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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Margarida Cardoso: "O nosso colonialismo foi um colonialismo rude."

Hugo Gomes, 02.02.25

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Uma misteriosa bruma envolve a ilha de Príncipe de São Tomé, como um presságio de maldições de outras eras. A melancolia, patológica e contagiosa, infiltra-se no corpo dos escravizados arrancados das suas terras. Chamam-lhe ‘banzo’, uma tristeza profunda que os condena a uma apatia mortal.

O doutor Afonso (Carlotto Cotta) é convocado para a roça de Raimundo (Gonçalo Waddington) com a missão de curar, de uma vez por todas, esta "mercadoria" do seu entranhado “mal”. Mas quanto mais tempo permanece nesse território sem dono, mais as trevas se adensam. A loucura dos homens será a última praga a ser invocada.

Banzo”, título que se apropria dessa doença quase mítica registada nos relatórios médicos do tráfico negreiro, é o novo filme de Margarida Cardoso—um verdadeiro mergulho conradiano, que a própria descreve como tendo tido uma rodagem atribulada. O resultado é um olhar sobre o nosso passado colonial sem manifestos impostos nem pedagogias evidentes. A subtileza é a sua arma, a ambiguidade a sua munição.

O Cinematograficamente Falando … conversou com a realizadora de “A Costa dos Murmúrios” e “Yvone Kane sobre o seu mais recente trabalho, desafiando-a a refletir sobre a sua posição e a defesa dessa perspetiva. Uma obra nacional de respeito e bravura técnica, ainda em exibição nas nossas salas.

Queria começar esta conversa pela génese do projeto. De onde veio a ideia para este filme? Visto que também é a autora do argumento.

Estava a trabalhar num filme antes deste, também ele uma ideia minha. No início, era para ser uma série sobre plantas, com cerca de seis episódios. Fizemos um piloto e, nesse mesmo piloto, escolhi a planta do cacau. Era um filme híbrido, não era bem documentário, não era bem ficção, e abordava vários aspectos do cacau.

Como a ideia tinha uma relação geográfica e também ligada à história de Portugal, comecei a investigar São Tomé. Passei bastante tempo por lá, fiz pesquisa nos arquivos das roças e, nessa altura, deparei-me com os relatórios médicos. Havia aqueles hospitais grandes, como também existiam cá em Portugal nas grandes quintas, e esses hospitais tinham sempre registos. O que me interessou foi a forma como eram descritas as causas de morte. Muitas vezes, aparecia “nostalgia” como causa, comecei a ligar isso a uma ideia de que já tinha ouvido falar—uma espécie de síndrome que também afeta hoje os emigrantes, por exemplo, africanos que vão para a Noruega, e que entram num estado de letargia profunda, de depressão, uma saudade extrema de casa.

Fui juntando muitas peças, porque tinha lido muito sobre o tema, ouvido muitas histórias em São Tomé... e foi daí que surgiu a ideia de escrever este guião.

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É curioso, porque a Margarida sempre trabalhou em Moçambique, aliás por ser natural de lá, e as suas histórias partem sempre dessa origem… e, neste momento, "emigra" para um ambiente diferente, para uma ex-colónia portuguesa de que pouco se fala, ou melhor, quase nunca se aborda quanto ao seu passado colonial, e, ao mesmo tempo, sente-se também uma estrangeira nessa ilha … quer dizer, no fundo, são duas ilhas, São Tomé e Príncipe. Como foi adaptar o seu ambiente natural a esse outro território enquanto cineasta?

É completamente diferente. Na realidade, como disse, filmei bastante em Moçambique, mas também filmei em Angola, na Amazónia, ou seja, filmei em muitos outros sítios, nunca fiquei restringida ao território moçambicano. Tive uma relação forte com Moçambique quando era jovem e, mais tarde, voltei a ter uma ligação, porque tinha amigos lá, mas esse mundo, para mim, já acabou. Hoje em dia, tenho pouca relação com o país. Durante “Understory” (2019), esse filme meio híbrido, também estive em vários sítios, porque continuava-me, e continuo a interessar-me pelos temas coloniais e pós-coloniais.

São Tomé foi um caso à parte, fui para lá muitas vezes—para filmar, para investigar—e, a cada vez que voltava, tinha uma sensação diferente. Porque, quando conhecemos um lugar, a nossa percepção vai mudando conforme mais tempo permanecemos por lá. Nós mudamos e os sítios também mudam. O que é curioso é que a minha percepção inicial de São Tomé foi sempre muito negativa. No sentido de que é um sítio pesado. Aquelas ruínas das roças… Talvez o facto de ninguém ser realmente de lá, porque as pessoas foram, entre aspas, "importadas" de vários sítios. Não há uma cultura base, uma religião predominante, uma etnia específica. Culturalmente, é muito confuso. Sempre senti ali uma certa angústia e tristeza. Tive dificuldade em me relacionar com aquele território. Com o tempo, fui-me adaptando, mas essa angústia manteve-se, por exemplo, não consigo ir para a praia em São Tomé nem para um simples que é o de ler um livro. Não consigo. Há sempre uma inquietação. E não é medo das pessoas, não tem nada a ver com isso. É um peso que se sente em todo o lado, muito duro. Nem percebo como é que há quem vá para lá de férias …

E isso sente-se no filme, esse peso, essa sensação de estar sempre assombrado por alguma coisa…

Sim, nos ambientes, na vegetação, em tudo isso, mas, sobretudo, porque considero que a ilha, no fundo, e as pessoas com quem contactei, são como um repositório de histórias muito duras e muito difíceis. Sempre marcadas pelo passado. A questão dos contratados, por exemplo… isso ainda está muito presente. A relação entre o trabalhador e o poder continua a ser muito complexa e dura.

Mas, pouco a pouco, sobretudo através das pessoas—porque as pessoas foram incríveis, muito abertas—fui-me reconciliando com algumas coisas. Confesso que, no início, não estava à espera dessa abertura. Nós trabalhámos sempre com muitos figurantes, com muitas pessoas que colaboraram, e isso ajudou. Mas o lado mais opressor da ilha continua lá e isso também está no filme.

Posso garantir que conseguiu transmitir isso. Na apresentação que antecedeu à estreia deste filme no IndieLisboa, falou de como esta foi uma rodagem difícil, quase "austera", em termos de financiamento, recursos e tudo o resto. Mas o que acho curioso—e até surpreendente—é que essa dificuldade não é notável no filme. Algo que já não via experienciado em português há algum tempo, tirando os Pedro Costa [filmes], é de ver um cinema muito sensorial, um filme que respira e solicita a sala de cinema. Ou seja, sensorial sem ser experimental, convenha separar as águas. Gostava que me falasse um pouco sobre a rodagem, dessas dificuldades, e de como conseguiu apaziguar esse lado mais difícil—porque no filme realmente não se nota.

Julgo que tive muita sorte. Não só porque estava numa fase da minha vida em que estava completamente disponível para estar só com o filme—o que foi bom—como também porque tinha à minha disposição uma equipa incrível. Já trabalhei em muitos filmes - mesmo que, como realizadora, não tenha feito assim tantos, como técnica trabalhei em mais de uma centena -, sei o que são equipas, conheço as dinâmicas… e, no meu caso, tive mesmo muita sorte. A equipa esteve sempre, sempre, sempre muito motivada. Só que aconteceu tudo e mais um par de botas. Tudo o que se possa imaginar, aconteceu.

Até ao último dia de rodagem, não sabíamos se íamos conseguir filmar. O mar podia estar revolto, e se assim fosse, não podíamos ir, e não havia outro dia possível para filmar o que faltava. Lembro-me de me levantar nesse dia e ir à janela ver o mar e estava bom. Fiquei ‘super’ aliviada… e, no momento em que senti esse alívio, ouvi um grito enorme. Eram seis da manhã. A atriz caiu e torceu o pé.

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Na rodagem de "Banzo" / Foto.: Vasco Viana

Era sempre assim. Todos os dias acontecia um, dois, três imprevistos. O ator Gonçalo Waddington, por exemplo, foi mordido por um lacrau que estava no interior da sua bota. Pequenas coisas que nos apanhavam desprevenidos. Toda a gente previa várias catástrofes, mas depois aconteciam sempre outras, inesperadas [risos]. E, ainda assim, fomos navegando aquilo tudo. Conseguimos sempre fazer o que tínhamos de fazer—não sei bem explicar como. Muitas vezes, com água até aqui [faz um gesto limitador um pouco abaixo do joelho], a filmar grandes planos, tudo inundado… Mas tive mesmo muita sorte. Repito: foi uma questão de ter tido uma equipa fantástica.

Mas essa dificuldade não se nota no filme! Até seria interessante fazer um “making-of” disso, uma peça tipo “Coração das Trevas” [referência ao documentário “Hearts of Darkness: A Filmmaker’s Apocalypse”, sobre a rodagem de “Apocalypse Now” de Francis Ford Coppola] .

Quando aconteciam incidentes muito horríveis, toda a gente dizia: "Que pena, ninguém filmou." [risos]

Falando precisamente em “Coração das Trevas”, há duas influências literárias que julgo ter identificado no seu filme e gostaria que me falasse sobre elas. Talvez seja só a minha leitura, mas vi Hermann Melville logo à entrada, e, claro, a de Joseph Conrad. A minha pergunta é: trabalhou o seu argumento tendo essas influências em mente?

Posso dizer que os livros estavam mesmo em cima da mesa. Apesar de ser mais o Conrad, já trabalhei muito essas ideias. O Melville—especialmente “Moby Dick”—está mais presente porque é um livro que, muitas vezes, tento perceber melhor, que parece conter alguns segredos na própria narrativa e na sua estrutura. Tento sempre compreender isso. E não foram só esses livros que estavam na cabeceira. Havia outro que eu gosto muito e que, um dia, se calhar, até gostaria de adaptar: “A Ilha”, do sul-africano J.M. Coetzee.

Há um aspeto no filme que achei particularmente corajoso. Entre os meus colegas, discutimos a teoria de que talvez "Banzo" não tenha sido acolhido nos festivais de classe A precisamente por isso. Hoje em dia, fala-se muito de colonialismo e, inevitavelmente, das reparações históricas, e nos filmes que abordam o colonialismo de forma mais direta, a perspetiva costuma ser quase sempre a do colonizado – do escravizado, digamos assim.

“Banzo”, por outro lado, parte do olhar de um médico – ou seja, de um colonizador. No centro da narrativa, a única personagem que escapa um pouco a esse prisma é a do Hoji Fortuna, o fotógrafo, que é um homem livre, de certa forma, e acaba por funcionar como um trovador da história.

Gostava que me falasse sobre essa nuance, que me parece uma escolha corajosa. Alguma vez pensou em inverter essa perspetiva?

Sabes, não tenho a perceção de que existam assim tantos filmes sobre o colonialismo a partir desse ponto de vista… Quer dizer, talvez tenhas razão, mas ao mesmo tempo… Não sei. Há, sim, muitos filmes feitos por pessoas brancas, se quisermos colocar as coisas nesses termos. Há quem faça filmes sobre o colonialismo ou que, de alguma forma, se posicionam do lado do Poder e do privilégio, mas não há muitos olhares vindos de pessoas negras sobre esse passado colonial. E, de certa forma, acho que isso pode até ter prejudicado a receção do filme. Por duas razões. Primeiro, porque os festivais funcionam um pouco assim… “Deixa-me apostar nisto, deixa-me apostar naquilo…”, e “Banzo” não é um filme em que se aposte facilmente. Depois, porque sou uma realizadora branca a contar esta história, e o filme não está completamente alinhado com uma visão política muito polarizada ou com um discurso social mais acusatório. E hoje em dia, parece-me, esse discurso está a sufocar-nos. Tudo é acusação. Acusa, acusa, acusa… E sobra pouco espaço para o diálogo. Acho que é isso que está a acontecer neste momento.

E isso é um problema que está a acontecer de ambos os lados, certo?

Sim, claro. Não estou a dizer que isto venha apenas de um lado. O filme estreou agora em França e, no geral, teve boas críticas. Mas, se tivesse tido um “passaporte” para os grandes festivais, talvez as pessoas apostassem mais nele. Há muito receio de investir num filme que possa vir a ser questionado – seja pela forma como representa certas realidades, seja pelo simples facto de eu ser uma realizadora branca privilegiada. Porque, segundo muitos pontos de vista, ser branca já significa ser automaticamente privilegiada. Esse tipo de pensamento imediato, a meu ver, acaba por prejudicar um pouco as coisas.

Depois, há outra questão: tenho plena consciência de que só posso posicionar-me num determinado lugar. Não pretendo ocupar um espaço que não compreendo. O meu ponto de vista – e o ponto de vista do filme – está do lado do Poder: dos colonialistas, dos extrativistas, dos capitalistas. É um olhar crítico, claro, mas, como realizadora, estou sempre a filmar a partir de um ponto de vista. Seja ele crítico ou não, parto sempre desse lugar.

Posiciono-me do lado dos poderosos, mas a olhar para o outro lado. Raramente – ou quase nunca – estou a olhar a partir do lado oposto. E isso, para mim, é algo completamente assumido. Sempre teria de ser assim. O que acho legítimo é contar a nossa história. A história de Portugal e do colonialismo precisa de ser contada, e nós, enquanto realizadores, temos essa responsabilidade. Mesmo que seja incómodo. Porque, para mim, não há como fugir disso.

Isso está bem expresso na personagem do Carloto Cotta. Sentimos uma certa empatia por ele e até pela sua visão, mas ele move-se sempre na margem da ambiguidade. Nunca sabemos exatamente qual é a sua posição. E, nesse sentido, vejo “Banzo” como um filme bastante curioso para os dias de hoje, porque não faz uma denúncia óbvia ou direta. Se partirmos do ponto de vista branco, do colonizador, é evidente que ele sai mal da história. Mas há uma espécie de finta, um jogo de subtilezas que impede esse olhar de se tornar cúmplice. E gostava de explorar precisamente essa questão das subtilezas, porque o filme está repleto delas.

Há, por exemplo, um momento em que o Carloto, ao atracar, deixa cair acidentalmente moedas provenientes do Congo, com a efígie de Leopoldo II. Os negros à volta ficam apavorados, mas o filme nunca explica porquê. Não há um diálogo expositivo, nenhuma vinheta explicativa. Para perceber o impacto desse momento, é preciso um mínimo de conhecimento histórico – compreender o contexto e, sobretudo, a inquietação que aquilo provoca. E isso, para mim, é verdadeiramente astuto. Essa subtileza. Porque, quando se fala de colonialismo, muitas vezes o cinema perde essa camada, sente que tem de ser pedagógico, denunciador, político – ou até panfletário.

Sim, acho que estamos em risco de perder isso. O que noto é que, felizmente, o diálogo – ou melhor, a possibilidade de diálogo – ainda existe, apesar do risco de certo cancelamento. Muitas vezes, confesso, nas apresentações – não deste filme, mas de outros anteriores –, sou confrontada com perguntas sobre a legitimidade do que fiz até agora. A minha resposta é sempre a mesma: não preciso de ser legitimada por ter vivido lá. O que importa é que ninguém me pode dizer que não posso fazer. E, por enquanto, o diálogo tem permanecido nesse nível.

Felizmente, sinto que, atualmente, estamos a avançar. Há uma maior abertura ao diálogo, uma disposição para ouvir. Esse núcleo culturalmente muito ligado ao Brasil trouxe um discurso mais inflamado, com críticas que, apesar de legítimas, muitas vezes não abrem espaço para discussão. Mas, fora desse núcleo, parece-me que existe uma maior vontade de questionar e de fazer perguntas.

O filme pode incomodar algumas pessoas, e isso é normal. Mas, se assim for, estou cá para responder.

Em certa forma, é um filme que incomoda.

É quase inútil. Percebo que algumas pessoas fiquem incomodadas com a representação das pessoas escravizadas como mais passivas. Mas, na verdade, o filme é sobre isso – sobre essa falta de agência. No entanto, no final, acabam por conquistá-la, pelo menos no ato de escolherem partir.

Mas não posso ir além disso. O meu ponto de vista não me permite ver para lá do primeiro grau, digamos – da forma como os colonialistas viam e interpretavam essas pessoas. Não tenho esse conhecimento do além de, nem essa é a intenção. O que me interessa representar é precisamente essa visão distorcida dos privilegiados, dos colonialistas. Havia uma distância e mantenho essa distância. Filmar uma cena em que as pessoas escravizadas, de repente, aparecem dentro das suas casas a conversar entre si… Isso não faz parte do filme, não é essa a sua proposta. E acho legítimo fazer-se um filme a partir desse ponto de vista, mas não é o meu. Nem poderia ser.

Falando outra vez das subtilezas, é curioso como, de certa forma, acabam por denunciar – ou melhor, desconstruir – a imagem do português como o “bom colonizador”. O episódio da dona Luísa (Sara Carinhas), que deseja regressar a Portugal e quer levar a sua escrava, mas esta só pode escolher uma das suas crianças para levar consigo, mostra-nos uma certa insensibilidade, quase uma desumanização. É uma crítica subtil, mas poderosa. Porque continuamos a alimentar esta ideia de que fomos “bons colonizadores”, quando, na verdade, não éramos assim tão diferentes dos outros.

O filme é duro, sem dúvida. Há pouco, estava a ouvir um podcast francês onde o anunciavam e destacavam que tinha saído ao mesmo tempo que um musical – não me lembro do título –, mas avisavam: "Atenção, este filme de musical não tem nada. Não esperem algo muito alegre." E é verdade, tem esse peso. Mas não mudaria o tom, porque acho importante manter-me próxima da realidade – da forma como as pessoas eram, das hierarquias, da maneira como tudo funcionava. Até porque os pobres também iam para as colónias, também eram brancos, e, à sua maneira, também eram explorados. Trabalhavam na agricultura, eram guardas… Faziam parte desse sistema.

Tudo isto são construções do nosso colonialismo – e aqui já é algo muito nosso, com características específicas que têm a ver com a cultura de Portugal. Sobretudo com a pobreza e o analfabetismo, que traziam uma certa rudeza. O nosso colonialismo foi um colonialismo rude.

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Talvez seja por isso que gosto tanto do “Caderno de Memórias Coloniais”, da Isabela Figueiredo. É quase autobiográfico e traça um retrato muito honesto desse outro lado colonial. Conta a história do pai, um eletricista em Lourenço Marques [Moçambique], que vivia com a família numa casa sem teto – ou melhor, apenas com um de peladura, porque a avó gostava assim. Não entrava uma gota de chuva. Criavam galinhas e pombos dentro de casa. Esse livro foi essencial para eu perceber melhor essas interações entre aqueles que estavam mais abaixo na cadeia colonial.

No filme, também tentei focar-me nessa estrutura, nessa hierarquia que, no fundo, nem é apenas uma questão racial. Não é por serem negros ou brancos que são subservientes. Eles têm um patrão, têm medo de ser despedidos. A lógica que os governa é a do privilégio, não apenas da raça.

É um pouco... como aquele filme pró-colonialista “O Zé do Burro” (Eurico Ferreira 1972)?

Ah, eu vi! Até o vi em Moçambique, lá no Instituto de Cinema. 

O filme transmite essa ideia e propósito de levar essa classe pobre portuguesa para as colónias, até com o intuito de quererem ensinar os “outros” trabalharem.

Sim, sim, sim.

… mas sim, era um pouco essa pobreza provinciana, de certa forma.

E era muito violenta, porque as pessoas, como acho que é fácil, toda a gente concorda, quanto mais ignorante tu és, menos capacidade tens de aceitar os outros e de compreender os outros. Isto é uma relação direta. Então, a nossa colaboração, com toda essa… Violência.

Mudando de assunto, como é que se seguiu a escolha do elenco?

Na verdade, não tinha ninguém em mente para os papéis. Quer dizer, havia apenas uma atriz que tinha imaginado para um papel específico, mas que acabou por motivos de agenda não podia. Tive uma substituição de grande peso, a Maria do Céu Ribeiro, que interpreta a Adélia – uma personagem feminina que vai surgindo ao longo do filme. Apesar de ser uma presença algo episódica, para mim, é uma personagem importante. Inicialmente, tinha pensado na Beatriz Batarda para esse papel, mas ela não pôde aceitar. Foi a própria Beatriz que me sugeriu a Maria do Céu.

Fora isso, não tinha nenhum ator em particular em mente, ninguém que projetasse diretamente nas personagens. A escolha do Carloto foi uma decisão mais tardia, sobretudo para o papel principal. Ele tem uma presença física muito forte, um olhar imponente. Consegue transmitir imenso sem precisar de dizer nada em concreto.

E ao mesmo tempo tem um ar distante, não é?

É, distante, meio triste e tudo isso. A princípio hesitei porque o achava bonito demais. Mas tentei que ele não ficasse sempre bonito [risos]. E a Sara [Carinhas] também era uma pessoa com quem tinha o desejo de trabalhar, apenas a conhecia do teatro desde os seus 10 anos. O João Pedro Bénard também ficou a condizer com aquele doutor meio desleixado. Hoje encaro o Pedro com uma escolha certíssima.

Tenho uma teoria de que ele desaparece no mato tomense e depois misteriosamente vai dar lá ao Oriente, à floresta de bambu em “Grand Tour”. [risos]

Um portal entre filmes [risos]. Gosto da ideia.

Há também outra personagem que, para mim, foi muito importante – aliás, a única que passa por uma verdadeira transformação: o Ismael, interpretado pelo Rúben Simões. O nome é uma referência óbvia a “Moby Dick”. É um rapaz que começa impecavelmente vestido, quase como um representante da administração e do Poder, e vai sendo engolido por tudo aquilo, até acabar selvagem, no mato, com a espingarda do outro. Para mim, fazia todo o sentido que ele próprio se transformasse num selvagem.

O Rúben, eu já o conhecia do filme do Simão Cayatte – não o filme em si, mas as filmagens, a que tinha assistido. Gostei muito dele, embora na altura não tivesse nada escrito a pensar nele. Mas, quando comecei a escrever, a sua imagem foi-se impondo na minha cabeça. Não queria que fosse uma figura demasiado bruta, mas havia algo nele que encaixava.

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Margarida Cardoso, o ator Hoji Fortuna e a produtora Filipa Reis na apresentação de "Banzo" no Karlovy Vary IFF

E só mesmo para terminar, já me falou do desejo de adaptar a “Ilha”, mas tem algum projeto em mente?

Sim, tenho um projeto que já foi subsidiado para a escrita. É um tema complicado, precisamente porque toca na questão das restituições. Chama-se “Devolução”. Não adoro o título – soa a coisa da Amazon [risos] –, mas vou mudar. É um filme bastante complexo, que decorre em diferentes períodos temporais. Estou agora a terminar a escrita e espero consegui-la apresentar rapidamente nos próximos concursos.

Uma parte do filme acompanha alguém que investiga a origem de várias obras de arte e artefactos, tentando perceber se foram ou não adquiridos de forma violenta e ilegal.

Ainda assim, estou um pouco hesitante em avançar. Quer dizer, só tenho que escrever. Já comecei e está bem encaminhado, mas confesso que não sei se me apetece entrar em demasiadas polémicas, porque isso pode sobrecarregar a narrativa. E eu própria, enquanto escrevo, penso: “Isto vai dar-me uma grande discussão.” Mas, no fundo, os meus filmes são todos assim. Sei que, ao escrever sobre devoluções ou restituições, não estou a falar apenas disso. Há uma história. Está ali em segundo plano e, ao mesmo tempo, à frente. Acho que, de certa forma, vai funcionar.

Klára Tasovská remexe no arquivo de vida de Libuše: "Há uma história por trás de cada uma dessas fotos, e tentámos trazê-las à tona."

Hugo Gomes, 20.01.25

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Um clique aqui, um clique acolá — bilhões de fotos tiradas diariamente graças aos dispositivos tecnológicos de que hoje dispomos. Mas, para onde vão essas fotos? Para que servem? Que histórias têm para contar sobre quem as tirou? Através da galeria cinematográfica concebida por Klára Tasovská, refletimos sobre o nosso entorno, sobre as imperatividades estéticas das redes sociais e o nosso desapego ao físico. Se um cataclismo acontecesse já amanhã, que marcas teríamos para mostrar sobre a nossa contemporaneidade?

Em “I’m Not Everything I Want To Be”, a jornada da checa Libuše Jarcovjáková revela-se um achado—uma estória com História, um acontecimento. A sua vida pulsa nas suas fotografias: tem presença, tem ritmo, tem pessoas. Muito se pode dizer sobre os frutos de quase meio século de captação, mas acima das questões identitárias, sociais ou políticas, destaca-se o indivíduo que imprimiu a sua pegada. A sua existência está assinalada.

O Cinematograficamente Falando … conversou com a realizadora sobre o filme, o arquivo, a potencialidade cinematográfica da fotografia e daquelas atualidades emolduradas. Como podemos tornar-nos vivos num mundo que cada vez mais se dissolve em pó eletrónico?

Gostaria de começar por falar sobre a génese deste projeto. Como surgiu a ideia para este filme e o que despertou o seu interesse na figura de—deixe-me ver—Libuše Jarcovjáková? Espero estar a pronunciar o nome corretamente. [risos]

[Risos] Então … sim, na verdade, a ideia surgiu da Televisão Checa. Eles queriam que fizesse um pequeno documentário televisivo sobre o sucesso da Libuše após a sua exposição em Arles, França, até porque ela foi subitamente reconhecida lá. Foi uma exposição enorme, e até foi mencionado no The Guardian, chamando-a a melhor exposição do ano—acho que foi em 2019. Então, foi há cerca de quatro anos que conheci a Libuše, e fiquei muito entusiasmada com a sua personalidade, ainda mais com o seu enorme arquivo e tudo o que ela representava.

Mas então como é que chegou à conclusão que o projeto ganharia “melhor porto” no Cinema do que na televisão?

