordagem diferente, mas todos tinham uma força enorme, e não foi só com os realizadores, foi ao observar toda a equipa. Quando via as pessoas a trabalhar nos cenários, nos adereços, nas localizações... era impressionante. Cada trabalho ali tinha beleza. Aprendi imenso só de ver isso.

Na verdade, foi isso que me deu ainda mais vontade de fazer um filme: ver todas aquelas pessoas a trabalhar em conjunto.

Mais até do que observar os próprios realizadores a dirigir?

Sim, mas também aprendi com isso. Com os realizadores a trabalharem comigo. Aprendi que um realizador nunca deve ter medo dos atores.

Mesmo quando os atores são muito famosos, ou mesmo quando não são, o que todos querem, no fundo, é um realizador que lhes dê a mão. Que lhes diga: “estás bem, estás no caminho certo, eu estou aqui contigo”.

Muitos realizadores, especialmente no início, sentem-se um pouco intimidados pelos atores. Mas não deviam. Porque os atores precisam dessa presença confiante do realizador para conseguirem dar o melhor de si.

Por vezes nem gostam deles.

[Risos] A sério?

Sim, tenho conhecimento de realizadores que detestam trabalhar com atores, e como resposta muitos deles apenas trabalham com amigos.

Bem, os amigos também podem ser atores, não é?

Claro. Há quem diga até que prefere trabalhar com amigos do que com o "melhor ator do momento". O Orson Welles, por exemplo, parafraseou isso.

Mas ele trabalhou com a Rita Hayworth... que era a mulher dele, e era maravilhosa.

Sim, mas quando o Welles afirmava tal já se encontrava na fase mais tardia da carreira, com projetos na Europa, mais decadente, com uns quantos trabalhos inacabados e fracassados. Não era o Orson Welles do logo após ”Citizen Kane" e ainda a dar tudo por tudo em Hollywood. 

Mas para mim, os atores no set são meus amigos. Pronto, está explicado.

Durante a rodagem na Suíça, fazíamos fondue todas as semanas! Criámos um verdadeiro espírito de grupo. Muitos dos atores que escolhi são também realizadores. Não a Anabela [Moreira], mas ela é uma mulher absolutamente fantástica.

Mas ela co-realizou alguns trabalhos com o João Canijo … mas já agora, devido à menção, e como português, tenho que lhe perguntar: como surgiu a Anabela Moreira no seu projeto?

Tive muita sorte! Na história real havia mesmo uma mulher portuguesa, empregada doméstica, que foi a vítima das mordidelas e que decidiu apresentar queixa. Queria que essa personagem fosse alguém com muita força. Alguém com presença, com personalidade — fosse famosa ou não. Tive a sorte de conhecer a Anabela, e ela aceitou o papel.

Para mim, a personagem dela — Lorraine — é a verdadeira figura feminista do filme. É ela quem mais evolui, quem ganha mais independência e liberdade ao longo da história. Mesmo que não esteja presente o tempo todo. Por isso precisava de uma atriz muito forte.

Reparei também noutra coisa: a sua personagem portuguesa não é o típico estereótipo que se vê noutros filmes. É uma mulher independente e só sabemos ser portuguesa apenas numa menção no julgamento. Ou seja, poderia ser de qualquer outra nacionalidade, e neste ponto, o desempenho de Anabela não denuncia nada.

Sim! Ela tem muita dignidade. Não quer parecer-se com ninguém, e isso é o que gosto nela. Tal como na vida real, na verdade, as pessoas surpreendem-nos. Não são estereótipos, são únicas. Pretendia que esta mulher fosse daquelas que queremos conhecer. Um pouco estranha, talvez, meio sexy, meio solitária. Acima de tudo com uma presença fortíssima.

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Le Procès du Chien (Laetitia Dosch, 2024)

E como foi trabalhar com o ator principal de quatro patas? É difícil dirigir um animal?

Não acho que seja difícil. Depende muito. O essencial é escolher bem: tanto o cão como os treinadores.

Apaixonei-me por este cão, e pelos treinadores também [risos]. Trabalhar com eles foi maravilhoso. Tínhamos uma ótima comunicação. Ensaiámos bastante, falámos muito. Cheguei a reescrever cenas para o cão. Toda a planificação do filme foi feita em função dele, para que estivesse confortável. Tinha um espaço só dele, havia regras para o proteger. Tudo foi pensado para que se sentisse bem e acho que ele sentiu. Portanto, não foi difícil, e sim adorável.

Esta pergunta é mais abstrata sobre o seu filme, porque ele toma vários caminhos e o final vai numa direção muito diferente das anteriores …

Como a vida.

Exatamente. Mas cá vai: podemos entender o seu filme como um feel-good movie? Porque há uma intenção de conforto, de humor... mas depois há uma certa traição, o filme não entrega uma resposta fácil, nem a festinha necessária.

Há muito amor neste filme, é o que posso dizer. É tudo sobre o amor, de certa forma. Os personagens são emocionantes e divertidos. Todos são um pouco marginais. Até o cão. São personagens fortes, mas que não são totalmente aceites pela sociedade, e ao mesmo tempo, são adoráveis. Há muita coisa engraçada no filme, só que partilham com muita melancolia.

Então... será um feel-good movie? Talvez seja um filme que nos faz querer amar as pessoas. Cuidar. Pensar. Cuidar dos animais, dos cães, das pessoas. Questionar-se. Portanto, não é um feel-good movie no sentido mais leve. Não é um filme fácil. Porque a vida não é fácil nem divertida o tempo todo. Mas podemos rir da vida e podemos aproveitá-la.

Há um … aliás, outro elemento muito atual no seu filme, que salta à vista: a advogada de acusação, interpretada por Anne Dorval, é uma figura popular naquela sociedade e que entra na política. Pelos vislumbres que temos no filme converte-se num tipo de político populista e demagogo, um arquétipo que conhecemos bem neste mundo em que vivemos.

Sim, completamente.

Foi sua intenção injectar esse elemento populista, quase caricatural, mas que, no fundo, e infelizmente, também tem muito de real?

Totalmente. Quando escrevi o filme, já me assustava ver como certas figuras públicas ganhavam popularidade com base no absurdo. Hoje tenho ainda mais medo. Porque esses populistas parecem palhaços, e isso faz parte da força deles. Querem parecer ridículos, porque assim as pessoas falam deles, e falando, dão-lhes poder.

É um absurdo... falso. Porque, na verdade, é realista. Às vezes olho para as notícias e parece que a verdade deixou de existir. Que se escondeu e o mais importante passou a ser: “the show must go on.” Para mim, é disso que trata essa personagem.

Chegando agora à sua carreira como atriz. Tem novos projetos?

Sim. Terminei a promoção do meu filme em outubro. Depois actuei num filme chamado “La Maison des Femmes" (Melisa Godet), sobre uma associação em França que apoia mulheres vítimas de violência. É um centro onde trabalham médicas, psicólogas, assistentes sociais — pessoas incríveis a ajudar mulheres. Interpreto uma das médicas. Tenho muito orgulho nesse projeto.

Mas depois disso... não me sentia inspirada. Fiquei em casa, no sofá. Quase sem conseguir mexer-me. Então decidi viajar. Fui a Lisboa, em dezembro, e depois fui para Barcelona. Precisava que a inspiração viesse até mim. Estava a estudar yoga em Barcelona quando recebi um telefonema para interpretar “Mãe Coragem” [peça de Bertolt Brecht e Margarete Steffin], num espectáculo que anda em digressão pela Europa. Agora estou em tournée com a peça. Tenho o papel principal. Esta semana atuo em Barcelona. E é lindo. Mas... ainda não sei o que vou escrever a seguir.

Mas continuas ligada à escrita dramática e ao teatro?

Não sei. Agora acabei de fazer um filme. Em dezembro fiz “La Maison des Femmes”. E agora estou no teatro. Mas o que me importa mesmo é isto: o encontro com as pessoas. As relações. É isso que me move.

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Jeune Femme (Léonor Serraille, 2017)

Hoje em dia acho que é uma pergunta muito pertinente, mas estive a rever a sua carreira... e percebi que, nos últimos anos, trabalhou com várias realizadoras. Isso foi uma escolha consciente?

São relações. Estou muito feliz por ter conhecido cada uma das mulheres com quem trabalhei. São todas muito inteligentes e muito diferentes entre si. Foi uma grande alegria, como atriz, poder entrar na cabeça delas, tentar perceber o que queriam, encontrar o que procuravam nas personagens. É um desafio que me dá imenso prazer. Mas também sinto esse prazer com realizadores homens, claro. Não sei... Não sei ao certo. Só sei que tive muita sorte em poder trabalhar com estas mulheres.

Sim, porque vi nomes como Danielle Arbid, Léonor Serraille, Catherine Corsini, Maïwenn...

Sim, e Melissa Godet também. Talvez nos últimos cinco anos tenham sido mesmo muitas. Mas não sei se é uma questão de género. Elas são muito diferentes entre si. Cada uma tem o seu estilo. Não dá para generalizar, o que é ótimo, aliás.

"A poesia não é apenas escrever versos": antes do pequeno almoço, uma breve conversa com Alejandro Jodorowsky.

Hugo Gomes, 06.07.25

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Alejandro Jodorowsky, ao lado do seu filho mais novo e actor Adan Jodorowsky, em "Poesia Sin Fin" (2016)

Estávamos em setembro de 2017, em pleno sábado, e eu, em modo de ronha matinal, mantinha-me na cama até ser surpreendido por uma chamada. Atendi: “Olá, Hugo, sobre a entrevista com o Alejandro Jodorowsky. Ainda estás interessado? Ele está no hotel e ainda te pode receber.

Respondi com um súbito “a caminho” e por via de um salto saí da cama, vesti-me em tempo recorde e “voei” em direção à Avenida da Liberdade, mais especificamente para um hotel a poucos metros do Cinema São Jorge, onde decorreria o MOTELX, o Festival de Cinema de Terror à moda lisboeta. Nesse ano, o certame convidava duas lendas do cinema de género: Roger Corman — o produtor frutífero e prolífero, uma instituição em forma de pessoa, com quem tive o prazer de me cruzar na tentativa de condensar uma carreira longa e multifacetada, com mais de cem filmes creditados, numa ‘coisa’ de vinte minutos — e Alejandro Jodorowsky, o delirante, o onírico poeta-mago-psicodramático, que desceu da sua “montanha sagrada” para se apresentar como cineasta do terror. Discutível, é certo… ainda assim, “Santa Sangre” (1989), uma das obras selecionadas, aproximava-se desse universo. O cineasta chileno, igualmente multifacetado (dramaturgo, escritor, poeta, autor de banda-desenhada e segundo alguns fontes, exímio leitor de Tarot), já motivava multidões que se amontoavam para assistir a uma das duas palestras promovidas pelo festival. Na fila extensa, via-se alguns fãs que entre braços seguravam BDs de autoria jodorowskiana e storyboards — pretendiam mais do que uma “TED Talk”: uma assinatura, ou até uma selfie, duas consoantes capazes de fazer este aventurados felizes.

Contudo, voltando à minha correria: era a oportunidade de estar cara a cara com o realizador de “El Topo” (1970), protagonizado pelo próprio com o seu filho mais velho Brontis, um western à margem das suas conformidades cujo culto o expandiu para outras margens. Tinha pedido este encontro à organização do festival, e a resposta chegou envolta em incerteza: “Ele tem uma agenda cheia. Teríamos de lhe perguntar.” Esperei, então, com alguma expectativa por uma confirmação que tardava, mas que desejava intensamente. Desde novo, os filmes de Jodorowsky fascinavam-me — levavam-me para além do terreno, da minha mortalidade. Talvez tenha sido esse impacto, difícil de traduzir em palavras, que senti ao assistir a “The Holy Mountain” na adolescência. Equiparo essa jornada xamânica a uma “moca” consciente… Desde cedo alimentava o desejo de o conhecer pessoalmente: ele e as suas vontades quase new age, impregnadas de uma espiritualidade performativa. Mesmo que as vozes antagónicas ao seu modo operativo se fizessem ouvir com alguma trovoada nas redes sociais, muitos viam nele um mestre, chegando aos seus gurus com aprovação e consentimento. Outros, porém, dirigiam-lhe os mais vis nomes. Jodorowsky nunca foi totalmente consensual. Uma franja da cinefilia (grande parte dela conformista ou formalmente conservadora) olhava com desconfiança a surrealidade alucinogénica do realizador.

Já na história corrente, não vá deambular com biografias em modo ‘wikipediado’ … Foi então que, à chegada ao hotel, no lounge, Alejandro (permita-me tratá-lo assim) aguardava-me num cadeirão majestoso, óbvia réplica-macaca a destoar um ar versalhês. Mas isso pouco interessava: tinha chegado.

Tens poucos minutos. Ele tem a agenda cheia e ainda não tomou o pequeno-almoço”, advertiu-me a assessora de imprensa. Agradeci. Puxando uma cadeira, não tão pomposa como a dele, sentando à sua frente. Tentando esconder o meu nervosismo de fã, apresentei-me, apertei-lhe a mão: Hugo Gomes… prazer!”, disse num “portunhol” sem espinhas, antes de dar início à [pequena] conversa.

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Santa Sangre (1989)

A minha primeira pergunta é sobre esta sua vinda ao MOTELX, que é um festival com uma temática especialmente ligada ao terror. Isto é, poderemos de alguma maneira considerá-lo um cineasta do terror ou a caminhar para esse género?

Bem, se formos a ver “Santa Sangre” é de uma natureza muito próxima ao terror, diria antes, é um filme de terror, sem querer com isto colocá-lo num género definido. Um dos factores que o bem define nesse género é o seu produtor, Argento

Argento? Dario Argento?

Não, esse é o seu irmão mais velho. Claudio Argento, que também produziu grande parte dos filmes do Dario e cuja família encontra-se bem vincada nesse território. 

Lembro-me na altura, Claudio estar cansado do terror puro, tinha pretensões de experimentar algo diferente, mas mesmo assim, seguiu para minha casa e propôs-me um filme que envolvia a morte de uma mulher. Morte de uma mulher? Perguntei-lhe. Ao qual ele me respondeu, que nos dias de hoje o surrealismo gira em volta em “matar mulheres”. Matar uma mulher? Frisei, porque não matar … não sei … todos os homens, não sei, cavalos, moscas … mas o porquê de matar mulheres? 

Então fiz este filme sobre “matar uma mulher”. Porém, só matei uma. Uma forte e assustadora mulher [risos].  O filme todo é delirante, muito intenso, mas entende-se os motivos psicológicos, a razão profunda pela qual ele é um criminoso. Tem ali algo de psicanalítico, mais profundo, e quando o terror atinge isso, essa profundidade… Qual é o lado positivo que este terror produz? Não é terror só por ser terror. É uma forma de cura. É diferente. Tudo bem, é terror, só que mais profundo.

Uma das frases mais famosas que se usa para descrever a sua carreira é: “não fazer filmes, e sim fazer poesia.

Sim, poesia. Poesia visual acrescento.

Agora, o que é poesia? A poesia não é apenas escrever versos, escrever palavras. Já em Itália, [Filippo Tommaso] Marinetti, no Futurismo, dizia que a poesia é um ato. A partir dessa ideia podemos afirmar que a poesia também pode ser composta por ações poéticas. Não apenas escrita.

Há dois tipos de cinema: o industrial e o de autor. O cinema industrial não é arte, porque está preso ao dinheiro. Não é livre, nem sequer honesto. Faz aquilo que o público gosta, mas não cria nada de novo. Só procura agradar para gerar lucro. É uma indústria. Já o de autor é arte, quando é bem feito, claro. Porque é uma sucessão de atos poéticos. e o que é um ato poético? É um ato livre e honesto. Autêntico. Não há fingimento. Não há falsidade. Apenas vai à procura de uma verdade interior.

Isso sim, é poesia! Os teus poemas são verdadeiros. Penso na obra em si, e não nos frutos industriais dessa obra. O fruto industrial é o dinheiro, o poder e a fama. É isso que o cinema industrial procura: o dinheiro é o lucro, a fama são os actores, e o poder está ligado ao governo, porque todos os filmes industriais estão, de alguma forma, sob o controlo da política oficial. Eu não faço isso. Eu faço cinema de arte!

Claro, se fizeres um filme teu — verdadeiro, livre — e ele for um sucesso económico, tu não pediste esse dinheiro. Deus deu-to. Abre o bolso... e assim recebes. Porque não o pediste. Simplesmente veio ter contigo.

Sobre essa questão, deixa-me ir a um dos seus primeiros filmes, “El Topo”. John Lennon tornou-se um acérrimo fã …

Sim, gostou muito. Sem dúvida.

E deu-te dinheiro para fazer “The Holy Mountain”? Ou seja, se não fosse essa relação, o Jodorowsky não conseguiria o seu salto?

Sim, “The Holy Mountain" foi um “game changing” na minha carreira.

Ele pediu ao Allen Klein, que era o empresário dos Beatles, dos Rolling Stones e do Bob Dylan, que me ajudasse. Era um produtor incrível… mas um homem terrível. Então o John Lennon enviou-me até ele. Pediu-lhe que me desse um milhão de dólares para eu fazer o que quisesse. E foi isso que eu fiz: o que quis [risos].

[risos] É sabido que em “The Holy Mountain”, o Alejandro experimentou drogas — LSD, cogumelos — para idealizar o filme. É verdade? As ideias do filme baseiam-se nessas suas experiências e efeitos?

Sim. Como é que posso explicar…? Foram cogumelos sagrados. Mas não foi uma coisa contínua. Só uma vez. Porque estava a seguir um guru. Um mestre espiritual. Eu, nessa altura, não era mestre, então senti que precisava de saber como funciona a mente de um mestre.

Fiz a experiência. Mas apenas duas vezes. Não constantemente.

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El Topo (1970)

Portanto, “The Holy Mountain” é baseado nessa tua experiência — seja visual, mental…

Era um filme muito avançado para a época. O produtor enlouqueceu e decidiu não o lançar. Queria que fizesse um filme produzido pela Playboy … sim, a revista Playboy [risos] … com muitas mulheres, e a matar mulheres. Como um desses filme de terror, a matar mulheres. Fugi disso [risos]. Não quis fazer.

E ele disse-me: "Se não fizeres isso, ninguém vai ver o teu filme." Durante 30 anos ele não mostrou o filme. Trinta anos! Dizia: “Ninguém vai entender mesmo.” Entretanto, tinha algumas cópias de trabalho, em vídeo… Dei-as a todos os piratas: na Rússia, no Chile, nos Estados Unidos.

As pessoas viam esse filme e também “El Topo” em más condições. Entretanto, o meu inimigo, Allen Klein, envelheceu, mas tinha um filho, muito boa pessoa, Jody Klein, que assumiu o negócio. Contactou-me. Conversámos. Resolvemos o problema, e, passados 30 anos, finalmente estreou o meu filme nos Estados Unidos.

E agora o filme está a ser exibido em Hollywood. Ainda hoje. Ainda anda em cartaz por lá.

E é um filme de culto.

Mais do que isso.

Mais do que um filme de culto?

Hoje em dia as pessoas conseguem compreendê-lo. Esse filme… 

E há rumores de que vai existir uma sequela de “El Topo”.

Sim, sim, sim.

E será você a fazê-lo?

Sim. Mas para o fazer, vou usar animação.

Animação?

Sim. Para isso, estou a trabalhar com um artista fantástico, um génio, que se chama José Ladrönn. É mexicano  e vai desenhar uma banda desenhada, como se fosse um storyboard cinematográfico. Já fizemos o primeiro volume, vão ser três no total. Estamos a terminar o segundo volume. Quando os três estiverem prontos, teremos todas as imagens do filme já desenhadas, e assim terei possibilidade de angariar financiamento para fazer “El Topo 2.

É isso que estou a fazer e gosto da ideia de ver isso realizado. Também estou a trabalhar num documentário sobre psicomagia, estou a produzi-lo neste momento.

Como o seu apelido, Psychomag.

Sim, estou mesmo a fazer isso. Além disso, estou a preparar a terceira parte da trilogia autobiográfica - “La danza de la realidad” (2013) e “Poesia sin fin(2016). Agora, a jornada essencial da terceira parte está terminada.

E depois… morro.

Entrevista de 2017, no âmbito do MOTELx, repescada e reeditada para acompanhamento das sessões de “El Topo”, a ser projetado na Cinemateca nos dias 07/07 [Esplanada, 21h45] e 18/07 [Sala Félix Ribeiro, 15h30]

Sol de Carvalho entre "O Ancoradouro do Tempo" e o Moçambique cinematográfico: "o cinema é a transfiguração do real."

Hugo Gomes, 27.06.25

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O Ancoradouro do Tempo (2024)

Da varanda do Frangipani, vemos Moçambique: uma ilha, uma fortaleza, um crime, e, na sua trajetória, um detetive determinado a resolvê-lo e a deter o homicida. Contudo, a investigação escapa pelos dedos deste agente da justiça, a verdade nem sempre é linear: é burlona, trocista, finteira.

