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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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"Verdade ou Consequência?", no mundo de Luís Miguel Cintra: "escolheu o teatro, ser um criador, artista, pensador, e continua nesse caminho até hoje"

Hugo Gomes, 29.08.24

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Verdade ou Consequência? (Sofia Marques, 2023)

As cortinas descem, dividindo os dois mundos em que Camilla (interpretada por Anna Magnani) perdidamente se posiciona, num prolongado dilema existencial. Atriz de teatro, porém magnetizada pela vida civil que a espera sob juras de amor eterno, ou romances das alturas, só que acordada por um chamamento que lhe confronta com a sua “realidade”. Ela não pertence ao mundo dos meros mortais porque já havia feito a escolha, e há muito, o teatro, esse pulso de vida, o resto vencido ao seu estatuto de plateia, viraria num “outro teatro”, inacessível a Camilla

A mesma escolha havia feito Luís Miguel Cintra, e essa passagem integra e entrega a sua alma com uma sina. Trata-se do desfecho do filme de Jean Renoir, “Le carrosse d'or” (1952), o “da vida” do ator, segundo este, desafiado por João Bénard da Costa num certo dia. O derradeiro momento adquiriu uma dualidade simbólica neste “Verdade ou Consequência?”; a primeira, a essência do ator enquanto, e somente, ator, mais que uma profissão, uma vida restringida às dores da performance, do espéctaculo, do pensamento na arte e na forma, e por outro o reflexo emitido em hipotéticos e imaginários lagos encantados onde Luís Miguel Cintra, o próprio e não outro, contempla nesta sua jornada ao passado, à memória, aos tempos áureos e às figuras que o atravessaram, por entre fotos e arquivos abertos, locais manifestantes a essa nostalgia, à génese e ao seu íntimo.

Sofia Marques, também ela atriz, persiste na compreensão deste vulto maior da cultura portuguesa, não só do teatro, não só do cinema, como na invocação da sua aura, aquela que concentrou e inspirou centenas de artistas hoje em vigor. Depois de “Ilusão”, do qual seguiu de perto a concepção de uma peça no Teatro da Cornucópia, com fascínio à dupla Cintra - Cristina Reis, regressa agora com “Verdade ou Consequência?”, um convite, e um convidado, na busca das sombras, dos recuerdos e dos olvidados. E uma declaração vivida de “Ainda estou aqui!”

O Cinematograficamente Falando … falou com a autora, sobre o autor, sobre o processo de chegada, sobre a sua dimensão e tudo envolto. “Verdade ou Consequência?” chega aos cinemas portugueses, um depois da sua estreia no Doclisboa, em comemoração dos 10 anos do Cinema Ideal

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Verdade ou Consequência? (2023)

Gostaria que me falasse sobre os filmes, e especificamente sobre o tema que gira em torno de um único homem. Aliás, os seus filmes, não refiro apenas este, mas como também o “Ilusão” (2014), que de certa forma, aborda indiretamente esse homem, o Luís Miguel Cintra. Na sinopse oficial, você declara que esteve à procura do Luís Miguel Cintra que conhecia, ou seja, o do passado. Portanto, a pergunta é muito direta: conseguiu encontrá-lo neste filme?

Encontrei, sim! Trabalhei na Cornucópia durante grande parte da minha vida. Não foi a minha vida toda, mas pelo menos metade, porque entrei aos 19 anos e saí em 2016, quando a companhia terminou. E por essa razão, posso dizer que estava à procura de filmar algo que conhecia bem, no sentido de que sabia exatamente o que iria encontrar. Queria filmá-lo para mostrar às pessoas o Luís Miguel Cintra que eu conhecia, a que tinha acesso, e o quão privilegiada era ter esse acesso.

Só que, entretanto, quando comecei a fazer as filmagens [“Ilusão”], coincidiu com o fim do Teatro da Cornucópia. O próprio Luís Miguel estava numa fase muito diferente da vida, numa espécie de balanço, refletindo sobre como viver uma vida totalmente diferente daquela que tinha até então. Fazia três espectáculos por ano, e não tinha quase tempo para mais nada além de pensar e preparar os próximos espectáculos. E de repente, encontrou-se numa outra situação.

Portanto, quando comecei a filmá-lo, nós dois ficámos ali um pouco em processo de descoberta.

Também queria lhe perguntar exatamente isso, porque ao encontro do Luís Miguel Cintra do passado, o filme também tropeça no Luís Miguel Cintra de hoje?

Claro. Porque a minha ideia sempre foi essa. A minha intenção nunca foi fazer um filme recorrendo a imagens de arquivo. Decidi fazer um filme com o Luís Miguel Cintra de agora, aos 74 anos, na sua vida atual, sem a companhia do Teatro da Cornucópia, e um pouco também afastado do cinema enquanto ator. Quis enfrentar a vida tal como ela é, sem fugir da realidade presente, que também é uma busca constante — uma busca não só pelo sucesso e pela felicidade, mas também por tudo o que faz parte da vida dele.

Foi um caminho muito mais difícil de percorrer, mas também me pareceu muito mais interessante e pessoal.

Sim, é verdadeiramente pessoal, mas permita-me dizer que, pelo menos falando da minha experiência, saí da sala um pouco melancólico e triste.

Mas a vida é triste …

Não posso deixar de concordar. Isso também está ligado à escolha da última cena do filme, que é a transmissão da última cena do “filme da vida de Luís Miguel Cintra”, “Le carrosse d'or”, de Jean Renoir. A sequência final, tanto do filme dele como do seu, transmite a ideia de que ele pertence ao mundo dos atores, ao mundo do teatro, enquanto o resto do mundo se torna a plateia. Ou seja, este Luís Miguel Cintra que você filma, que está ligado ao real, esconde um Luís Miguel que se interessava pelos espectáculos e que traz consigo uma certa nostalgia do teatro.

Mas um ator vai sempre ter saudade do espectáculo, porque ser ator é algo que nunca se abandona. Não se demite dessa função; um ator continuará sempre a pensar como ator, ainda mais quando é um criador como ele é. É impossível que isso não faça parte da vida dele todos os dias. Por isso, “Le Carrosse d'Or” é o filme da vida do Luís Miguel, porque Anna Magnani, a personagem principal, escolhe o teatro em vez da vida comum. Ela escolhe permanecer nesse mundo. E, de certa forma, o Luís Miguel também escolheu o teatro, porque viveu toda a sua vida para isso. Ele não criou os laços que talvez outras pessoas tenham criado, como ter filhos e, mais tarde, na vida, recorrer a esses familiares que oferecem mais proteção. Ele escolheu o teatro, ser um criador, artista, pensador, e continua nesse caminho até hoje.

E até no cinema, parece que ele tem estado a afastar-se, praticamente. Lembro-me de um encontro com ele em 2018, quando passaram “A Ilha dos Amores”, em versão restaurada, no Festival de Cannes. Ele respondeu-me a uma questão envolvendo mercado de trabalho e o envelhecimento dos atores de que os jovens já não criam personagens de “velhos”. Ou seja, ele sente que já não tem lugar neste novo “universo” cinematográfico que está a emergir para as novas gerações, porque já não há a tendência de escrever personagens para atores como ele.

Nem para ele, nem para outros atores da sua geração... Não se pode dizer que isso seja uma regra geral, mas o cinema da época dele, desde o início até há relativamente pouco tempo, tinha uma narrativa muito diferente daquela que se vê agora. Talvez por isso ele não se identifique tanto com o cinema atual. Embora seja uma pessoa bastante livre e cheia de vontade de continuar a explorar novas formas de fazer arte, talvez sinta que as coisas estão mais vazias hoje em dia. Parece que tudo quer chegar muito rapidamente ao objetivo, com uma ânsia de alcançar o sucesso de forma imediata.

Ilusão (2014)

Achas que envelhecer é mau para um ator?

Não há nada de mal em envelhecer para um ator. Também digo isso enquanto atriz. Envelhecer é muito bom. Para começar, é sinal de que estamos vivos, e isso já é uma maravilha [risos]. Mas, quer dizer, tens uma noção da matéria dada. Trazes contigo a tua vida, as tuas experiências, o que fizeste e o que encontraste. Ficas com saudades de ‘coisas’ que já fizeste, mas também encontras novos desafios o qual tens que enfrentar, gostando ou não. Aprender com eles faz parte do crescimento. É um processo evolutivo.

Vamos recuar um pouco e falar de “Ilusão”. Apesar de em relação à Cornucópia haver um prenúncio de “fecho de portas” no ar, “Ilusão” foi concretizado em 2014, e a companhia encerrou em 2016. De certa forma, o filme, mesmo que inconscientemente, foi um tributo à Cornucópia e à sua memória?