Para mim, ela era a protagonista perfeita para explorar temas femininos, a história checa e a liberdade. Era algo muito especial para mim, e por isso decidi que este tinha de ser um documentário maior, ao invés de apenas um pequeno projeto para televisão

E de onde surgiu a abordagem? Esta viagem narrada somente pelas suas fotos …

Começámos a trabalhar neste projeto há uns quatro anos. Mas sabes, fiquei sempre a pensar: como é que se conta uma história que já aconteceu no passado? E foi aí que comecei a pensar em usar apenas as fotografias dela, o arquivo, os diários… todo esse material. Só que, claro, explicar esta ideia aos meus colegas e produtores não foi fácil.

Depois, veio a pandemia de COVID, e acabou por ser uma sorte para nós, porque todos ficámos em casa. Foi então que a Libuše começou, pela primeira vez, a digitalizar o seu arquivo do Japão. Para mim, isso foi tão entusiasmante, porque era uma parte tão pessoal do arquivo—refletia completamente quem ela era naquela altura. Ela era o Japão naquele momento. E foi aí que percebi que era mesmo possível construir toda a história dela só com esses materiais.

Por isso, para mim, era crucial fazer o filme através dos olhos dela, para que o público pudesse experimentar o mundo como a Libuše o via e vivia. Não acrescentei nada meu à história dela, nenhuma imagem ou algo assim—quis mesmo ser fiel à perspetiva dela. E foi assim que começámos a trabalhar no filme.

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Klára Tasovská e Libuše Jarcovjáková / Festival de Berlim 2024

A Libuše era como uma observadora inquieta, e ao longo do filme o seu trabalho reflete a sua busca por pertença e identidade. Acredita que a jornada dela é mais uma experiência universal ou algo profundamente pessoal? Com base no seu filme, qual é a sua opinião sobre isso?

Para mim, sim, absolutamente. Apresentámos o filme em muitos festivais em diferentes países, e as pessoas disseram que é uma história universal. A busca por nós próprios, pela identidade, é algo identificável—todos a experienciam à sua maneira.

Para mim, isso também era crucial porque não queria apenas fazer uma biografia. Queria criar algo mais universalista, algo que explorasse esses temas de uma forma que fosse próxima e inspiradora. É uma jornada que ressoa com tantas pessoas—este processo de se descobrirem.

Uma coisa que me deixou curioso foi o título. Li várias interpretações sobre ele, e a mais comum que ouvi é que reflete a insatisfação que vem com ser uma pessoa criativa.

Mas, com base no seu filme, a minha interpretação do título é um pouco diferente. Para mim, parece mais que o mundo, em si, não é um lugar perfeito para nos tornarmos totalmente aquilo que queremos ser. O mundo é adverso, está sempre a mudar. Por exemplo, na história da Libuše, sempre que ela acha que encontrou o seu caminho, o mundo muda, e tudo se altera. O mundo muda ao longo do seu filme, assim como ao longo da vida dela.

Sim, é verdade. Para mim, também foi importante porque li os diários dela, e ela escreveu durante toda a sua vida. Na verdade, encontrei o título nos diários dela, porque, sabes, ela escreveu isto cerca de doze vezes. Sempre que tomava uma grande decisão para mudar a sua vida, ou quando decidiu mudar-se para o estrangeiro, ela escrevia isto. Era como um mantra para ela.

Algumas pessoas perguntam-nos se isso não é demasiado negativo, mas para ela, era algo positivo. Era como: “Não sou tudo o que quero ser, então vamos encontrar outro caminho.

E também, a Libuše dizia muitas vezes que não é possível ser o que as pessoas querem que sejamos, porque quando chegamos aonde achamos que queríamos estar, provavelmente vamos querer ser outra pessoa. Portanto, é uma história sem fim. Para mim, foi o título perfeito para tudo isso, porque, sim, acho que é exatamente assim.

Como foi o processo de montagem deste filme, especialmente em relação às fotos? Acredito que a Libuše tenha uma vasta coleção de imagens, então, como selecionaram as especiais para contar esta narrativa?

Passámos dois anos na sala de edição, a trabalhar todos os dias, oito horas por dia. Começámos com poucas fotos e algumas anotações dos diários dela—nada mais. Foi necessário criar tudo do zero: encontrar todos os sons, compor a música, e todo o restante trabalho. Um dos grandes desafios foi o arquivo da Libuše, que é um pouco desorganizado ou, talvez, caótico. Sem muitas exposições realizadas, ela apenas digitalizou algumas das melhores fotos que fizeram parte dessas exibições, e tem, salvo erro, dois livros. Essas fotos foram o ponto de partida, mas o resto do arquivo precisou de ser explorado.

Todos os negativos estavam em casa e foi preciso mergulhar na pesquisa. O objetivo era encontrar todos os auto-retratos, porque a ideia era que ela estivesse presente—não apenas como figura central através da voz-off, mas também na sua presença física nas fotos. Procuraram-se também imagens com movimento, para dar uma sensação dinâmica às fotografias.

Foi um trabalho enorme, que envolveu digitalizar todo o material. Ainda assim, foi um processo fascinante, e o editor [Alexander Kashcheev], que também trabalhou no design de som, ajudou a criar tudo na sala de edição. Contar a história de forma cronológica foi uma decisão baseada na leitura dos diários. Dividir em dois capítulos facilitou bastante o processo, permitindo trabalhar por partes, começando pela primeira secção e selecionando fotos específicas para ela antes de avançar para a próxima.

O editor empenhou-se em tornar as fotos mais dinâmicas. Por exemplo, gosto muito de filmes como “Tarnation” (Jonathan Caouette, 2003), mas aqui pretendia que as imagens fossem apresentadas como uma sequência estática—foto após foto, sem outros elementos. Não queríamos isso. A intenção era tornar mais vividas estas fotografias. Há uma história por trás de cada uma dessas fotos, e tentámos trazê-las à tona.

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Existe uma possibilidade cinematográfica numa imagem estática?

Para mim, sim. Sabe, o cinema de Chris Marker é uma grande inspiração para , e “La Jetée” está entre os meus filmes favoritos. Durante o período na FAMU, fiz um pequeno filme que seguiu essa abordagem, o que ajudou a perceber que podia funcionar. É possível construir a história de alguém através de imagens, som e voz-off, e esse método tem algo de especial. Trabalhar com estas imagens é um processo incrivelmente criativo e envolvente.

Quando vi o seu filme, uma frase veio à minha mente. A frase é uma citação oriunda de um filme independente americano, que convém, não se destaca para lá disso [“Kodachrome”, Mark Raso, 2017] , mas temos uma personagem interpretada por Ed Harris que diz algo como: "Não é a foto que importa, mas o facto de a ter tirado: "As pessoas tiram mais fotografias agora do que nunca, bilhões delas, mas não há diapositivos, nem impressões. Apenas dados. Poeira eletrónica. Daqui a anos, quando nos estudarem, não haverá fotografias para encontrar, nenhum registo de quem fomos ou de como vivemos.”. 

No caso da Libuše, quando encontramos o seu arquivo, não encontramos apenas um registo de uma pessoa, como igualmente um registo de meio século de vida dela—o fim do domínio soviético, a queda do Muro de Berlim, por exemplo. Portanto, isto é mais um comentário do que uma questão. Mas vou perguntar na mesma: será importante para nós, enquanto indivíduos marcados na nossa sociedade, tirar fotos físicas, apenas para deixar uma marca da nossa presença neste mundo?

Sim, penso que isso é muito importante. Por exemplo, quando a Libuše tirou fotos naquele clube, sabes, um clube que já não existe [T-Club]. Era um clube gay, e a polícia secreta estava lá, e ninguém mais tem fotos desse clube. Ela é a única que as tem. Por isso, é algo muito especial e único. Ela estava lá, a capturar aquele período no clube.

Para mim, essa abordagem histórica também foi crucial. E acho que, sim, as pessoas... Ela também tirou fotos dela própria e do seu quotidiano. Mas, no fundo, acho que as coisas pessoais têm uma grande carga política. Porque, de algum modo, estão todas conectadas a isso.

Por isso, fiquei contente por ela ter conseguido capturar esse nível de profundidade nas suas fotos, pois isso ajudou a tornar o filme não só histórico, mas também único.

Nos próximos projetos, pensa continuar a trabalhar com imagens estáticas / fotografias? 

Não sei...

Sabes, neste momento estou a trabalhar em dois filmes de ficção, por isso estou a mudar-me para esse campo. Mas também adoro este tipo de trabalho, e temos algumas curtas feitas com o arquivo da Libuše. Uma delas é sobre a mãe dela e é um diálogo entre a Libuše e a mãe, abordando o envelhecimento. Portanto, isso também é algo interessante para nós. Mas não sei o que virá a seguir. O meu próximo filme provavelmente será de ficção, mas vamos ver. Adoro trabalhar com filmes de arquivo, embora seja um trabalho árduo. É difícil selecionar, editar e até rotular—por exemplo, qual foto pertence a qual época ou ano. Foi um processo complicado.

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Posso imaginar que tenha sido difícil. E hoje em dia, sobre o filme... acredita que o trabalho da Libuše—porque sei que The Guardian—e no final dos créditos, há uma nota a dizer que ela se tornou uma das maiores fotógrafas do nosso tempo. Mas achas que este filme vai ajudar as gerações mais jovens, ou um determinado tipo de geração, a conhecer o trabalho dela?

Sim, acho que sim, porque frequentemente viajamos pelo mundo para festivais, e pessoas de todas as gerações e nacionalidades nos dizem que, de alguma forma, é importante para elas. E também é engraçado, porque ela tem muito a ver com o filme. Ela tem muitos seguidores no Instagram, cerca de 10.000, e adora isso. Ela realmente gosta.

Além disso, de alguma forma, temos distribuição em cinco países, e alguns distribuidores estão interessados em fazer exposições do trabalho da Libuše. Ela também teve a sua primeira exposição retrospetiva em Praga, na Galeria Nacional, o que foi uma grande conquista. Agora, ela tem este reconhecimento na Europa e também nos EUA. Ela está muito feliz com isso.

Sim, está a funcionar de alguma forma. E as pessoas dizem que é inspirador para elas, especialmente as gerações mais jovens. Elas disseram-nos que este filme de amadurecimento é inspirador. Mesmo que a Libuše tenha vivido essa experiência há 40 anos, para as pessoas, continua a ser algo inspirador, mesmo hoje em dia. Por isso, estou muito feliz com isso.

No Pico, olha-se para o audiovisual com foco. Uma conversa com Terry Costa, diretor artístico do Montanha Pico Festival.

Hugo Gomes, 02.01.25

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"First Date", a curta de Luís Filipe Borges

É no ponto mais alto do território português que se dará lugar o Montanha Pico Festival (3 a 30 de janeiro), uma iniciativa da MiratecArts que visa transgredir a ideia convencional de festival como simples mostra de filmes, entendendo que, a partir deste lugar singular, há espaço para debater o futuro e explorar soluções para o universo audiovisual. Sob a vigilância do “gigante adormecido”, o Pico que empresta o nome à ilha, ao cinema e aos filmes, a tela será novamente palco para histórias que vão além do visual, incentivando tanto o público fiel quanto os recém-convertidos ao simples e poderoso ato de “ir ao cinema”. Um gesto cada vez mais desprezado no continente, onde o cinema se tornou um mero “despacha-tempo” momentâneo, e na ilha, onde a escassez de propostas de projeção transforma esse mesmo ato numa forma de resistência.

Nesta edição, temos a evocação de Natália Correia e o regresso da realizadora, muitas vezes esquecida, Rosa Coutinho Cabral, que abrirá as "honras da casa" [toda a programação aqui]. A grande atração será a estreia da curta-metragem “First Date”, de Luís Filipe Borges, com Cristóvão Campos e Ana Lopes (que não é estranha a este ambiente), e que será apresentada pela primeira vez ao grande público. Mas antes disso, de Correia por Cabral, de romances no Pico, teremos um encontro entre críticos e jornalistas de cinema (o Cinematograficamente Falando … estará presente) para debater o papel fundamental da crítica na divulgação e no percurso das suas obras, dos primeiros passos até os “altos voos”. Quem sabe o que surgirá dessa conversa?

O anfitrião Terry Costa, diretor artístico do Montanha Pico Festival, aceitou o convite do evento para partilhar as suas reflexões e revelar o que podemos esperar desta edição, que, embora tenha como epicentro a ilha cinematográfica do Pico, visa unificar os Açores no panorama audiovisual.

Terry, como director artístico do Festival Montanha, qual foi o maior desafio em criar e manter um festival tão singular como este, focado na montanha mais alta de Portugal e nas questões culturais e ambientais ligadas às montanhas?

O Montanha Pico Festival, ou simplesmente Festival Montanha, realiza-se desde 2015. Anualmente, no mês de janeiro, os ecrãs da ilha acolhem uma seleção diversificada de obras, desde curtas e longas-metragens a documentários, ficção e vídeos experimentais, todos com um tema em comum - a cultura das montanhas ou cenários montanhosos.

Desde 2022, o festival conta com um programa adicional intitulado “Made in Azores”, que celebra produções locais. Contudo, o maior desafio tem sido o financiamento, sobretudo no que toca a apoiar a presença de equipas de outras ilhas ou cineastas estrangeiros interessados em participar, algo que gostaríamos de fazer de forma mais consistente.

O festival é aberto ao público e com entrada gratuita, numa tentativa de atrair as audiências para descobrirem algo novo e inesperado. Sem grande apoio promocional, como anúncios televisivos, convencer as pessoas a saírem de casa e dirigirem-se aos auditórios da ilha para assistirem a obras desconhecidas é sempre um desafio, mas um que encaramos com entusiasmo e dedicação.

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"Os Caçadores", de David Pinheiro Vicente, será uma das muitas curtas exibidas no festival

O Montanha Pico Festival tem recebido atenção internacional, incluindo a nomeação para os Iberian Festival Awards. Que impacto tem esta visibilidade para o festival e, mais importante, para a ilha do Pico?

Sempre que somos mencionados fora do arquipélago, surge inevitavelmente a pergunta: Onde fica isso? Não importa quantos milhões sejam investidos na promoção das ilhas, haverá sempre quem ainda não as conheça. Os projetos culturais e artísticos, como os festivais, desempenham um papel crucial, não apenas em dar visibilidade às ilhas, mas também ao abrir portas para o mercado cultural, que cada vez mais valoriza e investe nos destinos que descobre. Quando um festival é destacado em listas de prémios internacionais, atrai a atenção de profissionais do setor, que pesquisam e, no processo, aprendem mais sobre os Açores.

Sendo o turismo de montanha um tema central nas discussões do festival, que papel acredita que o Montanha Pico Festival desempenha no incentivo ao turismo sustentável e no diálogo entre cultura e natureza?

Quando temos este tipo de conversa no festival, que alternamos ao longo dos anos, os pontos finais acabam sempre por convergir no mesmo resultado. Sim, queremos turismo. Sim, queremos preservar estes cantinhos do mundo que ainda se consideram paraísos. Mas como receber mais visitantes sem comprometer a natureza?

Nas conversas anteriores, discutiu-se bastante a ideia de implementar taxas para visitantes, algo que ainda não é generalizado nos Açores. Na ilha do Pico, por exemplo, já existe uma taxa significativa para quem pretende subir a montanha mais alta de Portugal, precisamente porque há limitações quanto ao número de pessoas que podem usufruir desse espaço. Será esse o caminho para todo o turismo? Cobrar mais e mais? Ou, talvez, devemos incentivar um turismo mais consciente, que valorize e invista em locais frágeis como ilhas, e especialmente numa montanha isolada no meio do Oceano Atlântico?

O festival levanta essas questões e apresenta filmes que provocam reflexão e estimulam conclusões sobre como garantir um futuro melhor. Se conseguirmos aprender com locais que já enfrentaram esta fase de aumento exponencial de turismo, talvez possamos adotar um caminho diferente, mais sustentável. Assim, será possível alcançar um sucesso duradouro sem comprometer irremediavelmente a natureza. 

O programa "Made in Azores" tornou-se um pilar do Montanha Pico Festival. O que o motivou a incluir esta secção, e como tem percebido a recepção do público em relação às produções açorianas?

Com o programa “Made in Azores”, criamos uma oportunidade para que os trabalhos produzidos nas ilhas conseguissem chegar aos grandes ecrãs na ilha. Ano após ano, mais produtoras participaram, e em 2023 produzimos o primeiro Encontro Audiovisual Açoriano devido à necessidade de as equipas conhecerem-se e desta forma aprenderem mais sobre o que se faz nos Açores

O II Encontro Audiovisual Açoriano traz à ribalta talentos regionais e as suas narrativas. Na sua opinião, quais os maiores desafios e oportunidades enfrentados pelo audiovisual açoriano atualmente?

Nas ilhas, há poucas infraestruturas e equipamentos dedicados ao cinema e ao audiovisual. Estamos melhores hoje do que há 10 anos, mas ainda assim, é sempre um desafio para produções maiores conseguirem realizar os seus projetos nos Açores. E, claro, temos o clima instável, que, por um lado, pode ser uma vantagem para a produção, mas também pode facilmente arruinar bons dias de trabalho. Na edição de 2025, apresentamos a segunda edição do Encontro Audiovisual, um evento no qual vamos tentar responder a algumas das questões mais prementes do setor, como, por exemplo, como levar trabalhos produzidos nos Açores, por açorianos, até o continente português. No Encontro, vamos explorar e debater muitos outros desafios. Tenho a certeza de que será um evento muito enriquecedor.

Com Rosa Coutinho Cabral a abrir a edição de 2025, como é feita a curadoria para garantir que filmes como “A Mulher que Morreu de Pé” dialoguem tanto com o público local como com as temáticas globais abordadas pelo festival?

Os projetos apresentados no programa “Made in Azores” podem não ter a temática diretamente ligada à montanha. No entanto, em termos artísticos e poéticos, todos são, de certa forma, “projetos montanhosos”, pois são criados por equipas da região.

Ao promover obras como “First Date”, de Luís Filipe Borges, como avalia a importância de contar histórias contemporâneas e diversificadas sobre o Pico, e gostaria que falasse da ilha enquanto cenário cinematográfico?

As ilhas são cenários fantásticos para todo o tipo de histórias, com ou sem sol, com ou sem bruma (chuviscos). Fundámos o Prémio Curta Pico especificamente para incentivar a criação de histórias que tenham a ilha-montanha como ponto central. O projeto de Luís Filipe Borges, “First Date”, venceu a primeira edição do prémio, pois a história só poderia ser realizada na ilha do Pico. Assim, a sua qualificação com nota alta foi essencial para garantir o apoio, e esperamos que o público abrace a sua antestreia, permitindo que o realizador receba um feedback valioso antes de lançar a obra para o mundo.

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Terry Costa (à direita) com o realizador Luís Filipe Borges (segunda pessoa à esquerda) na entrega do Prémio Curta Pico.

O festival celebra também o cinema como forma de diálogo entre crítica, jornalismo e público. Como é que este formato, com paineis e debates, enriquece a experiência dos participantes e cria impacto duradouro? Já agora, como vê a relação da crítica de cinema com a cinematografia açoriana?

As questões colocadas pelos colaboradores são o que incentivam os painéis. Este ano, conseguimos reunir um painel com representantes de órgãos de comunicação social, o que nos dará a oportunidade de conversar sobre esses temas e como eles se relacionam com as produtoras locais. Por que é que um filme recebe mais atenção do que outro? Como chegar aos críticos? Como pode uma obra independente, produzida numa ilha, chegar à capital? Estamos a falar de um setor ainda muito jovem nas ilhas. Como podemos ajudar a elevar e incentivar o desenvolvimento de um futuro mais próspero para esta indústria – essa é a questão.

Por fim, qual é a sua visão para o futuro do Montanha Pico Festival? Existem planos para expandir a programação, incluir novos formatos ou aprofundar ainda mais as questões ambientais e culturais globais?

Existem festivais deste género em todo o mundo. Ainda não fazemos parte da rede de festivais de montanha, mas esse é um dos nossos objetivos. Para alcançá-lo, precisamos de aumentar o orçamento dedicado ao projeto, de forma a expandir a nossa presença internacional. Já conseguimos garantir os filmes, mas ainda há muito trabalho a ser feito para atrair cineastas e documentaristas. Em termos locais, quando as produtoras começarem a produzir com o objetivo de fazer parte do programa principal do festival, com a temática montanha, então alcançaremos um patamar de sucesso similar ao que invejo no Festival de Trento, onde todos os italianos querem participar e produzem para o festival. Trento é o festival mais antigo de temática montanha, enquanto o nosso, na ilha do Pico, é o mais jovem, mas já estamos na décima primeira edição.

Do festival nasceu o Cineclube Montanha, e o nosso desejo é incentivar mais municípios a juntarem-se a nós, para apresentarmos cinema além de Hollywood. Passo a passo, estamos criando audiências. Lembro que grande parte dos jovens e crianças da ilha ainda não teve a oportunidade de ver um filme num grande ecrã, muito menos um documentário - estamos a trabalhar para mudar isso.

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Stéphane Brizé: "vejo sempre a ficção como um documentário sobre os atores."

Hugo Gomes, 06.12.24

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Stéphane Brizé faz uma pausa ao seu cinema social e a Vincent Lindon, dizem que foram os sinais do tempo, a pandemia e tudo isso acarretou que o fez virar para “Hors-Saison” (“A Vida Entre Nós”), filme atípico da sua filmografia, onde filma Guillaume Canet enquanto ator deprimido e resignado à sua estagnação, a reencontrar memórias de vidas passadas num retiro balnear. Alba Rohrwacher, a célebre atriz italiana, é essa "madalena de Proust"

Em conversa com o realizador, entendemos o quão de Brizé tem esta tragicomédia romântica, o tempo que passa, o tempo que marca e demarca, Alain Delon, Claude Lelouch e Östlund num caldeirão verborreico. Depois de Veneza, “Hors-Saison” integrou a Festa do Cinema Francês e marcou assento nas estreias em sala do nosso país. Fiquemos com um diálogo que tem tudo menos estar em “fora-de-época”.

Gostaria de perguntar sobre a génese deste projeto, mas também sobre como foi, após concluir a chamada “trilogia do trabalho”, aventurar-se por este novo universo? Como se sentiu ao dar esse passo?

Muita coisa! [risos] Depois de concluir o que acabou por se tornar numa trilogia — que, curiosamente, não começou com essa intenção —, a minha primeira ideia era fazer um novo filme social. Desta vez, seria situado numa grande empresa, com uma protagonista feminina e um tom diferente. Sentia essa vontade de continuar a explorar os mecanismos de subjugação: como é que se transforma um indivíduo? Como é que se força alguém a fazer algo que vai contra o seu próprio modo de ver o mundo? Tinha muitos elementos em mente para desenvolver.

Mas, quando expliquei essa ideia ao produtor com quem tinha trabalhado nos filmes anteriores, ele disse-me: “Não quero mais trabalhar contigo. Acabou.” E, de um dia para o outro, fiquei sem produtor. Foi um golpe duro. Decidi continuar sozinho, avançar com o projeto, mas percebi que não estava a reinventar nada. Estava apenas a repetir o que já tinha feito nos filmes anteriores.

Foi então que parei. Havia um peso emocional muito grande: a separação com o produtor, questões pessoais difíceis de gerir e, claro, a pandemia de COVID. Naquele período, a morte era uma presença constante no nosso quotidiano, uma sombra inevitável. Contávamos mortos nos jornais todos os dias. Creio que isso trouxe à superfície questões muito essenciais, quase arcaicas. O lado político, que sempre me interessou, parecia diluir-se, cedendo espaço a algo mais existencial.

Durante o COVID, todos passámos por um processo muito existencial, e “Hors-saison” nasceu disso. Foi o resultado de uma necessidade de contemplação, de olhar para a minha própria vida e experiência. Só depois de terminar esse filme é que consegui retomar o guião político e encontrar o caminho certo para ele. Mas precisava, naquele momento, de parar e de criar algo diferente, mais íntimo e reflexivo.

Mas, voltando à questão, porque falou-me desta ideia das crises existenciais, mas gostaria de perguntar-lhe sobre a escolha de um ator como protagonista. O porquê dela para representar uma crise de existencial social num filme que evoca o COVID? 

Compreendo perfeitamente o que perguntas, e foi algo em que reparei, embora não tenha sido exatamente ao ver o filme, mas sim no set, enquanto estávamos a filmar nas ruas vazias. Como a história de “Hors-saison” se desenrola numa cidade balnear fora de época, houve um momento em que, ao olhar para aqueles planos, aquelas ruas desertas fizeram-me lembrar as ruas de Paris durante o período do COVID.

Acho que isso não é um acaso. Pode ter sido algo totalmente inconsciente, mas não deixa de estar ligado a essa memória coletiva que agora carregamos. Talvez seja mesmo isso: as ruas vazias adquiriram uma nova camada de significado, remetem-nos para essa sensação partilhada, essa outra história que se infiltrou no nosso imaginário coletivo.

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Da esquerda para a direita: a co-argumentista Marie Drucker, o ator Guillaume Canet, o realizador Stéphane Brizé e a atriz Alba Rohrwacher, no Festival de Veneza na apresentação de "Hors-Saison" (2023).

Sobre esse imaginário coletivo do COVID no filme, sublinho a sequência sobre o jazz como música de fundo, no qual o Cannet refere as suas batidas como provocadoras de ansiedade. E como bem encaramos, a ansiedade é quase uma cicatriz do pós-pandemia.

Não tenho muita imaginação, confesso. O que tenho, sim, é um bom sentido de observação, e é a partir daí que tento transmitir aquilo que vejo. O jazz, por exemplo, é algo profundamente pessoal [risos].