O Ancoradouro do Tempo”, a nova longa-metragem de Sol de Carvalho, estreia entre nós após a sua inauguração na última edição do Leffest. Trata-se de um thriller imaginado nas palavras de Mia Couto, num duelo sem ganhos nem vencidos para com o real e o mundo espectral do além. Nesta conversa com o realizador, partimos do ambiente da produção, mas não cedemos à âncora, prosseguimos para outras margens, outros cantos, e, no fim, para um lamento sobre o estado do cinema moçambicano.

Então vou começar pela génese do projeto. O que é que o fascinou no livro do Mia Couto? Já sei que não é a primeira vez que trabalha com um texto dele [“Mabata Bata”, 2017]...

Está a falar d’ “A Varanda do Frangipani”, certo? Porquê que cheguei a essa obra? Há uma história por trás disso. Eu e o Mia somos amigos há muito tempo, já tínhamos colaborado antes. Na altura, eu tinha acabado de fazer "Mabata Bata”, que foi uma criação muito livre a partir de um conto dele. E ele disse-me: “Vamos fazer um trabalho mais estruturado juntos.” E assim surgiu a proposta para adaptar “A Varanda do Frangipani”.

Quando li o livro, a primeira coisa que me fascinou foi o facto de ser uma história que se podia filmar num ambiente mais fechado, mais contido, que é um tipo de espaço que me agrada muito de trabalhar. Um lugar onde tudo acontece, mas onde o próprio ambiente contribui para a narrativa. Depois, quando surgiu a ideia de filmar na Ilha de Moçambique, percebi logo o potencial que aquele espaço tinha para enriquecer a história. A ilha, o seu tempo, a sua arquitetura... tudo isso podia ser mais do que cenário, podia funcionar quase como uma personagem. Nos primeiros guiões, demos muita importância à própria ilha, talvez até demais. Mais tarde, tentámos reequilibrar isso, dar mais peso às personagens, para não dispersar demasiado.

Mas o que me atraiu mesmo foi isso: uma história fechada num espaço onde o ambiente ajuda a revelar a psicologia das personagens. É como se o espaço e a história conversassem.

Gosto muito dessa questão do ambiente, porque em todo o filme sentimos quase uma aura fantasmagórica, muito presente naquela fortaleza, e várias vezes ao longo do filme também se evoca o passado colonial. Neste filme, o Sol brinca com algo que não é bem o sobrenatural, mas talvez uma certa (sobre)naturalidade da memória. Um lado mais... espectral, talvez?

Sim, exatamente. O que acontece é que os “velhos” - e no filme são mesmo chamados assim - acabam por representar, de certa forma, a identidade moçambicana. Há elementos que talvez uma audiência estrangeira não capte de imediato. Por exemplo, o filme é falado em três línguas nacionais, e há ainda um personagem que representa, de certa forma, a comunidade indiana: uma comunidade com muita importância em Moçambique, mas que é, historicamente, vinda de fora.

Mesmo entre os personagens, há trajetórias distintas. Essa personagem, por exemplo, é de origem local, mas acaba por sair do país. É uma espécie de retrato da viagem dos moçambicanos ao longo de 50 anos de história. Temos também a personagem mais “refilona”, a que contesta, e depois o director, mais autoritário, vertical, ligado à ideia de ordem. Tudo isto, de certa forma, reflete o que está a acontecer em Moçambique hoje. Ou seja, dentro daquele espaço fechado, os personagens funcionam quase como símbolos da sociedade moçambicana, da sua identidade, da sua moral. 

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O Ancoradouro do Tempo (2024)

Há uma pergunta que paira no filme: o que é o bem e o mal? O que é a coerência? O que pode ser a integridade de um polícia? A sua determinação em não ceder à corrupção, ao roubo fácil?

Tudo isso me fascinou no livro, e o facto de se passar na Ilha de Moçambique foi muito significativo. Aliás, acabámos por reescrever algumas cenas em função dos cenários que fomos encontrando. Tivemos algumas dificuldades, por exemplo, dois dos espaços principais, como o quarto da personagem Nhonhoso, tinham condições de som muito complicadas. Tivemos de adaptar para conseguir filmar.

Mas visualmente eram muito fortes, tinham aquele impacto que queríamos. Portanto, foi um guião que começou num livro, passou por uma fortaleza, encontrou um espaço concreto… e esse espaço também acabou por influenciar a própria escrita do guião.

Há um lado que me interessou bastante neste filme, e por isso é que fiz aquela pergunta anterior sobre o seu acesso ao livro, mas, na verdade, o que quero destacar é outra coisa: essa estrutura do policial, do detectivesco, a investigação de um crime rodeado de múltiplas verdades. Quase até ao final seguimos essa lógica típica do whodunit, em que vamos juntando pistas até chegar à verdade. E, nesse percurso, o espectador pode assumir duas posturas: ou tenta ele próprio resolver o caso, como um detective, ou então entende tudo como metáforas, entrando num jogo mais simbólico.

Sim, a estrutura de “Crime no Expresso do Oriente” foi, de certa forma, uma inspiração para este filme. Mas há uma nuance e era precisamente aí que eu queria chegar com essa ideia da ambiguidade. Nós colocámos, de forma deliberada, elementos no filme para que o espectador perceba que as histórias que estão a ser contadas pelas personagens podem ser plausíveis... mas talvez não sejam verdadeiras.

Há adereços, por exemplo, que ajudam a sinalizar isso: uma bengala que se parte e depois aparece inteira, e o espectador pode até pensar “ah, erro de continuidade”. Mas não é. Foi feito de propósito. Ou uma pedra com uma mancha de sangue. Pequenos detalhes que piscam o olho ao espectador e dizem: “atenção, isto pode ser mentira.

Outra coisa que fizemos foi dar uma instrução muito específica aos actores: não representem nem como se fosse teatro, nem como cinema realista. Façam algo ali no meio. É difícil explicar, mas a ideia era criar uma certa distância, como se o actor estivesse, ao mesmo tempo, a contar a história e a dar uma piscadela ao espectador, dizendo: “estou a aldrabar este tipo.

No fundo, todos ali sabem que estão a mentir. Mas ao mesmo tempo, e é aí que acho que está a genialidade do texto do Mia Couto, as histórias têm uma base de verossimilhança tão sólida que o espectador pode perfeitamente acreditar que são verdadeiras. Fica ali uma confusão — propositada — no espectador: “Então, há um assassino ou não? Quem será? Será que há mesmo um crime?” Mas isso é um truque. Porque, na verdade, a história é outra. Cheguei a fazer uma versão mais longa do filme, com duas horas e quarenta e tal minutos, e mostrei metade a um grupo de pessoas, só para fazer um inquérito. A maioria dizia: “Queremos saber quem é o assassino!” Ou seja, o filme prende porque entra nesse território do whodunit, mas depois subverte-o completamente.

Ao contrário dos romances da Agatha Christie, por exemplo, onde tudo é resolvido no fim com base nas pistas que foram sendo lançadas, aqui a explicação final está completamente fora dessas pistas. Só quando se revê o filme, com atenção, é que se percebem dois ou três detalhes, como quando a rapariga fala dos olhos vermelhos e das câmaras de pangolins, que já dão a entender que há uma camada mais profunda. Essa ambiguidade foi totalmente propositada, e, sinceramente, é uma das coisas que mais gosto no filme.

Também é uma forma de convidar o espectador a ver o filme outra vez.

Também. É uma forma de o agarrar. Sou da opinião, e estou no campo dos cineastas que acreditam nisto, de que podemos ser profundos, claro, mas não precisamos ser… vou usar um termo talvez feio… intelectualoides. Quando digo -oides, digo mesmo isso: um certo tipo de intelectualismo vazio. Não estou a atacar o pensamento intelectual, que é necessário, mas sim aquela postura que afasta, que se distancia do público.

A ideia que tento sempre construir nos meus filmes é a de criar diferentes camadas. Há sempre uma história mais superficial, digamos, que pode ser seguida como entretenimento. Porque o cinema, antes de mais, tem que entreter. Mas depois, sim, podemos usar essa base para fazer com que as pessoas pensem, reflitam, tomem consciência de algo. Sou adepto desse cinema que entretém, mas também inquieta, que oferece algo a quem quiser ir mais fundo. Mas não acredito na ideia de “agora vou fazer um discurso muito elaborado, complexo, denso” e pronto, esqueço o público. Não. As pessoas têm que gostar do filme, têm que se envolver.

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Sol de Carvalho

Têm que sentir essa verdade …

Exactamente! Penso que o Mia faz isso muito bem. Quando ele brinca com as palavras, está a criar imagens que são quase culinárias, ele é um verdadeiro chefe de cozinha das palavras. Nunca pensei que fosse usar essa expressão [risos], mas pronto. É isso. Nós lemos Mia com um sorriso nos lábios, mesmo quando o conteúdo é denso ou sério. Essa é a ideia: não afastar o espectador, manter essa ligação. Seja com o leitor, seja com quem vê o filme.

Falando em ligação, olhando para a sua carreira, e os seus muitos trabalhos, não consigo deixar de ver neste filme, sobretudo quando os suspeitos contam as suas histórias, uma dimensão quase documental, de investigação.

Sim. Há algo disso. Comecei como jornalista, e o Mia também. Aliás, o nosso primeiro contacto profissional foi enquanto jornalistas. Isso cria uma ligação natural com a realidade. Depois há um outro ponto: o cinema em Moçambique surgiu numa altura em que não havia televisão, por isso, desde o início, o documentário teve um papel central. Mas, com o tempo, comecei a interrogar-me sobre o que era essa “verdade” do jornalismo. O que é que significa, por exemplo, o direito ao contraditório? Se um lado tem 70% de razão e o outro só 30%, faz sentido dar 50% a cada um? Isso é justo? Descobri também que, na história, nunca há uma versão final. A história é escrita pelos vencedores, e está sempre incompleta. Deve ser posta em questão, deve ser divulgada, sim … mas nunca é fechada.

Nessa altura, até por causa do contexto político, o regime era difícil (vou dizer isto como forma simpática), percebi que talvez fosse mais honesto, da minha parte, dizer a verdade a partir da ficção. Mas atenção: essa ficção tem que possuir uma base real, sólida. E mais: acredito muito que o espaço alimenta a narrativa. Se quero fazer um filme sobre as viúvas em Inhambane, vou lá, escuto, observo. Não faço necessariamente um documentário, mas recolho elementos da realidade para construir uma ficção a partir disso.

Por exemplo, “O Jardim do Outro Homem(2007) nasceu de entrevistas com raparigas que tinham sido vítimas de chantagem sexual por parte de professores. Em plena rodagem, chegámos a apanhar uma professora em flagrante, numa dessas situações. Em “A Herança da Viúva” (2000), fiz a mesma coisa. E em “Mabata Bata (2017), quando abordámos as cerimónias e os espíritos, fomos à procura do que esses elementos significavam localmente. A questão simbólica das árvores, por exemplo. Usámos a figueira selvagem — a fig tree — que é uma árvore muito respeitada, onde as pessoas sobem em caso de cheias, uma árvore de salvamento. Por isso mesmo, nunca é cortada. É também o local onde se acredita que habitam espíritos.

Tudo isso nasceu da realidade. Não se inventa do nada. Há uma recolha. Mas depois eu liberto-me disso para criar. Às vezes não me liberto assim tão bem [risos], mas enfim... são os riscos do ofício.

Gostava de falar um pouco desse traço da busca pela verdade. Porque o Sol, tal como mencionou, foi jornalista, fez vários documentários, e muita da sua ficção tem esse lado social. Na verdade, queria fazer duas perguntas numa só: Este filme tem uma dimensão social clara, mas também foi filmado no contexto da pandemia, e isso está presente, até pela simbologia do pangolim. Por um lado, temos a questão da criminalidade contra os albinos, por outro, o contexto da pandemia. A ficção serve aqui como um veículo para trazer esses temas?

Sempre. Sempre. Há duas frases que uso muitas vezes: o cinema é a transfiguração do real. Ou seja, vou ao real, bebo dele, digiro — faço a digestão — e depois vomito. Mas quando vomito, já é outra coisa. Já não é o mesmo. É um processo que se passa dentro de mim: cerebral, mental, às vezes até físico.

Depende da minha aproximação com o tema, do olhar: se olho com grande-angular, se uso uma teleobjetiva, se isolo a pessoa, se a coloco no contexto do espaço. São escolhas do cinema, claro, mas todas ligadas à verdade. Agora, o porquê dessa insistência na verdade?

Já tive esta discussão com o Mia, ele também sente essa ligação com a verdade, está nos livros dele, é evidente, mas ele sente-se mais livre. Ele gosta de deixar o leitor ou o espectador na dúvida: será isto verdade ou não? No meu caso, o que me interessa é essa ambiguidade entre o real e o imaginário, especialmente por causa do nosso universo espiritual moçambicano. Aqui, em Moçambique, tu podes estar sentado numa sala e alguém diz: “aqui ao lado está o espírito”. E sentem mesmo isso.

Não sinto, confesso, cresci de outra maneira, com outras referências - Deus, o Diabo, essas coisas da cultura católica -, mas Moçambique é uma mistura: temos a cultura católica, sim, mas também uma cultura sincrética e uma cultura animista muito forte. Essas culturas misturam-se. Então tens Cristo ao lado do Espírito ancestral. É difícil explicar isso a alguém de fora, mas aqui faz todo o sentido.

Esses elementos são tão fortes que, se os respeitar no meu cinema, não estou a mentir ao espectador. Estou a criar um mundo imaginário, sim, mas esse mundo é verdadeiro dentro da nossa lógica cultural. Quando vejo um filme como o “Black Panther”, por exemplo, aquilo é claramente imaginário, ninguém duvida. Mas nos meus filmes, essa separação não é assim tão óbvia. Essa ambiguidade está muito ligada ao nosso mundo espiritual. Dou um exemplo: uma série que estou a fazer agora, por causa da guerra, tem um episódio sobre o Ritual da Reconciliação. Esse ritual é essencial para os soldados que mataram e sobreviveram. Quando voltam para as suas aldeias, têm que passar por esse ritual, que envolve o sangue, a lavagem, para se purificarem. Se não fizerem isso, não podem viver na comunidade. Porque trazem os maus espíritos com eles. E sabes que mais? Esses rituais de reconciliação foram, em muitos casos, 300 vezes mais eficazes do que os grandes discursos das Nações Unidas. Os panfletos diziam “vamos reconciliar as famílias”. Mas a reconciliação, a verdadeira, acontecia através desses rituais.

Portanto, esse mundo espiritual é tão forte em Moçambique, mas tão forte, que não preciso inventar nada. Só preciso ir lá, escutar, respeitar e beber dele.

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Na rodagem de "O Ancoradouro do Tempo" (2024)

E falando desse mundo espiritual... No filme há aquele ritual ligado aos barcos de pesca, e depois aparece o capataz: “Já disse para vocês não fazerem esta macacada.” Há também uma repressão interna a esse lado tradicional, dentro do próprio Moçambique?

Não, não... Pelo contrário. Houve repressão no início, sim, mas depois veio uma abertura, uma libertação, e hoje isso já está bastante aceite. Os curandeiros e até os chamados feiticeiros já fazem parte do Sistema Nacional de Saúde. Estão integrados.

Porquê? Porque há uma dimensão psicoemocional da cura que, se não passar pelo curandeiro, não acontece. O comprimido, sozinho, não resolve. Foi assim na pandemia, mas já era evidente nos casos de HIV. O próprio curandeiro sabe que não pode curar HIV, ele reconhece que é preciso o medicamento. Mas sem o ritual, a pessoa não acredita que está curada.

Dou-te um exemplo recente: saiu uma reportagem na RTP sobre um ritual chamado Cuxinga. É um ritual sexual em que as viúvas têm que dormir com os irmãos do marido falecido, para serem “purificadas”. Tenho discutido muito esse tema em Moçambique, e as conversas são intensas. Os jovens criticam; os adultos dizem: “Sim, é mau … mas se não houver esse ritual, essas mulheres ficam desprotegidas.” É um pouco como a poligamia: a justificação é que, se formos monogâmicos, 20% das mulheres vão ficar sozinhas (não estou a defender a poligamia, só estou a explicar o raciocínio dentro do sistema social).

Fiz um filme sobre o Cuxinga, e correu muito bem cá. Mas, curiosamente, houve um certo medo. Algumas mulheres diziam: “Não, quero fazer esse ritual. Tenho que fazer.” Mesmo sendo um ato de violência, inclusive sexual, onde não podem mostrar prazer, não podem falar, nada. É um tema duríssimo. Mas existe e mexe com o nosso mundo atual. E porquê abordar isso no cinema? Porque é como no Irão: se não tiveres ligação ao Islão, não entendes as regras. Ou na China, se não tiveres ligação ao Budismo. Ou na Índia, sem compreender o Hinduísmo.

O que quero dizer é que, quando tentamos aplicar políticas novas, às vezes criadas por universidades americanas, sem conhecer as realidades locais, não funciona. Por exemplo, o lobby do “não sexo até aos 16 anos” para combater o HIV... Isso é uma política imposta, completamente desligada das tradições africanas. Há choques e isso é uma discussão essencial no desenvolvimento: tens que desenvolver mantendo a identidade. Se não, vais ser sempre uma cópia, e a cópia é sempre pior que o original.

Isso leva-me à outra pergunta: usar a ficção para trazer estes temas sociais. Que são temas difíceis — e fazer filmes também é dispendioso. O “Jardim do Outro Homem”, por exemplo, foi na altura um dos filmes mais caros de Moçambique, mas continua a trazer temas sociais sensíveis, mesmo quando não são fáceis de abordar dentro da própria sociedade moçambicana.

Sim. Cá, em Moçambique, não tenho problemas com isso. Lembro-me de mostrar “O Jardim do Outro Homem” em Espanha, e houve um espectador que disse: “Gostei muito do filme… mas não sei se gosto da forma como usou um caso excepcional para fazer uma denúncia.” E eu perguntei: “O senhor quer mesmo saber? Mais de 70% das raparigas em Moçambique sofrem chantagem sexual.

Ou seja, não estamos a falar de um caso excecional, estamos a falar de um problema estrutural. É o mesmo com o Cuxinga. Há quem diga: “Mas isso existe mesmo?” Existe. Marca vidas. São temas que muitas vezes estão escondidos debaixo do tapete. E eu, como realizador, gosto de tirar essas coisas debaixo do tapete e pô-las à vista.

Lembro que o primeiro filme seu que vi foi por volta de 2013 ou 2014, no Festin, e foi “Impunidades Criminosas” (2012). Tocava a questão da violência doméstica …

Exatamente. Esse é outro caso. Lembras-te da música?

Sim — “Bate, bate, morre, morre.”

[Riso] Pois. E a pergunta que fazia era: Onde é que está o espírito? No filme, o espírito é o marido morto. Está ali enquanto ela está com outro homem. Ele persegue-a. Só quando ela mata o espírito, é que se liberta. Era essa a mensagem que queria passar: não adianta falar de libertação se, na cabeça, a pessoa ainda não se libertou. Isso é essencial. Também no “Impunidades” quis trazer o espírito para o mundo dos vivos.

Impunidades Criminosas (2012)

Volto ao exemplo do “Black Panther” — não para julgar o filme — mas para mostrar a diferença: Se queres pôr um rinoceronte gigante de ferro, arranjas efeitos especiais e fazes, no meu caso, se quero mostrar um espírito, uso a sombra. Se o espírito sai por ali, mas a sombra anda noutro sentido, há algo errado. Então perguntava sempre: Onde é que o espírito dorme?

Em Maputo, quando mostrei o filme, toda a gente respondia com convicção: “Claro que dorme nos crocodilos.”

E já que falamos dos crocodilos... Vou contar uma história engraçada. Os crocodilos do filme eram pequenos, com cerca de um metro. Fomos buscá-los a uma barragem perto de Maputo. À noite, voltavam numa caixa grande, e eu dizia: “Ficam aqui fechados, e amanhã filmamos.” Mas ninguém da equipa queria deixá-los lá à noite! Então, todos os dias fazíamos 35 km para ir buscá-los de novo. E antes de começar a filmar fizemos uma cerimónia para acalmar os espíritos, porque íamos filmar naquela zona.

Acredito nisso? Não. Mas era importante, para que a equipa e a comunidade se sentissem bem. No “Mabata Bata” fizemos o mesmo, a senhora que fez a cerimónia sacrificou animais — é uma festa, um ritual mesmo — e depois disse ao nosso diretor de fotografia: “Esta tarde vai chover. Mas vocês são muito bem-vindos.” Ela sentiu que o tempo ia mudar, e aquilo criou uma ligação: entre nós, a equipa, e a comunidade. Estávamos numa cidade pequena, toda a gente nos conhecia. Correu tudo bem até ao fim.

Essa maneira de fazer cinema com as pessoas… é isso que me entusiasma. Gosto muito disso.

Você tem um cinema chamado Scala e também faz parte da programação dele. Gostaria que me falasse um pouco dessa experiência.

Os cinemas foram todos nacionalizados depois da independência, e, passado algum tempo, quando se regressou à economia de mercado (devia pôr aqui entre aspas "selvagem", porque na verdade esse regresso foi pior do que uma transição normal), os cinemas foram todos privatizados. Na altura, nós estávamos a tomar conta de três cinemas. Não havia filmes, mas estávamos envolvidos, íamos mostrando o que havia, às vezes com filmes trazidos no avião. Então, quando esse processo de privatização começou, solicitámos a compra do Scala. Foi-nos vendido e demorámos 25 anos a pagar … mas pagámos. O Scala pertence agora à nossa empresa.