Ilusão" foi uma homenagem, mas não foi criado com essa intenção consciente. Na verdade, tinha feito outro projeto antes. Em 2010, realizei “Vê-Los Assim Tão Pertinho” (2010), uma experiência com as Comédias do Minho, que trabalha muito com a comunidade e explora emoções e conceitos relacionados ao Minho. Após essa experiência livre, fiz “8816 Versos” (2013) com o ator António Fonseca, um filme em que acompanhei a decoração dos Lusíadas. O Luís Miguel viu esse filme, gostou e como tal me fez uma proposta: visto que estava a trabalhar com não-atores, o público da Cornucópia, e estudantes de teatro, desafiou-me a acompanhar todo o processo e a fazer um filme sobre isso. Aceitei o desafio com muita vontade, porque era algo novo para mim acompanhar o trabalho do Luís Miguel e da Cristina Reis com pessoas sem a disciplina e a rotina de atores.

Assim, comecei e deparei-me com a Cornucópia exatamente como a conhecia: com a mesma seriedade, rigor, alegria e imaginação, mesmo com não-atores. O que fiz foi mostrar o trabalho da companhia através daquele espectáculo, que incluía os primeiros textos de Federico García Lorca, e que resultou numa peça bastante especial.

Com o “Verdade da Consequência?” explorava outras abordagens. O Luís Miguel costuma dizer, e menciono isso no filme, que invento novas formas de me relacionar com ele. Talvez seja verdade. Talvez tenha sentido um pânico ao perceber que o teatro da Cornucópia estava a desaparecer e não quisesse deixá-lo ir embora. Foi uma maneira de manter essa inspiração e a sua influência comigo, de continuar a aprender com ele e a olhar para o mundo da maneira que ele o faz e o qual tanto admiro.

Foi uma experiência muito bonita, emotiva e divertida, e esses momentos refletem-se de alguma forma no filme.

E em “Verdade ou Consequência?” quem é que teve a ideia da viagem?

Fui eu que tive a ideia da viagem porque, na verdade, queria fazer umas quantas com ele. O meu objetivo, desde o início, era viajar para Espanha, porque o Luís Miguel nasceu lá, como ir a Itália, porque isso está muito ligado à sua educação; quando era jovem, ele viajava frequentemente para aprender História da Arte, e também para a França, pelas mesmas razões, relacionadas com a sua educação. Tínhamos, portanto, pensado em fazer várias viagens. Só que, entretanto, aconteceu a pandemia e só conseguimos ir a Espanha, em 2019. Logo a seguir, veio a pandemia, e não conseguimos fazer mais nada. Tudo ficou um pouco diferente.

Decidi, então, planeei que o Luís Miguel me mostrasse o seu “mundo” a partir da sua própria casa, porque a pandemia trouxe-nos uma nova visão sobre o conceito de casa, não é? O confinamento fez-nos pensar nas nossas raízes, onde realmente pertencemos. Ele tem uma casa no Porto e outra em Lisboa. Qual é, então, a sua verdadeira casa? Essa questão abriu uma nova perspetiva o qual não tinha considerado antes, mas que me fez refletir graças à pandemia. A escolha de fazer o filme sozinha, sem equipa, também está relacionado com esse contexto, porque era muito arriscado levar uma equipa de filmagens para dentro da casa dele.

Por isso, resolvi fazer tudo entre mim e ele, e acho que funcionou bem.

O mundo dele, a sua casa, rodeada de imagens sacra …

Sim, a casa dele já é um mundo por si só. A casa dele é, no fundo, uma enorme coleção de mundos. E isso é muito bonito. São imagens, algumas com muito valor, outras sem valor nenhum. É como se ele criasse uma pequena Humanidade dentro da sua própria casa.

O Luís Miguel Cintra, de certa forma, é um mundo em si mesmo. Lembro-me que no “Dicionário do Cinema Português”, o crítico Jorge Leitão Ramos o declarou como “o melhor ator do mundo” …

John Malkovich afirmou o mesmo …

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Luís Miguel Cintra e Catherine Deneuve em "O Convento" (Manoel de Oliveira, 1995)

O Malkovich … sim, ia acrescentar isso. Após a rodagem de “O Convento” (Manoel de Oliveira, 1995), John Malkovich lançou a hipótese de que Luís Miguel Cintra tivesse ido para Hollywood, seria considerado um dos melhores atores do mundo. Mas apesar de tudo isso, há um sentimento de que o Luís Miguel Cintra permanece um tanto na sombra em Portugal.

Não sei se ele está na sombra... Quer dizer, estar na sombra depende do público. Ele é um ator que, para começar, não tem necessidade de se promover, porque a sua obra já fala por si. Além disso, sempre foi um homem que trabalhou imenso. Se formos a ver, ele trabalhou com praticamente todos os realizadores portugueses, participando nas suas primeiras obras, e isso é incrível. Acho muito bonito alguém aceitar participar nas primeiras obras de realizadores, e ele tinha muito gosto nisso. Isso também diz muito sobre a sua personalidade e o seu comprometimento para com o Cinema.

Ele fez filmes que podemos ver e apreciar. Como ator, trabalhou 45 anos, foi encenador e diretor de uma das maiores companhias de teatro em Portugal, e talvez até na Europa. Para mim, pelo menos, é uma figura de destaque. Portanto, essa ideia de estar na sombra... Não sei, sinceramente, não o partilho.

Sobre a estreia deste filme agora [produzido em 2022, estreado em 2024] ... Sei que é para celebrar os 10 anos do Cinema Ideal, mas também há algo mais pessoal por trás disso. Recordo-me na Cinemateca que deram prioridade à publicação do livro “Luís Miguel Cintra: O Cinema”, e, embora seja um pouco agressivo dizer isto, mas essa urgência estava ligada à preocupação de o fazer antes que ele “partisse”. Ou seja, também há esta intenção de estrear o filme quase como uma homenagem.

Não, não queria de todo... É claro que queria estrear este filme com o Luis Miguel vivo, com saúde, para que ele pudesse acompanhar-me no que será agora o percurso do filme. Conto com ele para ir comigo, viajar, e aproveitar a vida, porque ouvi-lo é sempre uma experiência única. Esse era o meu objetivo. Não fiz o filme a pensar que o Luís Miguel não estaria cá quando o filme ficasse pronto.

Não senti essa urgência de que falas. Demorei o tempo que precisei para terminar o filme. Comecei a prepará-lo em 2019, e agora estamos em 2024. Houve a paragem da pandemia e depois continuei as filmagens, seguiu-se a montagem, e houve outras pausas, porque também sou atriz e faço bastante teatro. Muitas vezes, tinha ensaios e espectáculos, então, o processo foi feito aos poucos.

O Luís Miguel tem uma doença que as pessoas já sabem, ele tem Parkinson, mas não tem mais nada além disso. Apesar de tudo, já tem o diagnóstico há bastante tempo e tem conseguido viver com ela. Não está, de todo, no fim. A doença tem o seu tempo, e ele tem conseguido controlá-la. Ainda está numa fase em que consegue lidar com isso.

Ele continua a fazer as suas peças e a montar os seus espectáculos. Alguns desses projetos acontecem, outras vezes nem por isso, mas ele não está parado. A mente dele continua sempre ativa …

São mais as que acontecem ou as que não acontecem?

Na verdade, já aconteceram três espectáculos desde que a companhia terminou. Pelo menos participei em dois deles; “Dom João”, uma produção longa, com cerca de quatro horas, e “Pequeno Teatro ad usum delphini vanitas”, que aparece no filme e é inspirado em Dom Quixote. Além disso, fez um em conjunto com o pianista João Paulo Santos, que também é mostrado no filme. Ou seja, durante o tempo em que estive a filmá-lo, ele estava ocupado em peças de teatro, numa oratória, e a colaborar comigo nos nossos projetos. E ainda tem muitas outras ideias para futuros projetos.

Enquanto atriz, filmes como estes consomem-lhe muito tempo?

Consome sim. O filme foi feito um pouco por etapas. O Luís Miguel vive no Porto e, de vez em quando, vinha a Lisboa. Então, aproveitava esses momentos ou combinava períodos em que ele ficava em Lisboa para que pudéssemos fazer as filmagens. Outras vezes, ia ao Porto e filmava lá. Foi preciso muita disponibilidade, especialmente para saber ouvir e observar com atenção, para depois conseguir transmitir isso no filme. Tudo foi concebido de uma forma muito espontânea e pouco planeada. Nunca combinamos antecipadamente o que iríamos falar, dizer ou ouvir. Foi um processo bastante orgânico.