E o jazz... tem tantas vertentes. Algumas, claro, gosto e acho aceitáveis, mas há algo curioso neste universo: parece que é um daqueles territórios de que ninguém pode falar mal. Existe quase uma pressão implícita, uma obrigação de se gostar, talvez para parecer mais inteligente ou sofisticado. No entanto, tenho de admitir que não me enquadro totalmente nisso. Ainda assim, há coisas no jazz que me atingem de forma muito direta. É como se me estivessem a espetar uma agulha ali... [risos].

[risos] Muito bem, voltemos então à questão do casting? Da personagem-actor, como também do ator?

Para mim, a ficção é sempre uma espécie de documentário sobre os atores. Nos filmes que faço, a ideia de personagem surge no momento da escrita e é algo que os espectadores inevitavelmente reconhecem. Mas, quando trabalho diretamente com um ator, não vejo uma personagem à minha frente; vejo uma pessoa real. O que realmente me interessa é capturar a sua humanidade, aquilo que o define, para depois, disso, emergir a personagem como uma consequência natural. Preciso de encontrar algo essencial e autêntico no ator, algo que não seja fabricado, e que estabeleça essa ligação entre ele, a atriz ou ator, e o que quero expressar através da personagem.

No caso do Guillaume, o que me atraiu foi algo que percebi nele: por trás da sua postura confiante, descontraída e até engraçada, havia uma grande angústia e, sobretudo, uma tristeza profunda. Foi essa tristeza que filmei. No entanto, o Guillaume tem uma grande capacidade de autodepreciação e um sentido de humor apurado, o que fez com que a sua tristeza não pesasse 100 toneladas, mas ainda assim presente e filmável.

Tenho uma pergunta pertinente, mas antes disso, queria continuar a falar sobre os atores. Passo agora para a Alba Rohrwacher. Portanto, uma atriz italiana para uma produção francesa.

Primeiro, porque, bom, ela fala francês. [risos] Mas essa escolha não foi algo que partiu de mim desde o início; foi, na verdade, uma sugestão da diretora de elenco. Como já expliquei antes, há sempre algo do real que é essencial para mim, mesmo num filme de ficção. Por exemplo, ao escolher Guillaume Canet, um ator conhecido que interpreta um ator famoso, era inevitável surgir a questão: quem coloco ao lado dele para dar vida a uma personagem desconhecida?

Na minha visão, não fazia sentido, escolher uma atriz francesa conhecida, porque isso poderia quebrar a coerência da história. Mas claro, a minha lógica francesa só funciona até ao momento em que o filme chega a Itália, e lá a Alba Rohrwacher é mais famosa que o Guillaume Canet! [risos] Foi curioso perceber, quando estivemos em Veneza, que essa troca de dinâmicas funcionava perfeitamente.

A escolha da Alba também veio da necessidade de alguém que pudesse interpretar um papel muito difícil: uma personagem forte, mas que trilha um percurso de resignação. E quem poderia carregar esse arco sem perder força? Precisava de uma grande atriz, e Alba é exatamente isso. Além disso, em França, ela não é muito conhecida, o que ajudava a manter a lógica da personagem.

No início, fizemos testes com outras atrizes, mas quando a Alba surgiu como sugestão, tornou-se evidente. O sotaque dela em francês também trouxe um toque poético, algo que remete à ideia de ser de fora, de outro lugar, o que adicionava camadas à personagem. E há, claro, aquele mistério que só os grandes atores e atrizes conseguem trazer — fazem existir o que o guião não escreve, mas que está lá, latente. Alba é exatamente assim: alguém que torna o invisível visível, que revela algo que transcende o texto. E essa é, talvez, a maior força dela

O seu rosto transmite tudo isso! 

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Gostaria de colocar-lhe a tal pergunta pertinente: É a seguinte — este filme, em certos momentos, poderá lembrar a muitos o “Triangle of Sadness”, mas prefiro evocar outro trabalho de Ruben Östlund, “The Square”. Nesse filme, há uma performance marcante de um homem-gorila, uma sequência angustiante e até agressiva, que explora a violência e a nossa animalesca natureza ‘adormecida’. Em “Hors-Saison”, a performance dos dois homens-pássaros parece apresentar uma contraposição clara: algo mais leve, mais distante da ferocidade do artista-símio. Nesse sentido, gostaria de saber: vê essa escolha como uma provocação ou até mesmo como uma resposta direta ao filme de Östlund?

Eu não sou um provocador! 

Digo antes, a provocação que é responder à agressividade e transgressão do homem-gorila com a harmonia dos homens-pássaros.

Não houve uma referência consciente ao homem-gorila, mas havia uma intenção muito clara: provocar uma emoção pura. Enquanto a performance do homem-gorila em "The Square" desperta uma reação violenta e imediata, no meu caso, quis criar um clima que transformasse todos os olhares — tanto dos personagens como do espectador — num olhar infantil, desarmado e genuíno. Se existe um ponto de ligação entre as duas cenas, ele está na busca por algo integralmente orgânico e emocional. Não é sobre ser inteligente; é sobre sentir e trazer à tona o sorriso mais puro e espontâneo, quase como o de uma criança.

Enquanto escrevia o filme, ouvi um relato na rádio sobre este grupo artístico. Imediatamente pensei: "Isto tem tudo a ver com o filme." Contactei-os e sugeri uma colaboração, que aceitaram. Depois de assistir a uma das suas apresentações, vi não só o sorriso no rosto das pessoas, mas também no meu próprio, e foi aí que percebi que esta cena tinha que acontecer durante o casamento.

Filmámo-la com cinco câmaras, precisamente para capturar toda a espontaneidade e os risos genuínos numa única tomada. Nenhum dos presentes na sala sabia exatamente o que ia acontecer, nem mesmo o Guillaume e a Alba. Coloquei as pessoas estrategicamente na sala e preparei os performers, mas mantive o elemento surpresa. Disse aos atores principais apenas que era fundamental partilharem aquele momento de comunhão e alegria com os outros. E foi assim que conseguimos criar uma cena desarmante, carregada de poesia, humor e emoção verdadeira.

Alguns críticos e jornalistas comparam facilmente o seu “Hors-saison” a filmes como “Lost in Translation” ou “Broken Flowers”, e a sua resposta é com Claude Lelouch. Acho curioso porque ultimamente tem encontrado vários cineastas a mencionar Lelouch como referência, um homem visto como criador de melodrama francês, algo que foi considerado pejorativo durante algum tempo, mas que hoje muitos tem o declarado a saudade desse melodrama clássico no panorama francês, esse dito melodrama lelouchiano.

Essas comparações com “Broken Fever” e outros, deve-se muito à sensação que o meu filme transmite... O que certamente o que os une é que as personagens passam por momentos em que estão completamente perdidos. Acho isso fascinante de encenar: uma personagem que está perdida, mas sem cair no risco de aborrecer o espectador. Esse é sempre o grande desafio, o objetivo.

Sobre Claude Lelouch, tenho de admitir que tenho uma enorme admiração por ele. Curiosamente, ele chegou até a ser produtor de um dos meus filmes, por isso conheço o trabalho dele de perto. O que me fascina no Lelouch é como ele criou um gesto cinematográfico muito próprio. Quando nos encontramos pela primeira vez, percebi algo interessante: havia técnicas que já usava sem saber que ele também as fazia.

Por exemplo, dentro de um texto bastante estruturado, existe sempre a ideia de criar dispositivos no set que trazem algum grau de desequilíbrio para os atores. Não para os deixar desconfortáveis, longe disso, mas para criar um ambiente onde a escuta entre eles atinge o máximo potencial. Esse desequilíbrio torna tudo mais vivo, mais orgânico.

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Possivelmente, esta menção a Claude Lelouch deve-se porque um dos últimos filmes da sua autoria tem pontos de contacto com esta sua obra. São filmes de reencontro.

Qual filme?

A terceira parte da trilogia “Un homme et une femme” (1966), com o Jean-Louis Trintignant e com a Anouk Aimée … 

Deve ser o Les plus belles années d'une vie?

Exatamente, vi esse filme em Cannes.

O último foi apresentado em Veneza este ano [“Finalement”], com um prémio especial para ele. Também o vi em Cannes, ele convidou-me para essa exibição.

Portanto deves-te lembrar, quando no final, todo o cinema cantou... Foi incrível. Estava ele, o Jean-Louis Trintignant, a Anouk Aimée, na famosa linha do “Un homme et une femme”. E eu estava mesmo na fila da frente, a poucos metros. Fiquei tão emocionado com o filme, tão tocado. Foi incrível, porque o primeiro filme já é algo lendário na História do Cinema.

Disse-lhe como imaginava... Disse-lhe: “Claude, imagino como deve ter sido o teu entusiasmo enquanto montavas este filme.” Porque era possível trazer de volta o primeiro filme, com eles naquela cena em que fazem amor no Hotel Normandy. Eles são maravilhosos, belíssimos, belíssimos. É incrível o vínculo entre os dois filmes.

Talvez seja sobre o “tempo que passa” que referes como ligação desse filme com o meu? Só que nesse filme, fala-se do Claude. Vemos os personagens velhos, depois vemos-os novamente jovens, e, de repente, há ali 50, 60 anos de diferença, ou algo assim, e num determinado momento da montagem, sentimos intensamente o tempo que passou.

E o “Hors-Saison”, fala disso: o que fazemos com as nossas vidas, o que fazemos com o tempo. Fala mesmo sobre isso.

Quer no seu filme, quer na do Lelouch, o romance é entendido como uma espécie de veículo para regressar a um tempo que não tem regresso. São filmes sobre a ilusão encantatória do passado. 

Sim, concordo plenamente consigo. Este filme fala exatamente sobre isso. Há algo muito forte nele porque todos os espectadores se lembram do primeiro filme, lembram-se do início da história. No último filme, o Jean-Louis Trintignant não se lembra. A personagem principal não se lembra de algo que eu me lembro. Isso é muito poderoso. É uma ideia incrível. Às vezes, perguntamo-nos: “Será que ele se lembra? Não sabemos. Será verdade? Ou não será?”

Compreendo perfeitamente a sua questão, e é a primeira vez que alguém observa isso, por isso deixa-me contar-te uma história.

Sim, claro …

Na primeira versão do guião de “Hors-saison” tinha uma personagem para o Alain Delon. Eu o queria no meu filme, seria um dos hóspedes do hotel.

O Guillaume, a personagem, está tão em baixo... Ele vê o Alain Delon ao longe, no restaurante. O Alain Delon está ali. Ele tem dinheiro, é um grande hotel, é plausível. Guillaume liga à mulher, e ela diz-lhe: “Ouve, durante toda a tua vida disseste que, se um dia encontrasses o Alain Delon, lhe dirias: ‘Sou um grande fã, és muito importante para mim.’ Estão no mesmo hotel. Vai e diz-lhe que ele é importante para ti.” Mas o Guillaume, nessa tristeza, responde: “É o Alain Delon. O que é que ele se vai importar comigo? Faz o que quiseres.

Então, o que acontece? Mais tarde, noutra cena, noutro lugar, o Alain Delon está no mesmo espaço. E sabemos, naquele momento, que o Guillaume gostaria de se aproximar dele, mas não tem coragem. E não vai. No guião, estava escrito que, depois disso, ele estaria no quarto, a ver o “Plein Soleil" de René Clément.

Porquê “Plein Soleil”? Porque é exatamente o que está a dizer sobre o Claude Lelouch, queria ter a imagem do Alain Delon de antigamente logo após a imagem do Alain Delon na sua atualidade, porque o meu filme fala do tempo, do tempo que passa. Na história, era por isso que, quase no final do filme, o Guillaume estava sentado à mesa e víamos um homem a chegar – o Alain Delon – e ele dizia: “Não quero incomodá-lo, só quero dizer que sou um grande fã. Sabe, aproveite a estadia. Tenho de ir.

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Alain Delon em "Plein Soleil" (René Clement, 1960)

Contactei a filha do Alain Delon, escrevi uma carta de amor para ele. Ela disse-me: “O meu pai está tão cansado, já não quer fazer estas coisas.” Mas ele recebeu a minha carta. Não sei se leu, mas recebeu. E era exatamente sobre o que estávamos a falar: sobre a vida.

Foi uma experiência, um experimento cinematográfico. Tal como em “Une Vie(2016), uma das principais experiências de montagem que já fiz para falar sobre o tempo. Em zero segundos, no não-tempo, ela é jovem, depois velha, depois jovem outra vez. E, de repente, estamos a falar do tempo, num único momento de montagem.

Voltará ao filme social que mencionou no início da conversa?

Sim, o guião está praticamente pronto, e aliás, enquanto trabalhava em “Hors-saison”, a outra metade do meu cérebro pensava nesse filme. [risos] Posso dizer que não encontrei toque no momento certo, mas atualmente o vejo como uma examinação sobre os aspectos grotescos do liberalismo. Será de um filme performaticamente cínico. 

Ou seja, é uma resposta aos novos tempos. Tempos, esses, em que a política adquiriu uma certa espectacularidade circense.

Sim, vou voltar a Ruben Östlund para fechar o círculo. O que acontece é que, quando escrevi “La Loi du marché” (2015), “En Guerre” (2018) e “Un autre monde” (2021), fiz esses filmes a partir de dezenas de testemunhos. Fui ao encontro das pessoas, escutei-as, e elas contaram-me as suas vidas. Depois, tentei transpor essas vidas para o filme.

No entanto, em cada um desses filmes, fui obrigado a colocar a ficção abaixo do real. Porquê? Porque, de outra forma, os meus filmes realistas pareceriam falsos. O real é tão mais indecente, violento e cínico do que aquilo que conseguimos imaginar que, para não perder essa autenticidade, tive de subordinar a ficção à verdade.

Há anos que me pergunto: como se pode representar o real de forma precisa numa obra de ficção? E acho que é necessário deslocar-se um pouco em direção à farsa. É isso que Ruben Östlund faz. É um caminho para representar a indecência a que chegámos hoje — a indecência do cinismo e do grotesco do capitalismo. Por isso, o meu "cursor" também se desloca nessa direção.

"Somos um 'case study', uma espécie de aberração!": Ricardo Vieira Lisboa e Luís Mendonça desvendam novo livro do À Pala de Walsh e percurso de 13 anos numa conversa sobre "O Cinema das Palavras" (Parte II)

Hugo Gomes, 30.11.24

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Agora, virando um pouco para o site, visto que já têm treze anos. Ao longo desta conversa, vocês referem muito esse grande salto de blog para site. Recordo muito daquele período em que existiam os TCN [extintos prémios para blogs de cinema]. Vocês saíram premiados, julgo que com o “Melhor Blog Coletivo”, e no vosso discurso de vitória anunciaram que iriam deixar de ser um blog. A partir daí, os blogs de cinema começaram a decair e anunciou-se o fim da blogosfera...

RVL: Não foi certamente por nossa causa!

Claro que não. O que quero perguntar, por via deste contexto, é se não sentem que causaram uma espécie de influência, uma pegada? A “pegada walshiana”, como disse há bocado. Algo que conduziu a um novo modelo de site de cinema em Portugal nos dias de hoje?

RVL: Sim. Mas acho que não é tanto por aí. Porque o que aconteceu foi que, sem termos consciência disso, mas compreendendo já que havia uma doença qualquer que alastrava aos blogs, o João Lameira teve a premonição de dizer: “Isto não vai continuar muito mais tempo.” E nós, cada um no seu sítio, pensámos: “Não, não vamos a lado nenhum.” E, portanto, numa lógica de coletivo, de uma coisa mais estruturada, mais organizada, surgiu a possibilidade de criar um projeto com alguma consistência e duração. E a verdade é que foi isso que nos salvou.

LM: A nossa existência crítica. Sim.

RVL: Porque, provavelmente, se continuássemos nos blogs, desapareceríamos e desistiríamos. Foi o estarmos juntos num projeto coletivo que nos deu força, mas isso só funciona porque é um esforço de todos. Quando um está mais cansado, os outros compensam, ou vice-versa. Há uma lógica rotativa que funciona muito pela agremiação de novas pessoas e isso coincidiu, de facto, com o momento em que os blogs estavam a ir abaixo.

LM: Estava um bocado em negação. Tinha um blog, o CINedrio, que tinha uma organização que para mim era importante; era o meu bloco de notas, conceptual, onde eu experimentava coisas. De vez em quando até volto lá. Não me sinto assim tão distante daquilo quanto isso. Uma das coisas que achava, na altura, era que nós devíamos preservar ao máximo os nossos próprios projetos individuais. Não via com bons olhos o fim da blogosfera. Não sei se já era absolutamente evidente. Para mim, ainda não era. Quando entrei no À Pala de Walsh, não estava claro que a blogosfera ia acabar.

Só quando entrei no Facebook, aliás, muito por causa do site, que rapidamente percebi que a blogosfera ia acabar. Até escrevi um post no meu blog, na altura, a dizer que a blogosfera tinha os fins contados e que a culpa era do Facebook. Fiz até um meme com o Godzilla a devorar a blogosfera, sendo o Godzilla o Facebook. [risos] E foi o que aconteceu! 

Quando o publiquei, havia muita gente dos blogs, até dos mais profissionais, com vários prémios nos TCN, a dizer: “Não, olha que estás a exagerar.” Mas aconteceu e não fiquei nada contente com isso. Também não fiquei quando tive de dizer a mim mesmo que já não dava. Que já não conseguia. Porque, quando acabou, perdeu-se uma dinâmica incrível que a blogosfera tinha, aquele ping-pong entre bloggers. Era de uma vitalidade extraordinária. E acho que se perdeu mesmo. Não acho que o que veio depois seja muito estimulante. Ao mesmo tempo, não vejo um grande efeito da À Pala de Walsh no meio. Não consigo ver uma influência clara, uma grande herança.

Mas é engraçado. Até brincava com isso, com aquele meme do Batman a esbofetear o Robin. O Robin dizia: “À Pala de Walsh? Esse blog?” e o Batman respondia: “Esse site!” Queríamos dar o salto para algo mais, mas a verdade é que nunca conseguimos totalmente. Talvez porque também não queríamos verdadeiramente. Mas o certo é que, quando a blogosfera desapareceu, aquele contexto morreu com ela.

RVL: Mesmo assim, nunca quisemos transformar o projeto numa coisa profissional. Isso foi uma discussão longa, mas a conclusão foi sempre a mesma. Fazer do À Pala de Walsh uma fonte de rendimento seria insustentável. Éramos e somos muitos. O que entrasse seria sempre pouco para dividir, criando desequilíbrios ou situações absurdas. Essa lógica amadora — no melhor sentido da palavra, fazer isto por amor ao cinema — sempre foi o pressuposto do projeto.

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Gojira (Ishirô Honda, 1954)

E qual foi a vossa gratificação com o site ao longo dos anos? 

LM: Financeira?

Não nesse sentido de gratificação. Se atingiram os vossos objetivos pessoais com o site? E o facto de institucionalizar-se como referem … detesto esta palavra institucionalização!  … pode ser visto como uma espécie de recompensa?

LM: Sim, sim, em certa medida. 

RVL: Coisas diferentes, coisas boas e coisas más. A verdade é essa. Gosto de contar isto porque acho muita graça. Foi há uns dois anos, por volta dos dez anos do site. O Miguel Dias, diretor do [Curtas de] Vila do Conde, veio ter comigo e perguntou: “Olha, tu conheces um site de crítica português chamado À Pala de Walsh?”. Encolhi os ombros e fiquei assim meio sem saber o que dizer. E ele continuou: “Ah, não deves conhecer. Olha, esquece, esquece.

Disse: “Calma, Miguel, conheço sim. Eu sou um dos fundadores.” Ele ficou surpreendido. Porque, para ele, eu era apenas o programador do IndieLisboa. E mesmo eu escrevendo todos os anos sobre Vila do Conde — talvez não todos, mas já o fiz umas quatro ou cinco vezes —, ele nunca associou o meu nome ao site.

Isto para dizer o quê? Que o site tem esta característica curiosa: para algumas pessoas, nós somos só do site e não fazemos outras coisas. Para outras, fazemos tudo menos o site, e nem nos associam a ele.

LM: Sim, também já senti isso. É como aqueles autores muito citados, mas que ninguém lê. Eles estão lá, à vista, mas só para “efeito de loja”. Acho que isso também acontece connosco, e é algo que já se sente há algum tempo, quase desde o início. Na verdade, foi quase imediato. Até porque as redes sociais, na altura, eram mais generosas para projetos como a À Pala de Walsh.

Agora são péssimas …

LM: E a verdade é que as pessoas conhecem o site, mas também já ouvi, aqui e ali, colegas ou outras pessoas dizerem: “Ah, sim, À Pala de Walsh é muito importante. Mas, olha, vou ser franco: eu não leio.” É como aquela coisa do Marcelo em relação ao aborto: “Sim, deve ser muito importante, mas é proibido.” Parece uma espécie de efeito Marcelo, percebes? Algo do género: “É muito importante.” Mas, afinal, lês? Não. Sabes o que tem lá? Não. E isso deixa um amargo de boca grande.

Transformo logo isso numa crítica, porque é frustrante. Dá a sensação de que não somos suficientemente bons. Mas depois, quando penso nisso, não faz sentido. São as mesmas pessoas que escrevem para o site e para o Público, e, se formos a ver, apesar de ser um jornal excelente — provavelmente o melhor que temos na área da cultura —, não acho que editorialmente seja assim tão melhor que nós.

Tens falado do nosso livro de estilo, da política de revisão que aplicamos. Nós temos uma boa política de revisão, por exemplo, e não acho que o Público seja necessariamente melhor do que nós nesse sentido. E, sendo as mesmas pessoas a escrever para ambos, onde está a diferença? Não faz sentido nenhum.

RVL: Há uma certa circulação …

LM: Sim, mas não posso transformar imediatamente isso numa crítica, dizer: "nós não somos suficientemente o que quer que seja". É uma questão cultural, tem a ver com estas barreiras intransponíveis que, em 13 anos, nós nunca conseguimos quebrar. No início, éramos mais chatinhos e, se calhar, perfuramos mais para desabar certas muralhas e deixámos de fazer porque nos acomodamos também, porque nos fartamos, desistimos e também porque perdemos a batalha, etc. Não sei se é se perdemos a guerra.

RVL: Ou então é ao contrário, não é? Porque hoje em dia quer o Público como todos os outros jornais viraram sites, onde as coisas se perdem. Sim, são publicadas, só que dois dias depois desaparecem numa espécie de torrente.

LM: Mas os textos… Sinto que nós trabalhámos muito por fora. Penso que o À Pala’ é um projeto completamente desligado de qualquer establishment. É um projeto genuinamente espontâneo e de cinefilia, e sinto que é um projeto de alta exposição. Nós desdobrámo-nos em múltiplas coisas e fomos super generosos ao mesmo tempo. Porque nós temos uma coisa que acho que é geracional. Eu, como dou aulas, também contacto muito com outras gerações mais novas, que têm imensas qualidades, sublinho imensas. Mas esta não é necessariamente uma qualidade nem um defeito, não gosto de pôr as coisas nesses termos. É uma coisa que não têm, que nós temos, é uma questão até certo ponto geracional.

Nós não somos exatamente todos da mesma geração, mas há uma coisa que nos une. Não sei se é “millennial” ou alguma ‘coisa’ assim, mas é uma grande reverência em relação ao passado. Uma vontade de ser um "Anjo da História", de colher os cacos que estão para trás. Uma vontade de criar pontes. Vejo as gerações mais novas mais descontraídas, mais descomplexadas e muito mais disponíveis para seguir em frente e virar costas ao que está para trás. Vejo isso muito, por exemplo, na academia. Portanto, esta coisa de puxar quem está para trás, não deixar cair, não deixar cair a memória… Por exemplo, é muito de nós.

Isso ficou estatisticamente comprovado numa tese. Nós somos referidos em teses! Porque somos um “case study”, uma espécie de aberração!

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Agnès Varda, Jean Douchet e Jean-Luc Godard

RVL: Entramos em mais pelo menos duas teses.

LM: Temos a autora de uma delas, a Beatriz Fernandes, uma walshiana, mas tivemos outras. Uma delas, lembro-me, dizia — muito cedo até — que nós éramos o site que citava mais autores de todos. [risos]

RVL: Em comparação com o Público, o DN, e outros …

LM: Foi algo que nunca nos foi muito reconhecido pelo meio: a extraordinária generosidade de quem está completamente fora, a correr por fora, sem qualquer vantagem. E que vai ao encontro de… Não é contra, mas ao encontro de várias coisas. Convoca. Até houve más interpretações ao longo do tempo sobre isso. Porque a ideia era sempre convocar para um diálogo, e havia pessoas que, naturalmente, estavam muitíssimo acomodadas e não estavam minimamente para aí viradas. Achavam que convocar era quase uma espécie de: "Quem são estes para julgar? Quem julgam que são?".

É um aspeto extraordinário, muito generoso, no sentido de nos misturarmos, miscigenarmos — uma palavra difícil - não necessariamente para colhermos qualquer benefício, mas no sentido de criar um diálogo. Por vezes um diálogo divertido, provocador, entretido desse ponto de vista, não aquela coisa de apenas reproduzir.

Mas nós usávamos uma questão, que é para mim o epítome do jornalismo preguiçoso, televisivo sobretudo, que é: "Projetos para o futuro?". É exatamente o que nós não queríamos de todo.

Outra coisa que penso ser uma adversidade para quem está no À Pala de Walsh é uma questão cultural — e aí já não tem nada a ver com geração, e sim com o país. É aquela velha expressão, muito sábia, do qual gosto muito: "Quem anda à chuva, molha-se". Conheço muita gente do meio que tem muito poder. Quase todas as pessoas que têm muito poder não escrevem, não têm visibilidade. Muitas delas não escrevem, ficam na sombra. Isso significa alguma coisa? Quem anda à chuva, molha-se. Já não chove muito. Quem anda ao sol, queima-se.