Porquê o Scala? Porque é um cinema de 1931, clássico, ainda com as cadeiras originais, foi o primeiro cinema sonoro de Moçambique. No início, fazíamos programações com filmes paralelos, o que aparecesse, passámos até alguns filmes indianos. Depois, uns seis ou sete anos antes da pandemia, criámos a Associação Cultural Scala e entregámos-lhe a gestão do cinema. Aí começámos a focar a programação em cinema africano no geral e moçambicano no particular. Neste momento, somos a única sala que mostra cinema moçambicano regularmente. Todas as quintas-feiras temos uma sessão e fazemos também ciclos de cinema. Em Moçambique, não há praticamente hipótese de ver cinema holandês, argentino, italiano, cinematografias muito interessantes, então estas instituições culturais ajudam-nos a organizar ciclos, como o papel que o Cinema São Jorge tem aqui [em Lisboa].

Agora, claro, não temos tido apoio. A manutenção do espaço é complicada, exige muito, só que somos resistentes. Estamos a resistir enquanto pudermos. Mostramos programação moçambicana e temos agora um projeto para começar uma programação africana mais ampla. Mas não é fácil, há poucos filmes disponíveis online. Temos de contactar diretamente os produtores e estamos a negociar isso.

O cinema também tem uma história cultural rica: já atuaram lá o Gilberto Macuácua, a Amália Rodrigues... Tem teatro, dança, música. O Xiquitsi, que é a companhia que ensina norte-americanos a tocar música clássica, está lá instalado, e temos ainda um restaurante. Portanto, vamos aguentando. Mas não é algo que dê rendimento, fazemos isto mesmo por uma missão: somos a única sala a mostrar cinema moçambicano ponto. E fazemos uma programação constante. Todos os filmes moçambicanos e africanos estão a passar ali, em ecrã grande. Um ecrã de 13, 14 metros.

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Cinema Scala, Maputo

Sem DCP, não é?

Mas com boa projeção.

E passam película também?

Não. As máquinas de película eram antigas, com carvão, projetores enormes. Estão lá, mas ficaram paralisadas, a qualidade já não era boa. Depois recebemos um apoio para montar o sistema de som, mas não temos som 5.1 nem DCP, são investimentos muito caros, e o nosso público em Moçambique é pequeno. Por exemplo, com “O Jardim do Outro Homem”, tive a segunda maior audiência em sala: 3 mil pessoas. Mas tive muito mais audiência com o “Jardim” quando o levámos a todo o país com projetor e jipe — mais de 50 mil pessoas viram o filme assim, em aldeias, ao ar livre.

Em sala, é muito difícil. A massa crítica é pequena.

Sobre isso … sobre a cinefilia e a cinematografia moçambicana hoje … eu, como europeu, noto uma certa ideia de que estamos a evidenciar um “boom” do cinema africano no geral, seja em festivais ou até em plataformas de streaming como o MUBI. Tem sentido isso?

Acho que não estou muito de acordo com essa ideia. Talvez em alguns festivais se veja isso… Houve sim um grande boom nos anos 70, 80, 90. Nessa altura cresceu muito. É importante lembrar que os três grandes apoios ao cinema africano eram: a União Europeia (na altura através do ACP — África, Caraíbas e Pacífico), os franceses e, curiosamente, os portugueses, que tiveram um papel super importante na produção de ficção africana. Sem esse apoio, o cinema de ficção — longa-metragem — está condenado. Os nossos países não têm meios para financiar isso sozinhos.

Digo isto não por diplomacia, porque tenho críticas a Portugal também, mas é um facto: devemos muito ao país. Pelo menos há concursos que ainda permitem fazer um documentário, ou uma ficção, e depois articulamos com a ACP, com a UE, que também dá fundos. Os franceses também dão, mas claro, focam-se mais na francofonia.

E sim, nesses países francófonos há mais desenvolvimento agora, também porque os apoios nacionais lá são mais fortes. No caso do “Ancoradouro”, o primeiro dinheiro que consegui foi do ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual], depois fui buscar financiamento noutros lugares, como a Alemanha. Agora, muitos fundos africanos viraram-se (com alguma razão) para o grande desenvolvimento que está a acontecer no cinema asiático.

Veja: faz-se um filme coreano, traduz-se para chinês, e mesmo se for um flop, são 4 milhões de espectadores. E não é só a China, há também a Malásia, Indonésia… Se conseguir entrar no mercado chinês, o filme está pago. Veja bem: 800 mil chineses a pagar 1 euro! … o filme está pago!

Eu não consigo nem 30 mil pessoas a pagar 5 dólares em Moçambique. Fora de questão! E é essa a grande diferença.

Daí que as co-produções sejam tão determinantes...

Sim, só os custos de produção já são um obstáculo. É preciso haver massa crítica … e quando digo massa crítica, não estou a falar só de público interessado, mas de pessoas com dinheiro para pagar bilhete de cinema. Sem isso, não é possível. Tem de haver apoio do Estado, para fazer esse equilíbrio. Houve ali um momento de transição entre a película e o digital, em que surgiram algumas manifestações interessantes. Mas, de resto, o que é que temos em África? Só se for a Nigéria?

Quando referi cinema africano conscientemente exclui a Nigéria, que como bem sabemos é uma indústria à parte.

Exato. Veja: eles fazem filmes para 120, 130 milhões de pessoas, que noutros contextos, que adoram cinema. Em Moçambique, se tiver 250 pessoas numa sala, mesmo com preço de estudante, já é muito. Porque só para sair de casa já há custos. E é por isso que Moçambique está como está. As pessoas não têm condições para sustentar uma indústria cinematográfica. Não concordo com isso — claro que não — mas tenho de aceitar que é essa a realidade.

Houve um deslocamento dos fundos. Muitos foram para a Ásia, para a América do Sul que também são mercados grandes (o Brasil, por exemplo, já funciona por si só), e há todo um mercado de língua espanhola. O ACP (África, Caraíbas e Pacífico), que era uma das grandes fontes de financiamento, agora lança concursos de 3 em 3 ou de 4 em 4 anos. E ainda se dividiu: há agora um ACP francês e um ACP alemão.

Se quiseres voltar a concorrer, tens de ir bater à porta de todos esses. Depois há uns fundos pequenos da Suíça, da Noruega, dedicados ao chamado “Terceiro Mundo”. Mas nós, africanos, tirando a parte francófona, que tem o fundo da OIF e da Francofonia, temos cada vez menos.

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O Jardim do Outro Homem (2007)

Portanto, isso limita também o aumento da cooperação...

Claro. Há algumas cinematografias árabes com bons apoios … mas isso já é outro universo. A África subsariana, ou “negra”, como se costuma dizer, perdeu importância. Há sempre quem continue a organizar festivais e dar visibilidade, mas não estamos a crescer como devíamos. O nosso mercado é insípido: o dinheiro vai todo para a produção, e não há retorno. Num mundo como o de hoje, é difícil continuar a defender estas ideias, a não ser que tenhas muito dinheiro para queimar.

No mundo em geral já é difícil...

E no nosso caso há ainda outro problema: os hiatos. Houve um falhanço na passagem de testemunho, que tem a ver com educação, formação, e com o boom das televisões. A televisão é produção rápida, com equipas reduzidas, dois ou três numa sala. Costumo dizer que virou a "televisão de excelência". Hoje, mesmo nas grandes indústrias, como as dos EUA, já se discute se vale a pena lançar um filme no cinema ou diretamente nas plataformas, cuja a única vantagem, segundo essas empresas, é de ver num ecrã maior. Na nossa realidade, essa passagem de testemunho entre gerações falhou.

Mas apareceu uma geração nova, cheia de criatividade, gente que faz “leite das pedras”. Por exemplo, conheço um jovem em Quelimane que faz um filme de ficção por ano... com 100 dólares! É polícia de profissão, chama os amigos, filma e *já está*. Faz um, dois filmes por ano, e são trabalhos com impacto, com caráter. Tem sucesso! São filmes muito bons, e estão na internet. Gosto muito dele, incentivo-o sempre a continuar, porque ele faz mesmo sem condições nenhumas, e consegue contar histórias. 

Há vários realizadores que fazem esse tipo de experiências...

E que resultam. Resultam mesmo!

Assim de repente vem-me à memória Fede Alvarez …

Exatamente. Agora, em termos de produção... É como no desporto: a Lurdes Mutola foi campeã olímpica, mas sem estrutura. Depois dela, deixámos de ter representação olímpica. É tudo uma questão de bases e no cinema é igual.

Temos muitos jovens talentosos, criativos, mas precisavam de mais apoio e essa negociação com a Europa também devia ser mais acompanhada. Porque eu, com um currículo de 30 anos, consigo ir lá e ganhar fundos. Mas se for a alguém, com apenas dois filmes, ou que está a começar, vai perder. Porque o currículo conta muito. Devia haver incentivos para primeiras e segundas obras.

Mas não há muito disso. Vamos ver...

"Filmar é também uma maneira de viver o lugar": João Rosas, entre a cidade que conhece e a "A Vida Luminosa"

Hugo Gomes, 25.06.25

A Vida Luminosa (2025)

Uma conversa entre alfacinhas, poderíamos, desta maneira, descrever o reencontro entre João Rosas e o Cinematograficamente Falando .... um ano após a morte declarada da cidade, no seu documentário sem título subtil, A Morte de uma Cidade”, o retorno faz-se na luz, não uma alegoria da ressurreição, mas dessa luminosidade que a capital ainda detém como sua.

A Vida Luminosa é também um reencontro, o quarto com Nicolau (Francisco Melo), personagem que surgiu em modo passageiro na curta “Entrecampos” (2013) e, desde então, nunca mais largou a vida fílmica de Rosas (conta-se mais duas curtas). Aqui, na sua primeira longa-metragem ficcional, o “rapaz de Lisboa” procura a emancipação. Mesmo à deriva, um (des)confortável estado em que se encontra, deixa-se levar por peripécias que vão desde Pais Natais em pleno verão, fantasmas da Cinemateca, papelarias frequentadas por trindades, encontros, desencontros, desilusões, surpresas, até ao cemitério não como o Fim, mas como fim de ciclo.

“A Vida Luminosa” é um filme habitado: de gente, de lugares, de marcos ou cultura identificável, é o coming-of-age que nos olha com tamanha esperança, pois, na “flor da idade”, tomam-se riscos, e a indecisão converte-se numa constante da sua naturalidade. Dialogamos sobre o filme … e não só … sobre espectros e parafernálias, cinema e a sua questão essencial, e ainda houve tempo para esquerdas, humanização e o tal “público português” que tantos desejam refugiar.

No outro dia tentava descrever “A Vida Luminosa” a alguém, entendendo que este filme parte de um certo afecto a uma cidade, a de Lisboa e todo o seu biótopo.  Gostaria de começar por aí: poderemos considerar este filme numa carta de amor a uma do qual declarou óbito no filme anterior [“A Morte de uma Cidade”, 2022]?

Sim, é uma ressurreição pelo amor. Enfim... carta de amor? Sim, talvez ... Tendo em conta os meus outros filmes, é óbvio que a cidade, e Lisboa em particular, está muito no centro deles. Mais do que estar no centro ou do que isso ser propriamente um programa ou uma intenção, os filmes nascem mesmo da cidade. e, portanto, não é tanto uma carta de amor no sentido em que se costuma dizer — aquela coisa da luz, do rio, dos monumentos — e sim um interesse e fascínio pela própria vida da cidade. A vida urbana enquanto espaço de encontro com o outro, de amizade, de relações, de convívio, e também um espaço de memórias, de lado afetivo.

Os filmes vem muito disso: por um lado, do quotidiano da cidade, que me dá ideias para a dramaturgia das cenas, para onde quero filmar e o que é que vou filmar; mas também da minha relação, ao longo dos anos, com a cidade, e  tento que isso não seja, no filme, um discurso nostálgico ou memorialista, mas, pelo contrário, que ela apareça como uma entidade viva e em constante mudança. Os filmes começam sempre com um primeiro argumento: uma história geral, com cenas, etc. É só um ponto de partida para um processo de trabalho que começa precisamente por percorrer a cidade a pé. 

Revisito certos sítios do meu quotidiano, presto atenção a certas coisas, volto a lugares do meu passado ou que fazem parte da minha relação com a cidade. Portanto, o filme começa por esses percursos, por andar a pé. É uma forma de ler a cidade e recolher elementos.

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A Vida Luminosa (2025)

Quero mesmo chegar a esse lado pedestre, que é um ponto interessante … 

Os filmes também têm, como pano de fundo, esta ideia, muito óbvia, muito simples, de que a cidade, enquanto espaço, forma também a nossa identidade. No caso do Nicolau, o filme está construído nessa lógica: o movimento dele pela cidade, por um lado, leva-o a encontrar outras pessoas; por outro, essas pessoas levam-no a descobrir uma nova cidade.

O próprio processo do filme parte daí. Depois destes primeiros percursos, digamos, a minha cidade, os meus lugares, há uma fase longa de casting. Vou à procura dessas pessoas, muitas vezes encontradas na própria cidade, ou através de anúncios. Acabo por trabalhar com não-atores, precisamente por isso: interessa-me mais as pessoas do que a sua capacidade de dizer as falas. Isso trabalha-se. Interessa-me a vivência que essas pessoas têm da cidade, e, por isso, a cidade que aparece no filme é uma construção a partir da minha cidade e da cidade que os outros trazem.

Dessa fragmentação constrói-se esta cidade, que alguns veem como uma carta de amor, e percebo isso. É óbvio que Lisboa é uma cidade que gosto muito, é a minha cidade, e interessa-me continuar a filmá-la.

Voltando a esse pormenor ou essência — como referiste, o de caminhar a pé — é comum encontrarmos, diversas obras decorridas em Lisboa, onde, por via do artístico ou da possibilidade do cinema enquanto construção de não-lugar, um por vezes desrespeito pela geografia da cidade. Contudo, no teu filme sinto que há um respeito pelo local e a sua distância. Vemos as personagens a sair da Cinemateca e a entrar pela Avenida, e quem vive na cidade percebe que aquilo faz sentido geograficamente. É claro que a pessoa apanha o metro em Sete Rios e sai na Estação da Luz, são ‘coisas’ que os lisboetas entendem na perfeição.

Sim. Para mim não faria sentido fazer de outra maneira. Todo o filme é realista — com mais ou menos elementos fantasiosos ou oníricos, por vezes — mas estou, sem dúvida, numa tradição de cinema realista, que é o que me interessa. E o cinema também é uma forma de cartografia. Uma cartografia emocional, claro, sentimental. Por isso, faz-me sentido respeitar a geografia real da cidade, e ao mesmo tempo ir desenhando esse mapa: um mapa da minha relação com Lisboa.

Quero que esse mapa tenha coerência ao longo dos filmes. Ele começou a ser desenhado em “Entrecampos”, que germinava essa ideia de mapa muito presente. A Mariana, a rapariga que se muda para Lisboa, tenta apropriar-se do espaço e transformá-lo num lugar vivido, associado a emoções. Já estava ali a semente, sem me dar conta, do que me viria a interessar: a cidade como lugar de encontro e de amizade. A amizade com o Nicolau, nesse filme, é o que lhe dá as boas-vindas à cidade. E o filme acaba com ela nesse fluxo urbano. O mapa está no centro desse filme, e agora vejo (não tinha pensado nisso na altura) que, mesmo sendo também o meu primeiro... vá, filme mais profissional (porque o anterior tinha sido um trabalho de escola), foi também uma primeira tentativa de cartografar. Ou seja, eu próprio estou com a Mariana a tentar apropriar-me deste lugar, que já conhecia através do cinema.

É engraçado ver o filme hoje como quase uma nota de intenções daquilo que viria a fazer. Esse mapa que venho desenhando interessa-me que seja coerente e que as pessoas possam, de facto, percorrer os caminhos que aparecem no filme. Não é só uma questão de vontade. Como disse, as ideias vêm da cidade. Quando filmo a Cinemateca e depois a entrada no metro, é porque a própria cidade me leva a isso.

Por um lado, a Cinemateca é um lugar da minha cidade, onde tenho muitas emoções associadas, muitos anos daquilo, muitos anos a “virar frangos” [risos]. Por outro, já fiz aquele caminho muitas vezes. Quase como se fosse a cidade que me pede para ser filmada. Faz sentido filmar esses lugares. As estações de metro, por exemplo, são muito óbvias para mim, são espaços de entrada e saída, de cruzamento, com essa ideia do encontro ou da possibilidade de reencontro com o outro. Seria um desrespeito para a cidade, que tanto elemento me dá ao próprio filme, para depois, ignorá-las. Aliás, como disse, preparo os filmes assim: faço os próprios percursos que aparecem no filme. Não me faria sentido estar na Cinemateca e, de repente, ir filmar a estação dos Olivais, porque não... Vou desenhando essa teia a partir dos meus próprios movimentos. 

Além disso, os lugares também falam do próprio personagem. Aqueles espaços falam do percurso dele, do seu clã, digamos assim. Não é uma questão utilitária: “vou filmar aqui esta porta nos Olivais e depois filmo ali noutro sítio porque dá mais jeito à produção”. Não. Faz parte da forma como vivo o cinema: filmar é também uma maneira de viver o lugar. Tem de fazer sentido, tem de ser coerente.

A Vida Luminosa (2025)

Sobre a Cinemateca … como bem referiste “A Vida Luminosa” tem uma linha realista, mas há ali um elemento quase fantasioso, encantado, na forma como é tratada a Cinemateca. Além da gag do Nuno Lisboa como um crítico que só cita Bresson, tem uma sequência que me conquistou completamente: eles estão a ver um filme do [Erich von] Stroheim — “The Wedding March” (1928) …

Exactamente!

… e as mãos das personagens falam por elas. No meu alfabeto cinematográfico, os grandes cineastas sabem filmar mãos: o Buñuel, o próprio Bresson… [risos]

Sim, sim. Essa sequência chegou a ser escrita, numa fase muito inicial da ideia, como se eles estivessem a ver o “Pickpocket” (Robert Bresson, 1959), que é um dos meus filmes preferidos e, claro, um dos grandes da história do cinema. Nesse filme, o trabalho com as mãos é incrível. A sequência que acabámos por filmar foi construída em torno da ideia das mãos e dos olhares.

O que me interessava ali, em termos formais, era esse trabalho, esse diálogo entre os olhares dos três atores no filme — o Stroheim, a mulher e o marido — e como ele consegue, só através dos olhares, ligar as personagens. Foi algo que sempre me fascinou no cinema: essa capacidade de ligação pelo olhar. Tentei reproduzir isso, ver se conseguia também construir uma sequência só com olhares, e com as mãos a falarem pelas personagens.

Além disso, a Cinemateca, como dizia em relação à cidade, não é apenas um espaço onde tenho muitas memórias. Para mim, tem uma importância quase política no cinema. Enquanto arte, enquanto fenómeno cultural que está em decadência, pelo menos em sala de cinema afirma-se, como um lugar de encontro, de comunhão, de experiência coletiva. Todos já sentimos isso: por muito que gostemos de ver um filme em casa (e vemos, e gostamos), a experiência de o ver numa sala, com outras pessoas, é completamente diferente. É esse conjunto de anónimos a viver algo ao mesmo tempo, e também um lugar de comunhão amorosa. Não só aquela com a massa anónima, mas também aquela fantasia (ou não) de se apaixonar por alguém que está ali ao lado, um espectador ou espectadora, constatar certas reações, cruzar olhares... Todo esse imaginário interessava-me.

Agora, em relação à questão da cinefilia, para mim é importante. Tem a ver com a maneira como tento trabalhar. A cinefilia — ou outras referências, literárias, etc. — não deve ser algo imposto ao espectador, nem algo que seja preciso decifrar para se entender o filme. Interessa-me que tudo isso esteja integrado de forma orgânica na narrativa. Todo o trabalho de preparação, de escrita, de ensaios e depois de rodagem é um trabalho no sentido da simplificação: a partir de coisas complexas.

Como é o caso deste filme: estamos a falar da formação da identidade. O que é que está associado a essa idade? Como é que essa fase da vida molda os nossos primeiros passos como indivíduos autónomos? Até aí, fomos filhos, estudantes... Depois começamos a dar passos por conta própria e essa fase pode durar anos, por vezes, nunca acaba, mas como abordar isso em hora e meia de filme? A resposta é: tentar depurar, simbolizar, encontrar uma forma formal de o exprimir, e é aí que entra a cinefilia, como mais uma camada de sentido. Mas não é preciso conhecer as referências para perceber o que está ali.

O importante é que o espectador consiga desfrutar daquele momento, aquele instante rico de estar numa sala de cinema, a viver aquilo intensamente. Além disso, o próprio cinema tem esse lado onírico, fantasmático. A própria arquitetura da sala contribui para isso…

Em relação à Cinemateca e ao fantasmagórico, existe ainda esta sua personagem que nos soa quase um fantasma da própria Cinemateca. E, acredita, já ouvi relatos de que há mesmo um fantasma lá… [risos]

A sério? [risos]

Sim. Mas passando para outro lugar: os cemitérios. No filme, eles têm uma presença que não é tanto de fim, mas talvez de reentrada — de reinício até — para a personagem do Nicolau. Gostava de explorar também a simbologia arquitectónica do cemitério, como espelho de uma certa amortização anterior, sem ficar preso a um paralelismo direto entre o cemitério e morte. 