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Sofia Marques e António Mortágua em "Ramiro" (Manuel Mozos, 2017)

Em relação ao cinema, constante que tem uma carreira longa e diversificada, contudo, destaco dois papeis, o de “Veneno Cura”, da Raquel Freire (2008), que aliás que também participou na primeira obra dessa realizadora [“Rasganço”, 2001], e “Ramiro”, de Manuel Mozos (2017). Porque olhando para o seu percurso em grande tela, vejo colaborações com João César Monteiro [“As Bodas de Deus”], João Botelho [“Um Filme em Forma de Assim”, “Corte do Norte”], Mário Barroso [“Ordem Moral”], Jorge Cramez [“Amor Amor”], Joaquim Pinto [“Pathos Ethos Logos”] e Christine Laurent [“Demain?”], mas praticamente tudo reduzido a papeis secundários ou de passagem. Portanto, a minha pergunta, é, as suas participações cinematográficas são escolhas suas ou são os papeis que lhe chegam a si?

Deixa-me só acrescentar o “Cinarauma” de Inês Oliveira (2010) … Interessa-me imenso o cinema português, mas também já deves ter percebido que às vezes é muito difícil porque acaba por ser sempre os mesmos atores que fazem cinema em Portugal.

Portanto, é uma questão dos papeis não chegarem a si …

Não me queixo, porque estou sempre disponível e aproveito todas as oportunidades que tenho. O projeto “Veneno Cura” foi algo que adorei fazer, com uma entrega absoluta. Gostei imenso de trabalhar nesse filme, e a colaboração com toda a equipa de cinema foi muito especial. Fiz grandes amigos aí, e que ainda hoje são meus amigos. Foi um projeto realmente bonito. O “Ramiro” foi também uma maravilha, pois adoro o trabalho do Manuel Mozos e o seu cinema. Foi um prazer enorme participar nesse filme.

Gostaria de ter mais oportunidades no cinema, mas, no fundo, é preciso que os realizadores estejam dispostos a arriscar em trabalhar com atores que talvez não estejam sempre em todos os filmes. É legítimo que eles escolham atores e atrizes que imprimem algo especial nos seus projetos, e, se gostarem do trabalho, podem querer incluir esses talentos nos seus filmes.

Conexões e fidelidades cinéfilas: Encontros de Cinema do Fundão celebra mais uma edição com Cinema, amizade e memória

Hugo Gomes, 07.08.24

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Atlântida – Do outro lado do Espelho (Daniel del Negro, 1986)

Agosto, silly season como se aborda em matéria de cinema, um deserto de ideias ou de criatividades, ou as faces mais descobertas dos mercados dominantes. Contudo, no Fundão, o desejo é outro, fazer dessa “estação parva” numa comunhão cinéfila, uma reunião, um debate constante sobre o Cinema e as suas periferias. Recebemos a 14ª edição dos Encontros Cinematográficos, desta vez de “cara lavada” e nome alterado - Encontros de Cinema do Fundão - ficando por aí as radicais mudanças, o espírito, esse, mantém-se … tal como prometem … assim como a Moagem permanece como albergue desta “peregrinação cinematográfica” e o Cineclube da Gardunha no apoio fundamental.

De 8 a 12 de Agosto, a cidade será a capital do cinema em Portugal, novamente com sessões, debates, convívios e ainda um espéctaculo concebido pela fadista Aldina Duarte, a “Princesa Prometida”, segundo Manuel Mozos. Teremos novidades, primeiras imagens, amizades e ligações entre duas nações, duas cinefilias, e que bem. E claro, Pedro Costa! Este ano, José Oliveira, programador e realizador (Os Conselhos da Noite”, "35 Anos Depois, O Movimento das Coisas") responde às dúvidas do Cinematograficamente Falando …, descortinando o programa destes quatro dias e o que podemos esperar destes Encontros. 

Começo por lhe perguntar sobre os desafios de mais uma edição dos Encontros de Cinema do Fundão, não apenas no sentido de ser uma comunhão cinéfila fora de Lisboa e do Porto (cada vez mais tidos como epicentros cine-culturais), mas também das cada vez mais propostas que vão preencher o verão, nomeadamente o mês de agosto.

No ano passado tivemos, devido a várias condicionantes, pela primeira vez os Encontros no mês de agosto. E foi a edição com maior sucesso em termos de espectadores. Portanto, não mexemos no que funcionou. Talvez as outras propostas de verão sejam uma ajuda. Quem gosta mesmo de cinema, quem quer ver filmes difíceis de ver em qualquer lugar, opta pelos Encontros. Os desafios são sempre os mesmos: fazer muito, fazer bem, com pouco. Fazer homenagens e trazer autores há muito sonhados por nós. E não pensar um segundo na questão dos grandes ou dos pequenos centros. Os certames de cinema que sempre admirei foram anomalias de grande sucesso como o Telluride film festival, de Tom Luddy, nas montanhas do Colorado, o Midnight Sun Film Festival, fundado por Aki e Mika Kaurismäki e Peter von Bagh, em Sodankylä, ou, entre outros, o MDOC Festival Internacional de Documentário de Melgaço, no Alto Minho, organizado pela Associação Ao Norte.

Olhando para a programação, podemos constatar uma forte presença portuguesa na sua seleção, desde os consagrados (Pedro Costa), aos homenageados (Jorge Silva Melo) e aos que merecem atenção no nosso radar (Manuel Mozos). De certa forma, os Encontros Cinematográficos espelham uma vaga ou um pensamento transversal do cinema português através da sua mostra?

Se virmos a história dos Encontros, percebemos que umas das questões mais importantes, e que tantas vezes estrutura a nossa programação, é a questão da fidelidade. Fidelidade aos cineastas que admiramos, aos autores, às vozes únicas. E assim, desde que eles tenham um novo filme, é quase certo que regressarão aos Encontros. Pedro Costa, Manuel Mozos, mas também Rita Azevedo Gomes, o saudoso Pierre-Marie Goulet, entre outros. O caso do Jorge Silva Melo é importante, e também tocante, pois sempre o quisemos trazer, mas nunca o conseguimos devido a conflitos de datas. Mas agora, com a presença da Aldina Duarte, fadista que ele admirava imenso, percebemos que seria a hora de uma homenagem condigna. 

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Aldina Duarte: Princesa Prometida ( Manuel Mozos, 2009)

Mas não podemos deixar de referir um acto justiceiro que é para nós um dos vetores fundamentais deste ano: a exibição da cópia restaurada pela cinemateca de “Atlântida – Do outro lado do Espelho”, de Daniel Del Negro, um filme de 1986. Temos uma entrevista inédita e extremamente confessional de alguém que erradamente é considerado um eremita. A cópia está surpreendente. E assim todos poderemos apreciar em boas condições um filme único no cinema português, que combina o fantástico e o labiríntico com o lado documental e poético sobre Lisboa de uma forma nunca vista por aqui. Evidentemente, por ser uma peça única, um molde sem exemplo anterior nem posterior, foi muito mal recebido por uma certa crítica politicamente manhosa e interesseira e sem pingo de humanidade ou saber. Basta comparar o fabuloso texto de João Bénard da Costa, uns anos depois, sobre o mesmo filme, para percebermos que foi ele, como sempre, que acertou. Citando-o: «é mesmo, eventualmente, a mais radical aposta no fantástico de que me recordo no cinema português. As suas quedas - ou quebras - são, como os seus riscos, abissais. Do fundo deles, vale bem a pena sustentar o desafio que, insólita mas rigorosamente, Daniel Del Negro nos lançou.» Um momento único.

No terceiro bloco da programação [dia 11 de agosto], o José Oliveira, em conjunto com a sua parceira de realização (posso também incluir de vida?) Marta Ramos, serão o grande destaque. Enquanto realizador e programador, o eterno malabarismo, gostaria que me falasse sobre esse projeto de nome “Génesis” (cujo work in progress será exibido), assim como da escolha de “Milestones” de Robert Kramer e John Douglas na proposta carta branca.

É importante começar por dizer que os Encontros têm vários programadores, amigos, conselheiros. E que, obviamente, nem eu nem a Marta programamos o nosso filme. Foi o Mário Fernandes que fez questão, como já aconteceu noutras ocasiões em que nem eu nem a Marta estávamos ligados à programação. Outro factor decisivo é que o filme foi produzido num contexto de uma bolsa artística atribuída (em concurso) pelo Município do Fundão. Ou seja, para o processo ser validado o filme terá de ser exibido no Fundão

O “Génesis” resulta de um longo processo de vivência e de observação de um vasto território onde o poder da natureza e das forças da natureza são soberanos. De alguém que larga a grande metrópole e se perde e se encontra num meio completamente diverso. É complicado desvelar mais sobre o filme, pois nem nós mesmos, os realizadores, estamos bem seguros de como falar dele, e muito menos de como resumir. 

O “Milestones” é para nós um dos filmes mais belos, radicais e escondidos da história do cinema. Feito por amor, por puro amor, com todo o tempo e disponibilidade do mundo. Um épico intimista onde a confiança entre quem está atrás e à frente da câmara é total.