As pessoas que fazem muito, que fazem acontecer, às vezes vão por um caminho muito pedregoso, muito difícil. As pessoas que não fazem acontecer de repente são aquelas que decidem se estas pessoas que fazem acontecer estão a fazer acontecer de uma determinada maneira ou não. Há quase uma proporcionalidade, que acho extremamente perversa, já que estamos nos 50 anos de Abril, que é o entre criar e o fazer, e a capacidade de mudar, de transformar.

Quando digo mudar, falo em transformar, e aí vou voltar à história do choque cultural, que era, em certo sentido, pretendido. Já tive ocasião de partilhar isso em público — mais uma vez, nos Encontros de Cinema, no Batalha. Não houve qualquer impacto. As pessoas vão escrever para os jornais, mas não operam mudança nenhuma nesses meios. Os jornais tiveram sempre este fenómeno, como À Pala de Walsh e todo o online, como a blogosfera, em certa medida, nunca foram vistos como um terreno fértil …

RVL: … nem transformador. Foram sempre absorvidos.

LM: Houve recrutamento de pessoas, mas nunca houve recrutamento de ideias. Isso, para mim, é a falência do projeto na sua génese mais ou menos utópica. E quando digo utópica, sublinho a generosidade do projeto, que, sinceramente, não sei se alguma vez foi totalmente reconhecida. Acho que não. Porque acredito que a recompensa estava aí, nessa generosidade, nessa aproximação positiva em relação a um meio qualquer ou a uma nomenclatura qualquer.

A própria nomenclatura implica reconhecer que há diferentes maneiras de lidar com o cinema e, ao mesmo tempo, de o transformar. Isso acontece. Quer dizer, acontece constantemente. Mas ainda há essa visão redutora de qualquer pessoa que se apresenta, até hoje, como “o crítico do online”. Seja do À Pala do Walsh, seja do Tribuna [de Cinema], do Cinematograficamente Falando …, como de outro projeto. Isso tem um efeito visível.

Sinto isso na academia e até em candidaturas ao ICA. É algo que se manifesta de maneira geral. É uma postura redutora, no sentido de nos diminuir, de nos reduzir. Não é algo que abra possibilidades. É um movimento que engaveta as pessoas, mas não no sentido de permitir que se desengavetem outras coisas. É uma forma de arrumação, no sentido mais total do termo: despacham-se as pessoas para uma gaveta, e pronto. Ficam lá e não chateiam.

RVL: Há uma citação na entrevista com o Guerra da Mata que é muito boa: “Eu não passei não sei quantos anos da minha vida para sair do armário para depois me meterem numa gaveta.” [risos]

Les Sièges de l'Alcazar (Luc Moullet, 1989)

Um último tópico em relação ao site e não só, a esta nova geração. Visto que vocês são os pais fundadores, quer dizer dois dos quatro pais fundadores …

RVL: Não, eu sou … como se diz … padrasto! [risos]

Padrasto?

RVL: Sim, eu não estava na reunião onde tudo aconteceu. O Luís, o Carlos [Natálio] e o João [Lameira] é que estavam presentes.

E segundo a “lenda”, onde é que a ideia surgiu?

LM: Foi aqui [Cinemateca] que tivemos a nossa primeira reunião, a primeira vez em que nós três nos encontramos.

RVL: Só estive presente na segunda reunião.

Houve pais e padrastos fundadores. Houve uma primeira geração e agora estamos a falar de uma nova. Já mencionámos um “walshiano” novo, mas há outros nomes a surgir. Olhando para o que vocês eram inicialmente, com a ingenuidade que já admitiram ter, como vêm estas novas pessoas que chegam ao site? Que ferramentas elas trazem? E, ao mesmo tempo, acham que já há uma certa formatação do que significa ser 'À Pala de Walsh'?

RVL: Houve um site brasileiro chamado Cinética que teve uma geração fundadora muito marcante. Depois, passados dez anos, como aconteceu connosco, as pessoas ficaram dez anos mais velhas. Têm outras preocupações nas suas vidas, não é? Já não têm a mesma disponibilidade que tinham aos 23, 24, 25, 26 anos. De repente, tornam-se trintões, alguns até quarentões. A energia e a disponibilidade diminuem. Era um site incrível, mas, nos últimos dois ou três anos, tentaram passar a “bola” e a ‘coisa’ acabou por seguir uma lógica de dossiês e, passado um ou dois anos, o site fechou. Acabou. A Cinética está lá, conservada em formol.

O À Pala de Walsh, eventualmente, poderá passar pelo mesmo. Se um dia nós os quatro nos cansarmos, não me parece que haja um grupo de pessoas com vontade — não é só uma questão de conseguir, mas de querer — e disponibilidade para assumir a continuidade do projeto. Assim, acho que irá terminar, caso deixemos de fazer o trabalho de edição.

No entanto, enquanto continuarmos a editar, mesmo que sejamos apenas redactores minoritários (escrevendo um ou dois textos por mês, no máximo, ou até nenhum), gerimos um grupo de colaboradores e mantemos o projeto. É um modelo diferente do que tínhamos no início, quando o ideal seria criar um texto por semana.

Mas a lógica mudou. Os contributos das pessoas que foram integradas no site ao longo do tempo são muito variados, e isso foi sempre uma premissa inicial. Nunca quisemos que todos escrevessem da mesma maneira, sobre os mesmos temas, ou tivessem as mesmas opiniões. Sempre houve uma vontade de diversidade, que continua presente.

O que acontece é que a institucionalização trouxe um certo peso. As pessoas já não escrevem quatro parágrafos em meia hora e ficam contentes. De repente, querem escrever o texto sobre determinado filme, ou o texto de referência, mas sem desonrar a aura do site. Isso pode ser contraproducente, porque muitas vezes as pessoas definem padrões demasiado elevados para si mesmas e depois não conseguem mantê-los.

Tem sido um problema recorrente. Muitos fazem um texto, dois, três, dão tudo, e depois dizem: "Porra, não aguento isto todos os meses!" Assim, a longevidade do site trouxe um peso para os redatores, que pode ser prejudicial.

LM: Por isso lamento tanto o fim da blogosfera. A blogosfera era um espaço de escrita rápida, a uma velocidade qualquer, e foi aí que o site nasceu. Recrutávamos diretamente nesse território.

RVL: Agora deixámos de poder recrutar.

LM: De repente, a blogosfera praticamente deixou de existir. Apesar das nossas ligações à academia e da atenção que tentamos dar aos novos valores, é um trabalho completamente diferente. Muitas vezes, são pessoas que mal conhecemos, e que também não se conhecem entre si.

Apesar disso, ainda há uma certa unidade no site. Não há posições oficiais, mas há uma unidade visível, por exemplo, no livro anterior, em torno de um conjunto de fixações e realizadores. Mesmo que alguns não gostem, acham graça. Temos interesses em comum, como o Godard ou o James Wan. Também há um certo foco no terror, ainda que abordado de forma diferente daquela que algumas pessoas do género adotam.

No entanto, isso tornou a nossa tarefa mais difícil. Muitos colaboradores confidenciaram-nos que escrever para o site traz uma enorme responsabilidade. Mesmo pessoas experientes dizem que estremecem ao serem convidadas. Essa carga acaba por dificultar uma abordagem mais descontraída e descomplicada, onde se pudesse, por exemplo, lançar uns adjetivos mais feios sobre um filme, sobretudo da nossa praça.

Esse espírito mais livre é raro hoje em dia. Jogamos esse jogo até certo ponto, mas a maioria não quer jogá-lo. É pena.

Queria dizer que a prova de vida do À Pala de Walsh seria o aparecimento de mais “Palas” de outras naturezas, que levassem a mensagem mais longe, de forma diferente. Mas tenho a sensação de que os tempos mais experimentais e ousados dificilmente voltarão.

RVL: Apesar disso, há algo que tem sido das coisas mais divertidas nos últimos tempos: as correspondências. Surgiram nos últimos dois ou três anos e trazem uma abordagem mais despachada, imediatista e reativa. Acho que as pessoas gostam de ler e nós gostamos de escrever. Imagino que, se houver um terceiro livro, será um livro de correspondências.

Aqui está o leak! [risos]

LM: Uma espécie de compromisso entre o oral e algo mais ensaístico. Sim, sim, sim. Acho que aí fica a semente. Pode ser um livro, correspondências cinéfilas! [risos]

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"Somos um 'case study', uma espécie de aberração!": Ricardo Vieira Lisboa e Luís Mendonça desvendam novo livro do À Pala de Walsh e percurso de 13 anos numa conversa sobre "O Cinema das Palavras" (Parte I)

Hugo Gomes, 30.11.24

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Not I (Anthony Page & Samuel Beckett, 1972)

Em contagem decrescente para o lançamento de “O Cinema das Palavras: Entrevistas À Pala de Walsh”, o segundo livro do coletivo À Pala de Walsh, sete anos após “O Cinema Não Morreu: Crítica e Cinefilia À Pala de Walsh”, os fundadores e editores Luís Mendonça e Ricardo Vieira Lisboa conversaram com o Cinematograficamente Falando … sobre este novo “rebento”. Mais do que uma coletânea de entrevistas e diálogos com realizadores, técnicos, investigadores e críticos, o livro estabelece-se como uma viagem por uma cinefilia ainda reascendente e entregue ao dom da palavra (*colocar “ordet”).

O lançamento, marcado para o último dia de novembro, na Livraria Linha da Sombra, também editora da obra, contará com uma cerimónia de apresentação com os quatro editores do site e ainda do cronista e poeta Pedro Mexia, assinante do prefácio.

Às portas dessa mesma livraria, os dois fundadores, também eles programadores da Cinemateca Portuguesa, partilharam não só a expectativa e o statement por detrás do objeto literário em mãos, como também histórias e reflexões sobre o percurso do site, lembrando a sua génese na blogosfera e os desafios de manter viva uma escrita crítica em tempos de transição. Com “O Cinema das Palavras”, À Pala de Walsh reafirma-se como espaço de resistência e celebração da cinefilia em Portugal.

Nesta conversa, como o leitor perceberá, surgem declarações, punhos no ar, autoavaliações e um olhar analítico sobre o futuro, não só do site, mas também da cinefilia e do meio em que esta se insere. Um triálogo com a Palavra, seja ela cinematográfica ou meramente ostentativa, emerge como o centro de todas as ‘coisas’.

Vou começar com uma pergunta bastante genérica, ou, se preferirem, pela "génese" da questão: tendo em conta que o vosso primeiro livro foi lançado em 2017, já na altura havia uma ideia de seguir com este segundo livro? Ou ele surgiu apenas depois da receção do primeiro?

Ricardo Vieira Lisboa: Não sei quem poderá responder melhor, mas, salvo erro, foi no próprio dia do lançamento de “O Cinema Não Morreu” que o João Coimbra [Oliveira], o editor dos dois livros e responsável pela livraria Linha de Sombra, nos disse: "Estou muito contente. Vamos começar a trabalhar no próximo." Isto aconteceu logo no dia do lançamento.

Claro que não começámos a trabalhar no mês seguinte, mas ficou essa promessa no ar. A verdade é que, por volta do décimo aniversário do site, em 2022 — cinco anos depois do primeiro livro —, começámos a trabalhar efetivamente no que viria a ser este segundo volume. Por isso, a maior parte das entrevistas incluídas no livro corresponde aos primeiros dez anos do site. As entrevistas realizadas nos dois anos seguintes, que poderiam teoricamente integrar o livro, acabaram por não entrar, pois já tínhamos o projeto praticamente fechado nessa altura.

Houve, no entanto, dois anos de melhorias, revisões e até alguns adiamentos. Foi um processo longo de finalização, mas o índice do livro ficou praticamente definido no final de 2022. A última entrevista feita já com o propósito de entrar no livro foi a conversa da Daniela [Rôla] com Mia Hansen-Løve. Essa é a mais recente. Por outro lado, a entrevista mais antiga deve ser a com o João Rui Guerra da Mata, provavelmente uma das primeiras que fizemos, logo em 2012, quando o site tinha apenas alguns meses.

Na época, essa entrevista foi publicada em duas partes, mas, no livro, aparece numa versão bastante editada, reduzida e melhorada. Aliás, todas as entrevistas passaram por um processo de edição substancial, com cortes e ajustes para se tornarem mais legíveis. No site, há sempre um caráter mais imediato, mas, num livro — que é algo que permanece —, o texto precisa de maior depuração literária. Apesar de já termos essa preocupação com o site, aqui dedicámos meses a retrabalhar os textos, reescrever e aperfeiçoar cada detalhe. Foi, de facto, um trabalho minucioso.

Luís Mendonça: Além disso, há algo que considero uma espécie de "prenda" no livro. Aliás, diria que são duas grandes prendas. Não sei se queres que fale já sobre isso…

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João Rui Guerra da Mata

Sim, eu ia justamente perguntar sobre isso: os supostos inéditos. Vai haver inéditos no livro? São essas "prendas" de que estão a falar?

LM: Sim, posso falar de uma delas. Como não participei diretamente, posso falar como um espectador privilegiado. Trata-se de uma entrevista com o Vasco Pimentel, que muitos só conhecem como "o nome nos créditos", o grande operador de som do cinema português. Para quem o conhece mais de perto, sabe que ele é um contador de histórias extraordinário, extremamente carismático.

A verdade é que o Vasco foi entrevistado poucas vezes, e especialmente não da forma como o Ricardo e o Carlos [Natálio] o entrevistaram. Estive presente durante a gravação e pude assistir a tudo. Foi uma entrevista gravada em áudio e vídeo, mas nunca chegou a ser disponibilizada. Na altura, a ideia era que ela servisse como ponto de partida para uma série que estávamos a desenvolver — uma proposta de televisão, com episódios centrados em entrevistas como esta.

RVL: Sim, seria o episódio-piloto de uma série de televisão.

LM: A verdade é que depois isso não teve sequência. A ideia não se desenvolveu, não chegou a ganhar visibilidade sequer. Mas aquela entrevista ficou sempre “in the back of my mind”, pelo menos para mim, como espectador. Queria fazer alguma coisa com ela, reabilitá-la de alguma maneira. Quando decidimos lançar um livro dedicado a entrevistas, achei que era a oportunidade perfeita.

Por outro lado, há outra coisa que já fazemos há bastante tempo, mesmo antes de virar moda: os registos em áudio, o que hoje se chamaria podcasts. Na altura, não chamávamos de podcasts; eram gravações áudio que disponibilizávamos, sobretudo com realizadores — as Conversas à Pala. Às vezes também fazíamos conversas entre nós, algumas mais públicas, outras nem tanto. A ideia era transcrever essas conversas e torná-las mais acessíveis, mais confortáveis até, para o formato escrito.

RVL: Sim, e especificamente, no livro, temos uma conversa com o Miguel Gomes, outra com o João Salaviza e outra com a Leonor Teles. Essas nunca foram publicadas nem transcritas antes.

LM: Depois, há ainda duas conversas muito especiais que fizemos entre nós, no formato mais "podcast". A primeira foi logo após um grande evento: a primeira projeção semi-pública de “Visita ou Memórias e Confissões”, do Manoel de Oliveira. Digo semi-pública porque foi um visionamento interno na Cinemateca. Tivemos acesso a ele e, em primeira mão, quisemos registar uma reação nossa ao filme. Era um filme póstumo — e não qualquer filme póstumo, mas um que o próprio Manoel de Oliveira deixou preparado com essa intenção, 40 anos antes. Um caso raro e muito especial na história do cinema.

A segunda conversa, para mim, é muito importante. Foi gravada na altura do lançamento do nosso primeiro livro, “O Cinema Não Morreu”, no Nimas. Transformámos isso num diálogo escrito, que acabou por ser mais sobre o futuro da cinefilia e o papel d’À Pala de Walsh no contexto da cinefilia digital. E é de certa medida premonitório, o que acho interessante, e que só me apercebi disso quando a reli. É um documento quase histórico, que só ganhei noção de como era importante quando tive essa relação com o texto, e não com o áudio.

Referem aquela conversa no final da sessão do filme de Maria de Medeiro?

RVL: Sim, o “Je t’aime… moi non plus: Artistes et critiques”. A última sessão do ciclo.

LM: O filme da Maria de Medeiros sobre a crítica… Aquilo que o Ricardo disse é importante: houve um grande trabalho de edição. Nós trabalhámos muito nas entrevistas. Claro que há sempre uma certa ditadura da atualidade. No entanto, ao contrário de outros órgãos de publicação, não nos sentimos completamente subjugados por ela. Esses órgãos têm outras obrigações, o que é compreensível, mas isso acaba por nos permitir decantar mais os textos, trabalhá-los para serem lidos com mais calma, com outro tempo.

Talvez um tempo que a imprensa escrita já não consegue dar. E nem falo da televisão, que praticamente deixou de agir no meio cultural, pelo menos na área do cinema, e muito menos no sentido que queremos desenvolver.

Acho que, apesar de tudo, houve um trabalho suplementar que foi importante. Isso dá ao livro um outro valor, também do ponto de vista literário. Além disso, há a questão da montagem do livro, que acho igualmente relevante. Mas, pronto, força.

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Luís Mendonça, Ricardo Vieira Lisboa e Carlos Natálio no Cinema Nimas, em debate após a projeção de "Je t’aime… moi non plus: Artistes et critiques" (Maria de Medeiros, 2004) / Foto.: Sabrina D. Marques

Bem, agora ia entrar na parte da edição, que o Luís já mencionou há pouco. Falávamos sobre a questão das entrevistas e de como depurar o texto. Há um lado mais formal, mas também um lado mais oral, para dar aquela autenticidade ao diálogo.

Então, queria perguntar-vos sobre esta edição de que já me descortinaram alguns detalhes: houve uma espécie de transformação dos textos? A intenção foi torná-los mais formais ou mantê-los com um tom mais oral, como autênticos diálogos?

RVL: Talvez possa começar dizendo o seguinte: acho que uma das coisas interessantes que aconteceu ao longo dos anos com as entrevistas no site é que, de algum modo, muitas vezes havia pessoas que nos liam mais por causa das entrevistas do que por causa da crítica do dia a dia — se quisermos colocar assim. Quer fosse pelas estreias, quer fosse por outros textos, as pessoas diziam: "Ah, as entrevistas do À Pala de Walsh". E porquê? Por duas razões.

Em primeiro lugar, porque nós fazíamos as entrevistas de uma maneira muito própria. Sempre odiámos aquelas entrevistas tradicionais de festivais, aquelas de 10 minutos. Aliás, acho que no livro talvez haja uma entrevista dessas, de 15 ou 20 minutos, mas uma exceção: com o Apichatpong.

De forma geral, as entrevistas mais curtas, aquelas que fomos obrigados a fazer, acabaram por não entrar.

LM: Deixa-me só fazer um parêntese, que acho que só comprova essa nossa convicção. Ou seja, por várias circunstâncias, e pelos constrangimentos do meio, fizemos algumas dessas entrevistas recentemente para escolher quais incluir no livro. Entrevistámos pessoas muito valiosas, que significam muito para nós, mas, muitas vezes, não as incluímos exatamente como estavam. Atribuo isso ao próprio modelo de entrevista.

O caso do Tobe Hooper é um exemplo, assim como o do Roger Corman. Não é que não os apreciemos — bem pelo contrário. Mas o modelo da entrevista, tal como nos foi imposto, resultou em textos que, a nosso ver, não estão à altura do que queríamos para o livro, do ponto de vista literário. Não estavam no nível crítico que nós desejávamos.

RVL: Muitas vezes, essas entrevistas são muito formatadas, onde o realizador dá a mesma resposta a dez pessoas na mesma tarde, não importa a pergunta que lhe façam. Ele já tem a resposta organizada na cabeça e vai repeti-la. São entrevistas que, no fundo, têm muito pouco valor de interesse. Claro, são importantes num dado momento, mas não são entrevistas para ficar, apenas preencher a lacuna da atualidade.

LM: Exato, essa é a grande urgência da imprensa tradicional. Mas não acho que essas entrevistas tenham um valor intemporal, não têm essa qualidade. Ou seja, se precisávamos de provar a nós mesmos que esse modelo está errado, o livro é a prova viva disso. Nós praticamente excluímos todas as entrevistas feitas dentro desse formato. Algumas foram feitas em regime de festival, mas foi um trabalho de resistência muito grande. Foi uma guerra.

RVL: E, de certa forma, as próprias entrevistas acabam por ser uma resposta a essas limitações. Mas o que estava a dizer é que, por um lado, havia a consciência de que uma entrevista implicava um trabalho de reflexão e pesquisa tão ou mais complexo que um ensaio. Do ponto de vista da preparação, não havia diferença. Íamos ver as obras dos realizadores, o mais completas possível, e organizávamos um pensamento crítico para fazer as perguntas. Acho que isso ressoou com um público, com leitores, e é por isso que as entrevistas têm essa característica.

Outra coisa que caracteriza as entrevistas do À Pala’ é que elas têm um tom mais reconhecível. Quando entrevistámos o Guerra da Mata, ele odiou a entrevista na altura em que foi publicada.

Porquê?

RVL: O Guerra da Mata dizia palavrões o tempo todo, tipo "merda", "caralho", "foda-se". E nós transcrevemos tudo isso, sem filtro, do começo ao fim. Ele estava à espera que houvesse uma espécie de "décolage" institucional, uma limpeza higiénica, digamos assim, mas a graça estava justamente aí. Depois, o Guerra da Mata disse-me: "Mas é a entrevista que os meus alunos do Conservatório mais gostam!" No começo, fiquei incomodado, mas agora gosto muito da entrevista. E isso aconteceu um pouco em geral, ou seja, sempre foi importante para nós que as entrevistas mantivessem o tom da pessoa e que fossem reconhecíveis na oralidade. Não queríamos que as palavras dos outros fossem filtradas pelo nosso discurso. A ideia era aproximar o máximo possível do discurso original. Ou seja, transformar em literário o discurso do outro, não filtrá-lo através da nossa sensibilidade.

A preparação, então, é uma espécie de fidelidade à voz do entrevistado. E isso fez com que, ao longo destes 12 anos, fôssemos mais reconhecidos pelas entrevistas do que pelas críticas. E olhe que nem fazemos tantas entrevistas assim. Às vezes fazemos uma a cada três meses, ou algo do género.

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Pedro Costa com Vitalina Varela e Ventura na rodagem de "Vitalina Varela" (2020) / Foto.: Vítor Carvalho/Optec Films

LM: Também não fizemos tantas quantas aquelas que gostaríamos, por causa desse modelo que está completamente implementado, quase como um dogma. Quase não conseguimos dobrar a nossa maneira de encarar a entrevista. Acabámos por estabelecer um padrão, uma maneira de fazer as coisas, e a partir daí ficámos presos a esse padrão. Claro, talvez seja um choque cultural sem solução. Talvez não seja insuportável, mas é algo que, por exemplo, os festivais ou outras instituições querem evitar. Eles querem algo mais próximo de um "dossiê de imprensa".

Mais a quantidade que a qualidade …

RVL: A última entrevista publicada na À Pala, com o Pedro Costa, foi uma entrevista de seis horas. Não é qualquer jornalista da imprensa que tem disponibilidade para fazer uma entrevista de seis horas e ainda por cima publicá-la.

LM: Respeitando esse tempo, claro.

RVL: Exato. Ou seja, ela foi editada e reduzida, mas ainda assim, continua muito extensa. Mas porquê o Pedro Costa quis falar por seis horas? A verdade é essa, ninguém o obrigou a isso. Ele quis falar por seis horas. Não fazia sentido, de repente, reduzir a entrevista a 5000 caracteres.

LM: Já cheguei a ter entrevistados que estavam em regimes desses, em que o tempo era ditado. E às vezes, até o próprio "agenda setting" das entrevistas era mais ou menos controlado, de forma subtil. Mas, sobretudo, a questão do tempo e o nome do órgão de imprensa. Porque era o nome do órgão que condicionava, por exemplo, a ordem das perguntas, e isso tinha a ver com essa necessidade de "frescura" do entrevistado. No início, quando me colocavam nessas situações de entrevistas rápidas, ficava incomodado. Por exemplo, o Tobe Hooper estava super cansado, terminei a entrevista e fiquei com a sensação de que havia uma hierarquia implícita ali. Isso aconteceu várias vezes. 

Outras vezes, nem conseguimos fazer as entrevistas que queríamos, porque o modelo não nos dava acesso. Quando conseguíamos entrevistar, a ditadura do tempo era implacável. Cheguei a ter uma situação em que um entrevistado estava super à vontade, numa conversa ótima, e já tinham se passado dez minutos, quando alguém do festival impôs o fim da entrevista. O entrevistado disse: "Porquê? Isso não faz sentido, a conversa está boa, e eu não tenho mais nada para fazer agora." Foi o auge de uma série de entrevistas feitas nesse regime, e depois disso nunca mais quis fazer entrevistas assim. Foi uma grande decepção.

E, por outro lado, há algo a considerar: nas entrevistas que fizemos, éramos nós que escolhíamos quem íamos entrevistar. No caso do Guerra da Mata, por exemplo, acho que é uma história importante, quase uma bandeira do site, porque aconteceu numa fase em que o site estava numa espécie de estado de graça. Foi no início, mas também com um certo grau de ingenuidade. O que era nosso, mas também do entrevistado, porque esse tom, digamos, blasé e descontraído... também dizia muito sobre o que o site representava na altura. Era algo novo, pouco ou nada reconhecido, e não levavam a gente muito a sério. Por isso, as pessoas, em certa medida, falavam mais à vontade. Diziam mais asneiras, estavam mais descontraídas. 

Alguns de nós já éramos reconhecíveis, mas não éramos levados a sério. Isso não era muito comum na blogosfera, pelo menos naquela época. Era mais típico de jornalistas tradicionais. E, no caso do Guerra da Mata, acho que o que torna a entrevista interessante não são só as asneiras, mas a franqueza dele. A honestidade é quase didática. Ele diz as coisas como elas são, de forma muito frontal, muito aberta. Quase "cândida", no sentido anglófono do termo. Tem um efeito de "fly on the wall", algo que acho muito interessante. E agora, vejo que isso é previsível. Hoje em dia, já não conseguiríamos mais ter uma entrevista como a do Guerra da Mata.