Porque o que vemos é … deixa-me só fazer uma interpretação … um jovem de 24 anos, já naquela idade em que é suposto começar a definir o que quer da sua vida. Um adulto, mas ainda em transição, que está numa cidade que também se desfragmenta. Tudo o que conhecia está a escapar-lhe: a namorada que o deixou, o círculo de amigos, os lugares, os rituais... e então encontra no cemitério um ponto de fecho dessa vida anterior. A parte dali, não oferecendo-se diretamente para outra pessoa, mas abrindo caminho para outra direção. Não sei se o cemitério em “A Vida Luminosa” representa esse anúncio de morte ou de passagem?

Sim, o cemitério é um lugar com essa riqueza. É polissémico, permite muitas leituras, não é? E tem, de facto, um papel central no filme, mesmo não estando no meio da narrativa. Mas chego lá por razões mais simples. O que me interessa é sempre como, através de rimas narrativas e formais, as coisas vão permitindo leituras mais ricas e mesmo partindo de elementos que, às vezes, são corriqueiros. Por um lado, o cemitério tem para mim um valor semelhante à Cinemateca ou a outros sítios que aparecem no filme. Faz parte da minha relação com a cidade, da minha vida. Tenho uma história associada àquele lugar e queria filmá-lo.

Por outro lado, a questão da arquitetura dos cemitérios começou com uma história real,  ou, pelo menos, com o início de uma. Conheci uma rapariga, num desses encontros pela cidade, que estudava cemitérios. Nunca mais a vi, nem sequer morava em Lisboa, mas fiquei com aquilo na cabeça: “Isto é uma boa história!”. E fabulei a partir daí: o que seria uma personagem que faz isso da vida?

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A Vida Luminosa (2025)

Claro que o cemitério acaba também por se ligar ao próprio título do filme. A presença da morte é o que torna a vida luminosa. É ali que o Nicolau dá uma guinada, ou é levado -  porque ele é também uma personagem que se deixa levar. Está em transição: entre vidas, entre luz e escuridão, entre passado e futuro. E esse momento permite aquele plano que eu gosto muito: o do comboio a passar.

Esse plano é mesmo daquele lugar. Não fazia sentido ir buscá-lo a um outro lado. É uma das coisas de que gosto naquele cemitério: a relação com o rio, com o Vale de Chelas, aquele espaço onde se vê o comboio a atravessar a paisagem. Para mim, esse comboio rima com o outro, onde eles se despedem. E tem também esse lado cinéfilo com os filmes do Ozu, por exemplo … e claro, o tema do partir, da viagem, o movimento dele para um outro lugar.

Ao longo desta conversa o João tem me dado algumas pistas e irei questionar directamente: quanto de João Rosas tem no Francisco?

Enfim, tem um bocadinho dos dois. Não é algo dê propriamente para quantificar, não na medida a conta-gotas. Há um bocadinho de mim em todas as personagens, tal como há um bocadinho das pessoas que as interpretam e o processo todo, aquilo que me interessa, é esse jogo. Um jogo que tem um lado lúdico, de brincadeira, mas que detém um processo de trabalho que me auxilia a chegar a esse realismo o qual procuro. É uma maneira de me relacionar com as próprias pessoas. Para mim é crucial no ato de fazer cinema. Mesmo no “A Vida Luminosa”, isso está evidente: a riqueza do filme está nas pessoas que conheci através dele, a fazer este filme, e que fizeram o filme comigo. Como o cinema, o acto de filmar, foi também uma forma de me relacionar com aquelas pessoas, naquele contexto específico.

Aqui, apesar da diferença substancial de contexto, esse continua a ser o ponto de partida. Tal como as referências cinéfilas, ou o facto de ter uma relação com o cemitério, com a Cinemateca, com a papelaria — seja com o que for — isso, para mim, não é importante para a leitura do filme. Faz parte do processo de trabalho. Este trabalho com o Francisco também é muito claro nesse sentido, porque já temos uma relação com muitos anos, conhecemo-nos muito bem.

Desde o “Maria do Mar” (2015) — ou até desde o “Entrecampos”, mas sobretudo a partir da curta a seguir — há muito do Nicolau que vêm dele. No “Maria do Mar” foram os truques de magia, que ele estava a aprender na altura e que descobrimos na casa onde estávamos a filmar, como tal, integrei isso na narrativa. Depois, em “Catavento”, ele começou a aprender guitarra.

E assim formou uma banda?

Exatamente. Tem mesmo uma banda [“Quase Nicolau]! Vai dar um concerto amanhã — aproveito para te convidar — no Musicbox. É o lançamento do álbum. O famoso álbum vai ser lançado amanhã [risos].

Portanto, todo o processo de escrita é um diálogo entre mim e as pessoas que interpretam. Claro que o poder de decisão está do meu lado. Sou eu que fixo o texto, que escolho as cenas. Mas esse mesmo texto, antes de ser fixado, é ouvido, lido, cantado, muitas vezes até musicado. Escrevo uma primeira versão, as pessoas leem, altero com base nas expressões delas, integro coisas que trazem para a personagem.

Tal como com a cidade, que é construída a partir da minha cidade e da cidade que os outros trazem, também as personagens são isso: a minha voz a encontrar a voz do outro. E desse diálogo construímos este universo luminoso.

Um termo que sempre referi a este seu projeto foi “um ‘Boyhood’ às fatias”. Praticamente só o comparo com o Linklater, devido a este progressivo acompanhamento de um realizador para com o seu actor / personagem / tempo. Nesse sentido faço-te já aquela pergunta da praxe dos “novos projectos”, mas desta forma: vamos voltar a seguir o Nicolau?

Não sei. Como te disse, isto não foi um movimento premeditado. E não sei muito bem... isto depende sempre das ideias que tenho, do que a cidade me dá, das pessoas que vou conhecendo. Por um lado, tenho vontade de sair um bocado deste universo e filmar outras personagens, outras idades — sobretudo. Por outro lado, claro que quando estou com o Francisco, dá-me sempre vontade de continuar a trabalhar com ele. Basta ele começar a falar da sua própria vida para começar também a efabular a partir daí. O próximo filme que vou fazer, posso já garantir, não será com ele. Mas isso não quer dizer que mais tarde não volte.

Quem sabe, ele pode casar. [risos]

[risos] Tem muitas peripécias pela frente.

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A bandamusical Quase Nicolau

Quanto à cena da papelaria, ou melhor, a livraria Tigre de Papel: há ali um trio de personagens que aparece …

Grandes atores [risos, pelo facto de uma dessas personagens ser interpretada pelo próprio João Rosas].

[risos] … ou seja, de certa forma, nos seus filmes — já no “Maria do Mar” havia aquela personagem que andava dentro de um fato de boneco — criou quase um universo expandido, em que essas personagens podiam protagonizar os seus próprios filmes. Ou até pertencer a géneros completamente diferentes.

Senti que, especialmente em “A Vida Luminosa”, apesar do foco estar no Nicolau, as personagens à sua volta são muito ricas. O filme é sobre as peripécias do protagonista, sobre o que ele vai fazer com a vida, mas não tanto sobre um conflito interior muito definido. Aliás, tenho de dizer: esta é uma personagem profundamente passiva. É uma dúvida existencial, não é? E isso vai contra muitos modelos contemporâneos de protagonistas ativos, pró-ativos. Mas voltando à criação: com esse universo, a possibilidade de ir para outros filmes?

Sim, sem dúvida. Há ali muitos filmes em potência e o que demonstra a riqueza das pessoas que estão no filme. Por um lado, ambicionava ter esse leque de grandes personagens; por outro, era também uma forma de, narrativamente, abordar esta complexidade … e apresentá-la em hora e meia.

Quanto a esta passividade do Nicolau — essa característica de estar num lugar de escuta, de fala, de absorção do outro? Ele é alguém que ouve, que se interessa pelos outros. E isso é um ponto de partida, não só para os meus filmes, mas para o cinema que me fascina: o cinema da curiosidade pelo outro.

Parece-me que isso é particularmente importante hoje, politicamente até (essa abertura, essa escuta, deixar o outro falar). E ao contrário de tantos “machos alfa” que por aí andam, temos aqui um rapaz rodeado de mulheres, e ele está ali para as ouvir, não para fazer discursos sobre elas. Esse leque de personagens era também uma forma de colocar essas figuras a falar sobre o estado em que o Nicolau se encontra. Todas estão em fases de transição, a falar de relações, de sentimentos.

Depois, gosto muito da ideia de um filme coral. Filmes como os do Robert Altman, ou como “La Règle du Jeu” (1939) de Jean Renoir — talvez o exemplo mais perfeito — ou os filmes argentinos contemporâneos, da Mariana Llinás, como “La Flor” (2018), ou do “Rodrigo Moreno” (“Los Delincuentes”, 2023), todos eles exploram esse lado coral. Era uma coisa que me interessava continuar a explorar e levar mais longe e fico contente que digas isso, porque realmente queria que essas personagens não fossem apenas "cromos".

Queria que esse trabalho sobre a linguagem e, sobretudo, sobre o casting, lhes desse espessura. Que fossem como as grandes personagens secundárias dos bons filmes americanos, no cinema clássico, no Ford, por exemplo, em que possuem corpo, têm profundidade. E isso, muitas vezes, tem mais a ver com a presença, com a verdade da pessoa, do que apenas com o texto.

Portanto, sim, esse é um esforço que realizo e fico contente por ter resultado. Fico com vontade de continuar a filmar estas pessoas.

Há um termo que usei quando escrevi sobre “A Vida Luminosa” e espero que não seja considerado ofensivo para si, mas chamei-lhe um “filme de amigos” …

Não é ofensivo, é religioso.

Porque neste universo que criou com estas personagens, ou melhor, com as pessoas que as interpretam, representam todo um biótipo da Lisboa cultural. Qualquer pessoa que vive nesse meio reconhece quem são aquelas pessoas. E depois é quase anedótico e satírico para com muitas destas pessoas: o Nuno Lisboa, por exemplo, faz uma personagem que é quase um pseudo-crítico.

Sim, sim, sim.

Ou seja, há ali um certo tom de brincadeira e o que torna quase um “filme de amigos”.

Sim. Ou seja, espero que não seja um filme para amigos, mas é, sim, um filme de amigos.

Gostava de pegar nisso: a amizade, as relações …

Não o fiz para os meus amigos, mas fiz com amigos e através do qual fiz amigos. Tenho-me apercebido disso ao longo do percurso. Não foi uma coisa planeada, nem uma nota de intenções inicial. Mas quando penso nestes quatro filmes, ou quando tenho de me referir a eles, acho que os podemos descrever como uma tetralogia da amizade. Não digo “do Nicolau”, porque a Mariana também é protagonista no primeiro filme. São filmes sobre a amizade e a amizade é algo que me interessa imenso.

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A Vida Luminosa (2025)

Gostava até de explorá-la mais, filosoficamente. Há toda uma tradição filosófica sobre a amizade. Mas é um tipo de relação que valorizo muito, também na minha vida pessoal. Muitas vezes, até mais do que a família, ou pelo menos, os amigos tornam-se uma família e com quem se tem um tipo de relação muito particular.

É algo que é rico, narrativamente, e, mais uma vez, politicamente, parece-me importante: essa ideia de encontro com o outro, de relação horizontal. A cidade como espaço de encontro e de relação. E o cinema também. Porque através dos filmes nascem amizades. Tal como na sala de cinema, onde se encontram desconhecidos que partilham uma experiência. Gosto de pensar que os filmes são feitos nesse espírito, não só as histórias, mas o próprio processo. As grandes relações são as de amizade e são os amigos que, muitas vezes, nos levam por caminhos inesperados.

Eu próprio fui estudar cinema por causa de um amigo. Nunca tinha pensado nisso como possibilidade.

A amizade como parte fílmica...

E em termos de encontros... O lado fílmico é também político, ou seja… Trago muitos amigos para os filmes, e gosto de partilhar, com os outros, o que gosto neles. Tal como com a cidade, escolho lugares de que gosto, aos quais associo emoções, e quero mostrá-los.

Lembro-me de uma aula do José Mário Grilo, em que ele dizia: “O cineasta, mais do que aquele que quer ver, é aquele que quer dar a ver.” Identifico-me muito com isso. É esse desejo de partilha — de certos lugares, de pessoas — que são, no fundo, aquilo que torna a vida luminosa.

O Orson Welles dizia que preferia trabalhar com um amigo do que com o melhor ator do mundo.

Sim, também concordo. Aliás, apesar de já ter trabalhado com alguns atores profissionais (e eles entram nos filmes para papeis muito específicos), desde que fiz o “Entrecampos”, e comecei a trabalhar com crianças, percebi logo que queria trabalhar com não-atores. Na altura, não havia “crianças-atores”, ou melhor, havia aquelas crianças prodígio que não me interessavam. Fui-me habituando a esse trabalho com não-atores. Tudo o que eles trazem ao filme … essa riqueza humana, essa entrega... dão uma parte de si próprios.

Por vezes, o ator está treinado para dar só o que é pedido, de forma muito controlada e técnica.

E acreditas que os não-atores trazem autenticidade aos papeis? Pergunto isto porque numa entrevista com a Denise Fernandes, sobre o seu “Hanami”, ela disse que trabalhou com não-atores precisamente por causa dessa captação da autenticidade.

Sim, acho que sim. Trazem esse realismo que procuro. Não vi o filme dela, mas percebo perfeitamente o que quer dizer. Seja a palavra “autenticidade”, “realismo” ou outra coisa...

No fundo, é essa verdade que a pessoa traz, por não estar formatada para representar. Não está “a fazer de”, está a ser.

Há uma coisa que o Bresson dizia, que concordo e de que maneira: “De manhã vês o Brad Pitt a fazer de rei em Tróia, à tarde está a fazer de cowboy, à noite está num talk show...” É sempre o mesmo tipo, a fazer de outra coisa. O que me interessa é o contrário. É o Francisco a fazer de Nicolau e o Nicolau é sempre o Francisco. Para mim, é inseparável.

Não dá para fazer de outro e é isso que me interessa.

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Pickpocket (Robert Bresson, 1959)

Antes de caminhar pela questão política. Visto que existe um lado político no seu filme, que é bastante subtil, e tendo em conta os tempos que vivemos. Mas com base no que disse gostaria de lançar aqui um pequeno desafio: nos seus futuros projetos, nem que seja hipotéticamente, o Nicolau poderá estar ligado ao cinema?

Não sei... Não me parece que seja o perfil dele, mas... não sei.

Ele está a explorar agora a Cinemateca… [risos]

Pode ser que o encaminhe! Sim, sim... Mas sair de lá cabisbaixo... Aquilo foi uma… Não sei o que poderá vir a ser do Nicolau. Continuará a existir, mas há ali qualquer coisa por inventar.

Sobre a questão política, como referiu há pouco, como sabe, estamos em tempos um pouco... tenebrosos. Fala-se cada vez mais da direita e da esquerda como duas tribos sem possibilidade de trégua. O seu filme, de certa forma — tendo em conta algumas leituras recentes, e até algumas feitas por amigos meus — foi colocado como "filme de esquerda".

Ah, ok. Não sei se... Bem, sim, quer dizer… Uma das grandes questões políticas hoje em dia é mesmo essa: o que é a esquerda? O que é que a esquerda pode ser? E se o filme é “de esquerda”, por um lado também é um filme bastante burguês. É um filme de classe média. Não há uma questão social muito marcada, é um meio específico, privilegiado. São problemas de primeiro mundo. Problemas do Nicolau.

Mas fico contente. Para mim, o que há de esquerda no filme é isso: um certo desapego material, e o valor da amizade. Portanto, é um filme de esquerda por ser um filme humanista.

Humanista, exatamente. Esta pergunta não foi ao acaso, ultimamente tenho presenciado diversas críticas a diferentes filmes colocando-os nas devidas caixas “direita” e “esquerda”. Parece que regressamos aos anos 70 [risos], a questão é que isto tudo soa a espuma dos dias?

Acho que é uma coisa um bocadinho maniqueísta. Quer dizer, conheço pessoas de direita que gostaram do filme. O Pedro Mexia, por exemplo, escreveu um texto sobre o filme — e ele é de direita, é um intelectual à direita — mas realça coisas que outras pessoas não realçam, e vice-versa. Acho que é mais uma questão de chave de leitura, que muda de pessoa para pessoa, e que não se resume à esquerda e à direita. Tem a ver com o contexto social, com o olhar de cada um.

Pergunta pertinente: o humanismo é apenas propriedade da esquerda?

Também pode haver humanismo à direita, claro. Há alguns... poucos. Mas a questão é que a direita parece ter enterrado o humanismo.

Ou a empatia.

Sim.

Deixar a empatia de lado. É quase apanágio das entrevistas sobre cinema português falar sobre a própria condição do cinema português. Recentemente aconteceu os Encontros de Cinema em Português, promovidos pela NOS, sempre com um debate em prol da “americanização” do cinema português ou de tornar o cinema português mais “apelativo ao grande público”. Tendo em conta que o teu filme é tudo menos ‘americanizado’ nesses termos básicos, como vês esta questão de fazer cinema em Portugal? Como é que o cinema português pode chegar ao público? E como se define, afinal, “o público português”?

Isso é um bocado... Não diria que é uma falsa questão, mas… como é que o cinema pode chegar ao público? Bem, fazendo bons filmes.

Mas a questão é muito mais complexa. O “público português” é algo muito vago, muito variado. As pessoas não vão ver filmes portugueses por artes mágicas. Isso tem a ver com questões muito mais profundas, com o papel da cultura, da educação, da arte e da política na sociedade portuguesa, e com a forma como tudo isso é transmitido.

A ideia de que o cinema português pode criar uma indústria ou copiar outros modelos é, para mim, absurda. Porque, apesar de tudo, o cinema português — para a escala do país, e para a quantidade de filmes produzidos — consegue ter uma variedade grande de olhares originais, interessantes, que têm projeção internacional, que circulam e que são reconhecidos. Claro que isso também tem o seu lado negativo: às vezes, “cinema português” corresponde a uma espécie de gaveta, em certos festivais. Se não tiver ruralidade, ou senhores vestidos de preto, já não entra. Tal como nós consumimos cinema iraniano com uma imagem muito específica, para nós, “cinema iraniano” é isto ou aquilo.

Com essas chaves identitárias.

Exato. O processo que está em curso atravessa toda a sociedade. E, confesso, não estou mais preocupado com o cinema do que com o resto das áreas do país. Esta mercantilização, esta financeirização de tudo, num país onde as estruturas sociais estão frágeis: hospitais, escolas, cultura ... tem consequências. É aí que a direita se esquece do humanismo: quando tudo é um produto financeiro, os resultados são desastrosos. No cinema estamos a ver isso acontecer. Quando o cinema é usado para atrair investimento estrangeiro, para promover uma imagem turística do país, para valorizar o património como marca, está-se a desvirtuar o próprio cinema. Essa é a função das agências de turismo, ou de quem trabalha na promoção institucional. A função do cinema não é vender o país, nem atrair capital. E pronto... esta inexistência real do Ministério da Cultura não augura nada de bom.

"A Morte de uma Cidade" (2022)

Já no programa anterior de governo, esse processo estava em curso. Agora, acho que só vai ser mais acelerado. Vamos tentar combater e resistir. Ainda há espaço para fazer cinema, não só produtos uniformizados, anónimos, iguais aos que são feitos noutros países, com 3 ou 4 elementos nacionais apenas para dar o folclore ou a cor local. Filmes que, no fundo, são produtos indiferenciados, e que, ainda por cima, nunca vão ser tão bem feitos como os de lá fora.

Sempre que um filme português tenta ser um bocadinho mais comercial... é, pá... aquilo é sempre terrível. [risos]

Já que falámos do João Mário Grilo, esta conversa lembra-me muitas vezes um capítulo do seu livro “O Cinema da Não Ilusão” (Livros Horizonte). É um diálogo entre o Pedro Costa, o João Botelho e o próprio João Mário Grilo, e às tantas, o Botelho fala desta tendência de alguns filmes portugueses tentarem parecer produções americanas mas sem os mesmos recursos: “patetice por patetice preferem os americanos, que são patetas grandes.” Gosto tanto dessa frase que a uso muitas vezes, quando se fala da ‘americanização’ do cinema.

Mas esta pergunta era só para fechar, porque... enfim, a questão dos Ministérios agora — com o Ministério da Cultura fundido com a Juventude e o Desporto — não sei o que aquilo vai dar e tendo em conta que, mesmo dentro da Cultura, o cinema português já estava lá bem em baixo … o último da fila.

Enfim… mas, como digo, os tempos estão tão sombrios que... confesso, não diria que é a menor das minhas preocupações, mas também não está no topo.

Vamos esperar que a vida futura seja luminosa.

Cá estaremos para tentar que o cinema continue a dar esse lugar de encontros luminosos.