Repito esta pergunta, feita a Mário Fernandes no ano passado: os Encontros de Cinema do Fundão, podemos considerá-los um festival? Uma mostra? Uma comunhão entre cinéfilos?

A palavra Encontros é mesmo a mais preciosa e precisa para nós. Encontro entre quem ama o cinema, entre quem está interessado em descobrir novas formas, novas relações, sensibilidades, visões do mundo. Por isso desprezaremos sempre os prémios, os concursos, a competição, o circo. Importa os belos encontros, as pessoas, tornar o mundo um pouco mais habitável. 

Gostaria que me falasse sobre a restante programação, de Paulo Carneiro a Miguel Ildefonso, os convidados e as cartas brancas, passando, claro, pela presença da fadista e artista Aldina Duarte.

Além da fidelidade, o que mais gostamos é de descobrir novos cineastas, novos filmes que nos toquem. O que mais apreciamos no “Via Norte” foi o respeito e o afecto do Paulo Carneiro para com os imigrantes apaixonados por carros e com coisas primordiais para dizerem. Seria muito fácil e tentador gozar com essa paixão, tornar o filme jocoso, como outros realizadores portugueses costumam fazer, e com desgraçado sucesso, mas o Paulo esteve à altura, foi digno, e por isso o filme tem momentos comoventes em que ele cria o espaço para uma expressão sincera assomar.  As cartas-brancas são outra das constantes dos Encontros, e que permite achar e conversar sobre filiações com que as escolhe. Por exemplo, o filme do Miguel Ildefonso foi escolhido pelo Paulo para acompanhar o seu. Quanto à Aldina, tanto tem a ver com a homenagem ao Silva Melo, como com a nossa parceria com a Associação Fado Cale, que muito almejava tê-la no Fundão.

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Na rodagem de "Contactos" (Paulino Viota, 1970)

Quais são os próximos desafios a ter em conta com os Encontros de Cinema do Fundão? Existe interesse em expansão ou o nicho/regionalidade é um artifício necessário para a sua identidade? 

Não existe qualquer interesse na expansão, além da habitual extensão na Cinemateca, nossos amigos. Só faltou referir o único convidado internacional: Paulino Viota, que vem acompanhado por figuras míticas da cinefilia espanhola, como Enrique Bolado, programador e fundador da cinemateca de Cantabria e uma figura importantíssima em termos culturais mais latos, ou José Luis Torrelavega, do Cine Club Santander, catedral cinéfila de um culto precioso. 

De resto, Viota é uma das grandes descobertas dos últimos anos, realizador de um dos filmes mais radicais, políticos, misteriosos e importantes dos anos 70 espanhois – “Contactos”. Jean Narboni chegou a dizer que se os Cahiers du Cinéma tivessem visto “Contactos” nos anos 70, quando Langlois costumava mostrar estes filmes duas vezes na sua cinemateca, eles teriam imediatamente promovido (e consagrado) este filme como promoveram as primeiras obras de Kramer, Cassavetes ou Huillet/Straub. Viota é ainda um enormíssimo historiador, escritor, com livros sobre John Ford, Godard ou Eisenstein, ou maravilhosos artigos sobre diversos grandes autores, como os presentes no seu último livro, La Familia del Cine”, que será apresentado nos Encontros

Toda a programação poderá ser consultada aqui

Arranca a 3ª edição do Cinalfama: "cheira bem, cheira a Cinema"

Hugo Gomes, 24.07.24

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O espírito da velha capital é projetado nas suas tradicionais ruas, mesmo que Lisboa esteja a ser despida dos seus habitantes, os carinhosamente apelidados de “alfacinhas”, dando lugar a um turismo voraz e padronizado. Mas não avancemos mais nesta crónica sobre a gentrificação, até porque o Cinalfama, na chegada da terceira edição, é uma iniciativa que visa captar o lado cinematográfico da cidade, fazendo dela um eco cultural. Do Largo de São Miguel ao Museu do Fado, serão projetados dezenas e dezenas de filmes provenientes dos quatro cantos do mundo, e ao contrário do que assola aquela região, não se trata de turismo, ao invés disso designemos orgulhosamente como Cinema.

João Almeida Gomes, diretor do festival, respondeu ao Cinematograficamente Falando… num plano geral deste evento que iniciou na passada segunda-feira, dia 22 de julho, e que terá o “The End” (calma, intervalo, voltará para o ano!) no dia 26 [ver programação completa aqui].

Chegamos à terceira edição do Cinalfama, olhando em retrospetiva como é que este festival cresceu ou ainda pode vir a crescer?

Tem crescido em número de filmes recebidos, em número de espectadores e atenção mediática e na criação de projetos de alcance comunitário como a recolha filmada de histórias e oralidades de Alfama. Mas tudo sempre com o ambiente de informalidade e intimidade que é a nossa essência desde a génese. 

O que pode dizer sobre a programação deste ano, e a sua relação com a nossa contemporaneidade?

Um exemplo: o filme de abertura é o “Judgment in Hungary” sobre um julgamento de crime de ódio racial contra ciganos na Hungria. Queremos perceber que tangentes poderão ter o atual clima político português com a situação húngara. 

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Judgment in Hungary (Eszter Hajdú, 2013)

Sobre os convidados do festival?

Vários realizadores nos visitarão para apresentar os seus filmes pessoalmente e realizadores como a Renata Sancho e a realizadora húngara radicada em Portugal Eszter Hajdu também estarão presentes. 

Poderia me falar sobre esse projeto - Recolhas Filmadas de Histórias e Oralidades de Alfama - que terá contribuição de Pedro Costa, Leonor Teles, Pedro Cabeleira, entre outros?

Convocaremos vários realizadores a verem através da sua própria lente e subjetividade o passado, presente e futuro de Alfama

Sobre a cidade, Lisboa, não apenas a menina e moça, mas toda esta gentrificação que estamos a testemunhar, existe algum receio que isso possa afetar o público do Cinalfama, o facto dos “lisboetas” estar cada vez longe do centro da cidade, ou até mesmo da cidade?

Talvez seja, pelo contrário, o que os possa atrair. Um desejo de fruir algo de real e profundo num wasteland cultural. 

Vemos neste festival um gesto de preservação da Lisboa antiga, e cinematográfica?

A Lisboa antiga também é um pouco romantizada. A Alfama antiga era, por exemplo, um cenário de enormes privações materiais. Por isso a nossa função é complexificar, densificar a própria ideia de Alfama e isso implica também (mas não só) falar da saudade e do espírito comunitário que se perdeu.

Ambições para o futuro?

Que os nossos projetos em torno da memória de Alfama entrem em velocidade cruzeiro e que o Cinalfama siga no seu processo gradual de legitimação.

Catarina Ruivo: "Quando a minha avó morreu quis salvá-la, e filmá-la pareceu-me a única solução."

Hugo Gomes, 19.07.24

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Na sua quarta longa-metragem, Catarina Ruivo (“André Valente”, “Em Segunda Mão”) decide capturar o vazio e, nele, encontrar uma figura familiar: a sua avó, uma presença que considerava sua e que o destino levou aos 92 anos. 

Surpreendeu-se com essa perda, mesmo que a idade avançada sugerisse o contrário; a vida que transbordava dela dava sinais opostos, contudo, através dessa existência encantatória, Ruivo decidiu conceber um filme em sua homenagem. Durante esse processo, encontrou uma avó que desconhecia: uma avó antes de ser sua avó, uma mulher cujas aventuras, desvendadas por meio de cartas e fotografias, revelam a protagonista de um "épico". O épico de Catarina Ruivo, “A Minha Avó Trelotótó”, é um documentário-ensaísta que condensa uma vivência que, por mais ingrata que seja essa ideia de redução, encontra aqui o seu devido palco.

Catarina Ruivo aceitou o desafio de Cinematograficamente Falando... e respondeu às seguintes questões envolto desta obra sua que estreia nos cinemas portugueses, cinco anos depois de ter sido premiado no Indielisboa

Começo pela seguinte questão: como se filma a ausência? 

Neste filme, parti da ideia de que a ilusão do real no cinema é tão forte que ao filmar a  ausência de um corpo, tornando visível o espaço que ele ocupava, consigo não só filmar a  dor dessa ausência, mas também, materializar um ser, fazer existir um fantasma.  

Considera este filme uma homenagem à sua avó ou uma representação do vazio  humano? 

Quando a minha avó morreu quis salvá-la, e filmá-la pareceu-me a única solução. Não queria fazer um documentário sobre a minha avó, mas fazer um filme com ela. O que  me propunha fazer era filmar um fantasma para depois o devolver ao reino dos vivos, como Orfeu tentou com Eurídice. Criar um mundo onde ela pudesse continuar a viver 

Depois de terminado o filme, consegue me dizer quem foi a sua avó? O que descobriu dela que estava fora do seu radar? A pessoa que conheceu é a mesma com quem terminou o filme?