Pretendem reparar essa ingenuidade inicial?

LM: Já não há essa espontaneidade de parte a parte, já não existe mais...

RVL: Pois, o meio se institucionalizou, com coisas boas e coisas más. E um exemplo disso é o Pedro Costa. Ele nunca daria uma entrevista de seis horas para um blog qualquer que ele não conhecia. Mas deu à À Pala de Walsh.

LM: E, por outro lado, o Guerra da Mata, hoje em dia, já não diria as coisas da maneira que dizia antes. Enfim, ganham-se coisas, perdem-se coisas.

RVL: Isso. Nos primeiros anos do site, havia um lado mais combativo e provocador, algo até intencional. Foi um período que durou uns três ou quatro anos, de forma consciente e até militante.

LM: Não vou mais longe. Foi exatamente nessa época que tivemos um dos primeiros grandes dissensos entre nós, e tudo por causa de uma entrevista. E foi gerado exatamente pelas questões que estamos a falar agora. Foi esse lado completamente escancarado de um entrevistado, que foi contra a nossa própria responsabilidade editorial. Porque ao mesmo tempo que queríamos ser irreverentes, também queríamos ser levados a sério e ter uma responsabilidade.

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Fernando Guerreiro / Foto.: Mariana Castro

RVL: Exato, não queríamos publicar acusações infundadas só porque alguém as disse. Não era para ficarmos a fazer "lavagem de roupa suja" ou algo do tipo.

LM: Sim, era uma questão importante, do ponto de vista da nossa própria orientação editorial. Não era só nas entrevistas, mas também nas reportagens, e até nos textos críticos. Queríamos saber: será que devemos entrar por esse caminho ou não? E foi uma entrevista que gerou um debate entre nós. Foi um momento que provocou um grande confronto metafórico. 

RVL: Uma grande “batatada” metafórica [risos], com todos os quatro fundadores e editores da primeira fase do site completamente em desacordo sobre essa entrevista.

Vocês já estão a falar disso, sobre o que o site se tornou, porém vou adiar a questão Sobre essa “pegada walshiana”, mas, continuando nas no livro, queria que me falassem um pouco sobre o trabalho fotográfico da Mariana Castro, que vai estar presente. Aliás, comparando com o primeiro livro, este é um livro “ilustrado”, não é?

LM: Sim, apesar do primeiro ter um fotograma que estava num encarte, que gosto muito de referir como uma espécie de thumbnail. Foi uma das várias fotografias que a Mariana tirou quando foi contigo ao ANIM. Foi uma reportagem da ação de intervenção, e isso foi muito valioso.

As fotografias da Mariana eram outra marca diferenciadora, por acaso. Um elemento muito importante que marcava a diferença em relação às outras entrevistas feitas noutros sites, e noutros jornais. E, este livro vai ter um encarte com várias fotografias. São retratos. Um caderno.

De todos os entrevistados?

RVL: Não, foram apenas oito. Houve uma seleção …

LM: Na realidade, nem sempre é possível. Nem sempre dá. Porque há uma lógica complementar, mas não é uma lógica estritamente de ilustração. 

RVL: Até porque a Mariana intervinha nas entrevistas e fazia perguntas também. Ou complementava, ou dava uma opinião. E, portanto, ela não era só uma fotógrafa que estava ali para tirar uma fotografia. Ela era um membro ativo do site. Como figura pensante.

LM: E ela tem... Da mesma maneira que nós temos uma maneira de entrevistar. Foi um factor de união e de unidade muito importante. Porque isso é das coisas mais transversais no site. Todo o site é um coletivo, não há oposições oficiais. Ninguém assume uma posição oficial em nome do site.

RVL: Nem posições oficiais, nem oposições oficiais. [risos]

LM: É importante dizer isso. É um coletivo. Mas depois há ali uma espécie de argamassa estilística autoral e acho que estava bem presente nas entrevistas. Sempre achei. Desde a primeira edição do primeiro livro, achava que as entrevistas eram um imprint muito importante. Era aquilo que nos definia quase como um todo.

Ou seja, o site não tem um livro de estilo?

LM: Temos sim um livro de estilo. A escrever um livro de estilo... Não sei se a culpa foi minha ou do João Lameira, mas estou a falar de duas pessoas que são formadas em Comunicação Social, e tendo esta ideia de que o verdadeiro estudante de Comunicação Social, mesmo que já soubesse que era démodé, tinha de estudar o livro de estilo do Público como se fosse uma espécie de Bíblia. Era assim na minha faculdade.

LM: É que eu sei que, depois de ter lido, "em casa de ferreiro, espeto de pau", se calhar o livro de estilo do Público não era uma bíblia dentro do próprio Público, mas para mim era uma bíblia. Como estudante de Comunicação Social no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, foi algo estruturante. O João é da Católica de Lisboa, mas, de qualquer maneira, para mim, o livro era essencial. Isto porque, naquela altura, estava a pensar na transição da blogosfera para um site — para algo que fosse uma verdadeira "empresa". Empresa não no sentido comercial, mas enquanto coletivo de comunicação social que tivesse uma face institucional. Para ser levada a sério, achava que tinha de haver um livro de estilo.

Nós temos o nosso livro de estilo, que usamos até hoje. Ele é precioso e estruturante. Mas, claro, uma coisa é ter a receita, e outra é fazer o bolo. E o bolo, quando o fazemos, tem de ter uma marca distintiva. Tem de ser algo que se reconheça como vindo daquela pastelaria. É aí que acho que as entrevistas entram como uma espécie de assinatura do site. Se eu tivesse de dar um "bolo" a alguém que não conhece À Pala de Walsh para provar, iria à secção de entrevistas, escolhia algumas e dizia: "Pronto, o site é isto."

Isso tem a ver com a preparação que colocamos, mas também com um certo tom. Misturamos um sentido de humor muito próprio com uma preparação rigorosa, e isso nem sempre é fácil de conciliar. Mas é essa mistura que dá identidade ao site e ao que fazemos.

RVL: Já agora, convém dizer algo sobre as fotografias da Mariana. Ela é uma fotógrafa, e não só uma fotógrafa, mas uma fotógrafa importante, com uma carreira própria significativa. O trabalho que ela fazia connosco era uma enorme oferta, como aliás foi todo o site — À Pala’ é isso mesmo, está no nome. Todos nós estávamos "à pala". [risos]

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Foto.: Mariana Castro

O que a Mariana fez foi não só acompanhar entrevistas, mas também colaborar noutras iniciativas, como uma série de visitas a cinemas de Lisboa com o Tiago Baptista, resultando numa extraordinária coleção de fotografias. Ela também fez reportagens, mas os seus retratos de realizadores — e de outras pessoas — foram especialmente marcantes. Hoje, muitas dessas fotografias tornaram-se as imagens oficiais que certos realizadores utilizam para se apresentarem ao mundo.

LM: É verdade que temos esta dualidade: entrevistamos realizadores, mas também professores, críticos, teóricos, ensaístas — toda uma diversidade que quisemos trazer para o livro. Está bem representada lá. Alguns desses críticos também foram fotografados, à semelhança dos realizadores. A Mariana tinha o mesmo interesse em fotografar, por exemplo, o Fernando Guerreiro, como teria em fotografar um realizador, e, de facto, alguns desses retratos passaram a ser usados como imagens profissionais. Lembro-me de críticos, em particular, que agora utilizam as fotografias da Mariana como os seus retratos oficiais. O mesmo acontece com realizadores; é comum vermos essas imagens circularem noutros contextos, quase como se fossem os seus retratos de marca.

RVL: Complementando o que o Luís disse, o livro está organizado em quatro partes. A primeira reúne entrevistas com realizadores estrangeiros, essencialmente “fazedores de cinema”. A segunda parte foca-se no contexto português, onde temos realizadores, mas também técnicos, o que torna esta secção mais variada. A terceira parte é dedicada exclusivamente a críticos, pensadores e ensaístas ligados ao cinema. Finalmente, a quarta parte, que é da responsabilidade do Luís, embora com alguma ajuda nossa, é uma espécie de dicionário temático. É um trabalho importante e muito elaborado.

LM: Sim, nessa secção final temos temas como argumento, censura, cinefilia, cinemateca — depois damos saltos para internet, película, personagens, programação, queer, sala de cinema, som, terror, trabalho de atriz e ator, TV, e por aí fora.

Em cada tema, incluímos passagens retiradas de entrevistas com críticos e realizadores cujos textos completos não conseguimos ou não quisemos publicar integralmente no livro. Foi a maneira que encontramos para dar visibilidade a esses conteúdos, oferecendo um mapeamento mais conceptual das preocupações e interesses do site. Essa secção ajuda a refletir o espírito e as inquietações que guiaram À Pala de Walsh ao longo dos anos.

Os suportes físicos, que tem sido uma das bandeiras do À Pala de Walsh, obviamente que tem que estar representada nesse dicionário?

LM: Exatamente, temos temas que vão da película à internet, passando por cinefilia e crítica, mas são questões que nos preocupam e que acabam por refletir inquietações transversais.

RVL: É muito interessante perceber isso. Quando juntamos todas as entrevistas num único documento e começámos a lê-las consecutivamente, notámos que havia recorrências de perguntas ao longo dos anos. São questões ou obsessões que reaparecem em entrevistas feitas com um intervalo de cinco anos, mas que partem das mesmas inquietações. O resultado é uma espécie de conversa contínua, um diálogo que atravessa o tempo, mesmo com respostas de pessoas diferentes. Isso deu forma ao dicionário temático do livro, mas mesmo antes disso, essas conexões já estavam presentes.

E há algo fascinante: às vezes as entrevistas parecem contradizer-se ou dialogar umas com as outras de maneira espontânea. Por exemplo, o Alberto Serra pode dizer algo completamente absurdo que parece gozar com o que o Kechiche defendeu numa entrevista imediatamente anterior. O Kechiche, por exemplo, fala apaixonadamente sobre realismo, e o Serra, logo a seguir, declara que "o realismo é uma merda". Esse contraste cria um efeito dinâmico. Mais do que uma simples coleção de entrevistas, o livro é quase uma discussão contínua sobre o cinema contemporâneo, mediada por uma diversidade de vozes que respondem, mesmo que involuntariamente, umas às outras.

LM: Sim, isso também reflete a força documental do livro. É como se fosse uma caixa de ressonância de ideias e inquietações de mais de uma década. A pluralidade de perspectivas dialoga com as questões que eram centrais para nós, os entrevistadores, mas também para o cinema do período.

RVL: É verdade. E agora, relendo o material, notamos como algumas coisas já ficaram datadas. Por exemplo, o fascínio que tínhamos pelos ensaios audiovisuais e pelas possibilidades da internet. Na época, víamos isso como algo revolucionário, mas hoje esses elementos são dados adquiridos ou até ultrapassados. A onda dos vídeo-ensaios, por exemplo, meio que se esgotou. Figuras ou fenómenos que nos fascinavam — como Kevin B. Lee ou plataformas específicas de vídeo-ensaio — já parecem pertencer a um passado distante, quando estávamos a capturar um momento vibrante, e agora parte disso já soa como uma memória histórica.

Essas obsessões também estão definidas nos autores das entrevistas?

LM: Sim, isso também é possível. Ou seja, apesar da argamassa que constitui as entrevistas, a rubrica, as entrevistas, há pessoas aqui, existem estilos muito vincados, que são muito diferentes uns dos outros. 

O Francisco Valente tem um estilo de fazer entrevistas, como também tem de escrita. Na realidade, não é muito divergente a esse nível, que eu acho que é muito próprio e muito dele. Se calhar, a Inês também, só pensando em pessoas que escrevem para jornais. E que... mas o caso da Inês [Lourenço] começou com À Pala de Walsh, que também tem aqui uma entrevista ao Jean Douchet. Acho que nós olhamos para os títulos e eles estão lá. Portanto, há uma marca de cada um. No tipo de questões que coloca, na maneira como as coloca, torna-se evidente e ao mesmo tempo, sinto uma grande unidade.

Por exemplo, isso é muito menos conseguido no livro “O Cinema Não Morreu. O livro são textos, a diferença salta à vista, porque a cada texto nota-se uma diferença gigantesca que às vezes cria uma espécie de... efeito contraproducente para a leitura, porque aquilo afunda-se num registo mais académico e depois, de repente, recupera alguma genica num texto, num estilo mais humorístico. Outras vezes, pronto … e essas velocidades todas alternantes no “O Cinema Não Morreu”.

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Maria João Madeira, Luís Mendonça, Carlos Natálio e Ricardo Vieira Lisboa na apresentação de "O Cinema Não Morreu: Crítica e Cinefilia À pala de Walsh", na Cinemateca / Livraria Linha de Sombra [22 de Dezembro de 2017]

Nós tivemos críticas positivas, bastante positivas ao livro, mas houve uma menos positiva, que tinha alguma razão - aquilo é um bocado um pára-arranca na leitura que não é muito producente.

RVL: Diria que “O Cinema Não Morreu" não é um livro que dá gosto de ler do início ao fim.

Julgo ser mais um livro de consulta …

RVL: Exacto, um livro mais de consulta. Mas este não é. Os quatro capítulos lêem se como uma espécie de radiografia de um momento, de uma década, uma biografia de uma década.

LM: Concordo plenamente.

LER PARTE 2

Billy Woodberry: "Mário estava consciente de que provavelmente nunca escreveria uma autobiografia"

Hugo Gomes, 27.11.24

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Mário Pinto de Andrade / "Mário" (Billy Woodberry, 2024)

Mário Pinto de Andrade (1928 - 1990): poeta, ensaísta, político e fundador do MPLA [Movimento Popular pela Libertação de Angola], uma figura de pegada incisiva no século XX, que em Portugal pouco (ou nada) o referimos pelo seu nome. Porquê? Razões ainda por apurar, apesar das teorias, das especulações ou das certezas captadas numa sociedade de traumas e histórias confinadas a alçapões, contudo, é através da curiosidade mórbida de um americano que este homem das mil artes e das mil línguas se posiciona em frente ao holofote. 

Mário”, simplesmente, é a mais recente obra de Billy Woodberry - uma das peças centrais do movimento L.A. Rebellion (o qual fizeram parte Charles Burnett, Zeinabu Irene Davis ou Larry Clark) - que explora o seu percurso e o pensamento que influenciou os mais diferentes estandartes culturais pan-africanos, conduzindo-se por imagens e filmagens de arquivo, colheita de trabalhos seus e um incessante encontro às suas demandas politizadas, dos amigos a inimigos, família a amores, até dar de caras com a morte. A vida de um homem, sem hagiografias, mas com a dignidade declarada. No final da sessão, e mesmo não entendendo o seu apagamento, um “bichinho carpinteiro” e curioso anseia por mais e mais sobre Mário Pinto de Andrade. Woodberry apenas o despertou.

O Cinematograficamente Falando … falou com o realizador sobre Mário’, o filme, o homem, a sua (não)presença na memória de Portugal e ainda sobre fotografia e as suas possibilidades de cinema.    

Começo por lhe questionar sobre qual foi o seu primeiro contacto com o trabalho de Mário Pinto de Andrade?

O primeiro contacto foi, na verdade, através de um artigo que o próprio escreveu, publicado em inglês em Havana [Cuba]. Era um texto sobre cultura e movimentos de libertação nacional e nele, sobre a importância do Brasil e da cultura brasileira, particularmente a literatura, para um país como Angola, ou outro canto na África. Destacava como essa cultura literária ajudava a entender e a refletir sobre a modernidade, oferecendo um exemplo que, de certa forma, lhes parecia próximo.

A importância da literatura brasileira era significativa porque apresentava protagonistas descendentes de africanos, apesar de ter mudado ao longo do tempo, este universo literário sempre contou com escritores críticos e relevantes para o pensamento, eram de facto uma inspiração. Na altura em que li o artigo, já me encontrava profundamente fascinado e envolvido com o movimento brasileiro chamado Cinema Novo, o que me conduziu a descobrir a literatura e a cultura do Brasil. Esse contacto obteve impacto para mim porque funcionava como um exemplo alternativo, uma outra possibilidade. O Brasil, com uma população negra notada, mostrava nos seus filmes uma forma diferente, mais emocionante e interessante, de fazer cinema. Ver aqueles protagonistas negros no ecrã foi muito marcante e emocionante.

A partir daí, comecei a ler mais livros, conheci pessoas e mergulhei nos romances. Ao mesmo tempo, tive também a oportunidade de aprender mais sobre a história em cursos académicos. Quando ele [Pinto de Andrade] fez essa ligação entre a cultura brasileira e os movimentos de libertação, coincidiu com o que aquilo que estava a estudar e a refletir. Isso foi fascinante. A sua presença ativa em muitos movimentos de libertação nacional na África lusófona é indiscutível, estes surgiram após a primeira onda de independências africanas nos anos 50 e 60 e traçavam um caminho diferente, com uma consciência e uma reflexão sobre o que tinha acontecido noutras partes de África. Aprenderam com essas experiências e pareciam desenhar um percurso que integrava as lições do passado.

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Billy Woodberry

Essa abordagem foi crucial para mim e para a minha geração, que pensava sobre África de forma intensa. Mas o desafio era: qual África estávamos a imaginar? Seria a África do mito? A África lendária do período pré-colonial? Ou as versões que conhecíamos dessa África? No meu caso, interessava-me sobretudo o presente e o que estava a acontecer, embora também tivesse curiosidade pela história.

África não era algo alheio ao nosso interesse. Inspirávamo-nos em exemplos para criar um novo tipo de cinema. Nessa procura, tivemos referências como o cineasta senegalês Ousmane Sembène, que porque mantinha uma relação próxima com os militantes e ativistas das antigas colónias portuguesas em África. No filme, vemos fotos de Mário em vários lugares — na China, em Roma —, sempre ao lado dessas figuras, incluindo Sembène. Essa ligação também era muito significativa para se entender a sua aura política e artística.

Além disso, conhecíamos os filmes de Sarah Maldoror, em especial “Sambizanga”, tendo causado um grande impacto quando foi lançado em 1972. Foi uma obra inspiradora. Levou-nos a ler a tradução do livro que serviu de base, o que só reforçou essa influência inicial.

Esse foi o meu primeiro contacto com tudo isso, o tal ponto de partida.

De forma semelhante, o uso da história do Mário permite contar uma história do pensamento em África, dos movimentos, movimentos artísticos e políticos. Então, gostaria de ligar isto a outra pergunta, talvez usando as suas palavras, porque ao ver o seu filme, perguntei-me: por que é que em Portugal não falamos muito (ou quase nada) sobre o Mário? E, como se vê no seu filme, ele é uma figura presente nesses movimentos políticos e culturais.

Sim, concordo plenamente. De facto, é curioso debruçar esse “esquecimento”. Talvez tenha a ver com a forma como o conhecimento sobre este período, sobre este aspecto da história de Portugal e do colonialismo, é transmitido. Pode ser uma questão relacionada com a maneira como a história é contada. É possível que existam lacunas, embora haja pessoas em Portugal com um conhecimento profundo sobre o tema e sobre Mário. No entanto, talvez não sejam assim tantas, e talvez este assunto não esteja no centro do currículo escolar ou das preocupações atuais, por várias razões. Afinal, trata-se de um passado que remonta a 50, 70 anos ou mais, e isso pode contribuir para esse afastamento.

Mas devo dizer que muito do material que encontrei e usei no filme está em Portugal. Por exemplo, existe uma entrevista feita pela RTP em 1985 ou 1986, conduzida por Diana Andringa, que é uma fonte inestimável, uma longa entrevista em que Mário aborda muitos aspectos da sua vida e do seu pensamento. Além disso, há uma entrevista em livro com Michel Laban, um académico literário francês, publicada após a morte de Mário. É um documento extenso e detalhado que também foi muito importante.

Outro exemplo: encontrei cerca de 20 horas de material sobre a Guerra Colonial. Esse arquivo é valioso porque foi produzido na RTP e inclui entrevistas com pessoas de todos os lados do conflito — tanto portugueses como membros dos vários movimentos de libertação. Para Angola, por exemplo, encontramos entrevistas com representantes dos três principais movimentos de libertação. Também há material sobre Moçambique, o PAIGC [Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde] e outros. Este arquivo está organizado por períodos e por marcos importantes na evolução da guerra, desde o início até à cessação do conflito. A certa altura, esse material foi distribuído como parte de uma coleção ligada a um dos jornais, com 14 volumes ou algo do género, que podiam ser colecionados.

mario (1).jpegMário Pinto de Andrade / "Mário" (Billy Woodberry, 2024)

Além disso, os arquivos de Mário estão em Portugal. O mesmo acontece com os arquivos de Amílcar Cabral, de Marcelino dos Santos e de outras figuras importantes, que estão preservados em instituições como a Fundação Mário Soares e Maria Barroso.

Nos museus históricos, também existe muita informação, se não diretamente sobre este período específico, pelo menos sobre a história do Ultramar como um todo. Portanto, o material existe e está acessível. O que pode estar a faltar é o seu destaque no imaginário coletivo ou no debate público atual.

E acredita que essa distância dos portugueses aos arquivos e à sua história colonial, detém algo de político?

Talvez haja um componente político nessa questão. Tenho ouvido algumas coisas e, claro, devo ser cuidadoso, porque sou estrangeiro e tive a sorte de passar a viver aqui. Mas ouvi pessoas dizerem que isso pode estar ligado a um trauma — termo que, reconheço, é muitas vezes usado em demasia. Pode ser o trauma persistente do fim da era colonial e da perda associada a esse período. Para alguns, foi uma perda; para outros, um ganho, e talvez isso ainda não tenha sido totalmente processado ou amplamente discutido e conhecido. Pode ser essa a razão, mas não tenho certeza.

Nos Estados Unidos, por exemplo, não sei se seria muito diferente. Temos muitos documentários e obras audiovisuais sobre o Vietname. Há cerca de cinco anos, foi feito um grande documentário sobre o tema. Existe um certo distanciamento no tempo, mas também não sei se estes assuntos são fáceis de divulgar de forma ampla, há sempre disputas sobre como interpretar essas questões. Nos Estados Unidos, frequentemente esquecemos que há uma espécie de amnésia voluntária em relação a certos tópicos - aqui, não posso dizer que sei como as coisas são, mas já ouvi pessoas comentarem: “Ah, isso não é ensinado nas escolas.

A educação, claro, é influenciada por diferentes correntes de pensamento que tentam definir o que é mais importante ensinar aos cidadãos, às crianças, aos jovens no ensino secundário e superior. No nível universitário, há investigadores excelentes nesta área. Há também jornalistas e figuras como Diana Andringa, que dedicaram a vida a escrever, pensar e partilhar reflexões sobre esses temas. Acho que Portugal tem um serviço público de televisão notável, o Canal 2 [RTP 2], por exemplo, é um dos melhores do mundo no que diz respeito à oferta cultural. Fazem um grande esforço para trazer questões importantes ao público e estimular a reflexão.

Talvez, no passado, tenha havido uma necessidade inicial de debater sobre esses temas, mas com o tempo isso foi desaparecendo, à medida que surgiam novos desafios. Construir uma sociedade diferente, integrar-se na União Europeia, fomentar a democracia, expandir o acesso à educação — tudo isso traz novas prioridades.

Não digo isto de forma leviana, mas devemos sempre questionar porquê que as pessoas não sabem? Talvez, no futuro, as populações afrodescendentes em Portugal sintam mais curiosidade sobre estas histórias e figuras como Mário e queiram aprender e partilhar esse conhecimento. Isso pode ser uma fonte de renovação, um caminho para recuperar e valorizar essa memória.

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Mário Pinto de Andrade e Sarah Maldoror / "Mário" (Billy Woodberry, 2024)

Demorou quatro anos para produzir este filme. Gostaria que me falasse sobre a angariação de material, a sua seleção, edição e a construção de uma estrutura narrativa que respeitasse o pensamento e vida de Mário?

Tive a sorte de contar com a colaboração de Teresa Gusmão, minha colega e produtora associada do filme, que esteve ao meu lado praticamente durante todo o processo. Desde o início, quando começámos a reunir o material, até às etapas de pesquisa contínua, esteve sempre presente. Queríamos conhecer profundamente os arquivos disponíveis, entender o seu conteúdo. Com o tempo, começámos a estruturar uma ideia, um esboço de guião, uma linha narrativa: sabíamos o ponto de partida e o ponto final — os 60 anos da vida de Mário.

A partir daí, precisávamos aprender o máximo possível sobre a cronologia dos acontecimentos e identificar os eventos e elementos significativos que poderíamos incluir no filme. Quando chegou a fase de edição, já tínhamos reunido uma quantidade imensa de material de várias fontes: material de arquivo, gravações, documentos relacionados com a história de Mário, as suas conexões, viagens, envolvimento político e cultural.

Entre os materiais descobertos, estavam gravações de entrevistas que ele fez ao longo dos anos. Uma delas, de 1982, foi conduzida pela socióloga francesa Christine Messiant, em Paris. Outra, do final dos anos 80, foi realizada por Michel Laban, que resultou no livro-entrevista publicado postumamente. E, claro, a entrevista feita por Diana Andringa, que sabíamos existir mas que, inicialmente, apenas conhecíamos através de algumas imagens transmitidas na televisão.

Desde o início, pretendia que a voz de Mário estivesse presente no filme. Por isso, focámo-nos nestas três fontes. Tanto Christine Messiant como Michel Laban já tinham falecido, e os seus arquivos foram transferidos para a Fundação Mário Soares, esperando-se, eventualmente, que fossem para Angola. Quando soubemos que estavam na Fundação, tivemos de aguardar autorização para aceder às gravações e fazer cópias digitais, o que conseguimos. Infelizmente, outra gravação feita nos Estados Unidos nunca nos foi disponibilizada. Quanto à entrevista de Diana Andringa, conseguimos acesso ao material completo apenas mais tarde, mas foi extremamente valioso.