Os mortos também falam na "Praia Formosa": uma conversa com Julia de Simone sobre a memória de uma cidade

Hugo Gomes, 23.06.25

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A cidade como ferida aberta, memórias em ruínas e um palco para espectros prontamente a serem apagados em nome do Progresso, amnésia desculpa no cognome do futuro. Em “Praia Formosa”, Julia de Simone avança por esse Rio de Janeiro enterrado sob o concreto da modernidade, escava-o sem recursos a arqueologia, e desses achados extrai as histórias negadas pelo Poder estabelecido ou negligenciadas com a ordem estampada na bandeira. Não há aqui qualquer saudade colonial e tampouco reconstituição apaziguadora: existe sim, um confronto.

Depois de se dedicar a obras de índole documental, Julia encerra a sua trilogia portuária com “Praia Formosa” (apresentado no Festival de Roterdão de 2024, e estreado nas salas portuguesas recentemente), um delírio temporal e performativo onde acompanhamos Muanza,  mulher escravizada no século XIX, num presente onde a sua história se assume resistência, reencontro e reimaginação. 

Em conversa com o Cinematograficamente Falando…, a realizadora partilha o que move esta procura, o papel da cidade como corpo político e o desafio de encenar o passado sem lhe roubar a complexidade. Tudo o que “Praia Formosa” carrega: tempo, memória e forma.

Com “Praia Formosa”, termina a sua trilogia sobre a zona portuária do Rio [“O Porto”, “Rapacidade”], um território de disputas e fantasmas. Considera que filmar esse espaço é também um gesto de exorcismo ou de reencantamento da cidade?

Para dizer a verdade, considero que é uma busca pelo reencantamento da cidade. O filme faz todo um exercício de tentar encontrar um outro modo de ver esses espaços — esses espaços e esses tempos — encarando-os como uma sobreposição de temporalidades, de facto. É uma forma de mudar um pouco a perspectiva sobre como podemos entender, perceber e se relacionar com a região portuária, com o Rio de Janeiro e com a história da cidade como um todo.

Sobre a protagonista, Muanza (Lucília Raimundo, “Um Animal Amarelo”), deslocada no tempo, parece ser uma espécie de corpo-arquivo. Foi sua intenção que ela personificasse esse Brasil que caminha, mas sem nunca sarar as suas cicatrizes históricas?

Um aglomerar, sim. Ela traz uma certa presentificação dessa história, mas não só do ponto de vista simbólico. Existe uma concretude muito grande na personagem, que se conecta com a história das pessoas que ainda hoje vivem naquele lugar, na forma como se relacionam com esses espaços. A busca foi justamente essa: tentar trazer, não só na personagem, mas na construção do filme como um todo, todos esses elementos que, de alguma maneira, condensam tempos e espaços. Então, nesse sentido, sim, ela presentifica uma historicidade, mas também tem uma presença muito corporal, encarnada nesse presente, nessa história da Muanza.

O seu filme faz eco com outros conterrâneos, assim de repente recorda-me “Todos os Mortos”, de Marco Dutra e Caetano Gotardo, ao confrontar uma ideia muito precisa: o progresso urbano como agente de apagamento. Como se filma uma cidade cuja modernização parece construída sobre a negação das suas próprias fundações?

Sim. Acho que há, de facto, uma tentativa constante de apagamento, mas esse apagamento nunca se dá por completo. Felizmente, ele não é totalmente exitoso. O filme tenta justamente encontrar formas de olhar para aquilo que resiste a esse apagamento. Não apenas os vestígios materiais da cidade (a concretude dos objetos arqueológicos, por exemplo), mas também a vida, a presença das pessoas que ainda hoje habitam esses espaços.

Durante o processo de escrita e pesquisa do filme, conhecemos a mãe Celina, uma mãe de Santo da região portuária, que participou junto da equipa de arqueologia na identificação de objectos. A experiência dela, a presença dela, é muito viva. Então, não estamos a falar de algo apagado, e sim de algo que resiste … e resiste de muitas formas, sobretudo na experiência das pessoas.

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A sua obra parte de investigações históricas, mas chega à ficção como um ato político e poético. Como se encontra o equilíbrio entre o rigor da memória e a liberdade da fabulação?

Sim. Penso que o filme aposta muito nessa coexistência, não só de elementos históricos e ficcionais, mas também numa coexistência estética. Como os elementos que encontramos são muito heterogéneos, as escolhas formais acabam por acompanhar essa diversidade Por exemplo, no início do filme, a sequência da casa — mais ligada à presença da corte, através da personagem da Catarina — tem um modo de encenação mais marcado, mais desenhado. De certa forma, isso dialoga com a teatralização da própria corte, com essa encenação de um poder falido que, ainda assim, insiste em manter uma aparência. Por outro lado, a Muanza tem uma relação mais física, mais encarnada com os espaços. A sua atuação é mais performativa e isso conduz o filme a outro modo de ver e sentir.

A presença da mãe Celina, já na parte final, traz uma dimensão mais documental, que nos direciona para uma experiência de realidade, da experiência vivida daquela personagem real. E há também a cena na igreja, com os três depoimentos que a Muanza testemunha. Aqueles são documentos históricos reais, encontrados durante a nossa pesquisa. São raríssimos materiais de arquivo onde pessoas escravizadas falam na primeira pessoa. Mesmo dentro das limitações e violências dos próprios arquivos, esses testemunhos carregam uma força subjetiva muito potente. Então, como a pesquisa envolveu fontes de naturezas muito diversas, era natural que a abordagem estética também fosse múltipla. Faz parte da tentativa de olhar para esses espaços englobando as tensões, os paradoxos, mas reconhecendo que todas essas forças coexistem e atuam no território. As escolhas estéticas seguem justamente esse caminho.

A presença espectral de Catarina, mulher branca portuguesa (Maria D’Aires), coabita com Muanza num espaço que já foi de dor e opressão. Vês nessa convivência uma possibilidade de diálogo ou um confronto simbólico entre colonizador e colonizado?

Acho que sim. Tanto ela quanto a casa são vestígios dessa colonização nos dias de hoje. A presença da Catarina, que se transforma ao longo do filme, está muito ligada à tentativa de pensar de que forma o colonialismo se atualiza na contemporaneidade. Quando a Catarina reaparece mais à frente no filme, naquele anúncio publicitário, é justamente esse exercício de refletir sobre como esse poder colonial se mantém. Ele reaparece de outras formas, mas continua ali, presente, actuante, ditando normas e sustentando estruturas que vêm desde os tempos coloniais.

Mesmo com resistências e transformações, a força de quem ocupa esse lugar de poder e opressão ainda é muito evidente. Isso aparece, por exemplo, no tecido urbano, no próprio traçado da cidade, a mostrar como essa força se perpetua, ainda que disfarçada.

Usando as suas notas de intenção, o qual achei interessante, foi a incorporação no filme o “tempo espiralar, inspirado na cosmogonia Bantu”, subvertendo a lógica narrativa ocidental linear. Quão decisiva foi essa estrutura para transmitir uma temporalidade africana através da linguagem cinematográfica?

Foi muito decisiva! No início da pesquisa, por volta de 2012, quando comecei a filmar as obras na região portuária, as escavações no Cais do Valongo evidenciavam, de forma muito concreta, as camadas temporais. O Cais’, de 1843, foi soterrado poucos anos depois para dar lugar ao Cais da Imperatriz, que, por sua vez, também foi enterrado para o deslocamento do porto. Estávamos, naquele momento, numa quarta camada visível, uma estratificação material do tempo.

Essa sobreposição de camadas temporais, tão palpável no território, já nos colocava diante de uma visão não-linear do tempo. A partir daí, ao pesquisarmos sobre os povos escravizados que chegaram pelo Cais do Valongo (em especial os povos Bantu, os primeiros a chegar ao Brasil), fomos aprofundando o entendimento sobre a sua cosmogonia, em especial a noção do tempo espiralar. Essa concepção bantu de tempo foi uma descoberta que se alinhou perfeitamente com a nossa percepção das camadas históricas do espaço. O tempo espiralar é uma ideia complexa, difícil de resumir, mas essencialmente vê o tempo como algo construído a partir da presença. O presente evoca o passado e, ao fazê-lo, transforma o futuro (todas essas temporalidades estão em constante contato e recriação).

Essa visão rompe com a lógica eurocêntrica e branca de um tempo linear e progressivo, em que cada momento substitui o anterior, sempre apontando para um futuro idealizado. Pensar o tempo como algo em transformação contínua — inclusive o que entendemos como passado — muda radicalmente a forma como percebemos o mundo. O exercício do filme foi justamente esse: tentar traduzir essa percepção espiralar para a sua própria construção estética. Subverter a lógica narrativa linear, que está diretamente associada à noção ocidental de progresso, foi fundamental. Essa ideia de que o futuro é sempre superior ao passado é algo que o filme questiona, propondo outras formas de ver e sentir o tempo.

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Isso é muito curioso. Agora faço esta pergunta: apesar de ser uma coprodução luso-brasileira, “Praia Formosa” é, claramente, um filme mais brasileiro do que português, e nos últimos 10 ou 15 anos, tenho sentido que o cinema brasileiro tem voltado o olhar para o seu próprio passado, algo que, durante décadas, não acontecia. Havia uma aposta no futuro com desconstrução do presente. Esta viragem para o passado acontece porque o futuro se revelou uma desilusão e o cinema, de alguma forma, já o percebeu?

Talvez. Talvez estejamos justamente a precisar de reencontrar formas de contar esse passado. O futuro ainda é incerto, mas o passado — ou melhor, a maneira como o olhamos — já nos mostra que precisa ser ressignificado. O cinema brasileiro, neste momento, parece estar a repensar quem fomos, de onde viemos, tentando encontrar outras formas de narrar uma história que, durante muito tempo, foi contada de forma única, oficial até.

Igualmente o “Praia Formosa” parece inserir-se numa corrente recente do cinema brasileiro que encara o passado como um verdadeiro campo arqueológico. Vês o seu trabalho como uma continuação dessa tendência ou como uma ruptura em relação ao que poderíamos chamar de “documentário museológico”?

Não diria que é um museu, pelo menos não no sentido mais convencional [risos]. A ideia de museu remete-me a algo mais estático, rígido, fechado em vitrines. “Praia Formosa” é muito mais sobre algo vivo: uma memória em permanente construção, uma identidade em processo. Acho que essa ideia de memória como meta, e não como ponto de partida, é central. Não se trata de um regresso a um passado dado ou fixo. É uma construção contínua, a cada instante, com as vozes que entram, com as presenças que partilham o percurso.

Já deve ter ouvido este reparo diversas vezes, mas cá vai: como mulher branca a filmar histórias negras, assumiu claramente uma posição de escuta e co-autoria. Que tipo de ética norteou essa partilha? Como é que o seu olhar se transformou ao longo desse processo?

Com certeza. Todo esse processo começou com um desejo de investigar a cidade, o Rio de Janeiro. Mas, ao mergulhar na história da cidade, especialmente na região portuária, a história da escravidão e da população negra no Brasil tornou-se incontornável. Não há como falar da história do Brasil, e particularmente daquela região, sem atravessar essa dimensão.

Então, a questão deixou de ser se falaríamos disso e passou a ser como contar essa história … e com quem. Desde o início, houve uma preocupação muito clara em que esse trabalho fosse feito de maneira colaborativa e aberta. Foram dez anos de investigação e construção, sempre com uma escuta ativa, com disposição real para os encontros, para as contribuições de cada pessoa que se juntou ao projeto. Sinto que essa ética colaborativa está presente no próprio corpo do filme. Há uma generosidade no modo como ele foi construído, e isso veio do modo como escutámos e partilhámos, sem nunca querer impor uma visão unívoca.

Por fim, que papel atribui ao cinema — ao teu cinema — neste esforço de resgatar narrativas silenciadas? Seria um convite à justiça poética ou uma tentativa de reinscrição na História?

Olha, não tenho essa pretensão tão grandiosa. Não acredito que, sozinha, nem que um filme sozinho — ou mesmo o cinema, por si só — possa dar conta disso. Mas acredito, sim, que pode ser uma contribuição. Uma tentativa de fazer com que essa conversa exista, de que essas questões circulem entre nós. Nesse sentido, acho que o filme encontrou o seu lugar. Desde a estreia em Roterdão, em janeiro de 2024, tem sido exibido, debatido, visto em diferentes contextos. Já conta mais de um ano e meio de circulação. E isso, para mim, já é uma grande realização. Ver que ele está a provocar um debate (não só sobre o filme em si, mas sobre os temas que levanta, sobre as formas de fazer cinema), é algo que me deixa muito feliz. Talvez o mais importante seja mesmo isso: colocar em pauta essas questões, tanto temáticas quanto formais.

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E em relação ao futuro? A memória desse tempo, e desse espaço, continuará a acompanhar-te enquanto autora?

Curiosamente, o que era uma trilogia acabou por se tornar uma quadrilogia [risos]. Após o filme, surgiu uma exposição em artes visuais. Foi um projeto que transbordou para além do cinema, onde imagens dos três filmes foram instaladas num espaço expositivo, acompanhadas por uma instalação sonora. Foi muito interessante perceber como esse material ganhava outra dimensão ao ser transportado para uma galeria, para um espaço de contemplação diferente do da sala escura.

Quanto a novos projetos ... ainda não consegui materializar nada. Por muitas razões, inclusive pela complexidade que é fazer cinema, o tempo que exige, os desafios de produção. Acho que ainda estou num processo de assimilação de tudo o que este projeto significou. Ainda estou a digerir. Mas acredito que, de alguma forma, essa memória — esses espaços, essas histórias — continuarão a acompanhar o meu percurso.

Falando com Enzo G. Castellari: em danças com a morte e westerns apocalípticos no espírito

Hugo Gomes, 20.06.25

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Enzo G. Castellari

Cinco dias de cinema prezado e comungado no Fundão: assim se fizeram os 15.º Encontros de Cinema, e como recompensa aos cinéfilos devotos, a programação ofereceu um olhar atento sobre o cineasta e crítico de cinema espanhol Pablo García Canga, e uma tentativa de resgate de Pedro M. Ruivo (“A Força do Atrito”). Mas a “cereja no topo do festival” foi, sem dúvida, a vinda de Enzo G. Castellari, lendário cineasta do grindhouse, do poliziottesco, do western spaghetti e de outros subgéneros tantas vezes guiados ao preconceito dos snobs, mas amados por públicos das mais variadas geografias.

Aos 87 anos, o veterano mostrou as suas curvas e vitalidade, recebendo de braços abertos a audiência, entre aqueles que viam os seus filmes pela primeira vez e os adeptos de longa data, que atravessaram oceanos para não perder pitada desta oportunidade única de o ver ao vivo e a cores. Cumpriu quatro sessões de Q&A, nas quais foi “bombardeado” com questões sobre a sua vasta filmografia — especialmente a selecionada pelo festival — e Enzo, chamemo-lo assim, mostrou-se grato pelo afeto manifestado. Enquanto isso, negava ser político. Segundo as suas palavras: “nada de partidos, nem de ideologias”, para ele, o Cinema é a extensão do pugilismo. “Há que respeitar o oponente”, reafirmou, com os punhos erguidos. 

Na A Moagem, santuário cultural da cidade fundense, contemplaram-se quatro títulos fundamentais: “The Inglorious Bastards” (1978), esquadrão acidental de desertores e renegados da Segunda Guerra Mundial, numa missão suicida de corpos contra corpos de nazis empenhados, uma resposta a “The Dirty Dozen” (Robert Aldrich, 1967), mais tarde evocada e remixada — tarantinescamente falando — em “Inglourious Basterds” (2009). “The Big Racket” (1976), inserido na vaga de cinema justicialista e de policiais furiosos, onde um polícia se alia a um grupo de homens angustiados para combater uma quadrilha mafiosa. “Escape from the Bronx” (1983), a segunda parte da trilogia Bronx, onde Enzo, disparando sobre um certo filme de John Carpenter, oferece um arraial de tiroteios com pano de fundo pós-apocalíptico e comentário sociopolítico.

E por fim, a pedido do próprio realizador, nesta conversa com o Cinematograficamente Falando…, o amor declarado de “Keoma” (1976). O desejo de fechar o ciclo do western spaghetti gerou um Franco Nero mestiço, a combater a degradação e a corrupção humana no vilarejo que o acolhera na infância. Nesse retorno, terá de proteger uma mulher grávida, cuja vida no ventre carrega a esperança de um novo começo para a Humanidade. Castellari inspirou-se em Ingmar Bergman e na música que acerca para conceber um western à beira do fim da sua linhagem …

Fiquemos, então, com uma breve conversa, difícil de abarcar todos os pontos de uma carreira tão extensa. E sob o calor do Fundão, com capuccinos de máquina entre as mãos e uma multidão de curiosos em redor da obra do realizador, mantivemos “Keoma” no centro: no coração, no espírito, em direção ao sol-posto.

Numa das interações com público aqui no Encontros’ do Fundão, mencionou a comparação entre o boxe e o cinema, ligando-os com a necessidade de respeitar o oponente. No boxe, o qual foi pugilista, percebemos quem é o oponente. Mas em relação ao cinema? Quem é o oponente?

Bem... o boxe é algo que me ensinou, e acredito que ensina a todos que o praticam, o tempo da vida. O timing. Porque o boxe é isso: tempo e timing. Esperas... esperas… tentas algo com a esquerda… e depois entras com a direita. Há toda uma história que se desenrola na tua cabeça enquanto lutas. Portanto, esta ideia - fazer algo que te obriga a confiar na tua imaginação, no teu sentido de ritmo, no teu desenvolvimento da acção - isso é a vida. E isso é o cinema. O Cinema é o Cinema.

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Enzo G. Castellari e Franco Nero na rodagem de "Keoma" (1976)

“O Cinema é o Cinema”, até que gostei. Mantendo nesta sua experiência aqui no Fundão, quando lhe perguntaram sobre política, respondeu que não tem nada a ver, nem com partidos, ou ideologias. Mas parece impossível ver os seus filmes (seja em “The Big Racked”, seja em “The Inglorious Bastards”, entre outros) e não ver ali política.

Absolutamente! Tens razão, mas isso é consequência da história. Se a história fala de um comissário, e o comissário por acaso é de direita… então tudo bem, isso faz parte da vida. Mas não conte comigo para colocar ali uma grande intenção política. Não, estou apenas a narrar a história, não injectá-la nela minha imagem pessoal lá dentro.

Algo que também referiu, foi o facto de se considerar um “realizador-montador”. Disse que enquanto filma pensa muito na montagem, e quando deparamos com os seus trabalhos, notamos essa economia na montagem. Como também mencionou, por exemplo, que os novos realizadores, os de hoje em dia, filmam, filmam, filmam, e depois é que montam. No seu caso, já pensava com muito cuidado no que filmava, porque a montagem, para si, é essa questão de economia?

Antes de mais … sim! Devo dizer que a primeira ‘coisa’ que nos ensinam é a economia. O resto é a história. E a forma de fazer isso - através da montagem - é mostrar, tornar visível. Porque, sabe, o tempo é tudo. Quando viro a câmara tenho que ter noção desse tempo. Preciso de cortar e mostrar o que está a acontecer, e se o fizer apenas três ou quatro planos mais tarde… é muito simples, mas muda tudo.

Acredito que a montagem é a linguagem do cinema …

Exactamente!! Sem isso… qualquer pessoa pode filmar o que quiser. Só que aqui, o tempo, esse, deve ser encarado como o verdadeiro motivo. Em cada plano, é preciso conhecer o tempo certo. O tal timing

Porquê isso?

Por exemplo, adoro … sempre que vejo “Keoma” … aquele primeiro plano. Só preto… e uma janela. Para explicar isso ao diretor de fotografia, eu tive que desenhar. Depois encontrámos o local exacto. Há uma figura no fundo, muito, muito distante, e quando a janela se abre, e o vento se move… vemo-lo. É uma imagem que amo! Disse-lhe que tinha que começar o filme assim … apenas senti.

E sobre o “Keoma”, nunca escondeu que era o seu filme preferido. Mais, na sua opinião, o melhor que fez, a obra-prima! Um filme que, de muitas formas, simboliza o fim da era dourada do western spaghetti. Porque é que este filme deixou uma marca tão forte em si? Porque é que ficou consigo de forma tão profunda?

Porque o filme sou eu. Eu sou assim. Quando mostro ou tento explicar o meu filme… é difícil … porque estou a falar de mim próprio enquanto falo do filme.

Naquele momento, o realizador era eu. É ele que decide tudo. Que observa tudo.

E quando dirijo as pessoas — os técnicos, os figurantes, toda a gente — tento com que elas façam exactamente aquilo que estou a pensar, porque idealizo o filme na minha cabeça, tenho imagens em mim, só tenho que materializá-las.

Gosto quando diz: “o filme sou eu.” Identifica-se com a personagem do Franco Nero de alguma forma?

Sim. Sempre. É um sonho. Gostava de fazer aquilo, só que não posso… portanto, ele faz isso por mim [risos].

Voltando, mais uma vez, ao tópico da política nos seus filmes. No final do “Keoma”, o homónimo protagonista declara como derradeiro acto perante a “nova vida”: “O bebé sobreviverá, porque ele é um homem livre.” Sinceramente, parece-me algo muito político [risos].