No sótão de casa da minha avó encontrei uma arca cheia de cartas suas e do meu avô, que  morreu jovem e que nunca conheci. Cartas para os pais quando foi viver para Moçambique com o meu avô em 1946, cartas de amor, cartas para mim.  

Descobri uma nova intimidade com a minha avó. Conheci a minha avó com vinte, com trinta anos, quando ainda não era avó. Através das suas cartas conheci a Julita e via-a  envelhecer. 

Gostaria que me falasse sobre algumas questões estéticas, as fotografias e a sua importância memorialista, acima do seu lado arquivista, obviamente. 

Gosto das fotografias, da forma como cristalizam um instante. A minha avó fazia álbuns que  construía como um romance, uma biografia, e onde muitas vezes colocava legendas com  pequenas histórias, pelo que parte do trabalho já tinha sido feito por ela. A ideia de fazer bonecos de cartão a partir de fotografias e colocá-los em cenários naturais, brincando com a perspectiva, surgiu das bonecas de cartão que existiam na minha infância a quem podíamos vestir diferentes fatos também eles feitos de cartão. 

Sobre a utilização dos não-atores, ou melhor das pessoas que conheceram a sua avó e que no filme interpretam elas próprias como se ela estivesse viva?

Fiz este filme para salvar a minha avó e em troca este filme salvou-me. Trabalhar com quem nunca tinha feito cinema, fez-me descobrir novamente o cinema e devolveu-me intacta a minha vontade de filmar, que julgava perdida.

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Rita Durão é uma atriz que tem sido recorrente na sua filmografia, o facto de  emprestar a sua voz para a narração atribui algum sentido de familiaridade ao seu filme? 

Nunca filmei sem a Rita, e quando tive que pensar quem seria a voz da minha avó não  pensei em mais ninguém. Quando gravámos a sua voz a ler as cartas não o quis fazer como uma voz off no sentido tradicional do termo, queria trabalhar com a Rita como actriz, criar uma personagem, fazer um trabalho de composição, como num filme de ficção. E quando oiço a Rita sinto que conseguimos, sinto a sua voz envelhecer e mudar ao longo do  tempo. 

Porquê só agora a sua estreia em sala, cinco anos depois do Prémio no Indielisboa?

Só agora, com a ajuda do Gustavo Scofano e da Catarina Almeida, conseguimos que o  filme chegasse às salas, o que me deixa muito feliz pois os filmes só existem quando são  vistos. 

“A Minha Avó Trelotótó” é a sua última longa-metragem até então, encontra-se a preparar mais alguma? Tem novos projetos?

Em 2020 filmei uma curta-metragem, “Boa Noite”, que espero vir a estrear e estou neste  momento a filmar uma nova longa-metragem de ficção, “Como é que te aguentas”.

"Yupumá", atrás de um movimento onde a "alegria é a resistência": conversa com Verónica Castro e Kawá Huni Kuin

Hugo Gomes, 17.07.24

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Yupumá (2024)

Era uma vez uma antropóloga na terra dos Huni Kuin, seguindo os preceitos estabelecidos pela antropologia de campo. No entanto, Verónica Castro tinha ambições diferentes; com uma câmara na mão, decidiu realizar um filme. O que poderia ter sido apenas mais um retrato do povo indígena amazónico revelou-se, nas suas palavras, um movimento. Tudo começou com a abordagem de Kawá, um aprendiz de pajé (curandeiro da aldeia), que lhe confidenciou um sonho que teve na noite anterior: viajar e conhecer a Europa. Esse sonho rapidamente se transformou num pedido - "Leva-me para a Europa".

Para isso, Kawá aprendeu outra língua, o inglês, para poder comunicar e transmitir aos europeus os costumes e a filosofia de vida dos Huni Kuin, denominada Yupumá, que significa o ato ou momento de fazer algo pela primeira vez. Hoje, após visitarem vários países, a dupla formada por Verónica e Kawá chega a Portugal. Com eles, além do filme cujo título é inspirado no conceito a ser difundido e da experiência do intercâmbio cultural, trazem um sonho de unir povos através de uma ideia.

"A alegria é uma resistência", perpetua Verónica, enquanto recebe o Cinematograficamente Falando... para uma conversa que nos transporta especialmente para aquela região do Acre brasileiro, às margens do rio Jordão, com a sua forma de ser em formato jiboia e a cultura representada por Kawá, que tem tantas histórias e impressões para partilhar.

O filme Yupumá” chega às nossas salas de cinema sob a produção Cedro Plátano. 

É através do rio que chegamos ao seu filme, e a sua “presença” ao longo desta. Gostaria que me falasse sobre a importância do elemento no seu filme, e se a quase onipresença é de algum significado aos Huni Kuin?

Verónica Castro: A água, como se pode imaginar, é muito importante. Existe uma interdependência nela. É a água que nasce, a que vem do rio, como também a água que vem do céu, ou seja, tudo o mesmo, só que em momentos diferentes. É muito importante para a comunidade e não poderia chegar ao Kawá sem o rio. Com o rio seco, seria impossível. O rio é essencial.

No rio temos a canoa que não é só para transporte, mas para muitas outras coisas. A canoa é usada por muitos para dormir, para cozinhar, as crianças brincam na canoa, também se lava a roupa, ou seja, a canoa é um espaço. Mas voltando à água, a sua fundamentalidade: serve para cozinhar, beber, lavar roupa, para os animais e para banho, especialmente na Amazónia, que devido às suas temperaturas uma pessoa toma três ou quatro banhos por dia, e mesmo quando está no duche, sua. Isto tudo para dar uma ideia da importância da água para tudo na vida, e para a comunidade do Kawá, ela liga e interliga tudo e todos, portanto, porque não ligar o filme a esse elemento.

Kawá Huni Kuin: O rio Jordão, na nossa língua Huni Kuin, chama-se “Renê Yurá”. Renê significa rio, Yurá é povo, ou seja, é o Rio do Povo.

Quando pensamos no rio, em cada trecho que divide as aldeias, é como se ele serpenteasse como uma jiboia. Assim, conforme se avança pelo rio Jordão, após meia hora de viagem de canoa, já se encontra uma aldeia. Ao subir pelo rio, após essa meia hora de viagem, já se vê outra aldeia. É aí que começa a divisão, com um igarapé – um rio muito pequeno – separando as aldeias. Mais adiante, outro igarapé faz o mesmo.

Dessa forma, as aldeias ficam divididas entre os igarapés.

Quer dizer que o rio assume-se como as fronteiras entre aldeias?

KHK: Exatamente! [aponta para o mapa e dedinha a zona do Acre] Depois de chegar a essa aldeia, ao continuar a subir mais à frente, há uma reserva que ainda não é considerada terra indígena, mas, após uma hora de viagem, entramos em terra indígena. A partir desse ponto, chegamos a outro rio. Dali para a frente, é terra indígena. As águas dividem cada aldeia, dando nomes às aldeias. Aqui é um igarapé, que é um pequeno rio. Assim, temos uma aldeia. Depois de passar por este igarapé, encontramos outra aldeia. Portanto, o rio é importante porque também serve como limite das aldeias, uma fronteira natural entre elas.

Quando se chega a uma aldeia e se quer passar para outra, é preciso atravessar o rio a pé. Ao atravessar o igarapé, já se chega a outra aldeia.

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Verónica Castro e Kawá na rodagem de "Yupumá" (2024) / Foto.: Cedro Plátano

Mas esse rio é inconstante, certo? Quer dizer, você o comparou a uma jiboia - bonita imagem -, quer dizer que essas “curvas e contracurvas” que o rio faz aí nesse mapa, pode alterar de um dia para o outro?

KHK: Hoje em dia, as coisas estão a mudar muito porque está a chover bastante e há muitas inundações. Quando alaga, o rio corre com muita força e derruba as árvores das margens, tornando o rio ainda mais diferente. Na época de Verão, o rio fica tão seco que nem uma canoa pode viajar. Por vezes, temos que andar a pé. No caso da canoa, apenas duas ou três pessoas podem ir para que a viagem seja rápida. Agora, se levarmos uma canoa com três famílias e crianças, é muito difícil. Demoramos quase três dias ou uma semana para chegar apenas à aldeia, porque é muito complicado e o rio seca muito nesse período. Quando enche, enche muito rapidamente e alaga completamente. O rio hoje está a sofrer este tipo de mudanças. Os nossos avós contam que o rio não era assim; era profundo tanto no tempo de verão quanto no tempo de inverno, durante a época de chuva. O rio era diferente, mas hoje está a mudar. Contudo, as voltas que faz, semelhantes a uma jiboia, são normais para o rio.

No cartaz do “Yupumá” [aponta para o poster do filme] representa-se a floresta, a terra, a água e a jiboia. Porquê a jiboia? Porque ela mora debaixo de um poço no rio Jordão e é muito grande. A jiboia também significa, para mim, que foi ela que nos ensinou a nossa geometria.