Cada uma dessas entrevistas trouxe contribuições únicas. A de Christine Messiant, por exemplo, concentra-se sobretudo nas origens políticas do MPLA, cobrindo o período até 1962. Já a de Michel Laban abrange um arco temporal maior, refletindo sobre a vida familiar de Mário — a relação com os pais, a casa onde cresceu —, mas também sobre o seu desenvolvimento literário, intelectual e político, além das dinâmicas da sua geração em Angola e em Lisboa. Esta entrevista é notável porque Mário estava consciente de que provavelmente nunca escreveria uma autobiografia, por isso, preparou-se meticulosamente para as conversas, com o objetivo de ser-se preciso e rigoroso, oferecendo um relato considerado dos eventos e do seu significado.

Ao integrar essas fontes com o material que Diana Andringa produziu, começámos a delinear a estrutura do filme. No entanto, mesmo com tantas informações, não era possível incluir tudo. Tivemos de tomar decisões cuidadosas sobre o que contar, o que omitir e como articular os eventos para que fizessem sentido dentro do conjunto.

Trabalhei com o editor Luís Nunes, com quem já colaborei em quatro filmes anteriores. Ele é fantástico e tem um conhecimento profundo dos diversos arquivos, pois já trabalhou com realizadores como Manuel Mozos e produziu filmes sobre figuras como João Bénard da Costa. O trabalho com Luís foi essencial para reconstruirmos a narrativa e criarmos uma obra coesa. No final, foi um processo de intenso pensamento, pesquisa e escolhas, mas acredito que conseguimos transmitir o essencial da história de Mário e da sua relevância. Já agora, conhece o trabalho de Manuel Mozos?

mario (3).jpegMário Pinto de Andrade / "Mário" (Billy Woodberry, 2024)

Sim, conheço e, principalmente, o filme que refere: “Outros Amarão as Coisas Que Eu Amei”.

Voltando … Luís tem sido incrivelmente útil, tem um olhar muito apurado e uma experiência vasta com arquivos.

Durante o processo, surgiam momentos em que identificávamos algo que queríamos incluir. Por exemplo, havia uma passagem em que Mário viajava de comboio para ver a mãe. Queria mostrar essa viagem, mas só tínhamos uma única fotografia do comboio — e era uma imagem miserável. Sabíamos que precisávamos encontrar algo melhor, algo que captasse de forma mais eficaz essa ideia no cinema. E foi assim ao longo de todo o trabalho: procurar o melhor material e pensar na melhor forma de transmitir uma ideia de forma cinematográfica.

Foi um processo que exigiu muito tempo e paciência. Houve períodos em que não podíamos filmar ou em que ainda não tínhamos o financiamento necessário para avançar em certas partes. Então, usávamos esse tempo para aprofundar ou refinar a pesquisa, sempre tentando descobrir algo que pudesse enriquecer o filme. Foi um esforço contínuo, mas nunca cansativo para mim. Pelo contrário, acho fascinante.

O desafio maior foi transformar todo esse material e essas ideias em algo coerente, algo que fizesse sentido enquanto filme, como tal exigiu muita dedicação, mas também foi extremamente recompensador.

Vejo que trabalha muitas vezes com arquivos e fotografias, e isso tem-se verificado cada vez mais nos seus últimos projetos. Diria mesmo que tem sido uma abordagem muito distante em relação, por exemplo, ao seu primeiro filme, a ficção “Bless Their Little Hearts” (1983). Sente-se fascinado pelas possibilidades que uma fotografia pode oferecer ao cinema?

Talvez seja porque comecei a explorar isso mais tarde. No início, fazia algumas fotografias e slideshows, mas não pensava exatamente em cinema. Talvez estivesse lá no meu horizonte, mas ainda não estava a concretizá-lo, era mais uma questão de ter um texto, normalmente não meu, sobre um tema histórico, e de forma obsessiva procurava fotografias que, de alguma maneira, dialogassem com esse texto.  

Foi só depois, ao falar sobre esses começos com alguém há cerca de um mês, que percebi que as pessoas viam nisso algo cinematográfico. Diziam que tinha a ver com a forma como as imagens trabalhavam umas com as outras. Esse processo aconteceu antes de entrar na escola de cinema, mas não o tinha reconhecido como tal na altura.  

Quando comecei a trabalhar com imagens em movimento, a fazer ficção e coisas do género, não pensava em fotografias, nem em imagens individuais. Essa relação com a fotografia veio mais tarde, sobretudo quando comecei a ensinar. Dei aulas num programa de fotografia numa escola de arte, e isso ajudou-me a aprender muito mais sobre fotografia, graças a fotógrafos, escritores e até aos meus próprios alunos. Foi aí que comecei a valorizar realmente a fotografia.  

Também fui influenciado por cineastas como Hartmut Bitomsky e fotógrafos e escritores como Allan Sekula, o qual fizeram-me pensar de forma mais aprofundada sobre a fotografia, e talvez isso tenha aberto mais possibilidades para mim.  

No meu filme “And When I Die I Won’t Stay Dead” (2015, sobre o poeta e ativista Bob Kaufman), não havia tantas imagens em movimento do tema, foi um processo de aprendizagem. Sabia que, nos anos 1950 em São Francisco, havia muitos fotógrafos talentosos, e isso também se devia ao facto de, naquela época, ser mais provável alguém ter uma câmara fotográfica SLR [single-lens reflex] do que uma câmara de filmar.  

Felizmente, encontrei imagens de filmes, mas as fotografias ainda eram predominantes. Conhecia um livro de fotografias publicado por um deles, Jerry Stoll, chamado “I Am a Lover, que é um dos melhores registos visuais do que era viver no bairro boémio de North Beach, São Francisco, naquela época. Trabalhei com essas imagens e outras de alguns fotógrafos importantes, o que me inclinou a usar fotografias de forma mais aberta e reflexiva nos meus filmes.  

p20189702_i_h10_aa.jpgAnd When I Die I Won’t Stay Dead (Billy Woodberry, 2015)

Depois de “And When I Die I Won’t Stay Dead”, eu e Luís fizemos uma curta de 11 ou 12 minutos chamada "Marseille après la guerre”, composta apenas por fotografias. Foi durante a pesquisa para “Mário” que me deparei com a coleção de [José] Veloso de Castro, um fotógrafo militar. Essa descoberta levou-nos a criar uma história a partir das suas imagens de África.  

Este interesse por fotografias não surgiu do nada. Há cineastas que admiro profundamente, como Santiago Álvarez, documentarista cubano. Ele dizia: "Dê-me duas fotografias e um pouco de música, e consigo emocionar-te; consigo fazer um filme." Embora não faça exatamente como ele, a confiança dele em usar fotos inspirou-me. Outro grande exemplo é obviamente Chris Marker, que também começou como fotógrafo. 

Marker dizia que não se tornava fotógrafo porque William Klein era muito melhor. Mesmo assim, usava fotografias nos seus filmes e refletia sobre o que uma fotografia pode ser, em trabalhos como “Si j'avais quatre dromadaires” (“Se Eu Tivesse Quatro Dromedários”, 1966). A sua abordagem ao meio e o seu próprio trabalho fotográfico são algo que admiro muito.  

Mas essa fascinação pela imagem fixa, pelos arquivos e por essa realidade, tem também fascínio na vaga de fotógrafos amadores da América e como a sua transição para o cinema, um cinema underground americano ou alternativo à fantasia vendida pela indústria hollywoodesca?

Sim, tem a ver com isso também. Refere-se a Helen Levitt e outros? Sim, porque os filmes e a fotografia dela foram realmente importantes para mim. Gostava muito do trabalho dela. Dediquei o meu primeiro filme a ela porque o modo como ela trabalhava era livre, interessante e original, especialmente no contexto de East Harlem.

Ela conseguiu fazer filmes dentro de uma indústria que já tinha regras muito estabelecidas. Além disso, colaborou com o escritor James Agee, e juntos fizeram outro filme que é um dos meus favoritos, chamado “In the Street” (1948). A sensibilidade que ela demonstrava na imagem fixa continuava presente quando passou a trabalhar com imagens em movimento.

Ainda que tenha mudado de plataforma artística, ela manteve aquele olhar aguçado para a observação, para os detalhes e para o movimento. Mas o foco nunca era abstrato; estava sempre nas pessoas, nas suas vidas.

Essas qualidades, essa atenção ao humano, ao particular, impressionaram-me profundamente e foram uma inspiração.

E sobre esses fotógrafos, muitas vezes captavam as classes, a classe trabalhadora, as vozes mais silenciosas que não tinham lugar no cinema de massas. Essa foi, como disse, uma das características do movimento LA Rebellion do qual fez parte: o de dar voz aos invisíveis no cinema mainstream?

Sim, exatamente. Talvez como muitos dos movimentos de novo cinema, especialmente o novo cinema latino-americano, que era profundamente radical e convencido da necessidade de tornar visíveis, no cinema e na cultura, as pessoas, as classes populares: como vivem, o que fazem, como se expressam, os desafios que enfrentam. Era uma forma de contrariar a tendência de simplesmente usar o cinema como escapismo.

Sob a influência dessas pessoas e encorajados pelo exemplo delas, tentámos fazer algo semelhante, e havia também uma necessidade, quase uma compulsão: uma vez que tivéssemos acesso ao meio, o que faríamos com isso? Imitaríamos os outros? Seríamos apenas entertainments? Não. Pensávamos que o cinema podia ser mais do que isso. Outros temas e outras subjetividades poderiam ser tão envolventes e interessantes quanto aquelas histórias banais com personagens fictícios, estrelas e narrativas pré-fabricadas.

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"Boys with cigarettes", Nova Iorque / Foto.: Helen Levitt (1940)

Acho que foi assim que esse pensamento surgiu. Havia uma afinidade com as pessoas que mencionei, que se tornaram pilares, referências. Sabíamos que outras pessoas já tinham feito isso, e que era possível fazê-lo, se quiséssemos.

Felizmente, vi essas obras na escola e procurei aprofundá-las. Tinha amigos que também gostavam muito e as consideravam como referência. É quase uma tradição, como Chaplin, que também tinha essa preocupação com os temas humanos e sociais.

Visto chegou “Mário” por via de outras obras, pergunto-lhe como desfecho da nossa conversa, se no seu trabalho e pesquisa para este filme deparou-se com a ideia do seu próximo projeto?

Não tenho certeza. Tenho algumas ideias, algumas ‘coisas’ que gostaria de fazer, mas nada de concreto, como também tenho receio de embarcar em algo só porque preciso fazer alguma coisa. Não sinto que ainda tenha surgido o projeto certo, algo que me convence de forma definitiva. Mas espero continuar a procurar.

Falando com Sandra Faleiro: "Inspiro-me em muita coisa, tudo à minha volta me inspira"

Hugo Gomes, 07.11.24

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Estamos no Ar, primeira incursão de Diogo Costa Amarante (finalmente!) ao formato de longa-metragem, é uma comédia sobre solidões e aparentes soluções a esse mal comum numa reunião de três personagens, de diferentes gerações, mas pertencentes à mesma família. No seio familiar, dito desta maneira, encontramos Fátima, mulher frustrada com o seu isolamento corporal e sexual, atormentada pelo rato que se pavoneia pela casa em todas noites, e delirada pelas fantasias sexuais que o vizinho transmite. Personagem, essa, encorporada pela Sandra Faleiro, de carreira extensa no palco, ora reconhecida por várias gerações em seriados televisivos, mas que tem pouco a pouco conquistado lugar no cinema português. Após “A Herdade, “Estamos no Ar” é o novo desafio para brilhar na grande tela. 

O Cinematograficamente Falando … conversou com a atriz sobre esta experiência, sobre a sua Fátima e essas tais dores.

Começo pela questão da génese deste projeto, aliás de como chegou a “Estamos no Ar”?

Um convite do Diogo [Costa Amarante]. Imediatamente disse que sim após ler o argumento.

Recordo uma entrevista no qual refere que o grande impulso para entrar neste filme, não foi a personagem em si, mas da “poética de Costa Amarante”.

Sim, quer dizer, a personagem é maravilhosa, mas foi mesmo o guião que me conquistou. Aquelas três personagens que se conectam com outras, que, por sua vez, estão unidas pela solidão. Há uma melancolia que atravessa o filme e, ao mesmo tempo, uma ternura inerente, tudo isso embrulhado num certo sentido de humor.

Ainda bem que mencionou a solidão porque estamos perante um filme sobre solidão e as suas diferentes nuances, cada uma destas personagens sente-se só e procura “curar-se” de alguma forma. Curiosamente o “Estamos no Ar” decorre numa cidade, um poço multi-populacional e atulhado de gente, que entra em contradição com o senso de “estar só”. Podemos dizer que o ser humano é um ser naturalmente só?

Sim, pode acontecer em qualquer lado. Este filme tem essa concepção da cidade – quando ele filma os prédios em volta da piscina, cria uma espécie de muralha de asfalto que isola aquele local, ou até mesmo os figurantes, tão automatizados, tão alheios. E o filme passa-se, em grande parte, durante a noite, com essa pulsação própria, e mesmo entre encontros e desencontros, aborda a nossa natureza humana, o facto de sermos todos seres solitários, quer seja na cidade, quer seja em qualquer outro lugar. “Estamos no Ar” transmite essa solidão de uma forma muito bonita.

Há um elemento muito entranhado na nossa sociedade, que é a farda, que Diogo Costa Amarante parece reparar e há sua maneira desconstruir. Há toda uma pulsão sexualizada nesse elemento, e isso tem influência na sua personagem.

Neste caso, o da minha personagem, Fátima, a farda representa uma certa segurança, como porto de abrigo, uma proteção. No caso do Carloto [Cotta], é mais kinky [risos], uma fantasia. 

E depois temos o rato, um animal de contornos metafóricos.

O rato apela a esse lado mais obscuro, a uma sexualidade escondida. Acho que, neste caso, ela é uma mulher um pouco tolhida — não diria reprimida, porque considero essa palavra um pouco forte — mas, de facto, tolhida pela vida. Está numa fase de procura por si própria e, ao mesmo tempo, sente esses impulsos sexuais, dos quais também recua. O rato representa precisamente essa sexualidade e essa repressão que ela tem e que não chega a desenvolver.

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Durante “A Herdade” de Tiago Guedes, abordou Catherine DeNeuve como inspiração para a sua personagem …

Sim, como figura ...

Em “Estamos no Ar” inspirou-se em alguma outra figura? 

É uma miscelânea, digamos. Ao longo de várias fases da vida, vamos juntando pedaços das nossas histórias, dos amigos, de mim própria, de outros atores e até de pinturas. Inspiro-me em muita coisa, tudo à minha volta me inspira.

Ou seja, habitualmente traz algo de seu às suas personagens …

Sou sempre eu [risos], não há grande volta a dar. É o meu corpo, a minha voz, é como filtro, encaixo e interpreto as personagens. Em cada uma delas, estou sempre eu [risos].

Com “A Herdade” entrou em pleno no cinema português e agora com “Estamos no Ar” adquire o protagonismo que o filme seja de três narrativas entrelaçadas, mas mesmo é a sua história o centro e o nó das de Carloto Cotta e Valerie Braddell. Gostaria que me falasse deste percurso no cinema português.

Não me considero uma atriz de cinema português [risos]. Até porque faço pouco; como há pouco cinema, acabo por fazer pouco. Se houvesse mais, possivelmente faria mais cinema.

Mas tem o desejar de fazer mais?

Claro, ainda este ano trabalhei com Paolo Marinou-Blanco em "Sonhar com Leões", e com o Simão Cayatte [“A Queda”], mas foram pequenas participações, o que me fascina mesmo são estes mergulhos profundos que o cinema tem. Possuem uma linguagem completamente diferente do teatro e da televisão, exige outro registo de trabalho, o que agrada imenso porque tem outro filigrana, é como se tivéssemos uma lupa sobre nós. É outra linguagem ... é claro que gostava de fazer mais, mas não tenho grandes ilusões ou ambições nesse sentido. Vou deixando fluir, acontecer, não ficar ansiosa se não fizer. 

Tenho ouvido aqui e ali, detalhes e notas sobre “Sonhar com Leões”, inclusive uma colega sua [Joana Ribeiro] falou-me um pouco desse filme.

É uma comédia negra, cómico-trágica sobre a eutanásia, sobre o desespero que é o das pessoas estarem em sofrimento e levanta estas questões pertinentes, como também aborda os oportunistas, e mais uma vez, é sobre a solidão.

“Sonhar com Leões”, assim como “Estamos no Ar”, são ambas comédias. Gostaria que me falasse sobre a sua relação com o género, ou tom digamos, e as suas dificuldades. 

Adoro fazer comédia, agora, as dificuldades de o fazer, julgo que me comédia devemos sempre procurar uma verdade, se não fica desinteressante. O importante da comédia é a capacidade de rirmos de nós próprios. Quando é só "bonecos", é treta ...

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Pegando na questão da comédia, lembro que vi uma peça em que era a protagonista - “O Livro de Pantagruel” - uma encenação de Ricardo Neves-Neves, em que o humor, negro e sarcástico, e igualmente politizado estava presente. Esta volta para referir aquele que é o seu habitat natural, o teatro. E até porque recentemente contracenou com António Mortágua numa adaptação do “Um Eléctrico Chamado Desejo” de Tennessee Williams.

Sim, foi encenado pelo Bruno Bravo. O teatro será sempre a minha casa; foi onde comecei, e sinto sempre a falta de o fazer. É um lugar de procura, de autodescoberta, e, enquanto continuar a ser assim, fico satisfeita. Mas, na realidade, também preciso de outras 'coisas', de outras realidades.

… e daí, o Cinema estar na equação?

Sinceramente, não tenho a possibilidade de escolher e controlar a minha carreira. Vou apenas “andando" e tento aproveitar o que vai surgindo. Tenho tido sorte, porque têm aparecido projetos distintos e variados, mas, na verdade, não tenho como dizer que sim ou que não ou escolher meticulosamente o que vou fazer — em Portugal isso é praticamente impossível. A maior liberdade de escolha que tenho é quando enceno, nas peças que decido montar e assim por diante, porque, como atriz, o que acontece é o que vai sendo sugerido.

Julgo que foi em entrevista para o Teatro São Luiz que a Sandra Faleiro falou da sua insegurança e como ela funciona como seu mote para avançar e abraçar os desafios.

Tem a ver com um lado obstinado, de me desafiar e de tentar ultrapassar obstáculos — mas acho que, de uma forma ou de outra, todos nós fazemos isso. O trabalho de ator exige muito e requer uma grande disponibilidade; é desgastante e, ao mesmo tempo, maravilhoso. Também traz à superfície todos aqueles fantasmas que temos, as inseguranças, as dúvidas. Todos temos que lidar com isso constantemente.

Só para terminar, gostava que falasse sobre os seus novos projetos, seja em que plataforma for.

Vou entrar numa nova peça com o Ricardo Neves-Neves, que estará no Teatro Trindade em dezembro, e também vou voltar a trabalhar com a Cristina Carvalhal. E pronto... este ano continua assim, mais um ano muito teatral.

Manuela Viegas numa conversa sobre as suas glórias: "a imperfeição tem de fazer parte da obra, ela acrescenta algo ao seu sentido."

Hugo Gomes, 02.11.24

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Glória (Manuela Viegas, 1999)

Em 1999, estreava em Berlim aquela que seria a primeira e única realização de Manuela Viegas, uma consagrada montadora no panorama do cinema português. A obra, “Glória”, viria a tornar-se um objeto de culto, um canto obscuro para aqueles que ousassem entrar, penetrar e ficar. A narrativa desenrola-se em torno de Ivan (Francisco Relvas), uma criança levada pela mãe de Lisboa para o interior rural, para viver com o pai numa estação de comboios quase abandonada. Lá, Ivan conhece Glória, uma menina que partilha um destino semelhante ao seu, mas entregue a uma perversidade própria que o guiará até às distantes margens do rio, em busca de um refúgio cavernoso onde possam escapar da cruel intenção dos adultos que os rodeiam.

É um filme com o olhar de uma montadora, como a realizadora reconheceu durante esta nossa conversa em torno da sua obra... e da sua arte. “Glória” desafia o espectador, a sua posição e a sua percepção, recusando narrativas aristotélicas ou de “caracará”. Move-se na profundidade da atmosfera, naquilo que se adensa no coração humano. E no seu recanto secreto, encontramos algumas notas sobre um país em mudança, sobre o abandono das tradições, das suas gentes, do meio rural, em particular. “Glória” regressa agora à vida, sob as vestes de cópia restaurada, tendo sido exibida como tal no Centro Cultural Gil Vicente, em Sardoal, a terra que, há 26 anos, a gerou. Uma retornada, “bem-vindo a casa”!

Esta sessão especial, integrada no programa europeu A Season of Classic Films, promovido pela Associação das Cinematecas Europeias, serviu de motivo para este encontro. Agora reformada, Manuela Viegas falou ao Cinematograficamente Falando … sobre a sua paixão, sobretudo pela montagem, a arquitetura invisível que sustenta um filme, vincando “Glória” como a sua glória de passado, e isso, sem nada a esconder.

Foi montadora durante vários anos, como também contribuiu para a escrita de alguns argumentos, por isso mesmo, pergunto-lhe o que motivou este grande salto na realização do filme?

Desde o início, desde o surgimento do meu interesse pelo cinema. Frequentei o conservatório depois de ter realizado vários estudos noutras áreas distintas do programa de cinema, e, logo nos primeiros anos, surgiu essa possibilidade, o desejo de filmar, etc. Ao entrar numa espécie de comunidade, como é, por exemplo, a do cinema — um seio bastante fechado — sente-se algo contagiante, um poder de contaminação do cinema em relação a todos os outros aspetos da vida, passando e pensando o cinema na vida das pessoas. Sai-se para um bar e as coisas que se encontram e o que se veem, remete-nos ao cinema. Cinema, cinema e Cinema. Assim, o desejo de trabalhar em cinema foi enorme desde o princípio. Tem componentes que me interessam muito e que se ajustam ao meu modo de ser, desde “arregaçar as mangas” e partir para a prática. Mas isto aplica-se a todos os seus departamentos — montagem, realização, tudo. Por um lado, há esse lado prático, e por outro, há um aspecto de ligação com a História do Cinema, que leva a refletir sobre como transpor, digamos, vários interesses, temas e situações para imagens e sons — como filmar e tudo mais.

A montagem é precisamente esta construção que me fascina, que dá vida a uma pessoa: descobrir os filmes que estão dentro dos materiais, das imagens, dos sons, do filme inicialmente idealizado, em diálogo constante com os realizadores, até os filmes materializarem e ganharem a sua devida forma. Assim, a montagem torna-se quase como uma pequena oficina criativa; é como fazer filmes também, só que em colaboração com outra pessoa, o que é muito… Enfim, é melhor do que nos afundarmos nas nossas próprias intenções e objetivos, isso é algo a evitar o máximo possível. Trata-se de entrar, por assim dizer, numa abordagem conjunta, ouvir os outros, ser ouvido, falar e trazer para as conversas uma visão sobre o mundo, através dos planos que se descobrem. É um processo fantástico, muito enriquecedor.

… e ao mesmo tempo é como se fosse uma arquitecta dentro do meio.

Sim, podemos dizer que há uma construção que se faz, mas existe também um enorme desejo de descobrir o essencial de qualquer coisa, de captar o que está por dentro. Não se trata de procurar o que está por trás, mas sim de perceber que, por vezes, o essencial está mesmo à superfície. Trata-se de descobrir lá aquilo que possui profundidade. Este processo ocorre na montagem de forma muito eficaz, entre angústias e alegrias — alegrias que nos fazem quase saltar da cadeira quando encontramos algo significativo, e angústias que nos tiram o sono, transformando a nossa percepção acerca das coisas. Porque os passos que damos são incertos, e ao mesmo tempo, acusamos aqueles que já estão predeterminados, os que fazem parte de esquemas de construção mais convencionais — as chamadas técnicas de escrita, de montagem e outras.

Essas técnicas, ou normas, acabam por ser desafiadas pelo próprio material que encontramos: pelas imagens e pela criação dos sons, que podem imensamente influenciar. Comecei com película, então digamos que trabalhava em bandas de imagem e som de acetato, palpáveis — na altura, tínhamos a imagem e dois ou três sons possíveis em simultâneo, no máximo, dependendo das mesas de edição disponíveis.

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Glória (Manuela Viegas, 1999)

Na película, trabalhei sobretudo em 16 e 35mm, criando coisas absolutamente inventadas e caóticas, muitas delas arriscadas, sempre lado a lado com o realizador. É muito estimulante, esse lado criativo associado à montagem. Portanto, a transição para a realização foi quase como uma extensão disso, mas no próprio terreno — ou seja, filmar com uma equipa enorme, com câmaras de 35 milímetros, em exteriores, à noite, de madrugada, nas horas mais fotogénicas, em locais como as escarpas do Zêzere. Filmar ali implicava arrastar toda a equipa com o equipamento. Na rodagem, acreditava que, baseado na experiência da montagem, seria quase o mesmo processo, com ambos — eu e outros — a fazer filmes. Contudo, a rodagem exige uma rapidez de reação face ao que se encontra na natureza, nas pessoas, na organização das produções, etc., uma rapidez que não permite a concentração que a montagem proporciona. Entramos numa sala de montagem…

Ouço na sua voz uma admiração pela montagem inquebrável, tendo em conta que quase esse cargo está a desaparecer, hoje, chamamos editores, e a edição por via do digital. Perdemos essa concentração a que se refere?