Algo assim [risos]. Para inventar essa frase… levou tempo, sabia? Porque tinha de fechar o filme com alguma coisa. Mas na verdade, não está terminado. É a vida!

O Oeste, aquela criancinha, nas mãos da Morte… imagem incrível, mas pensei em melhorá-la. E se dissermos: “Ele é um homem livre.”? [risos]

“Keoma” tem tanto de filme onírico, como conto apocalíptico. O Enzo aproveita o cenário e todo o pastiche do western e o envolve em um tom quase bíblico, vejo em Keoma e os seus três irmãos como uma espécie dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse: a Morte, a Guerra, a Peste e a Fome.

É isso mesmo.

A sério?

Quer dizer… a música. Começávamos por aí … a música é muito importante. Tens de colocá-la ao mesmo nível do diálogo, da história, porque a sonoridade mexe contigo. Por isso, quando quero mostrar algo com pujança, preciso de uma música com força. É difícil explicar isto antes. Tenho de mostrar. Por isso coloco a música enquanto estou a montar.

A música vem daí, mas tem de ter sentido com a cena. Não é só escolher a faixa certa … é usar a música com intenção.

Faço isso para mostrar ao músico o tipo de som, o tipo de suspense, o tipo de calor que preciso. Por isso, quando estou a montar, corto a música em partes, talvez o início de um som e o final de outro, só para capturar a atmosfera.

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Keoma (1976)

Mas nessa relação com a música, julgo que é importante referir que em “Keoma”, ela tem um papel mais do que atmosfera, do que um elemento decorativo. Faz parte da história.

Essa era a minha ideia! Comecei a dizer isso ao músico. Porque o Bob Dylan, o Leonard Cohen, contam histórias. Queria essa essência em “Keoma”. Não sabia como… mas queria isso. Por isso, fizemos a música a narrar a história. Claro que muitos disseram que é aborrecido, que teria que optar entre ouvir e ver. Mas respondia: “Preciso disso. Porque é para mim. O filme é meu e estou a fazê-lo para mim.

Numa entrevista, assumiu “roubar tudo” de outros filmes. Como muitos da sua geração, roubava de Peckinpah e Powell, de que esse pecado está presente em todos os seus filmes.

Isso é algo genuíno. Esse sentimento, de que estou a criar algo. Não tenho influência directa do [Sam] Peckinpah. Penso que… todos os filmes vêm de algum lado.

As influências estão atrás de mim. Trago-as comigo. Por isso que, quando desenho … aliás, também sou desenhador … desenho o meu sentimento.

Mesmo que assemelhe a Michelangelo ou Rafael, são minhas criações, fui eu que fiz, e para mim. Mais tarde mostro-lhe uns desenhos. Vai perceber o que estou a tentar dizer.

Falei disto porque em “Keoma”, e o Enzo não desmente, teve influências em outros westerns, sobretudo os americanos, em Ingmar Bergman e na música, com os cantautores que mencionou. Pergunto também, visto que em alguns momentos o filme traz-me à memória, com Akira Kurosawa.

Sim. Mas via Kurosawa só de vez em quando. Vi vários filmes dele, mas achei alguns aborrecidos a meio. Olho para eles para aprender, mas é impossível dizer que fui influenciado só por um. Sei disso.

“Keoma” apareceu numa altura em que o western spaghetti já estava no seu declínio, mas mesmo decidiu fazer um. Sentiu que estava a fazer o derradeiro do seu género, ou estava a tentar ressuscitá-lo?

Não fiz “Keoma" só como um western. Para mim e para o Franco, era um sonho fazer outro western juntos. Por isso, mesmo que o género estivesse acabado, tínhamos de o cumprir, e inventámos uma forma que talvez não fosse o último, mas sim o primeiro western de uma nova geração.

O facto de ter trabalhado muitas vezes com Franco Nero, pergunto-lhe porque é que ele nunca teve uma verdadeira carreira em Hollywood?

Realmente, não tive mesmo nenhuma carreira em Hollywood! Isso é verdade. Porquê? Bem… teria de perguntar a ele. Ou ao Destino… ou talvez a nós enquanto público.

Tirando algumas personagens bem secundarizadas e residuais, Franco Nero teve o seu ponto alto em Hollywood através do Tarantino enquanto cameo especial em “Django Unchained” (2012). Mas é só isso. Não o vemos muito mais do que isso. 

Pois. 

Já agora, alguma vez imaginou repescarem Nero para representar o seu “Keoma” como Tarantino fez com Django?

Acho mais difícil… sobretudo no início, quando queres apresentar a personagem de uma forma diferente, não como as outras. Tens de encontrar uma maneira de chegar ao ator e explicar-lhe: tu não és tu. És outro. E essa outra pessoa - essa personagem - quero mostrar-te quem ela é. 

É exactamente isto que tento fazer. É incrível. É fantástico. É o Cinema. É a parte que mais gosto de fazer. Porque quando faço o meu filme, até a personagem se torna minha. Não é a tua personagem. Nem a personagem de um outro filme. É a minha personagem! Minha!

Alguma vez teve o sonho ou o desejo de trabalhar em Hollywood durante a sua carreira?

De uma maneira ou de outra tive. Filmei dois ou três filmes lá, mas uma carreira dessas não integrava o meu sonho.

Porquê?

Porque tinha de discutir… e lutar… com demasiada gente. A indústria de Hollywood é muito… Se eles dizem: “Tem de ser assim”, e eu não gosto… então não consigo fazer.

Em Itália quem manda sou eu. Sou o chefe, e sê-lo também significa assumir todas as responsabilidades. Aceito isso.

Quero ajudar a produção, os atores, todos, só que à minha maneira.

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Escape from Bronx (1983)

Julgo que uma das suas marcas autorais, está na forma como os duplos / stuntmen reagem quando são baleados, esfaqueados, golpeados, aliás, como “morrem”.  As suas acrobacias incentivam a uma espécie de bailado, uma dança com a morte, digo …

Dança! Foi exatamente isso que o Tarantino me disse, que gostava da minha dança, porque cada tiro é como se as pessoas estivessem a dançar — não a morrer ou a disparar, mas a dançar. É estar a preparar um grande espectáculo, quase uma fantasia, à beira desse fim.

É verdade.

Mas se me pedires para explicar, não consigo fazê-lo. Mais uma vez, tudo vem de mim, de um sentimento meu. E quando estou no set, explico isso através da acção. Crio cada personagem assim. Brinco com o exagero. Apenas o suficiente para mostrar que tudo o que dirijo é exagerado, mas só para me destacar, diferenciar, criar algo único, nada frio. Quando isso se encaixa com o ator, torna-se uma dança extraordinária.

Sobre “The Big Racket”, esse seu zénite do poliziottesco, disse que foi filmado com agressividade, como um golpe. Então, vou fazer a pergunta desta maneira quase abstracta, mas ao encontro, da, mais uma vez, política dos seus filmes: podemos considerar o golpe num murro, de mão fechada, ou um “chapadão”, de mão aberta?

Ambos [risos]. 

Como assim?

É verdade [risos]. Até apareço no filme. Não sei se me reconheceu, mas surjo como um dos lojistas. Abro a cancela da loja, entro, e começam a bater-me. Sou eu [risos], e tenho uma arma, da qual puxo-a e aponto-a aos vândalos que me atacam. Curiosamente, era uma arma verdadeira, a minha arma. Isto porque nos anos 70, toda a gente podia andar armada assim. Vivíamos um tempo de grande violência na Itália. Era real naquela altura, podíamos senti-la.

O apelo do cinema italiano em géneros como o western e os filmes pós-apocalípticos ressoava bem com o público da altura. Sabe-me dizer o porquê?

O cinema ainda é uma surpresa. Apenas não sabes como vai correr. Não sabes se será um sucesso, será um fracasso, ou a nova tendência. Não podes prever se o que estás criar vai ser amado ou não. Por isso tens de esperar pelo lançamento.

Só por mera curiosidade para este ”cair da cortina”: quando o Tarantino anunciou que iria, à sua maneira, refazer o seu “The Inglorious Bastards”, qual foi o seu primeiro sentimento?

Sentir-me um Rei! [risos] Se um génio como ele escolhe um filme entre milhares feitos e escolhe o meu, é uma honra. Recordo que na altura não acreditava, mas depois fiquei totalmente satisfeito. Naquele momento, olhas para trás e vês que vais deixar um legado.

"Temos de impedir que o mundo nos seja roubado": falando com Félix Dufour-Laperrière sobre Morte, Política e Animação

Hugo Gomes, 12.06.25

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"A morte não existe!" É uma ilusão, uma barreira que impede o seguimento das nossas vontades. O medo dela é a nossa limitação. Tudo soando como um estratagema politizado, criado para fabricar mártires de causas. Talvez, como de facto acontece, seja também isso o que "Death Does Not Exist", a quarta longa de animação de Félix Dufour-Laperrière, propõe: uma reflexão sobre o justicialismo, as causas político-sociais e a forma de as exercer numa actualidade saturada de narcisismos e confortabilidade.

Neste filme, apresentado na Quinzena de Realizadores de Cannes e agora sob os holofotes de Annecy, somos conduzidos por um grupo de jovens — rebeldes, sim, mas com causa — prontos a executar o seu plano contra uma família elitista, os DDT, num contexto incerto. Contudo, o ataque (terrorista ou radical, conforme a sensibilidade, justo aos olhos de outros) fracassa com a hesitação de Hélène (Karelle Tremblay), que, num momento de fraqueza, foge do local. É então abordada por espíritos, animalescos ou metafóricos, assim como os seus companheiros tombados.

O Cinematograficamente Falando… conversou com o realizador canadiano sobre esta pertinente animação, um “filme de esquerda”, como muitos críticos não hesitaram em chamar-lhe. E, em resposta, num mundo em que a direita segura o leme, "Death Does Not Exist" acredita na alternativa, mas exige que a pensemos, antes que cedamos a impulsos selvagens.

Quando fiz uma pesquisa rápida do título do seu filme - “Death Does Not Exist” - deparei-me com um estudo científico a afirmar que a morte não existe, que é uma ilusão. É óbvio que o filme não remexe nisso de forma científica, mas não pude deixar de notar a sua igualmente essência ilusória e delirante na sua narrativa. Gostava de pegar nesse título e no simbolismo que carrega, até pela forma como se relaciona com a própria estrutura narrativa.

“Death Does Not Exist" é, para mim, um filme de paradoxos e contradições. O próprio título já é uma contradição [risos]. Essa afirmação — de que a morte não existe — representa a grande esperança das personagens, jovens mais precisamente, do filme. É quase a personificação do desejo de que a vida prevaleça, que lute, vença, que continue, mas, por outro lado, a morte existe e está presente com uma brutalidade imediata no filme. Portanto, o título espelha esse paradoxo entre a esperança e a realidade, entre uma abstração idealista e a concretude violenta do real.

É por isso que o filme dá essa sensação de estar preso num ciclo, num loop sem saída. Para mim, há também um pacto … quase em queda … entre Hélène e Manon. Elas partilham esse momento de queda, uma queda circular, como se não houvesse escapatória e ainda assim, tudo o que acontece no filme, na minha visão, é real. O que Hélène vive tem uma verdade. Todas as possibilidades que o filme explora, por mais oníricas ou abstratas que pareçam, são reais dentro daquele mundo.

Diria que este é um filme muito político … Acredito mesmo que seja. Só que há algo curioso: os antagonistas, praticamente, não têm rosto. Não sabemos exatamente quem são. Percebemos que pertencem à classe alta, à elite, mas o que fizeram, ou como agem concretamente, não é detalhado, e isso é interessante, porque o cinema político contemporâneo muitas vezes exige uma certa urgência e clareza em relação ao inimigo: quem é, como combatê-lo. Mas no teu filme, parece estar mais centrado no corpo, no “eu” físico e íntimo, e não tanto no inimigo externo.

Sim, foi intencional. Quis que o filme fosse uma fábula trágica e fantástica. Há um certo grau de abstração que faz parte da estrutura narrativa de uma fábula. O meu objetivo era colocar em cena, com intensidade, essas tensões, esses desafios, essas contradições, e, com isso, permitir que o filme possa ser lido em vários níveis: sobre ação direta e violência, como também, sobre comprometimentos, relações, lealdades e os compromissos com que todos lidamos na vida.

A ausência de um contexto político preciso foi deliberada. Essa ambiguidade é essencial para transmitir o desejo profundo, a convicção difusa que muitas vezes motiva ações extremas. Frequentemente, quem protagoniza esses atos de violência direta são jovens, e há uma abstração natural na forma como se relacionam com a ideia de tomar esse tipo de risco físicos e morais, como, por exemplo, apontar uma arma a alguém.

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Félix Dufour-Laperrière

O objetivo nunca foi retratar um contexto específico, como o Portugal contemporâneo ou o Quebec atual. Não era esse o foco. Quis criar uma fábula trágica mais universal: sobre as nossas ações políticas, os nossos gestos, e sobre as consequências das nossas crenças, convicções e compromissos.

Sei que, como acontece com muitas obras de animação independentes, são anos e anos de produção, design, desenvolvimento conceptual… mas agora, ao estrear este filme, é inevitável não pensar no caso de Luigi Mangione, nos EUA. Temos ali uma figura ligada à elite, o justicialismo, o uso da violência como resposta a uma injustiça percebida. Sei que o seu filme já vem de muito antes, portanto como lidas com essa coincidência?

Sim, é uma coincidência [risos]. Comecei a escrever o guião há cerca de dez anos. Depois veio o financiamento, a pré-produção, a produção… portanto, nada disso foi planeado. Repara, há algo estranho na atualidade do filme, e penso que isso acontece porque lidamos com questões eternas: o que fazemos quando o mundo se torna insuportável? O que fazemos com as nossas convicções mais profundas, com aquilo em que acreditamos? O filme lida com um paradoxo: o da insuficiência. Cuidar daquilo que amamos pode não ser o suficiente. Por outro lado, destruir o que existe também não é solução, porque acabamos por não cuidar do que realmente importa. Essa contradição atravessa o filme.

Quanto ao caso específico que refere, como toda a gente, tenho sentimentos contraditórios. Não acredito na violência como solução. Ela é impossível de controlar. Os efeitos colaterais, a resposta do poder instituído … tudo isso nos escapa. Ao mesmo tempo, também acredito que o status quo, tal como está, é insustentável. Estamos presos entre duas impossibilidades: a violência como meio e a permanência do que já existe. É um equilíbrio muito difícil de encontrar. 

Diz-se que toda revolução é, de alguma forma, violenta …

…  e que o contra-ataque também é violento. A violência é impossível… mas está por todo o lado. Explode em todas as direções … seja a violência do Estado, a violência política, ou outras formas.

Gostava de fazer uma pausa na parte política e falar sobre o design do filme. Li várias críticas aquando da exibição em Cannes que invocavam Miyazaki, chegando mesmo a referir “Princess Mononoke”, muito por causa da presença do lobo [risos]. Essa foi uma influência consciente para ti?

Não, não foi uma influência consciente. Mas acho que a qualidade universal da obra do Miyazaki se difunde no nosso inconsciente coletivo. Portanto, embora não tenha sido algo deliberado, não vou contrariar essa interpretação, porque reconheço que há algo no seu cinema que já faz parte da nossa cultura visual comum. No meu caso, os animais, como as ovelhas, os coiotes, os beija-flores, os pássaros que cantam, são encarnações de certas ideias do filme. Representam a fragilidade da vida, a presença física imediata, a dor que podemos sentir, e também essa perseguição eterna entre predador e presa. É uma dança circular entre a vulnerabilidade e a ameaça.

Tenho a sensação de que essa associação com Miyazaki foi uma leitura crítica. Uma coincidência interpretativa.

Então, gostava que me falasse um pouco mais sobre as suas influências — especialmente no campo da estética e da animação em si. Houve uma cena em particular, a do tiroteio, que me fez invocar os videojogos do género shoot-em-up. Foi algo intencional?

É uma leitura interessante. Aquela sequência é construída a partir de um ponto de vista artificial, a câmara segue o movimento da Hélène, como se ela tivesse participado logo desde o início da ação. Mesmo que, na primeira ocorrência, ela ainda não se junte ao grupo, a câmara continua a avançar, como se o seu percurso interior já estivesse em movimento. Ela continua em frente, até chegar ao momento em que ouve a velha senhora.

Na segunda ocorrência: quando decide, de facto, participar na ação, o movimento é semelhante, mas agora ela está plenamente envolvida, avança ao lado das suas companheiras. Portanto, a câmara acompanha essa progressão interior e exterior, refletindo a sua tomada de decisão.

Que tipo de animação usaste no filme? É rotoscopia?

Não, não é rotoscopia. Todo o filme foi desenhado à mão, diretamente numa mesa gráfica (são 12 desenhos por segundo). Não usamos vídeo como referência direta. Para a sequência do ataque — aquele plano de sequência — fizemos uma exceção: criámos uma referência visual. Desenhámos uma maquete da cena e usamos uma câmara digital para estabelecer alguns limites e orientações visuais. Isso deu-nos um tipo de "guia" espacial para podermos desenhar com consistência. No geral, o filme foi todo animado sem rotoscopia. É animação feita do zero.

Quanto às referências, há duas que me marcaram muito. A primeira foi Satoshi Kon, com o “Perfect Blue”, um anime de 1999, se não me engano. É uma obra extraordinária, feita com um orçamento modesto, mas com uma mise-en-scène absolutamente brilhante. A segunda foi Alexander Sokurov, especialmente o filme “Faust”. Embora também admire “Russian Ark”, foi “Faust” que me inspirou mais diretamente, sobretudo a sequência do círculo infernal, que ficou-me muito presente enquanto escrevia o guião e pensava na encenação.

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Há uma ideia que me ocorreu ao ver o teu filme, especialmente na forma como acompanhas a protagonista, Hélène, e o modo como ela foge da zona de conflito. Isso remete-me a uma questão muito atual: o narcisismo no ativismo contemporâneo. Hoje em dia, há uma tendência para fazer ativismo a partir da zona de conforto, sem correr riscos reais, e muitas vezes, esse ativismo serve mais como estratégia de autopromoção. Uma publicidade pessoal.

Sim, exatamente. Publicidade. Muita publicidade pessoal disfarçada de posicionamento. Mas, no fundo, a Hélène acaba por fazer uma escolha. Ela decide entrar, participar ativamente no ataque com as suas companheiras e paga o preço por isso. E isso é um paradoxo interessante: ela não o faz apenas por uma motivação política, mas também por fidelidade às ligações que tem, com Mark, com Manon, com o grupo. Ela sente que tem um dever afetivo. Para mim, isso faz parte do dilema central do filme.

É claro que há uma responsabilidade coletiva — em relação ao mundo e à sociedade em que vivemos — mas há também uma responsabilidade íntima, em relação àquilo e àqueles que amamos. Essas duas dimensões convivem, colidem, alimentam-se.

No final, Hélène não quer dominar o mundo. Ela quer uma pequena parte dele, mas quer vivê-la por inteiro. Esse desejo, para mim, traduz uma responsabilidade partilhada: coletiva e íntima.

Neste momento o filme estreou no Festival de Annecy, mas anteriormente fez presença na última Quinzena de Realizadores, em Cannes, e, provavelmente, entrará também num circuito em salas de cinema no Canadá. O que espera da reação do público ao seu filme, como gostaria que reagissem?

Tenho duas grandes esperanças. A primeira é que o filme desafie, de alguma forma, a posição de cada espectador, que provoque uma reação, um movimento interior, que confronte as suas próprias contradições.

Eu vivo num país pacífico. Sou um homem branco, de classe média. Tenho dois filhos que amo. A vida, no fundo, é boa para mim, mas mesmo assim, sinto uma urgência. Uma necessidade urgente de honrar a responsabilidade que temos para com o mundo. No meu caso, isso passa por olhar para o Quebec, com todas as suas contradições, e assumir que, apesar dessas falhas, temos um certo poder coletivo. Mas só se formos capazes de encarar essas contradições de frente.

Talvez o filme não leve as pessoas diretamente à ação, mas espero que alimente uma reflexão sobre o estado atual do mundo e esse sentimento frustrante de impotência, de incapacidade de mudar ou agir, e, por outro lado, espero que o público também desfrute do lado visual. A mise-en-scène animada é muito singular, há um uso particular da cor, da composição, e da presença animal. É um tipo de animação pouco comum.

Gostava que as pessoas se divertissem, que sentissem prazer e curiosidade em descobrir o que este tipo de linguagem animada pode oferecer.

Ao pesquisar mais sobre o seu filme, encontrei alguns comentários e críticas que o classificam como um “filme de esquerda”. Tal designação o incomoda?

De forma alguma. Obviamente que é um filme de esquerda [risos]. Acredito profundamente que é necessário redistribuir a riqueza, proteger o mundo em que vivemos e torná-lo habitável para todas as pessoas, e se isso implicar tomar decisões difíceis, então que assim seja, são decisões necessárias. Não tenho qualquer vergonha em ser de esquerda. Pelo contrário. O problema é que o mundo está a caminhar, cada vez mais, para a direita. Só que essa viragem é uma farsa.