Mas acerca da decisão de incluir o rio como uma personagem central [voltando-se para Verônica Castro] …

VC: Essa decisão? Bom, quer dizer, é a vida na aldeia e também a vida na canoa. E também é uma vida em relação ao rio e para mim. Então, voltando ao mapa, quando mostrei que comecei, comecei no meu primeiro encontro com um aperto de mão. “Bem-vindo!” Oito dias na canoa e não havia nem perguntas, nem discussões, nem preparações; era algo que acontecia do nada, como se caíssemos de paraquedas.

Obviamente, essa experiência marcou-me por ser a minha primeira experiência com o rio e com as comunidades indígenas, porque estava nesta canoa com 15 pessoas.

Quinze pessoas!? De que tamanho eram essas canoas?

VC: Máximo tamanho o tamanho deste quarto [faz um gesto que especifica-se o redor da divisória]. Assim, só que mais fininha. Eu posso mostrar uma foto? Então, estava na canoa com 15 pessoas, uma família única e duas pessoas de outra etnia que chama-se Yawanawá e o condutor da canoa - um brasileiro que mora lá, da comunidade dos ribeirinhos - com a sua mulher e uma criança, também estava lá um outro antropólogo. Então, o que é que aprendi em oito dias na canoa? No segundo dia parei de perguntar quando chegaríamos, porque tinha percebido que o tempo não existia tal como conhecia. Depois do segundo dia, percebi que podia estar aqui para o resto da minha vida. Sim, com uma noção de tempo completamente dissolvida.

Eram aquelas atividades que mencionei há pouco que substituíram a noção do tempo. Era só navegar, e os pequenos momentos reforçaram a nossa relação com a natureza.

KHK: Quando viajamos, levamos a nossa comida dentro da canoa, cozinhamos enquanto navegamos ou então encostamos e preparamos a comida na praia. Fazemos pesca, recolhemos lenha e cozinhamos na praia. Por isso, a viagem demora muito, pois vamos fazendo essas paragens, mas depois continuamos a viagem tranquilamente.

VC: Mas não era só uma viagem de lazer. Estávamos a viajar com uma canoa alugada e o condutor queria levar-nos rapidamente, mas não podíamos ir contra a natureza. Aprendi muita coisa nesta viagem. Na minha primeira introdução, além da relação com a água e da perceção do tempo que se dissolve completamente, também aprendi como se organiza o espaço dentro da canoa. Percebi que era interessante estar dentro daquela canoa com duas etnias indígenas, o vizinho com quem eles coexistem, uma família ribeirinha, um brasileiro de 73 anos e um antropólogo que conhecia muito bem essas terras, tendo trabalhado lá por mais de 40 anos.

Foi um microcosmo de vida na Terra. Comecei a observar as relações entre as pessoas e como essas dinâmicas se manifestavam dentro da canoa. Coisas tão básicas como onde as pessoas se sentam, quem pode sentar-se à frente da canoa e quem vai conduzir.

Hierarquia?

VC: Não se tratava de hierarquia, mas de lugares. Sim, lugares e a maneira como os espaços são ocupados. Enfim, isso é outra história. Mas só para dizer que esta viagem de canoa revelou tantas, tantas possibilidades para eu desenvolver a minha pesquisa. Certamente, é por isso que o rio, a canoa e estas viagens são inextricáveis. Não se podem separar, pois são como um fio central que guia a narrativa.

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Poster de "Yupumá" (2024)

Sobre essa questão da jiboia ensinar geometria, o qual também está claro no filme, essa relação com os animais. Para a sua cultura [virando para Kawá], cada animal teve um papel importante na aprendizagem humana.

KHK: Os animais são os nossos principais mestres da floresta. Os nossos mais velhos e os pajés [curandeiros] sabem contar essas histórias como se fossem mitos. Mas não são mitos, são histórias reais que aconteceram com os animais, numa época em que eles se comportavam como seres humanos, falavam, comunicavam com os parentes, e continuam a comunicar até hoje.

Temos essa história, uma das maiores sabedorias que transmitimos até hoje, porque aprendemos com essa habilidade, com os animais, com a natureza. Por exemplo, temos uma história sobre como o ser humano aprendeu a caminhar com o papagaio. O ser humano caminha igual ao papagaio, devagar, passo a passo. Havia outro pássaro que queria nos ensinar a caminhar, mas o seu caminhar era como o de um sapo, que pula. Se caminhássemos assim, seria diferente. Mas o papagaio caminha colocando um pé à frente do outro, como o ser humano.

Então, recebemos o caminhar do papagaio. Quanto à barriga, foi a barriga do japó [espécie de ave] que nos foi dada. Por isso, temos a barriga aqui. Se tivéssemos recebido a barriga do papagaio, ela estaria no peito, pois a barriga do papagaio é no peito. Então, eles decidiram: “Ah, tu vais dar o teu caminhar e eu vou dar a minha barriga.” Isso é um exemplo, essa história continua.

Para cantar, por exemplo, nós seguimos a tradição até hoje. Para as crianças começarem a falar, temos uma medicina chamada Eva, que tem o mesmo nome de um pássaro que imita outros pássaros. Quando a criança começa a falar, damos banho com isso e passamos na língua. Os animais são muito significativos para nós. Os mais velhos que cantam muito, que detêm o conhecimento, são como os canários, os cantadores. Aprendemos a cantar com o pássaro cantador, aprendemos com a jiboia e com outros animais, como a paca.

Cada um desses animais nos ensinou algo útil que utilizamos até hoje. A aranha ensinou-nos tecelagem, introduzindo-nos ao algodão. A jiboia ensinou-nos geometria. Outro pássaro de bico comprido, que vive nos lagos e pesca, introduziu-nos uma medicina da mata. Quando tiramos essa erva, machucamos, fazemos um bolo, colocamos na água e o peixe começa a pular. Cada animal nos introduziu algo significativo que preservamos na nossa cultura até hoje, por isso a nossa relação com os animais é tão especial. 

Alguns animais não comemos porque nos são sagrados, como a jiboia. Também não comemos o pássaro cantador, pois o respeitamos. Não comemos a onça, porque ela também nos ensinou a cantar. Existem cantos de onça, e cada palavra que usamos nesses cantos é poderosa e sagrada. Por isso cantamos, para curar e para nos conectar com esses animais, na língua da natureza, em que o som vem de uma fonte central.

Na aldeia, quando acordamos de manhã, escutamos primeiro os “capelães” a cantar. Depois vêm os outros pássaros, alguns cantam prevendo a chuva. Toda a comunidade o escuta, sabemos que a chuva vem à tarde. Na manhã seguinte, escutamos outro pássaro a cantar, os filhos do sol, que nos indicam que o dia será solarengo. Isso nos anima a trabalhar.

Os pássaros comunicam connosco e são os nossos meteorologistas. Essa conexão com a natureza ainda existe hoje. A nossa cultura continua a mostrar que a conexão com os animais e a natureza é profunda.

E em relação à sua viagem na Europa, como vê essa relação com os animais? Sente que nós, “europeus”, escutamos e compreendemos os pássaros?

KHK: Aqui, se prestarmos atenção aos pássaros que querem comunicar, somos capazes de entender o que eles desejam transmitir. Na Grécia, vi muitos turistas a comer hambúrgueres ou pães, e os pássaros vinham todos nas suas direções. Para mim, aquilo significava que os pássaros precisavam de comida. Se continuarmos a pesquisar o que os pássaros querem comunicar, é possível reconectar-nos com eles, porque acredito que não prestamos atenção suficiente aos animais.

Nós não damos a devida atenção a eles, sejam pássaros, gatos, cães, lobos ou outros. Aqui, é provável que essa conexão tenha sido perdida. Mas, se realmente quisermos nos conectar com os animais, é possível. Quando estive na Irlanda, na floresta, escutei diferentes sons dos pássaros, percebi outra energia, outro espírito, uma outra conexão. As pessoas não se apercebem dessa necessidade de reconexão.

Estou a sentir e a ver que é um mundo diferente. Temos de prestar mais atenção ao que os animais nos estão a tentar dizer para podermos reencontrar essa ligação que tivemos no passado.

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Yupumá (2024)

O curioso é que no filme quase todos os animais surgem no ecrã ou estão mortos ou a ser pescados?

KHK: Na minha opinião, o valor dos animais não está a desaparecer; pelo contrário, estamos a exaltar cada vez mais o seu valor. Por exemplo, o papagaio oferece muito. É o espírito do papagaio que se manifesta, e acreditamos que ao consumir a memória do papagaio podemos melhorar a nossa habilidade linguística.