Mesmo na montagem digital, no computador, ainda há aquele contacto, o toque da montagem, que existe mais intensamente na montagem em película do que na digital. No entanto, mesmo em digital, para fazer a montagem, é preciso entrar numa bolha, numa espécie de noite; é uma experiência pessoal. Sei que… sou sempre eu que preciso dessa imersão, é isso que define o meu ritmo, a minha velocidade, é a concentração. A verdade é que é um processo nada fácil. Há sempre muitas interferências, são tantas coisas.

E, portanto, estava, na verdade, sempre a pensar. Morria de saudades da montagem, mas ao mesmo tempo, ao ver os planos, pensava nos planos que gostaria de ver ganhar forma na montagem.

Ou seja, realizava com olhos de montadora, é isso?

Sim, claro, na escrita, desde sempre. Aliás, acho que o nosso pensamento é, de alguma maneira, uma forma de montagem. Trata-se de relacionar ideias, colocar coisas lado a lado e encontrar fios de continuidade, que não precisam de seguir as regras da montagem convencional. Pode ser uma continuidade mais subterrânea, digamos assim, algo que também sinto no “Glória”.

Gostaria de explorar a questão da subterraneidade, uma vez que o filme evoca uma aura bastante misteriosa. Temos uma narrativa, e, embora esteja focada nessa narrativa, aqui o filme desafia o espectador a tentar decifrar o que está realmente a acontecer, pois nunca nos diz claramente do que se trata. Assim, ficamos em dúvida, absorvidos por aquela atmosfera. O filme é muito atmosférico, no sentido de ser bastante sombrio. Isso também me faz pensar que, apesar de ter assumido o papel de realizadora neste filme, não conseguiu desvincular-se da sua experiência como montadora. Acha que isso a poderá ter influenciado a sua abordagem ao filme?

Sem dúvida! Não tenho dúvida nenhuma quanto a isso. Como já estava a dizer, desde a escrita até à planificação, sinto que há uma continuidade. Devo dizer que, nas cenas filmadas, houve coisas mais bem-sucedidas do que outras; houve material que se revelou impossível de usar. A mise-en-scène, digamos assim, exige uma sensibilidade que, por vezes, questiono se possuo verdadeiramente, mas que sempre esperei conseguir, pelo menos em parte. A mise-en-scène envolve olhar para o espaço, ver as pessoas nele inseridas e ligar tudo organicamente à cena em formação, esse é o ideal, porque as coisas não são só planos e imagens num lado, com o resto separado para outro. Os temas, as questões, e até a História, estão todos interligados, é isso que acredito que define o filme: a imagem e o som, a sua matéria contêm o que chamamos de continuidade.

Portanto, essa sensação que descreveste ao ver o filme, de uma certa ambiguidade sobre o que ele trata — mais ambiente, menos história —, faz parte da intenção.

Sabemos que está a acontecer algo, mas, como espectador, tentamos encaixar todas as peças para entender. E até mesmo a planificação esconde as ações-chave.

Exato, digamos que há um conjunto de opções conscientes, relacionadas com um tipo de cinema em que o essencial das ações, das histórias, ou das situações acontece fora de campo, ou passa para o outro lado. É como se houvesse um território imaginado, no qual filmei várias populações, em diferentes pontos de rios, por exemplo. Imaginei, a partir dessa claridade e diversidade, um território de ficção onde me podia instalar livremente. Sentia-me à vontade para colocar a câmara aqui, ali, em qualquer ponto. Quando filmava num local específico, tinha a noção do que estava a acontecer noutras áreas. Não estava lá com a câmara, mas sabia o que ocorria. Esse "fora de campo", ou “off”, mesmo não estando visível, cria tensão com o que está em cena, remetendo, na verdade, aos efeitos de algo que já ocorreu — os vestígios, os resíduos, o que sobrou ou se desfez após um acontecimento. Talvez esta abordagem reflita algumas influências cinematográficas.

Não sei se consigo explicar exatamente o que é, mas sei que algumas das minhas opções, inclusive na montagem, visam descentrar o foco, deslocar aquilo que normalmente é central, e faço-o, talvez, pela crença de que essa estratégia traga uma compreensão mais profunda do que se está a passar. As histórias, na narrativa tradicional, tendem a relatar factos de forma explicativa: aconteceu isto, que se liga com aquilo, e foi causado por tal coisa. No entanto, a construção de um filme, com esta abordagem, procura algo diferente — algo menos explícito e mais evocativo.

Penso que a intensidade da nossa percepção, ao capturar as possibilidades e o significado das cenas, torna-se mais incisiva, mais forte, quando tudo não está diretamente à vista. Mizoguchi faz algo assim. Embora seja um realizador clássico, ele utiliza essa técnica. Por exemplo, um gesto fundamental entre um homem e uma mulher que vão ser crucificados aparece apenas no final do plano e quase não se vê. Esse “quase” — o risco de quase perdermos o gesto — cria uma perceção fulminante da situação. Em Mizoguchi, essa sensação é imediata, quase explosiva; no meu trabalho, talvez não tenha o mesmo impacto, mas uso o mesmo princípio: filmar o que está entre uma coisa e outra, explorar os efeitos, como um sorriso ou uma luz que ilumina subitamente um rosto, sem que imediatamente se compreenda o motivo. É algo que se percebe mais tarde, é como uma aposta — não dar tudo de imediato, mas permitir que se revele aos poucos.

Acredito que com isto se ganha uma presença muito forte do que está em campo, exatamente porque está tensionado pelo que não se vê.

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The Crucified Lovers (Kenji Mizoguchi, 1954)

O grande ponto de atração do seu filme é a curiosidade. Sim, sentimos curiosidade em descobrir aquilo, ganhamos pistas e juntamos as peças, como disse. Não se trata de algo concreto ou óbvio, mas de algo mais intangível.

Não é curiosidade pelo que está ali, mas pelo que surge a partir disso. Juntamos as peças, como disse: não é o concreto, mas o que ele evoca. Não é a curiosidade pelo que está diretamente em cena, mas pelo que vem dessa presença. Não se trata da ação, mas de filmar as margens da ação, os efeitos, como se estivesse a filmar um abalo de terra. Não filmo o epicentro, mas sim as ondas provocadas, e é através dessas ondas que o sentido se vai revelando. Mas é importante que se entenda claramente, que não seja apenas um jogo de esconde-esconde. Não se trata de um jogo; é uma busca séria de formas de fazer passar o sentido, sem recorrer ao "Ah, isto já sei o que é, já vi isso 500 vezes na televisão". É, de certa forma, uma recusa disso, uma tentativa de fazer com que os elementos surjam como se estivessem a nascer.

No final, penso que algumas dessas cenas têm uma presença muito forte, especialmente as que resultaram de uma rodagem mais intensa e satisfatória, embora sejam só duas ou três cenas. A certa altura, notava-se que a equipa inteira estava ali concentrada. Era uma equipa muito grande, e ninguém estava a pensar no almoço ou no lanche; estávamos todos focados no que se estava a criar. São só duas ou três coisas que se expandem e, se derem um pouco a volta ao filme, ele já ganha outra dimensão.

Há pouco disse-me algo que me fez pensar, mas primeiro deixe-me perguntar: é devota do Kenji Mizoguchi?

Acho o Mizoguchi extraordinário!

Perguntei isto, porque um dos elementos recorrentes na cinematografia de Mizoguchi é a presença do rio. Desde “O Intendente Sansho” [“Sansho the Bailiff”, 1954], “Os Amantes Crucificados” [“The Crucified Lovers”, 1954], “A Vida de O'Haru” [“The Life of Oharu”, 1952], até “Contos da Lua Vaga” [“Ugetsu”, 1953], todos os filmes têm essa presença marcante do rio, como fosse uma personagem própria, um elemento que conduz estas personagens ou os leva a cometer os seus atos e confrontar dilemas. Em “Glória” existe essa igual presença com o rio …

Bom, aproveitando este paralelismo com Mizoguchi — embora não haja um verdadeiro paralelismo, pois estamos a falar de coisas absolutamente extraordinárias —, há realmente algo na presença dos rios, tanto em Mizoguchi como aqui, no “Glória”. A água e os rios têm um poder imenso, e creio que representam a energia desse território, o rio, ou melhor, os rios. Em certos momentos, o rio assemelha-se a um paquiderme, imóvel, com costas castanhas, vasto e pesado; noutros momentos, irrompe e rasga, numa força intensa. Essa energia parece aglutinar a dispersão que constitui o filme. Não sei se posso descrevê-lo assim, mas não é um conjunto de coisas dispersas, sem ligação, saltando de uma coisa para outra. Em vez de uma continuidade linear, o rio é a presença que flui entre tudo, presente também no som, como uma energia aglutinadora.

Por outro lado, os rios, ou aquele rio que vemos no filme — são vários pontos do mesmo rio, diferentes rios ligados entre si — têm uma espécie de força de atração que, em certo ponto, parece até um pouco maléfica. Exerce uma atração particularmente forte sobre os miúdos, porque o filme procura mostrar o ponto de vista deles: não é a minha perceção, ou a de um adulto sobre eles, mas sim o olhar dos próprios miúdos. E, assim, os medos, os pesadelos, os desejos, as alegrias, as brincadeiras — tudo tenta ser visto a partir desse ponto de vista. O rio exerce sobre eles, os miúdos, mais do que sobre os adultos, uma espécie de atração inevitável, uma força que quase roça o maléfico. Talvez seja isso… talvez, mas não sei ao certo.

Perverso?

Exato, é como se ela fosse arrastada para lá; essa é, no fundo, a essência da história, quando a vemos do ponto de vista das crianças. Elas observam os adultos e veem neles comportamentos aberrantes, ficam incrédulas ao ver como são capazes de certas atitudes, como podem ser violentos uns com os outros. Mas, então, a Glória [a personagem interpretada por Raquel Marques] arrasta o rapaz para o rio, como se algo dela o tocasse, o contagiasse — e é isso que acaba por marcar profundamente a minha própria vida. Esse poder, essa energia, impede que o filme seja apenas uma manta de histórias soltas, dando forma a um território próprio onde se movem as crianças, os adultos, todos. E há nesse poder de atração algo inexplicável, mas sentimos que algumas das vivências da Glória se tornam visíveis, que captamos algo do seu passado ou do que ainda a assombra.

Sabemos que há crianças pequenas, filhos de imigrantes, deixadas ao cuidado daquela senhora, a Teresa [personagem interpretada por Isabel de Castro]. Não é propriamente uma “mãe”, e a própria Glória é uma delas, deixada ali desde sempre. Ninguém a veio buscar. Ao contrário das outras crianças, cujos pais tentam sempre ir buscá-las, ninguém vem por ela. Talvez o rio tenha qualquer coisa que transcende a razão e que, em última análise, molda o filme. No trabalho que fizemos agora, a digitalização parece fazer ressaltar a irracionalidade dos comportamentos daquelas pessoas apanhadas sem saída, ou talvez seja só uma questão de som, de definição do som — como se o rio encarnasse uma figura quase mítica, uma força irracional e inconsciente. Não quero ser pretensiosa, nem afirmar nada de forma categórica...

Mas, no fundo, o rio liga-se a um inconsciente coletivo, principalmente o rio à noite, ligado aos desejos, medos, pesadelos — tudo isso, os sonhos dela, ou pelo menos da Glória

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Glória (Manuela Viegas, 1999)

“Glória” esconde na sua “carne” uma espécie de crónica, ou crítica, do seu espaço sócio-político. Do seu tempo, aliás, visto ter sido rodado por volta do ano 1998 …

Talvez tenha sido até antes, não me lembro ao certo. Talvez tenha sido escrito em 1995. Na altura, os grandes fogos ainda estavam muito presentes, tal como as novas “estradas cavaquistas”, que estávamos a filmar, fruto de uma certa cultura de expansão rodoviária.

O que eu queria mesmo era situar esse contexto temporal, porque há um plano no seu filme, com o Ivan numa esquina, junto a uma montra, onde se vê o logotipo da Expo 98. Foi um tempo de mudança neste país, e igualmente demonstra isso, subtilmente em “Glória” com o desaparecimento daquela ferrovia, a dar lugar a uma auto-estrada, uma conexão rápida entre as metrópoles e o interior algo decadente …

Não sei se se pode considerar uma crónica ou algo mais lógico, mas, do ponto de vista político, há uma ideia de que estamos a lidar com uma zona do país que apresenta velocidades diferentes, mas simultâneas. Por um lado, temos partes do país que continuam lentas, enquanto outras evoluem rapidamente, com a construção de vias mais rápidas e a presença de grandes bancos, por exemplo. No entanto, essas novas estradas acabam por deixar para trás as populações, criando uma divisão sociológica entre os mais pobres e os desamparados.

A extinção da ruralidade, de alguma forma.

Exato! No filme há uma abordagem muito consciente e profundamente política, uma reflexão sobre o que é o progresso, o desenvolvimento do país, etc. Do ponto de vista político, a minha ideia é que o progresso é algo sustentado em roubos de matérias-primas, em sacrifícios, numa separação cada vez maior entre grupos e corpos, tudo isto é construído com base nesse processo, portanto, não sabemos bem. Também há algo que costumava referir nas aulas, já com alguma idade, relacionado com "The Magnificent Ambersons" ("O Quarto Mandamento") de Orson Welles.

Nesse filme, onde se trata da invenção do automóvel e da mudança de época, há uma cena com um longo plano fixo em que o patriarca da família sentado olha horrorizado para fora de campo onde parece haver uma lareira. Ele está à beira da morte e há uma "voz off" melancólica de Orson Welles que fala do tempo da História e, onde todos parecem ver uma cadeia linear de acontecimentos ligados pela ideia de progresso e de futuro, o velho patriarca vê a acumulação de ruínas sobre ruínas. Tem os olhos esbugalhados como se atingido por uma explosão, uma catástrofe. Falávamos disso em Teoria da Montagem. Pensar a História como um tempo de vazios súbitos, descontínuo, não linear. O velho dos Ambersons é quase um Anjo da História, como aquele do quadrinho do Paul Klee.

Quero dizer, é uma ideia bem conhecida. Talvez não seja algo que me pertença, mas que é complementado por outras ideias. No entanto, essa ideia de desenvolvimento e progresso exige que perguntemos: progresso para onde? O que é esse "para onde"? O que está a acontecer no mundo? Continuamos a lidar com a questão das matérias-primas, mas isto ainda não terminou, ainda há mais e mais coisas para serem apropriadas. Portanto, diria que talvez, e não sei se isto é muito rebuscado – provavelmente só pensei nisto depois de fazer o filme – mas trata-se de refletir sobre essa ideia de recusa do progresso a qualquer preço, de um progresso que acaba por ser destrutivo para o planeta, inclusive. Essa ideia, talvez, não encontra uma correspondência direta no desenvolvimento do próprio filme, que também não segue uma estrutura rígida de apresentação, desenvolvimento, conclusão, etc.

E sobre essa ideia de ruína de que me falou. O filme, hoje, é considerado uma obra de culto no cinema português e, talvez, seja mesmo incontornável o icónico cartaz criado pelo artista plástico Julião Sarmento. Todo o cartaz transmite essa sensação de ruína, com o lettering grafitado como aquele que aparece no “falso-crédito” do filme. Então, falando rapidamente, como surgiu a ideia do cartaz? Teve alguma influência na sua criação, ou foi algo imposto pela produtora?

Nós mostrámos o filme ao Julião, e ele ofereceu-se para fazer o cartaz. Portanto, é com isto que estás: o fundo é branco e tem nódulos, manchas de uso, vestígios, marcas – pedaços de gestos.

Como uma parede daquelas casas de pedra?

Sim, faz mesmo lembrar isso. Diria que o aspecto da imagem transmite uma textura de parede, uma daquelas de rua, um muro, onde ficam marcas, como se tivessem sido deixadas pelo tempo e pelo uso. Ou seja, ele viu o filme, interpretou-o e manifestou esse pensamento através deste cartaz.

Voltando ao “inconsciente” político, ou não, do filme, como é que essa ideia de recusa a um progresso a qualquer preço, tão enraizada nas contradições entre desenvolvimento e destruição, se traduz na estrutura do filme? 

Não pode ser algo certinho e acabado; precisa de ser fragmentado, de transmitir essa ideia de montagem. Não me lembro exatamente, mas a intenção era trazer essa recusa política para a própria forma do filme. Claro, talvez tenha pensado nisso mais tarde, quando precisava de falar sobre o filme, e pensei: “Do que é que vou falar?”. Encontrei aí uma espécie de necessidade de que a forma de filmar, a montagem, as imagens que escolhemos, os sons que inventamos, tudo isso fosse profundamente contaminado pelo que está a acontecer no contexto ambiental e político. Por exemplo, nas cópias em película, deixámos os sais de prata nas imagens, o que dá um tom de carvão ao filme – carvão que está, de certa forma, em sintonia com a História que está a ser retratada.

A História de um território devastado, onde o elemento vital, o rio, se vê ameaçado, onde há incêndios, encerramentos de espaços, entre outras coisas.

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Manuela Viegas durante a apresentação da cópia restaurada de "Glória" no Centro Cultural Gil Vicente no Sardoal / Foto.: Paulo Jorge de Sousa

Está tudo a acontecer ali, e talvez fosse interessante refletir sobre como o argumento era antes de filmar. Já há muito tempo que não penso nisso, mas lembro-me que ao encontrar aqueles locais, tive de mudar imenso o argumento. Adaptámo-lo completamente à casa da estação, onde não mexemos quase nada. As coisas estavam tal como as encontrámos. Levámos apenas uma cama de ferro, entre outras pequenas coisas, para as encaixar no cenário. A casa estava vazia, era a casa do chefe da estação. Não pintámos, não alterámos nada. Já a casa ao lado, onde vive a senhora que toma conta das crianças dos imigrantes – que depois vêm buscar os bebés – também não era um casarão. Tinha aquele sótão, e as paredes cheias de vegetação, de ninhos de pássaros, etc. Apropriámo-nos do espaço, entrámos de mansinho e colocámos alguns elementos. E assim, grande parte do argumento foi adaptada. Na montagem, foi totalmente desconstruído. Fui reduzindo até ao essencial. Cada filme pede um método específico de montagem, mas o princípio básico é começar por alinhar tudo o que foi filmado e depois ir retirando o que não funciona, deixando apenas o essencial, aquilo que é realmente bom.

Portanto, montagem foi essencialmente retirar, retirar e retirar …

Sim, mas depois tive de recuperar algumas coisas do “lixo”, que tinham sido descartadas [risos]. Só mais tarde percebi, e explico-o agora com palavras que nem tinha na altura, que a imperfeição tem de fazer parte da obra, ela acrescenta algo ao seu sentido. Aquilo que, por vezes, não está bem enquadrado ou que não seria o mais “certo”, acaba por trazer um valor especial. Sem esses detalhes, a obra ficaria reduzida a uma série de substantivos soltos: “ponte, poço, casa” – sem nada à volta. Por isso, fui buscar essas partes novamente. Filmámos muito, começámos a trabalhar nas filmagens bastante cedo, quase que nos esgotámos, mas tínhamos uma equipa incrível, muito dedicada, embora pequena.

Que bem se molharam nesta rodagem [risos] …

Molhamo-nos sim, e não só, arriscámo-nos muito, e pusemos em perigo, por vezes, uma quantidade de equipamento. Tivemos uma ajuda fabulosa dos bombeiros, especialmente nas filmagens noturnas, em que precisamos de iluminação e de várias preparações para nos expormos – com bombeiros dentro de água, debaixo das estruturas, etc. Foi muito arriscado; hoje em dia, não seria capaz de pedir isso a ninguém, pois é realmente exigente. Mas isso está no filme, sente-se. O resultado traz um benefício à produção, uma vibração do real, das coisas que estavam lá. Sente-se essa autenticidade a vibrar, creio.

Mas … depois de “Glória”, não teve mais vontade de filmar?

Gostava de ter continuado a filmar, mas durante a rodagem, houve várias fases. A primeira fase, a da escrita, foi muito difícil – estávamos todos sem dormir ou a dormir pouquíssimo, e não estávamos bem da cabeça [risos]. Mas, aos poucos, fomos ganhando ânimo, e no final da rodagem, já tinha vontade de sair de lá. Queria ficar ali, sozinha, a dizer “podem ir todos embora, eu fico aqui”. Realmente fiquei mais uns dias, naquele calor comunitário, no local que nos acolheu, e senti-me grata por tudo aquilo ter sido possível. Logo a seguir, tinha vontade de continuar com algumas destas personagens ou com outras, de prolongar um pouco aquele ambiente. Talvez não ali mesmo, mas num lugar semelhante. Comecei a escrever algumas coisas, mas o tempo foi passando e outras vocações se sobrepuseram. Tenho interesse em várias coisas. Não é assim tão fora do comum, mas quero buscar inspiração em várias áreas.

Gosta de ensinar [menção à trajetória enquanto professora na Escola de Cinema e Teatro], é isso?

Gosto de ensinar, mas não no sentido de ensinar diretamente – gosto de observar as pessoas a descobrirem as suas próprias coisas e de oferecer o que puder, seja estímulo ou entusiasmo. No fundo, é isso que as aulas devem ser: estimular, inspirar gosto pelo cinema, criar comunidades de apreciação e paixão, onde cada um valoriza à sua maneira. Depois, comecei a pensar numa abordagem mais orgânica, inspirada em livros que foram marcantes para mim, que têm acompanhado a minha vida e que se tornaram inesquecíveis. Pensei em criar algo mais parecido com um concerto de música, onde cada "instrumento" está organicamente ligado, onde todos participam com naturalidade, como se cada um trouxesse a sua nota única. E lá fui eu, por aqui e por ali, mas o tempo vai passando e nunca é suficiente para tudo. Dou-me por completo a tudo o que faço, seja nas aulas ou em qualquer outro projeto. Desde a licenciatura, com a passagem para o mestrado e tantos trabalhos, uma boa parte do meu tempo foi para isso. Mas não significa que ainda não possa surgir outra coisa.

É importante associar ideias a cada elemento. E, dentro dessas limitações, talvez o fenómeno seja inicial, mas é também o que consegui realizar. Entretanto, tenho uma saudade imensa do processo de montagem. Agora, já não se trata apenas de me responsabilizar pela parte técnica; é mais sobre tomar decisões relacionadas ao filme em si, sobre que filme quero ver com as pessoas, e manter sempre a concentração. O que mais valorizo é essa capacidade de concentração, a ponto de, como acontecia nos laboratórios de fotografia, onde uma pessoa entrava para revelar e, de repente, passavam 24 horas sem almoçar, nem jantar, e ali permanecia. A montagem é semelhante a isso.

Um canto isolado do resto do Mundo?

Exato. É uma questão de solidão e concentração, mas também de estar sempre à espera de compreender a visão que o realizador tinha para aquilo.

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O Som da Terra a Tremer (Rita Azevedo Gomes, 1990)

A Manuela tem sido, possivelmente, uma verdadeira escola de cinema, pois fez a montagem de muitas primeiras obras de realizadores que hoje tão bem conhecemos. Trabalhou com Pedro Costa em “O Sangue” (1989), com Rita Azevedo Gomes em “O Som da Terra a Tremer” (1990), Teresa Villaverde em “Idade Maior” (1991), por exemplo.

Acredito que essas primeiras obras coincidiram com os anos após os meus estudos no Conservatório de Cinema. Ainda estava no conservatório quando comecei a trabalhar com o Fernando Mato Silva, por exemplo, montando conteúdos para televisão e até documentários encomendados [Cinequipa]. Foi uma fase intensa, repleta de informação – uma verdadeira corrida, mas tudo ótimo. Entre os primeiros filmes que montei, destaco "A Conversa Acabada" do João Botelho (1981). Nessa época, terminei os três anos do curso, que ainda estava a decorrer no conservatório.

Estávamos nos anos 80, numa época em que o instituto não se chamava ICA, mas ICAM ou IPACA – qualquer um desses nomes. O "A" referia-se ao audiovisual, e acabei por estar envolvida nessa transição. Houve uma política de apoio, que talvez tenha começado com o [Alberto] Seixas Santos, focada nas primeiras obras. No início, não havia tanto apoio, mas depois começaram a surgir concursos especiais para as primeiras produções. Eu e os meus colegas também nos inscrevemos, embora eu já tivesse algumas experiências anteriores ao conservatório, tendo vivenciado outras fases da minha vida.

Tinha estado em dramaturgia no teatro, e além disso, fiz um curso de economia, mas sempre mantive uma ligação muito forte com os livros. Gostava muito de ler e, com o tempo, comecei a escrever argumentos para filmes, cenas, situações e gestos. No entanto, naquela altura, isso não teve financiamento. Depois, continuei a acompanhar os meus colegas e as novas pessoas que estavam a surgir no meio.

Na altura “novos”, agora veteranos [risos] …

Apareceram depois do Paulo Rocha e do Fernando Lopes, e havia também o Seixas. Estávamos inseridos naquele núcleo formidável que incluía o António Reis, um ambiente muito inspirador. Transitávamos por ali, muito tocados por essas influências. Para mim, tudo o que falei sobre montagem e sobre a forma de dar aulas está profundamente ligado ao Reis. Naquela altura, no entanto, era mais brincalhona e não sabia bem para onde ia.

O que pensa sobre os novos processos de “montagem”? O digital?

Gosto muito do lado da montagem com película, mas não tenho nada contra as novas tecnologias. O que aprecio é o aspecto táctil da montagem, que não precisa ser necessariamente o toque da matéria. Essa dimensão táctil pode ser uma conexão mais ampla que se estabelece com os filmes, não é? Não sei se isso faz sentido, mas, às vezes…

Sim, pode-se dizer que o filme está dentro de uma bobina; sabe-se que aquilo é o filme, não é um ficheiro. O cinema como matéria, como algo físico, que toma espaço.