Estamos a ser distraídos com guerras culturais, focados no lado mais frágil e vulnerável da identidade, enquanto o nosso mundo, os nossos recursos, estão a ser-nos confiscados. Acho que deveríamos voltar a focar-nos no lado luminoso da identidade, aquele que é feito de encontros, de diálogo, de partilha, de tensão criativa. É essa a dimensão da identidade que devemos celebrar: algo em constante evolução, que nos une e não nos isola. Temos de impedir que o mundo nos seja roubado.

Não quero terminar esta conversa sem falar sobre o som, que considero um dos pontos mais fortes do seu filme. A edição sonora opera quase como sensorialismo. Há momentos em que sentimos literalmente a carne a rasgar-se …

Sim, o som foi uma prioridade desde o início. O essencial para tornar o filme mais sensorial e isso é ainda mais importante na animação, onde não há som ambiente gravado no local. A imagem vem completamente “nua”, e somos nós que decidimos onde e como aplicar o som. É um processo muito preciso e consciente. Trabalhámos tanto com momentos de alta densidade sonora como com silêncios e minimalismo. Essa variação foi intencional para acompanhar a jornada da personagem e a travessia da floresta.

O som serve aqui como um segundo nível de leitura. Não é um som literal, não está lá apenas para ilustrar. Nem o espectador, nem nós o lemos de forma imediata. O som carrega sentidos que atuam de forma indireta, emocional, quase instintiva. Como disse, há algo visceral — uma presença imediata — que só é possível porque, em animação, temos uma liberdade total para esculpir o som como quisermos.

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Sei que ainda é cedo para esta pergunta: afinal, a animação não é como filmar em imagem real, como disse, este filme envolveu cerca de dez anos entre escrita e produção, e sei que o processo de animação é longo e cuidadoso. Mas não resisto a perguntar: tem novos projetos? Já há algo já escrito?

Sim, estou a iniciar o processo de financiamento já no próximo mês. Aliás, já comecei a animar, com uma pequena equipa. O novo projeto é um filme intitulado “Everything in its Place”, uma reflexão sobre ordem e desordem, tanto nas classes sociais, como na arte e nas relações íntimas. Portanto, continuo a trabalhar dentro do mesmo território político, mas agora com um foco mais direto na organização social, nas estéticas do processo criativo e na nossa vida íntima; no dia a dia, na casa em que vivemos, e nesse equilíbrio (ou desequilíbrio) constante entre a ordem e o caos. Há três personagens que exploram estas questões de ordem e desordem. 

Ainda hoje existe a ideia do cinema de animação ser somente uma indústria “infantil”, mas o Félix contraria esse senso comum, faz animação política, com um peso temático adulto.

Sim, é verdade que a indústria da animação está muito orientada para filmes de família e para crianças. Acredito que, no seu núcleo mais essencial, que a animação é um diálogo profundo entre o cinema, o desenho e as artes visuais. Um diálogo com o movimento, com a imagem animada enquanto linguagem. A animação pode ser para adultos. Pode ser para todos. Mas o que acho realmente absurdo é esta ideia de que desenhar é algo "não inteligente", ou que desenhar é "para crianças".

Não é. O desenho é, obviamente, também para adultos, e mais: há uma inteligência própria no desenho, nas artes visuais. Uma capacidade de nomear o mundo, de tocar a realidade de uma forma que só o traço, a pintura, a arte visual conseguem e a animação participa dessa força, dessa forma única de pensar e expressar.

Andrea Segre: "hoje, a direita sente que pode ir mais longe, ultrapassar os limites, porque a esquerda já não representa uma força radical, já não se opõe com firmeza"

Hugo Gomes, 11.06.25

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Berlinguer: La grande ambizione (2024)

A biopic enquanto motivação política, aliás, de políticas, o realizador Andrea Segre não se distancia no seu processo de idealização e concretização fílmica, assentando na máxima de “tudo é politizado”, basta saber interpretar.

Com anos e anos dedicados a obras sobre migração e imigrantes (muitos desses filmes ainda inéditos no nosso panorama) regressa aos cinemas portugueses com um retrato de Enrico Berlinguer, o carismático secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCI), desde o seu perfil humano, capaz de conquistar eleitores, passando pela ruptura ideológica para com os ideais vindos do Leste. O filme atravessa ainda o sequestro e assassinato do primeiro-ministro Aldo Moro (aqui interpretado por Roberto Citran), ferida ainda aberta na sociedade italiana e momento-charneira na descrença crescente nos aparelhos da esquerda.

Berlinguer: La grande ambizione” responde às questões sem nunca, enquanto filme, subir sozinho a um palanque para se manifestar. É a biopic enquanto filme político e os seus prognósticos de final de jogo. Como celebração da estreia nas nossas salas, o Cinematograficamente Falando… conversou com o realizador sobre a obra e tudo o que nela gravita. Tudo… já sabem: político.

A minha primeira pergunta prende-se com a génesis do projeto, mas gostaria de saber num ponto de vista enquanto idealização do projeto. O que esperava extrair da história de Enrico Berlinguer num mundo como este que nos deparamos?

Quando comecei a pensar neste filme, foi no final de 2020. O mundo era bastante diferente daquele que vemos. Por exemplo, ainda não havia a guerra na Ucrânia, nem esta escalada do conflito de Gaza, nem Giorgia Meloni estava no governo em Itália, nem sequer Donald Trump ainda havia reconquistado a presidência dos EUA. Portanto, o contexto global era outro.

A ideia surgiu-me por duas razões principais. Primeiro, porque me parecia uma grande lacuna no cinema italiano o facto de nunca ter sido feito um filme, não apenas sobre Enrico Berlinguer, como também sobre a comunidade do Partido Comunista Italiano (PCI) e o papel fundamental que esse partido teve na história e sociedade italiana e até no contexto europeu e mundial. O PCI desempenhou um papel muito relevante, sobretudo nos anos 70, e é surpreendente que nunca tenha havido um filme que explorasse essa dimensão. Não é uma história pequena … estamos a falar de uma enorme comunidade: cerca de dois milhões de membros e cerca de doze milhões de eleitores.

A segunda razão tem a ver com o presente. Tive a sensação de que essa história — a história dessa enorme participação coletiva, dessa grande ambição política — podia dialogar com a crise atual da participação política e da democracia. Ao acompanhar a história de uma comunidade inteira que acreditava num sonho e lutava por ele, dedicando tempo e paixão a uma ambição coletiva, podemos refletir sobre como essa forma de participação política se foi perdendo no mundo de hoje. Entretanto, enquanto estávamos a desenvolver o filme, o contexto político ia mudando. O crescimento da extrema-direita, a diminuição da participação nas eleições, a crise da democracia como sistema, tudo isso, agravado por conflitos armados, tornou ainda mais evidente a relevância e a atualidade dessa história.

O sucesso do filme em Itália, e agora também a nível internacional (pois já foi vendido para mais de 25 países), parece confirmar essa ligação entre a memória histórica e a situação atual. Acho também muito interessante que muitos jovens tenham ido ver o filme: em Itália tivemos cerca de 700 mil espectadores nas salas de cinema, e um terço deles tinham menos de 30 anos. Isso mostra que há curiosidade, há interesse e especialmente entre os mais jovens, por esse tipo de reflexão.

Uma coincidência é que o filme vai estrear em Portugal num momento em que tivemos uma eleições legislativas recentes e que o resultado revelou uma dizimação da esquerda em todas as frentes e uma subida acrescida da extrema-direita e do populismo. Mas o que aconteceu em Portugal é um reflexo do que está a acontecer na Europa, e não só, de um distanciamento dos eleitores com a esquerda. Acredita, e tendo em conta o tempo retratado no seu filme, que essa queda é um sintoma da perda identitária da esquerda política? 

A esquerda política, não só na Europa, mas especialmente na Europa, está hoje a enfrentar uma clara crise de identidade. Originalmente, a identidade da esquerda europeia, particularmente da Europa latina, estava fortemente ligada à ideia de construir uma sociedade não capitalista. Mas, durante os anos 80 e 90, essa esquerda decidiu abandonar a proposta de um sistema alternativo ao capitalismo. Ao invés disso, integrou-se no próprio sistema capitalista, passando a propor apenas uma moderação dos efeitos do mercado na sociedade. Fê-lo, no entanto, sem apresentar uma posição verdadeiramente alternativa ou um modelo claro de transformação. Isto levou os eleitores, os cidadãos, a questionarem-se: “onde está a diferença?” Se a esquerda já não representa uma proposta distinta, é natural que as pessoas deixem de votar ou escolham votar em quem defende, de forma mais clara, o sistema capitalista e a sua segurança e estabilidade.

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Andrea Segre e o ator Elio Germano

O que estamos a viver hoje é, em muitos países, uma radicalização da direita. A extrema-direita encontrou espaço para crescer justamente porque a esquerda deixou esse espaço vazio, porque deixou de afirmar uma posição firme, clara e alternativa. Neste contexto, a ausência de fronteiras ideológicas bem definidas abre caminho à radicalização: hoje, a direita sente que pode ir mais longe, ultrapassar os limites, porque a esquerda já não representa uma força radical, já não se opõe com firmeza. E isso é um problema.

Gostaria que me falasse do seu Enrico, mais concretamente Elio Germano, ator cada vez mais presente na indústria italiana (isto na perspetiva portuguesa das produções que nos chegam é claro), e de que forma foi essencial para humanizar a personagem.

Ele foi a segunda pessoa com quem falei sobre o projeto. A primeira foi Michele Pettenello, o meu co-argumentista. Depois disso, falei diretamente com o Elio [Germano], ainda antes de apresentar a ideia à produtora. Conhecia-o pessoalmente e, além disso, tínhamos estado juntos em várias lutas sociopolíticas em Itália, enquanto militantes. Nunca tínhamos trabalhado juntos, no entanto. Por isso, liguei-lhe e contei-lhe a ideia, porque tinha a certeza, antes de mais, do seu talento artístico extraordinário.

Mas também acreditava que o corpo dele podia ser o corpo de Berlinguer. Uma das características mais marcantes de Berlinguer é que, embora fosse um líder, era uma figura muito frágil enquanto ser humano: magro, pequeno, discreto. Não era fisicamente imponente, nem provocador na forma como se apresentava. Se pensarmos, por exemplo, em figuras como Mussolini ou Fidel Castro, Berlinguer era exatamente o oposto.

Pois, Mussolini é um bom exemplo, ele impunha uma grandeza e autoridade pela postura. Por exemplo, ele discursava sempre com a cabeça ligeiramente levantada com jeito de altivez. 

Sim, porque do outro lado do espectro político, figuras como Stalin e Fidel Castro encarnavam um corpo demagógico: uma presença física marcada por força e autoridade. Berlinguer era o oposto disso. Ele era frágil, silencioso, de certa forma até reservado, fechado. E foi precisamente por isso que achei que o corpo de Elio seria o certo para o papel graças à sua delicadeza física. Mas havia também uma terceira razão. Sabia que podia envolver o Elio num filme que não fosse apenas sobre Berlinguer, ou seja, não apenas sobre uma figura heroica da história, mas sim sobre um homem que dedicou a sua vida a uma comunidade, ao sonho coletivo dessa comunidade.

O objetivo era fazer um filme com Berlinguer no centro, sim, mas com a alma e o corpo dessa comunidade presentes, e de facto, embora o Elio esteja no núcleo do filme, este está rodeado de pessoas: temos 50 atores e milhares de pessoas comuns, tanto em cenas de ficção como em imagens de arquivo. É um filme sobre um pedaço do povo italiano e sobre o seu sonho. Sabia perfeitamente que o Elio seria capaz de encontrar uma forma de não tornar Berlinguer uma figura isolada, mas sim de o colocar no seio dessa comunidade e de o tornar parte dela.

Talvez já saiba a resposta desta pergunta, mas necessito-a de uma confirmação para avançar com a seguinte. “Berlinguer: La grande ambizione”, mesmo sendo uma biopic na taxonomia fílmica, é um gesto político?

Sim, claramente é um filme político.

Certo. A narrativa do filme é intercalado com imagens de arquivo. Nesse sentido, gostava de perguntar: como é que estas imagens, enquanto matéria histórica e emocional, contribuem para a intenção política do filme?

A dimensão política do filme está intimamente ligada à sua linguagem cinematográfica. Acredito verdadeiramente no poder do cinema imersivo. Acho que o cinema tem essa capacidade única de te levar a um lugar onde, de outro modo, não poderias estar. Para ativar esse mecanismo de imersão, preciso de uma câmara — e de uma forma de a usar — que seja ela própria imersiva. É por isso que convidei Benoît Dervaux, o diretor de fotografia de vários trabalhos dos Dardenne, para ser o DOP deste filme. Ele é um mestre em usar a câmara para te transportar para dentro do mundo que está a filmar.

Também preciso de atores capazes de entrar nessa realidade, de a habitar, mental e fisicamente, como fez o Elio [Germano], e como fizeram também os outros. E, por fim, preciso de trabalhar na fronteira entre a ficção e a realidade. Essa fronteira é perigosa porque, se nos afastamos demasiado para um dos lados, podemos perder o equilíbrio. Mas, ao mesmo tempo, é uma fronteira criativa, se soubermos como habitar esse espaço intermédio. O objetivo não é criar ambiguidade, e ao mesmo tempo gerar uma confusão emocional produtiva, onde a transição entre ficção e realidade seja contínua e envolvente.

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Berlinguer: La grande ambizione (2024)

No filme, é claro que há imagens de arquivo: não estou a escondê-las. É o meu filme. Mas na montagem trabalhámos para que a fluidez entre a ficção e a realidade fosse emocionalmente contínua. Não queríamos uma estrutura em que a realidade explica algo e depois a ficção encena esse algo. Queríamos que tudo fosse vivido de forma integrada, como uma experiência imersiva, ao mesmo tempo dramática e realista, onde as duas dimensões cooperam. Foi um processo longo. Desde o início da escrita do guião, tive comigo um pesquisador de arquivo. Vi muitas imagens com o Marco, o co-argumentista, mas não só com ele: mostrámos arquivos aos atores, ao designer de produção, ao figurinista, ao diretor de fotografia... Durante a preparação, todos assistimos juntos a muito material de arquivo. E depois, claro, trabalhámos intensamente sobre essas imagens na sala de montagem. Diria que, pelo menos 70% do tempo de edição foi dedicado a encontrar o equilíbrio certo entre o que criámos e o que herdámos dos arquivos.

Decidimos que o material de arquivo devia estar cheio de rostos, de gente. Nunca os contei exatamente, mas devem ser entre 400 e 500 rostos diferentes nas imagens de arquivo. Porque queríamos transmitir a ideia de que aquela grande ambição não era a ambição de um único indivíduo, mas sim um sonho verdadeiramente coletivo.

Existem vários filmes que abordam o incidente de Aldo Moro, nem seja no propósito de contexto temporal. O seu filme, porém, o retrata como aquilo que verdadeiramente é na sociedade italiana, uma ferida, um trauma, e avança com as sequelas desse ato. esse acontecimento marcou o início do declínio da esquerda em Itália, a sua evaporação no campo das ideias, abrindo caminho ao avanço de forças conservadoras, populistas e até extremistas, como as que dominaram o cenário político nos anos 90, com figuras como Berlusconi e idem?

Uma das questões problemáticas da esquerda, e talvez uma das razões pelas quais fiz este filme, tem a ver com a forma como contamos a história do caso Aldo Moro. Um dos objetivos do filme foi também abordar essa história a partir do ponto de vista de Berlinguer e do Partido Comunista Italiano. É quase um lapsus freudiano coletivo o facto de nunca termos contado essa perspetiva. Fez-se muitos filmes sobre o caso Moro — filmes excelentes, realizados por cineastas importantes como Marco Bellocchio, só para dar um exemplo. Não tenho absolutamente nada contra esses filmes. Mas é de notar que, em todos eles, o ponto de vista de Berlinguer e do PCI esteja ausente.

E no entanto, o rapto e o assassinato de Aldo Moro foi um dos acontecimentos políticos mais extraordinários do século XX na Europa - raptar e assassinar um primeiro-ministro é algo extremamente raro, tem um peso histórico imenso. O que aconteceu é que esse assassinato serviu, claramente, para travar o avanço de Berlinguer e do PCI. Formalmente, o rapto foi levado a cabo pelas Brigadas Vermelhas. Mas até hoje não é claro quem as ajudou a fazê-lo. Se perguntares a qualquer italiano quem matou Aldo Moro, todos te dirão: “As Brigadas Vermelhas… com a ajuda de alguém”, e esse alguém nunca foi identificado. Porque é evidente que as Brigadas Vermelhas não teriam conseguido levar a cabo uma operação tão complexa sem ajuda de dentro do sistema … de alguém com poder se me entendes.

E o porquê dessa ajuda? Porque assassinar Aldo Moro foi uma forma de travar o projeto de abertura democrática que ele estava a tentar concretizar com Berlinguer. É muito claro, e, no entanto, nunca fizemos um filme que chegue ao caso Moro vindo “de trás”, dos cinco anos anteriores, que são fundamentais para entender por que razão ele foi raptado. Se quisermos realmente compreender esse acontecimento, temos de começar em 1973, com o golpe no Chile e a morte de Salvador Allende. A partir daí, percebe-se o significado histórico do que se passou com Moro.

Quando Moro foi assassinado, o projeto político de Berlinguer morreu com ele. Berlinguer ainda viveu mais cinco anos e tentou relançar a sua proposta, com um novo conceito chamado “Alternativa Democrática”: um projeto politicamente e intelectualmente interessante, mas que não teve o mesmo peso, a mesma força, que os cinco anos anteriores. Foram esses cinco anos que o filme tenta contar — os anos em que havia uma verdadeira possibilidade de mudança do poder numa democracia ocidental. O PCI tinha a maioria, administrava todas as grandes cidades, de Milão a Palermo, de Nápoles a Veneza. Era a maioria na sociedade, e, por isso, era legítimo que participasse no governo.

Mas isso não foi possível, por causa das estruturas invisíveis de poder - os chamados “Palácios do Poder, tanto em Itália como a nível internacional, e essa é uma enorme questão democrática. Hoje, compreendemos muito bem o que significa viver com problemas de democracia, quando há interesses que interferem nas escolhas legítimas dos povos. E é também por isso que este filme quer ligar a memória de Berlinguer ao presente.

No circuito português, conhecemo-lo sobretudo por “Io Sono Li” (2011), a história de uma imigrante que venceu a Competição da Festa do Cinema Italiano em Lisboa e estreou comercialmente nos nossos cinemas. Desde então passaram-se 13 anos até à estreia de “Berlinguer: La grande ambizione”, o seu segundo filme a estrear em sala em Portugal. Durante esse hiato, realizou vários outros filmes, muitos deles centrados na questão da migração. Hoje, esse tema tornou-se altamente politizado e central em várias eleições. O que continua a ver, tanto do ponto de vista cinematográfico como político, nesse tópico, para persistir enquanto foco recorrente do seu trabalho?

Fiz muitos documentários e filmes de ficção sobre migrações, e muitos jornalistas perguntam-me: “Por que estás tão interessado no tema da imigração?” Tenho duas respostas simples para isso.

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Io Sono Li (2011)

Primeiro: foi precisamente através do tema da migração que cheguei ao cinema. Eu não estudei cinema formalmente, o meu percurso académico é em sociologia. Tenho um doutoramento em Sociologia dos Processos Culturais, e o meu tema de investigação era a relação entre comunicação social e migração. Comecei, portanto, como sociólogo e foi nesse contexto que comecei a usar o cinema como ferramenta para contar as histórias das pessoas com quem fui-me cruzando no trabalho de campo. Ou seja, o cinema entrou na minha vida por causa do meu interesse pelas migrações.

Segundo: sempre senti que a migração era o grande tema que estava a transformar o mundo, e então… por que motivo não haveria de falar sobre isso? A migração é uma questão que está a mudar os equilíbrios dentro das democracias, dentro das sociedades.

Hoje isso é mais claro do que nunca: a extrema-direita está a conquistar poder em muitos países, usando a migração como arma política. Estão a apontar o dedo aos estrangeiros pobres, ao invés de responsabilizar os seus próprios membros ricos e privilegiados.

E quanto a novos projetos? Voltará ao tema da imigração?

Neste momento, ainda estou a pensar no que farei a seguir, mas, para ser sincero, não tenho nada decidido. Ainda estou muito envolvido com a distribuição de “Berlinguer: La grande ambizione”, que, como referi, está a correr muito bem a nível internacional. O meu cérebro ainda está bastante ocupado com este filme. O que posso partilhar, no entanto, é que estamos a considerar montar um documentário sobre o impacto do próprio filme na sociedade italiana. Durante a distribuição em Itália, levei comigo a minha equipa — o diretor de som, o comentador — e gravámos várias discussões, encontros e situações ligadas à exibição do filme.

Nestes dias tenho andado a rever essas imagens, e talvez possamos montar um documentário a partir disso: um filme sobre as reações, sobretudo dos jovens, e sobre a relação entre esta memória (a de Berlinguer e do PCI) e o presente. Portanto, talvez o meu próximo filme seja esse: um documentário sobre o efeito que Berlinguer teve. Ainda está em aberto, mas é uma possibilidade muito real.

Todos a bordo! O comboio do leste prossegue para a 8ª edição do BEAST IFF!