Escuta duas ou três vezes sem gravar. Então, entende-se a ciência que o papagaio nos dá. Se comermos o miolo e a carne do papagaio, que é escura como o feijão, isso fortalecerá o nosso sangue. Usamos as penas do papagaio para fazer brincos, cocares e também as guardamos para defumar crianças, protegendo-as. Cada pássaro e objeto dos animais têm um valor especial para nós.

Antigamente matávamos a jibóia, tirávamos a pele, usávamos os ossos e a gordura para tratar ferimentos e outras coisas. Hoje em dia, o meu pajé, que é o meu professor mais velho, ensinou-me que não devemos mais matar a jibóia. Apenas a seguramos, falamos com ela e deixamo-la ir. Nas outras aldeias, ainda matam a jibóia, mas cada animal que comemos tem o seu espírito, que precisa ser purificado para evitar doenças.

Para prevenir isso, utilizamos a ciência da floresta, as ervas medicinais. O pajé, que é o curandeiro, dá banhos nas crianças, e os pais são obrigados a batizá-las com medicinas para que recebam a energia da planta e cresçam saudáveis. Desde que a criança nasce, já começa a receber tratamentos com medicinas e banhos. Durante a gravidez, a mãe deve tomar muitos banhos de ervas e ouvir cantos para que a criança nasça forte.

Durante a gravidez da minha esposa, eu não posso matar certos animais. Se eu o fizer, pode causar problemas para mim ou para a minha família. Por isso, respeitamos os animais especialmente nesse período.

Toda a nossa tradição está interligada com a natureza, animais, plantas e cantos. Desde o nascimento de uma criança, tudo é feito de acordo com a nossa ciência original e as nossas tradições.

Esta exaltação dos animais reflete o profundo respeito que temos por eles, reconhecendo as suas contribuições e a sabedoria que nos transmitem. Cada animal desempenha um papel significativo na nossa cultura e na nossa compreensão do mundo. Ao valorizar estes papéis, fortalecemos a nossa ligação com a natureza e com os ensinamentos que ela nos oferece.

VC: O que quis mostrar no filme não foi simplesmente que os Huni Kuin são caçadores de animais. Sim, utilizamos animais mortos, mas eles fazem parte de um sistema onde cada parte do animal é aproveitada, não só fisicamente, mas também espiritualmente. Valorizamos não apenas o que o animal nos fornece em termos materiais, mas também o espírito do animal.

Sigo para a génese do filme, é sabido que o filme propriamente dito nasceu de um sonho do Kawá, o de ir para a Europa …

KHK: Sonhar em querer conhecer mais sobre a cultura da cidade é algo que temos na nossa aldeia. De manhã, o nosso “cacique", que é como um presidente da aldeia, e a liderança, que é semelhante a um governo, reúnem-se para liderar os mais jovens e novos no trabalho e na administração. O “cacique” convida a liderança a acordar cedo e contar os nossos sonhos, o que sonhamos e o que vamos fazer com eles. Compartilhamos não só sonhos de quando estamos a dormir, mas também as nossas visões.

Temos muitos rituais e tradições na aldeia, e por vezes, durante uma noite de ritual, um sonho aparece-me, como uma visão. Eu viajo e vejo grandes navios, aviões, cidades grandes, coisas que nunca tinha visto antes. Isso faz-me perceber que preciso de aprender mais. Acredito que os meus ancestrais trouxeram-me essa oportunidade para buscar algo novo.

Por isso, surgiu em mim o desejo de realizar este sonho de viajar, fazer algo bom para continuar a aprender. Ouvi falar que alguns parentes viajaram para a Europa e voltaram contando como era lá. Isso despertou em mim o interesse de também conhecer e aprender.

Foi esse sonho que me motivou e que me ajudou a convencer a Verónica a colaborar. Queria comunicar a minha cultura, não só em português, mas também noutra língua, por isso comecei a aprender inglês. Quando a Verónica esteve na nossa comunidade, estava a filmar e nós ajudámos no seu trabalho. Percebemos que, ao fazer isso, estávamos a convencer a comunidade a colaborar e a trabalhar em conjunto. Daí surgiu o filme, que reflete a nossa tradição e a nossa palavra, que pode ser compreendida por todo o mundo.

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Verónica Castro na rodagem de "Yupumá" (2024)

E de onde veio a ideia do título - “Yupumá”? 

VC: Pois bem, o que acontece ao tentar apresentar o conceito indígena? Fiquei bastante empolgada com essa ideia e até perguntei ao nosso chefe, o pajé que você viu no filme. Mesmo sendo uma pesquisadora persistente, com papel e caneta sempre à mão, precisei ver e rever para entender. Ele explicou que não é algo que se defina facilmente, mas sim uma experiência que precisa ser vivida pelo corpo e ser reconhecida pela comunidade.

Foi nesse momento que percebi: a comunidade na Europa precisa de entender isto. Não são apenas os franceses e os alemães que são filósofos; não são os únicos capazes de entregar filosofias de vida ou compreender esses conceitos.

Decidi que este era um conceito que poderia ser muito útil para o nosso olhar europeu.

Haverá algum tipo de continuação? O das “aventuras” de Kawá na Europa?

VC: Até agora, a minha resposta tem sido que vocês aqui estão integrados nisto. Assim, o filme transborda para a realidade. A continuidade é vivida através do conceito Yupumá.

KHK: A primeira vez que viemos, acredito que tivemos uma experiência de Yupumá. É por isso que este projeto ainda continua. Estamos aqui, cada vez mais, a formar famílias e comunidade, e as pessoas estão a conhecer-nos. No início, apenas a Verónica me conhecia, mas hoje em dia muitas pessoas já me conhecem e cada vez mais vão conhecendo. Estamos a criar uma comunidade e um grupo de trabalho. Assim, continuamos em movimento.

VC: Gosto de chamar a isto o movimento Yupumá. Sim, e está a crescer. Sempre digo que isto é uma proposta. O que estamos a fazer é uma proposta para mostrar, não só em termos de disciplina de antropologia, mas também como um exemplo de uma nova forma de fazer antropologia. Estava a falar há pouco; as pessoas perguntam-me: “Quando é que começaste o trabalho de campo, em que data?” Digo-lhes a data, mas quando me perguntam quando terminei, respondo: "Não sei, porque o campo está comigo agora. Estamos a criar este novo campo." [risos]

A antropologia já não é o sonho do antropólogo que vai lá com a sua caneta estudar o outro. Agora estamos a partilhar este processo e, na academia, argumento isto em termos de cinema. Já sou cineasta, então o cinema é uma ferramenta para mim. E agora, ao partilharmos estas habilidades e esta ferramenta, estamos a co-criar esta história. Em termos de cinema, estamos a avançar além das propostas de Jean Rouch.

Ultrapassar o verité?

VC: Exacto, é uma experiência. Só que não podemos estar em todas as salas para ter esta conversa, portanto o grande desafio é como transmitir este sentimento, esta sensação de pertença ao filme, e em todas as salas, quando este for visto sem a nossa presença.

Encontrou uma solução?

VC: Ainda não sei. Penso em como os filmes vivem para além da tela, da sala. Possivelmente, será através das ações das pessoas após verem o filme. Como será essa relação? Bem, um espectador poderá relacionar-se intelectualmente e emocionalmente, mas acho que este filme propõe um outro tipo de envolvimento. O que propomos é... isso mesmo, “Yupumá". Se as pessoas começarem a enfrentar a vida com esse estado de espírito, já estarão a relacionar-se com o filme. Ou seja, fazer algo pela primeira vez e dar prioridade a isso todos os dias. Seríamos, de facto, mais felizes. A nossa proposta é que a alegria é uma forma de resistência, e isso só é conseguido através do Yupumá.

Já demonstrámos o nosso filme em diferentes sítios, muitos em contextos mais íntimos, e as pessoas saíam perplexas, perguntando que tipo de filme é o “Yupumá". “Um filme indígena sem genocídio, sem incêndios, sem enchentes, apenas pessoas felizes com as suas vidas?”. A minha pergunta enquanto cineasta é: ou as pessoas só querem ver as misérias para se sentirem melhor, ou têm medo da alegria, ou simplesmente aterrorizam-se com a ideia de estarem numa canoa no meio de um rio, em silêncio?

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Yupumá (2024)

Visto que o cinema indígena, incluindo o seu filme como parte desse subgênero, está a crescer de tal forma, questiono se há algum perigo de banalização.

VC: Não quero julgar o trabalho dos outros. Acredito neste método e é desta forma que pretendo continuar a realizar filmes, levando-nos para além da sala de cinema de uma maneira digna. Se outros fazem filmes sobre a Amazónia de outra forma, muito bem, é uma escolha deles. Agora, se assumimos o cinema indígena, e que está a crescer e até tem festivais dedicados, já está na hora de colocarmos a questão do que define o cinema indígena e o que torna esses filmes verdadeiramente pertencentes a essa designação?