Mas é possível um estabelecer com esse “filme de ficheiro”, estabelecer uma relação também de tacto. Mas, pronto, essa ideia do táctil e dos grandes planos vem já desde Griffith e outros. Por falar nisso, há dois dias, vi aquele filme que o Victor Erice fez em Guimarães, chamado "Vidros Partidos" (2022). Viu?

Sim, fazia parte de um conjunto de obras que formavam o “Centro Histórico”, tinha um filme estupendo do Pedro Costa, e outros mais curtos de Aki Kaurismaki e Manoel de Oliveira. O do Erice é emocionante, recordo aquele momento em que se toca o acordeão virado para uma enorme fotografia que juntava todos os trabalhadores daquela fábrica. 

É de chorar, e não sabemos bem porquê. Quer dizer, suspeitamos que tenha a ver com o processo de produção. Mesmo uma coisa tão objetiva e material, de repente, ganha uma dimensão fulgurante, uma intensidade que perdura do princípio ao fim, envolvendo cada uma daquelas pessoas. E, sabendo também o método que foi utilizado na realização, é uma fábrica têxtil que deixou de operar e cujos trabalhadores ficaram desempregados. Não interessa muito o “enredo” agora, mas o que realmente conta é o método de trabalho que o Víctor Erice adotou: ele trabalhou com cada um dos desempregados e, a recolher os depoimentos deles e na reescrita deles. Assim, cada um deles decorou o texto resultante disso e, diante da câmara, recitaram as suas próprias histórias e experiências na fábrica, principalmente o trabalho de fabrico. Esse processo é absolutamente fascinante.

O facto de eles dizerem o texto de cor e notarmos, através das suas expressões, que cada um tem a sua própria maneira de lidar com a representação é incrível. Passa a ser uma demonstração poderosa do que o cinema e a representação podem fazer com as pessoas e as suas situações. Não consigo explicar muito bem essa emoção; é quase inexplicável. Mas é como uma gravidez, algo que se desenvolve dentro de nós. Pronto, agora, não sei por que estávamos a falar disso … [risos]

Vidros Partidos (Victor Erice, 2012)

Mas, ao recuperar essa memória dos “Vidros Partidos”, tem acompanhado o cinema recente? Acha que falta algo ao cinema português de hoje, especialmente? Ou acredita que está no bom caminho, como nos fazem crer?

Acompanho sempre o que vai saindo no cinema, mas não gosto de vê-los logo de início; prefiro esperar um pouco, é como com os livros. Também não gosto de ir às livrarias comprar os títulos que estão em destaque, gosto de adquirir os livros mais tarde. O mesmo acontece com os filmes. Contudo, acho que há coisas boas a surgir. Não tenho uma opinião definitiva sobre todos eles; ou seja, aprecio algumas obras, enquanto outras não me agradam tanto, especialmente em relação à estratégia e à postura do realizador em relação ao que pretende filmar. Mas isso não significa que não reconheça o valor de algumas obras. Por exemplo, gostei muito de um trabalho do Marco Martins que vi na televisão, um filme sobre espectáculos que foram realizados…

“Um Corpo que Dança” (2022)? Do Ballet Gulbenkian?

Talvez, agora não me lembro do título. Um filme muito bonito, repleto de montagem, montagem e mais montagem. Gostei imenso. Mas, pronto, o cinema está muito ligado às experiências que se têm ao ver os filmes. Portanto, habituo-me, nas aulas, a não expressar opiniões de forma unilateral, como se agora fosse dizer se este filme é bom ou não. Nem pensar.

Não puxa os “galões”: “trabalhei com o João César Monteiro, ou algo assim” [risos]? 

Nada disso. E isso não é produtivo, pois só cria facções e divisões. A única coisa que fazia nas aulas era selecionar pedaços de filmes, alguns filmes inteiros, e estar ali a analisá-los em profundidade. A ideia era compreender o que está a ser feito e como se faz, e, acima de tudo, como podemos fazer. Portanto, era uma aprendizagem teórica, focada na teoria da montagem e em todos esses aspectos. O objetivo era resolver problemas, porque há coisas tão difíceis de filmar. Como é que podíamos filmar isso? Ver exemplos era o normal.

E isso permitia, nas aulas, uma oportunidade valiosa: ter uma simbolização do que se pensa. Ou seja, dar aos alunos instrumentos para expressarem o que querem dizer, por palavras, sobre os seus filmes e sobre outros filmes. Passar por esse plano de reflexão é importantíssimo. Eles começavam a perceber ou a gostar — não sei se realmente sabiam —, mas gostavam de dizer coisas que sugeriam e que estimulavam a nossa atenção, pois tudo é uma questão de atenção.

Nas aulas de cinema, a prioridade era captar a atenção. 

Só uma última pergunta, se me permite, para finalizar. Sou bastante curioso: você trabalhou com João César Monteiro [montagem de “À Flor do Mar”, 1986], como já mencionou. Gostaria que me contasse sobre essa experiência? Foi difícil trabalhar com ele?

Não, ele era encantador. 

Estava a montar na Tobis, que era muito giro, porque havia várias salas de montagem, e nós, montadores, pegávamos numa e andávamos de uma para outra, conversávamos, assistíamos a filmes, trocávamos ideias sobre o que fazer ou não fazer nos respectivos filmes ... Era uma verdadeira caverna! E ao mesmo tempo uma comunidade de afinidade e disponibilidade. Havia também muitas sacanices. 

O César veio me dizer que estavam com um problema com o “Silvestre” (1981). Era uma cena enorme filmada em estúdio com o Jorge Silva Melo como ator. Ele falava, falava e caminhava sobre um palco cheio de brita e areia. Eu disse: "Olha, ele está a falar, mas aquilo estava inaudível". Precisavam de ajuda muito concreta para resolver isso, mas era algo bem pontual.

O que aconteceu foi que gravaram N takes para cada fala do Jorge Silva Melo, e era preciso ver as takes e organizá-las na mesa de montagem. Foi preciso dobrar tudo, tirar o som direto — em película tudo era magnético. O Vasco Pimentel estava a trabalhar no som, mas pediram-me esta tarefa específica de retirar aquele som, escolher as takes e sincronizá-las.

Correu muito bem! Conclusão: passado algum tempo, o César me convidou para montar “À Flor do Mar”. Entretanto, tive uma filha e, a certa altura, não aguentei estar separada dela. Uma parte do filme foi montada pelo José Nascimento, e eu ficava inquieta por causa do bebê, já que estava fora de Lisboa

"Disco Boy", falando com Giacomo Abbruzzese: "a alternativa a escapar do horror é 'dançar com o inimigo.'"

Hugo Gomes, 28.10.24

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Apresentado na edição de 2023 do Festival de Berlim, “Disco Boy” é uma história de identidades desejadas em conflito bélico ou colérico, que une Paris com a Delta de Niger, com a música assumida enquanto força utópica para personas antípodas. Seguimos Alexey (Franz Rogowski), migrante bielorusso que atravessa fronteiras e margens com o objetivo de se juntar à Legião Estrangeira Francesa, o plano é servir a essa tropa com a identidade francesa em vista como maior das recompensas, do outro lado um combatente nigeriano, Jomo (Morr Ndiaye), projecta-se numa outra vida, longe do seu alcance. 

A primeira longa-metragem do italiano Giacomo Abbruzzese, “Disco Boy” é uma produção de multi-esforços europeus como forma a preservar a sua ambição e visão original, uma valsa com a morte e com a vida, com o mesmo ritmo e bailado. Tendo estreado em Portugal no FEST de Espinho, o filme chegou às salas nacionais, prometendo o embate de ideias e o incentivo de uma nova força, a “dança com o inimigo”. Mas quem é verdadeiramente o inimigo?

Conversamos com o realizador sobre o projeto, e as custas dessa visão e como “Disco Boy” se comporta perante a nossa sociedade.  

Sei que algumas destas perguntas já foram feitas desde a estreia do filme no Festival de Berlim de 2023, porém, sabendo que este filme foi feito ao longo de 10 anos, gostaria de questionar o que aconteceu durante esse período? O que mudou desde a ideia inicial até ao filme que temos agora?

Na verdade, o cerne do filme não mudou muito. Desde o início, era sempre sobre Alexey, um bielorrusso ilegalmente chega à França com o intuito de se juntar à Legião Estrangeira. Depois havia esta outra linha narrativa— a história de Jomo, que envolvia um grupo de revolucionários ou ecoterroristas, dependendo da perspetiva. No Delta do Níger, essas duas histórias entrelaçavam-se. O conceito central e até a estrutura permaneceram os mesmos. Lembro-me de fazer uma exibição privada na Berlinale, onde um amigo meu, um argumentista do Reino Unido, esteve presente. Ele disse: “É incrível—li o esboço para este projeto há dez anos, e continua a ser esse filme!

Mas, ao mesmo tempo, escrevi 25 versões diferentes do guião. Por um lado, isto era sobre adaptar a ambição e o alcance do projeto para encaixar num orçamento viável. Trabalhei em tudo—nos diálogos, as personagens, na transição de uma cena para a outra—em busca de uma precisa atmosfera e desenvolvendo o filme ao longo do processo. Artisticamente, esta transformação não teria demorado dez anos em circunstâncias diferentes, especialmente se o financiamento para ele tivesse sido mais acessível.

Nas condições de hoje, um projeto como este poderia ter levado cinco anos. Mas o processo foi demorado porque, embora tentássemos torná-lo viável, continuava a ser um filme com, pelo menos, um orçamento de 3 milhões de euros. No cinema independente atual, continuavam a dizer-me: “Já não fazemos filmes assim. É impossível ter este orçamento para uma longa-metragem de estreia, a menos que haja uma grande estrela associada.” Queria trabalhar com o [Franz] Rogowski, que, naquela altura, ainda não era uma estrela …

Mas hoje, é uma das caras mais presentes do cinema europeu!

Absolutamente. Agora o é, mas naquela altura, o Rogowski não era um nome que pudesse ajudar a angariar o orçamento—bem pelo contrário. Alguns até hesitaram por causa dele. Tive de defender a minha escolha de Rogowski às redes de televisão ou a alguns produtores, que estavam a pressionar por nomes mais sonantes, mas sabia que ele era a melhor escolha. Esta decisão foi, principalmente, uma escolha artística.

Depois, havia a dura realidade de assegurar financiamento, que envolvia a aplicação constante, a troca de produtores e a navegação por contratempos. Em determinado momento, estava a trabalhar com um produtor que disse: “Acho que conseguimos angariar um máximo de 1,5 milhões de euros, mas vais precisar de cortar todas as cenas africanas e manter um elenco francês.” Para mim, isso mataria a essência do filme. Então, arrisquei e disse-lhe que, sob essas condições, não poderia prosseguir. Exortei-o a vender o projeto, e, eventualmente, novos produtores, mais jovens até, entraram a bordo. Como eu, eles tinham tido sucesso no formato da curta-metragem, e seriam a primeira vez que iriam abordar uma longa-metragem. Tinham uma postura fresca e colaborativa, o que foi revigorante.

Incrivelmente, em poucos meses, duplicámos o orçamento. Muitos que inicialmente disseram que “não” acabariam para o “sim”. Acho que, no final, isso fez toda a diferença.

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É impressionante que esta seja a sua primeira longa-metragem, porque é um filme bastante ambicioso para um primeiro projeto desse formato.

Acredito que as minhas curtas-metragens já eram bastante ambiciosas. As histórias que queria contar eram complexas e longe de serem simples. Sabia que precisava de criar esta narrativa de cowboy e encontrar um orçamento mínimo para capturar a essência que pretendia. No final, estou satisfeito com o que conseguimos alcançar.

No cinema, é preciso adaptar-se sempre às circunstâncias e às realidades que enfrentamos; não se pode dar ao luxo de ser rígido na sua visão. Considerando as condições desafiadoras que tivemos—especialmente o facto de termos apenas 32 dias para filmar, o que é muito apertado para um filme—estou contente com o resultado. Conseguimos criar algo que ressoa com a visão que tinha em mente. Acredito que é fiel à alma e à experiência que ansiava transmitir.

De onde veio este interesse na Legião Estrangeira?

A ideia central para o personagem de Alexey surgiu de forma inesperada. Estava numa discoteca na Apúlia [sul de Itália], a minha região natal, quando conheci um dançarino que tinha sido soldado. Fiquei intrigado com a forma como a mesma pessoa podia encarnar estes dois mundos opostos. Comecei a ver pontos de comunicação entre eles, como um sentido de coreografia, disciplina e uma força comum que culminam numa confrontação física.

No entanto, esta pessoa era italiana, e não queria retratar o exército italiano; era algo que não me interessava enquanto ponto de partida. De imediato, pensei na Legião Estrangeira Francesa, mais icónica e com uma tela mais ampla para explorar temas como a migração, a burocracia e o colonialismo. Estes temas tornaram-se uma perspetiva significativa para mim, especialmente porque vivi em Paris nos últimos 15 anos. Isso frequentemente me fazia questionar, como italiano em França, que perspetiva única poderia trazer à história que um realizador francês talvez não conseguisse.

A Legião Estrangeira pareceu-me interessante até porque existem relativamente poucos filmes sobre ela, especialmente considerando a sua importância para as forças armadas francesas, assim como o cinema americano explora frequentemente os seus Marines.

Assim de repente recordo o da Claire Denis (“Beau Travail”, 1999) e um com o Jean-Claude VanDamme (“Legionnaire”, 1998) …

Sim, são dois exemplos. Embora existam alguns bons filmes e alguns maus, realmente não há muitos que se concentrem na questão central que pretendia explorar: o facto de que um estrangeiro deve dar cinco anos da sua vida para obter um passaporte. Muitas das pessoas que se juntam à Legião Estrangeira são indocumentadas, à procura de uma segunda oportunidade na vida. Claro, também há nacionais franceses e europeus com documentos que escolhem alistar-se, mas a grande maioria são aqueles que vão lá pela promessa de um estatuto legal.

Fiquei fascinado pela dura realidade de sacrificar esses anos pela esperança de um futuro melhor. O filme é estruturado para refletir esta ideia de sacrifício. Também queria criar um filme de guerra que, pela primeira vez, permitisse ao 'outro' existir não meramente como uma vítima ou um antagonista por alguns breves momentos, mas como um personagem de uma história densa e complexa.

Nesta era de propaganda de guerra total, o mundo está proliferando com narrativas que frequentemente negam a possibilidade de entender as perspectivas dos outros. Todos acreditam na sua própria justiça, o que perpetua o conflito. O cinema oferece uma oportunidade única de ver o mundo pelos olhos de outra pessoa—alguém muito diferente de nós, seja em termos de género, estilo de vida ou etnia. Este é um dos aspectos mágicos do filme: permite-nos entrar numa outra perspetiva, o que acredito ser crucial para transmitir complexidade.

É por isso que a estrutura deste filme é tão importante. No início, somos apresentados a uma perspetiva; depois, cerca de um terço do caminho, começamos a ver as coisas do ponto de vista de Alexey. Quando a luta começa, o espectador fica incerto sobre a quem apoiar. Em muitas obras, há um protagonista claro, e é incentivado a alinhar-se com ele, mesmo que a sua moralidade seja questionável. Mas neste filme, testemunhamos o contexto mais amplo do conflito, percebendo que nenhum dos lados é totalmente monstruoso ou justificado.

Tanto Alexey quanto Jomo, o ecoterrorista, não são simplesmente vítimas das circunstâncias; são indivíduos que sonham em melhorar as suas vidas. Para eles, o único caminho para essa melhoria envolve envolver-se na violência. Alexey sente-se compelido a alistar-se para garantir um passaporte europeu, lutando por interesses que não são os seus. Ele torna-se um mercenário, mas mesmo assim tem camadas de complexidade.

Da mesma forma, Jomo, que vemos de uma perspetiva diferente, é rotulado como ecoterrorista. Mas novamente, há profundidade no seu personagem. Hoje em dia, quando falamos em matar um terrorista, muitas vezes usamos eufemismos como “neutralizar”, o que desumaniza ainda mais o indivíduo. Esta linguagem remove a sua humanidade e nega-lhes a oportunidade de serem vistos como pessoas reais com as suas próprias histórias.

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Giacomo Abbruzzese

O que está a dizer é que a designação “terrorista” existe enquanto propaganda governamental? É um conceito político?

Especialmente em conflitos geopolíticos, os rótulos que atribuímos aos lados opostos podem ser drasticamente diferentes. Por exemplo, os russos podem ver os ucranianos como terroristas, enquanto os ucranianos podem rotular os russos como terroristas. A situação é ainda mais pronunciada no conflito Israel-Palestina, onde a terminologia muda dependendo da perspetiva.

É surpreendente como classificamos ações como terrorismo para um grupo, mas não para outro. Esta disparidade muitas vezes se resume ao valor que atribuímos às vidas; algumas vidas são vistas como mais valiosas do que outras. Isso, para mim, é inaceitável. Cada vida tem o mesmo valor, e por trás de cada morte há uma história única que merece ser ouvida. Se realmente entendêssemos as histórias do 'outro', poderíamos reduzir o conflito e a divisão.

No entanto, se continuarmos a focar apenas nas narrativas que ressoam connosco—particularmente no mundo ocidental— a nossa capacidade de empatizar com os outros diminuirá. Corremos o risco de reduzir as pessoas a meros números, em vez de reconhecer a sua humanidade. Este problema existe em ambos os lados de qualquer conflito.

Gostaria de mencionar Israel-Palestina visto que antes de virar cineasta foi fotógrafo do conflito por muitos anos. Essa sua experiência influenciou a visão para deste filme?

Absolutamente. Nunca teria concebido a ideia para este filme sem as minhas experiências em Israel e na Palestina. Mudou fundamentalmente a minha vida. Reformulou a minha perspetiva sobre o mundo, a política e até mesmo a realização de filmes. Aprofundou a minha compreensão do que queria expressar e despertou uma curiosidade em sair das zonas de conforto sobre como os medias e os políticos representam as questões. Não há respostas fáceis.

Como artistas, jornalistas e cidadãos, temos a responsabilidade de nos esforçar para compreender as realidades em que vivemos. As situações terríveis que enfrentamos muitas vezes decorrem da nossa incapacidade de desafiar as narrativas que ditam como as coisas devem ser. Dizem-nos que não temos escolha senão estar em guerra ou alocar mais fundos para a defesa. Mas isso não é apenas o que temos; é o mundo que estamos ativamente a construir. É ingênuo pensar em nós mesmos como os bons e os outros como os vilões.

Durante o meu tempo na região, fui profundamente impactado pelo nível de humanidade e complexidade do outro lado, algo que considero ausente na cobertura dos meios de comunicação ocidental mainstream sobre a Palestina. Embora haja escritores e artistas dessa área a ganhar reconhecimento, muitas vezes conhecemos todos os detalhes sobre figuras políticas, mas permanecemos ignorantes em relação às vozes de civis e artistas. Isso cria um efeito desumanizador. Se mostrássemos mais artistas e as suas perspetivas, entenderíamos que existe sensibilidade e complexidade nessa narrativa além da mera propaganda.

Esta complexidade é uma razão significativa pela qual queria criar um filme como este. O cinema opera no reino do imaginário, e pretendia construir uma narrativa de guerra que chegasse através de uma lente diferente—não apenas pela crueldade das imagens gráficas, que somos inundados em todo o lado. Queria abordá-lo de forma diferente.

Por exemplo, na luta entre Jomo e Alexey, o som desempenha um papel crucial, criando uma profundidade emocional que contrasta com a imagética. As imagens em si evocam uma sensação de dança e conexão entre os dois, formando um vórtice que puxa o filme para uma experiência mais psicadélica e xamânica na sua segunda metade. Isso cria uma espécie de buraco negro que muda a direção do filme, convidando os espectadores a explorar uma compreensão diferente do conflito.

Algo que interpreto no seu filme é que nenhum destes personagens quer estar onde inicialmente está. Alexey, um bielorusso que atravessa fronteiras, junta-se à Legião Estrangeira para mudar de identidade. Jomo na Nigéria, quando perguntam sobre os seus desejos, ele responde com a fantasia de ter nascido em um outro lugar. Então, nenhuma destas personagens quer ser quem são. Somos pessoas insatisfeitas neste mundo. Nascemos cronicamente insatisfeitas com as nossas identidades.

Não sei, mas é interessante aquilo que dizes. Não vi o filme exatamente dessa forma porque, para mim, por exemplo, o Jomo é alguém que não se move. Ele está a projetar-se de alguma forma, o que é normal nas pessoas, mas na verdade a sua escolha o faz ficar. A irmã dele quer partir, mas ele quer ficar. O Alexei quer ir embora, é o seu desejo. Isso é normal para um ser humano projetar-se com esperança. É por isso que estamos num momento muito, digamos, trágico para a Humanidade, é muito complicado para nós projetarmos um futuro melhor. Algumas pessoas aceitam ter uma vida muito complicada e difícil porque têm esperança para os seus filhos. Aceitam o seu fado: "Vou trabalhar arduamente porque, pelo menos para os meus filhos, vai ser melhor."

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A crise ambiental, a insegurança social, a divisão cada vez mais agravada entre classes está a aumentar cada vez mais, tudo isso faz com que a sociedade esteja a atomizar-se. O sociedade deveria ser antes era um pacto entre pessoas que decidem não se matar umas às outras e respeitar-se mutuamente, pois concordamos que, se ficarmos juntos, somos mais fortes. Esta seria a maneira como tudo funcionaria. 

Só que, como disse, a sociedade está a atomizar-se devido à avareza de alguns ou devido a um sistema impraticável e infuncional, sem promessas de proteção e trabalho para todos, criamos uma sociedade onde corremos o risco de, digamos, um outsider que chega e destroi tudo. Só que o outsider vem de dentro da sociedade. O problema é a sociedade. Por exemplo, penso no que aconteceu no Bataclan, Paris.

Não acredito que os problemas que enfrentamos sejam externos à sociedade francesa. As questões manifestam-se dentro da própria sociedade. Se algo trágico ocorre em Paris, há razões subjacentes específicas a esse contexto. Não vejo estes eventos como uma simples oposição entre “nós” e “eles”. Muitos dos indivíduos envolvidos nasceram e cresceram na França, fazendo parte do próprio tecido social. Quando uma sociedade deixa de funcionar de forma coesa, cria uma disfunção que pode, em última análise, destruir-nos a todos. Esta cegueira é perigosa, e é por isso que devemos reavaliar constantemente como coexistimos.

Voltando à nossa discussão anterior, esforço-me por criar personagens que possuem desejos; eles não se veem como vítimas. Querem melhorar as suas vidas e avançar. No entanto, esse desejo pode levá-los a situações perigosas. Por exemplo, tanto Jomo quanto Alexey entram numa espiral que pode levar à sua destruição.

Ainda assim, há um vislumbre de esperança no final deste filme, mesmo que seja retratado de uma forma sonhadora e utópica. Culmina numa afirmação poética: a alternativa a escapar do horror é 'dançar com o inimigo.' Acho essa frase— dançar com o inimigo —particularmente poderosa.

Só uma última pergunta. Gostaria que me falasse sobre a sua colaboração com a diretora de fotografia Hélène Louvart, e como surgiu a ideia desta atmosfera onírica para “Disco Boy”?

Hélène foi a minha primeira escolha. Entrei em contato com ela há quase dez anos. Leu o argumento e como era fã das minhas curtas aceitou de imediato. Ao longo da minha luta para conseguir financiamento, ela esteve sempre ao meu lado, como uma presença orientadora. Chegou um momento em que finalmente consegui o orçamento e comecei a planear a rodagem, apenas para ser desviado pelo COVID.

Hélène tem uma agenda tão ocupada quanto a do Presidente da República; todos querem trabalhar com ela. É muito requisitada por muitos realizadores de nome que estão a fazer os seus primeiros filmes, e eu, desde o início que era um admirador do seu trabalho. O que mais admiro enela é a sua disposição para correr riscos— não se esquiva de projetos desafiantes nem se acomoda numa zona de conforto. O seu profissionalismo, paixão e compromisso para com a sua arte são inspirações.

Infelizmente, perdi-a temporariamente quando a programação do meu filme foi adiada. Quando finalmente estive pronto para reiniciar, ela já estava reservada. Senti-me à deriva durante esse período, pois tinha opções limitadas devido à pandemia.

Enquanto continuei a fazer casting e a explorar outros diretores de fotografia, Hélène permaneceu como uma presença solidária. Conversávamos muitas vezes à noite; ajudava-me a encontrar soluções para o filme, mesmo enquanto trabalhava em outros projetos. Embora não fôssemos extremamente próximos ainda, ela realmente se importava com o filme, e senti profundamente esse seu apoio.

Então, em modo serendipidade, tive uma sorte quando o outro filme que devia fazer foi adiado devido à saída de um ator principal do projeto. Isso aconteceu apenas seis a oito meses antes da nossa filmagem programada, e como ainda não tinha encontrado um DOP com o qual estivesse satisfeito. Felizmente, Hélène ficou novamente disponível, o que foi uma sorte.

Quando finalmente colaboramos, a experiência foi incrivelmente orgânica. Sou alguém que está muito envolvido nos aspectos visuais do meu trabalho, como se pode verificar nas minhas anteriores curtas. Com Hélène, a comunicação fluiu sem esforço. Ela é aberta e respeitosa; se discorda de uma linha de diálogo, expressa as suas preocupações de forma ponderada.

As filmagens em si foram uma experiência extenuante. Ao longo de 32 dias, perdi sete quilos devido ao imenso stress. Não posso entrar em todos os detalhes, mas foi incrivelmente desafiador. No entanto, ter alguém como Hélène ao meu lado fez uma diferença significativa. Ver ela às seis da manhã trouxe-me conforto, e partilhávamos uma visão comum sobre o que queríamos alcançar.

Foi uma colaboração linda; acredito verdadeiramente que estamos perante uma rainha na sua arte.

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