Hugo Gomes, 05.06.25

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Cestovatel (Veronika Jelšíková, 2024) / East Wave Competição Oficial

Depois da Estónia, o “comboio” BEAST IFF chega à sua oitava paragem – e nesta estação, não há um país de honra, mas a bússola continua virada para dentro, para a própria essência do festival. BEAST vira-se todo para ciclos: de mudança, de memória, de descoberta, de resistência, a renovação como mote e destino a atingir. Em formato cápsula, entre os dias 6 e 8 de junho, o cinema do Novo Leste regressa ao Porto com programação no Batalha, Trindade, Passos Manuel, OKNA, Reitoria da Universidade do Porto e outros pontos de encontro e partilha.

A sessão de abertura traz ao grande ecrã “When the Phone Rang”, de Iva Radivojević, onde uma importante chamada telefónica leva o seu protagonista a questionar a sua identidade e história. Mas este é só o primeiro aceno. O programa segue com secções como In (E)Motion, Anima East, experimentalEAST ou East Doc, num verdadeiro carrossel de linguagens e formas, que vão desde a animação à performance, do ensaio político ao gesto íntimo, cinema com C grande sem se render a convenções e normatividades.

Este ano, mais do que um país, há múltiplos territórios a ocupar: os da infância, os da resistência, os do desejo, os da perda. O queer, o feminino, o arquivo, a memória e a paisagem voltam a ser palavras-chave. E entre sessões, também há escutas, exposições, conversas e DJ sets para continuar a dançar no intervalo entre filmes.

Como sempre, o Cinematograficamente Falando … convida Teresa Vieira, directora artística, programadora e crítica para revelar o que se move por trás desta edição que é, acima de tudo, um gesto contínuo de reinvenção. O comboio BEAST não parou. Nem vai parar.

Ao chegar à oitava edição, que desafios e responsabilidades tem (ou adquiriu) enquanto festival?

A responsabilidade de um festival está - ou deverá estar - sempre presente, desde o primeiro momento. Os olhares,  pensamentos e acções de agentes representativos do  - e pertencentes ao - ecossistema artístico, inevitavelmente inseridos no contexto social, político e cultural, assumem isso mesmo: o BEAST não é excepção. As inquietações, os medos e os desafios de um mundo em crise têm impacto, de diferentes formas, em cada elemento da equipa que permite a criação e manutenção do festival, a cada passo que dá: a atenção e consciência para com o espectro de potenciais - do negativo ao positivo - é algo que carregamos em nós, individualmente, e que procuramos expressar através da curadoria de cada edição, através de diferentes propostas fílmicas e artísticas. 

Na caminhada de oito anos de festival, o futuro é sempre algo que não se procura adivinhar, mas para o qual se procura trabalhar. Não nos limitando a uma mostra acrítica de cinematografias distantes, mas com uma preocupação de criar um diálogo com o público que seja de ordem permanente e frutuosa, e que aproxime culturas e realidades. 

“Esta mudança não promete nada”, é este o mote do festival. Estaremos perante um gesto de resignação política ou uma crítica afiada ao próprio conceito de promessa cultural?

O mote da 8ª edição é inspirado numa fala do filme “Endless”, da secção queer do festival. Num ano em que o festival atravessa uma fase de transição de posicionamento no calendário de actividades culturais da cidade do Porto, a mudança que isso implica é assumida como um facto - com as suas vantagens e desafios inerentes - , mas acima de tudo serviu de inspiração para a criação da edição: estando o conceito de “transição” (nas suas mais diversas formas) presente - e servindo como grande inspiração - na linha curatorial deste ano. E o resultado desta mudança está ainda por se verificar: a experimentação a que este ano o festival se permitiu terá impacto em futuras edições. A identidade do festival mantém-se e afirma-se ao longo de toda a sua trajectória, numa linearidade que assume e representa as restantes transformações pelas quais o BEAST tem atravessado: e tal acrescenta força aos ideias e valores de base, que, ano após ano, transparecem.

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When the Phone Rang (Iva Radivojević, 2024) / Filme de Abertura

Na secção IN(E)MOTION, a efemeridade da vida é o ponto de partida. Estará o festival a propor que o verdadeiro “coming of age” é, afinal, um processo contínuo e nunca consumado?

A secção IN (E)MOTION apresenta um double-bill de filmes com retratos de diferentes pólos de um possível contexto cinematográfico coming-of-age: do urbano ao rural, do infantil ao juvenil, entre outros aspectos. A ligação, com esta base na diferenciação, recai sobre o confronto com a efemeridade da vida, em ambas as narrativas. A morte de um ente-querido é aquilo que impulsiona cada uma destas vidas e histórias. A ideia de um aproximar da idade adulta é algo que pode acontecer de diferentes formas, em diferentes alturas. Mas, mesmo na construção diária e constante do “eu”, que se espera sempre em evolução, atinge-se um certo “estado de adulto” a certo ponto, ao qual não se pode escapar. Aqui não procuramos ressignificar esse processo, há anos reflectido pelas várias artes - com direito a categorização específico -, mas sim um foco nesse movimento - e numa possível emocionalidade - que tal implica.

Com "Endless" e a secção How to Care for Cosmos, temos um cinema queer que se quer gesto curatorial. Mas até que ponto o cuidado e a visibilidade não são, também eles, estratégias de resistência institucional?

O gesto curatorial é algo que se pretende atento e cuidado em qualquer circunstância. Enquanto uma equipa composta por diversos indivíduos queer, de Portugal e da Europa Central de Leste, confrontados com realidades cada vez mais distópicas, de um acentuar de discurso de ódio e de tentativa de apagamento da existência e realidade queer, a representação queer na linha curatorial do festival é algo que o BEAST considera de ordem (sempre - e cada vez mais) urgente. A resistência, através de uma associação e de um espaço de criação de diálogo através - e com e pelo - cinema e artes, com diferentes públicos, é algo que está de forma inerente presente.

Em Re-Focus, a cineasta ucraniana Kateryna Gornostai regressa sete anos depois ao festival. No press release é mencionado que o seu regresso é um lembrete de como os artistas mudam, evoluem até, talvez influenciados pelo mundo ao seu redor. O que implica estas tais mudanças na curadoria de um festival como ao BEAST e se estarão abertos a todo o tipo de transições artísticas?

A secção RE/FOCUS foi criada na edição de 2023 de forma a não perder a ligação com cinematografias, autores, vozes e visões anteriormente em destaque no festival. Um espaço dedicado à possibilidade de revisitação (que não implique somente programas de retrospectiva), num festival que procura a cada ano expandir o aprofundar de diferentes realidades - nomeadamente com a secção de Focus Country

Este ano, o festival decidiu dar mais uma vez destaque à realizadora em foco na edição de 2018: Kateryna Gornostai. É na verdade a terceira vez que o festival apresenta os trabalhos de Kateryna Gornostai: depois de uma mostra das suas curtas-metragens, em 2018, e da exibição da sua primeira longa-metragem, “Stop-Zemlia”, em 2022, o BEAST apresenta em 2025 a sua mais recente longa-metragem, “Timestamp”. Um retrato documental sobre a realidade escolar neste período de guerra na Ucrânia. Um filme que encaixa inevitavelmente na visão curatorial do festival, com um impacto tremendo, de uma sensibilidade única e distinta, que permite um aproximar para com a realidade da vivência ucraniana.

O programa Portuguese Abroad foca-se na animação portuguesa em co-produção com países do leste. Que importância tem este tipo de colaboração no nosso panorama, tendo em conta que a animação portuguesa é um traço forte e mundialmente reconhecido da nossa cinematografia?

Num ano em que uma longa-metragem de animação da Letónia venceu um Óscar, dois anos depois da primeira nomeação de um filme português aos Óscares (com uma curta-metragem de animação), o festival sentiu um apelo em explorar os cruzamentos tão frequentes entre estes dois universos: a animação em Portugal e a animação na Europa Central e de Leste. Não são só eventos recentes, nem reconhecimentos do agora: a tradição de décadas da produção cinematográfica de animação da Europa Central e de Leste foi desde sempre reconhecida naquela que constitui a história do cinema; o caminho do cinema de animação em Portugal é traçada por um grande impacto, força e reconhecimento a nível internacional. Existindo um vasto espólio de colaborações, e sendo o BEAST um espaço dedicado precisamente ao contacto entre estes dois pólos da Europa, a proposta de Ema Lavrador (parte do core da equipa de organização do festival) de apresentar uma selecção de curtas-metragens que reflectem sobre essas dinâmicas de diferentes formas, foi inevitavelmente acolhida. É uma proposta curatorial que o festival pretende estimar e cultivar para o futuro e algo que procura igualmente ter a possibilidade de levar a mais públicos, em diferentes países.

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Timestamp (Kateryna Gornostai, 2025) / Re-Focus

O que poderá dizer-nos sobre os convidados do festival?

O festival conta com a presença de cineastas e produtores do programa dedicado às co-produções de filmes de animação Europa de Leste-Portugal (“Portuguese Abroad”), tendo uma conversa no final da sessão, moderada pela curadora Ema Lavrador. Ala Nunu, Alexandre Sousa, Alina Didenko, André Cunha, Cristina Neto, Cynthia Levitan, Gábor Mariai e Natália Azevedo Andrade falarão então sobre a sua experiência de co-produção e cooperação entre diferentes países.

O BEAST conta também com a presença da directora artística do BIEFF, Oana Ghera, curadora do programa “Lost in Transition”, tal como de Andrei Rui, professor de História do Cinema e Estudos Cinematográficos na UNATC. Será uma oportunidade para aprofundar as propostas deste programa: que oferece um retrato da produção cinematográfica no período de transição que se seguiu à queda do regime ditatorial de Nicolae Ceaușescu (em particular no contexto de produção da UNATC). Teremos também a presença de cineastas da competição oficial do festival. 

Em mais colaborações curatoriais, o BEAST apresenta “Local Time Only”, com curadoria de Simona Constantin. A realizadora estará presente para apresentar a sessão de filmes, tal como realizar um workshop. A exposição “It Slips Between My Fingertips” e as performances “Bits Of You” e “Volcanic Sand” são de curadoria do colectivo queer ucraniano MOFO.GALLERY, sediado no Porto, que estarão então também no festival. A curadora da Listening Session, Pavla Rouskova, estará presente na abertura dessa experiência patente na Reitoria da Universidade do Porto

Toda a programação poderá ser consultada aqui

A Linha de Sombra: 'a shop around the corner' e a conversa com um livreiro

Hugo Gomes, 28.05.25

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Foto.: Mafalda Martins

Bastou um pé dentro do espaço para ser recebido por um sorriso. “Boa tarde, Hugo. Hoje temos a apresentação deste livro.João Coimbra Oliveira, livreiro de profissão, cinéfilo por paixão, aponta para uma pequena edição de capa mole exposta na recepção, trata-se de “Contos das Histórias, Estórias dos Contos”, de António Haddad.

“Vamos ter a apresentação dele hoje.” Acrescenta a informação, para de seguida puxar de baixo do balcão um volume de tamanho generoso. “Mas penso que este te vai interessar: ‘Jean-Luc Godard’, numa edição de Serralves.” Por uns minutos pavoneei o livro na mão e, com entusiasmo, fiz-lhe um gesto de quem quer pedir algo. “Preciso de ti por uns momentos. Dá para irmos lá fora?

Naquele preciso instante, dois clientes exploram os cantos e recantos do espaço — não muito grande, é certo, 30 metros quadrados para sermos exactos, mas com uma voluntária desorganização no centro da livraria: pilhas de livros, revistas e outros coleccionáveis, raridades que só aqui parecem existir. “Este é uma jóia! Para ti, faço um desconto.” João exibe-me “Os Meninos de Ouro”, de Agustina Bessa-Luís, um livro claramente em segunda mão, de uma tiragem há muito extinta. “Se este livro falasse, que histórias teria me para contar sobre os seus antigos donos.” pensei eu.

Seguimos para o pátio que une a Linha de Sombra ao bar 39 Degraus, no primeiro andar da Cinemateca de Lisboa. Por entre a algazarra dos que apenas anseiam petiscar ou matar a sede, há toda uma parede enfeitada por edições de fazer inveja — cartazes e outras curiosidades, uma verdadeira máquina do tempo, de um passado que muitos ali, de passagem, não viveram. João faz um gesto a uma das empregadas do bar: dois cafés e uma garrafa de água de um litro. “Isto fica por minha conta”, apressa-se a dizer. Nesse momento, atravessando o pátio, somos interpolados por Samuel Andrade, um dos projecionista da Cinemateca, a meio do trajecto diário até ao seu “estúdio”, os bastidores onde a 'magia acontece' no Museu de Cinema.Como vai, João?”, acena. “Estou bem, obrigado. E contigo?” responde, fazendo-se acompanhar por um vigoroso polegar para cima.

Inaugurada a 5 de Janeiro de 2015 e com dez anos recentemente cumpridos, a Livraria Linha de Sombrasurgiu numa oportunidade e num momento de inspiração, o desejo de criar uma boa livraria de cinema na Cinemateca Portuguesa, que é uma excelente editora. Fazia todo o sentido que esses livros estivessem disponíveis, e acreditar no espaço era natural”, refere João Coimbra Oliveira, após um rápido sorvo no café.

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Foto.: Mafalda Martins

"Louis, I think this is the beginning of a beautiful friendship"

Essas jóias, as edições próprias da Instituição, muitas já descontinuadas, continuam a ser motivo de peregrinação da cinefilia lusófona e não só. “Esses livros são hoje considerados edições de coleccionador. É muito raro encontrá-los, porque, normalmente, os cinéfilos não se desfazem deles — são núcleos de biblioteca que passam de geração em geração.

João destaca o trabalho incansável da Cinemateca na área editorial: só no último ano, em 2024, foram 20 publicações, incluindo os próprios filmes actualmente a ser digitalizados no ANIM [Arquivo Nacional de Imagens em Movimento]. “Há também vários projectos em curso. E esta minha tentativa aqui, que é mais do que um projecto pessoal, começou com uma ideia apoiada desde o início pelo então director José Manuel Costa, pela Antónia Fonseca e por toda a equipa de programação. Desde o primeiro momento ajudaram, ofereceram livros e tornaram-se até clientes.

João Coimbra Oliveira é hoje visto como uma figura querida dentro das quatro paredes da Cinemateca. Todos os departamentos o conhecem, tratam-no como um vizinho a quem de vez em quando pedem "emprestado o sal". O seu trabalho hercúleo em preservar uma ligação afectiva com a Cinemateca e com o público habitual revela-o como mais do que um mero livreiro, dir-se-ia mesmo, um curador. “Quer dizer, acabo por sentir que estou a prestar um serviço à comunidade. Tanto para os cinéfilos como, até, para a própria Cinemateca. Juntos fomos construindo uma livraria bastante original, que começa a reunir bastantes títulos, inclusive de outros centros.

"A minha abordagem à fileira do cinema é um bocadinho idêntica à fileira do livro. Vem desde a criação à produção, da exibição à leitura e à distribuição."

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Foto.: Mafalda Martins

"Tu n’as rien vu à Hiroshima."

Do interior da livraria é possível ouvir Thomas Newman, a banda sonora do oscarizado filme de Sam Mendes, “American Beauty”. Uma cadência atípica, reconhecível, que se mistura com a algazarra do bar: o tilintar de copos e talheres, conversas alheias, e até a máquina de café a lançar os seus sonoros vapores - mais uma chávena para a mesa 56. Enquanto isso, é a música oriunda da Linha de Sombra que nos encaminha para outra realidade. Ou melhor, para várias. Todas elas impressas naquelas páginas e páginas de livros e folhetins.

É, aqui na livraria está sempre a passar bandas sonoras. É a música que me faz companhia… e também as pessoas gostam. Perguntam de que filme é, comentam… e cria-se ali uma dose, assim, um bocado de... de comunidade a acontecer”, esclarece, apercebendo-se da minha atenção à sonoridade do espaço. “Porque creio que todos os cinéfilos — pelo menos na minha realidade pessoal, na minha experiência de vida — têm uma certa dose de misantropia. Em certos momentos preferem estar sós. E aqui, na livraria, acho que os livros são nossos amigos.

Antes da sessão de cinema, a pessoa pode vir ao espaço do 39° e tomar um copo, comer qualquer coisa, ou vir ver as novidades. É muito comum… mesmo… os clientes habituais, os amigos da Cinemateca, ou estudantes da Escola Superior de Teatro e Cinema, aparecerem e perguntarem logo: ‘Quais são as novidades?’

Criámos o site, e tem sido uma ótima plataforma, até para distribuição a nível nacional e internacional. Temos recebido encomendas de todo o mundo: Indonésia, Brasil… os brasileiros estão sempre muito atentos ao que se vai produzindo cá em Portugal ... mas também de França, dos Estados Unidos… e o catálogo está todo lá, disponível.

Para além da venda de livros, DVDs e outros acessórios cinéfilos, a Linha de Sombra é também vista como um espaço privilegiado para apresentações de obras, eventos e alguns beberetes, obviamente, com os livros e o cinema como pano de fundo e contexto social.

Contam-se entre dois a três por semana, albergando convidados ilustres como Pedro Mexia, Carlos Vaz Marques, Daniel Ribas, Regina Guimarães, Catarina Mourão, Rui Simões, entre outros: críticos, realizadores, poetas, professores, escritores e filósofos. Toda uma gama de personalidades que contribuem para enriquecer a comunidade criada e envolvente da livraria. No decorrer da conversa, atrás de nós, uma mesa já estava preparada para o evento daquela tarde. João não resistiu a lançar-me outro convite: “Tens que ficar, vai ser espectacular.”

“É essa a poesia do quotidiano. Ao mesmo tempo, temos consciência de que este trabalho é também fruto das próprias exigências da actividade editorial e dos amigos, autores e criadores que nos procuram.”

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Foto.: Mafalda Martins

”When the truth becomes legend, print the legend.”

Prometi-lhe o último tópico, e, por sua vez, um dos mais sensíveis para o João: a sua própria editora Linha de Sombra. Lançada em 2017 com a publicação de “O Cinema Não Morreu”, um colectivo de textos do site À Pala de Walsh, popular plataforma de crítica cinematográfica surgida da blogosfera e alimentada por cinéfilos atentos.

Eram pessoas por quem tinha - e continuo a ter - imenso respeito intelectual e humano. Na altura, a livraria tinha cumprido os objectivos traçados desde o início: não ter dívidas e não prejudicar ninguém. Os objectivos foram atingidos. E então pensei logo que a melhor maneira de retribuir todo o apoio que os cinéfilos me tinham dado até então seria publicar um livro.”

Havia toda uma geração que, naquele momento, estava a terminar os seus percursos… em mestrados, em doutoramentos… E, em muitos casos, dos vinte e tal autores que publicámos, muitos desses textos eram primeiras obras impressas. Eu sei que vale o que vale, mas a academia é muito receptiva às publicações. Foi a minha maneira de fazer uma pontuação simbólica  - sem qualquer objectivo financeiro ou económico - junto das pessoas que me apoiaram desde o princípio: por virem à livraria, por visitarem a livraria, por falarem da livraria.

Depois desse livro inaugural, seguiram-se mais dois títulos lançados nos últimos meses. Primeiro, “O Desembarque das Ondas: Uma Antologia de Ingmar Bergman”, organizado por Raquel Nobre Guerra, poeta por quem João nutre grande estima: “É um objecto perfeito. Ela é das melhores poetas da sua geração.”. E, por fim, um segundo volume do colectivo À Pala de Walsh, “O Cinema das Palavras” — uma colectânea de entrevistas a realizadores e outras figuras do cinema.

Na Feira do Livro de Lisboa, os editores brasileiros brincavam: ‘É só ao terceiro livro que uma pessoa se torna realmente editora.’ O primeiro livro é movido pelo entusiasmo, seja do próprio editor, seja do público. Ou seja, tem tudo para correr bem, para ser um sucesso. O segundo… já não. Não tem aquele efeito de novidade. É um trabalho de continuidade. E o terceiro… pronto, é o momento da verdade. Ou a pessoa está mesmo para editar, ou não estáFoi com o terceiro livro que lançámos que eu me apercebi: mais do que editor, sou livreiro.

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Foto.: Mafalda Martins

"Well ...Nobody's perfect"

Um dos clientes que resistia no interior chega ao balcão com uma pequena pilha de livros na mão — a deixa perfeita para encerrar a conversa. “Bem, o dever chama-me.João levanta-se, sai da mesa e regressa à livraria, atravessando para o outro lado da recepção. De novo na pele de livreiro, conversa com o cliente, sugere outros livros, aponta sessões futuras na Cinemateca. No final da compra, brinda-o com um postal. “Uma pequena lembrança.

É a minha vez de regressar à livraria. Faço-lhe um gesto de gratidão e uma promessa: “Guarda-me a Bessa-Luís. Da próxima levo.” Com um sorriso de satisfação, o livreiro pisca-me o olho e despede-se, deixando no ar o compromisso selado. Pequeno espaço no coração de Lisboa, raro, sobretudo numa cidade cada vez mais despida culturalmente (mas isso são outros cinco tostões). Enquanto houver Linha de Sombra — nome inspirado numa das obras preferidas de João, o homónimo livro de Joseph Conrad — estamos garantidos.