É uma boa pergunta. Tem a ver com o olhar, seja do filme, seja de quem está a formar esse olhar [sabendo que muitos realizadores dão câmaras a membros das comunidades para que eles filmam as suas próprias imagens]?

VC: Quem está a fazer a montagem? Não é fácil, mas quem monta detém o olhar do filme. Não é de agora, mas durante anos treinou-se indígenas para filmar, gravar e até montar, mas a questão permanece, o que define o cinema-indigena, ou melhor, quem decide os temas a filmar?

"O digital é talvez o factor mais realista": Eduardo 'Teddy' Williams e a busca do auge da Humanidade

Hugo Gomes, 13.07.24

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Eduardo "Teddy" Williams na rodagem de "El auge del humano 3" (2023)

Foi em vésperas da estreia nacional (com ‘perninha’ no festival Indielisboa e uma retrospetiva no Cinema Batalha), que Eduardo Williams, conhecido por estas bandas cinéfilas como “Teddy”, me recebeu para falar sobre o seu mais recente projeto, "O Auge Humano 3" (“El auge del humano 3”), que conta com produção portuguesa, além de envolver outros 7 países, unidos para explorar uma ideia de universalismo. A nossa conversa abordou desde as ideias por detrás do filme até ao seu cinema em geral, consolidando Teddy como uma das vozes mais debatidas no meio académico cinematográfico e no mundo do cinema experimental e independente.

Com "O Auge Humano 3", lançado sete anos após o primeiro (atenção, nunca houve um "O Auge Humano 2", essa sequela está no “segredo dos deuses”), acompanhamos um grupo de jovens que testemunham um fenómeno difícil de caracterizar para lá das montanhas. Enquanto vivem e debruçam-se sobre os seus quotidianos, ponderam um retorno ao estado selvagem, ao primitivo ou até místico. Eis uma obra sobre a comunicação, mesmo diante de diversas línguas ouvidas ao longo deste percorrer de cenários em 360º e dos glitchs que vão sendo presenciados. Há uma distorção dessa realidade! Mas Teddy acalenta as nossas preocupações, tal é tão ou mais real do que a nossa própria realidade humana. Aliás, o que é ser humano?

A discussão alarga-se sobre "O Auge Humano 3", o virtual enquanto nova realidade, o filme das multi-interpretações e de estéticas e o AI contra a carne da nossa carne. 

Começo a conversa desta forma: que lugar acha o ideal para ver o seu filme?

O lugar para qual o meu filme foi feito? É isso que me está a perguntar?

Sim, é uma questão um pouco abstrata, porque entendo que a sua estética é provocadora, neste caso, neste filme, sinto uma certa distância das pessoas, do factor humano, por ter sido filmado com uma câmara de 360 graus o que lhe aufere uma sensação estética muito virtual. Não sei se era esse o seu propósito.

Sim, uma parte é voluntária, a outra surgiu através da descoberta e do experimento. Em relação ao local, faço filmes para o cinema, seja em película, seja em 360 graus, a sala de cinema será sempre o seu lugar, exceto algumas encomendas para museus. Tenho consciência de que se vê muito cinema em computadores e nos mais diversos lugares. Nada contra essa opção, mas os filmes que faço são concebidos para serem vistos e ouvidos no cinema, refiro o “ouvido” porque considero o som extremamente importante para a experiência cinematográfica, e penso deixar saliente esse elemento na minha filmografia.

Acerca da distância com o humano, não sei o que responder; depende de como se pense nisso. Não o encaro da mesma maneira, porque, para mim, o virtual hoje em dia é parte da minha vida, é essencialmente humano, é uma criação humana e é o mundo em que vivemos. Acho que, para mim, justamente esta presença do virtual no filme fala, pelo menos, de como experimento a vida hoje em dia, e creio que muita gente partilha tal experiência comigo. Então, simplesmente acredito que uso ferramentas para mostrá-lo de uma maneira mais sucinta, talvez. Quanto aos rostos se deformarem e especificamente integrarem a imagem, obviamente que na vida, no real, não vemos isso, mas talvez sintamos isso a acontecer de alguma maneira.

Não sei, pelo menos eu sinto aquilo que os ingleses apelidam de “uncanny valley”, sofro com isso, a deformação das faces das suas personagens quando nos aproximamos, leva-me a distanciar deste conjunto, porque tudo me soa na ressonância do fim da Humanidade. O nosso fim, de certa maneira, não sei, é a minha impressão acerca do seu filme, mas pelo que entendi, também é um filme com várias interpretações, dando uma exposição para quem o vê.

Sim, por isso, mesmo que por vezes se pense o mesmo ou não, o tipo de filme que faço, como bem disseste, é justamente para isso: para se abrir a múltiplas interpretações e não se reduzir somente à minha. Se assim não fosse, faria filmes mais claros e que comunicassem diretamente uma ideia minha, mas essa não é a minha noção de cinema. Gostei de ouvir a tua interpretação e respeito-a, mesmo que não vejas o filme à minha maneira. Não te posso censurar; se o fizesse, seria contra a minha essência. Só te digo como me sinto em relação aos lugares, ao binarismo do humano e do não-humano, mas isso também depende das nossas experiências, das nossas vidas, de como nos sentimos em relação ao cinema. Nem todos nos sentimos da mesma maneira. Mas, o que dizias concretamente no início?

Que existe uma certa distância, como o fim da Humanidade.

Sim, isso! O fim da Humanidade! Não sei. [risos] Tenho esta sensação desde os meus tempos de criança. Chega o ano 2000, termina a Humanidade, desde os lugares mais simples e até aos mais bobos, até coisas como a mudança climática e a destruição do planeta, que se tornam cada vez mais reais. E também há esse desejo de querermos o fim de certas ‘coisas’, mas não a Humanidade, talvez o sistema em que vivemos. Nesse sentido, há que escolher em colocar-se na crise ou de ver a crise do sistema, por assim dizer, de diferentes sistemas. Mas o fim da Humanidade... não sei! Não acredito, na verdade. Por agora, parece-me que ainda falta muito para tal acontecer.

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El auge del humano 3 (2023)

Digo isto, porque existe a certo momento do “O Auge Humano 3” uma personagem a lamentar-se de que existir é cansativo. Entendi isso como algo muito niilista no seu filme.

É verdade, e além disso, acho que deve haver um equilíbrio entre essas coisas. Deparamos por momentos mais niilistas, como esse que citaste, ou do cansaço em relação ao trabalho, à vida  como ela é ou por outras questões, só que também temos que ver que há esperança. O simples facto de pessoas, de países distantes, se reúnem e avançam em conjunto em direção a algo que não entendemos ao certo é para mim uma forma de esperança e de continuar a tentar algo em oposição a esse niilismo: uma revolução. Mas sim, há de tudo, as duas dimensões: falar sobre determinados elementos negativos ou sobre o facto de que a mera existência provoca cansaço, só que não podemos esquecer que temos um outro lado.

Outra característica do seu “O Auge Humano 3”, é que foi filmada em vários lugares do mundo, como Sri Lanka, Taiwan e Peru. Além disso, a forma como juntou os locais cria uma sensação de unidade. É como se toda a Humanidade estivesse conectada, com excepção da linguagem, visto ouvirmos uma panóplia delas, quase como uma Torre de Babel, que nos separa ou nos identifica. Mas, ao mesmo tempo, todos esses lugares e pessoas, apesar das distâncias, são semelhantes porque somos humanos. No entanto, sempre mudamos algo para sermos mais diferentes, especialmente no que diz respeito à linguagem.

Penso que no filme também está implícito uma fantasia: as personagens entendem-se em diferentes idiomas. Há cenas em que um fala mandarim e o outro responde em espanhol. Mostrando que as línguas não nos separam como realmente o fazem. 

Também, ao fazermos um filme, viajo para países cujo idioma não falo e, por vezes, usando a internet e outras ferramentas, conseguimos que essas barreiras linguísticas não sejam a nossa total separação. No filme, há pessoas que não falam inglês, espanhol ou qualquer idioma que eu fale e, de várias maneiras, conseguimos comunicar-nos. Parece-me que isso está presente, também na forma como o fazemos, o que é interessante. Não quero dizer que somos todos iguais, porque, felizmente, é melhor que não sejamos todos iguais, mas que podemos juntar-nos e ter um projeto como este. É como, a certo momento, todas aquelas personagens caminharem juntas para a montanha em busca de algo maior do que elas.

Por mera curiosidade, qual o lugar que, como demonstra no filme, tem aquelas habitações que parecem-nos cogumelos?

Ah, é o Sri Lanka!

É muito peculiar. É como um parque infantil! Gostaria que me falasse sobre os diálogos, li algures que estes foram conseguidos por via da improvisação.

Não só. Alguns textos foram escritos e outros foram improvisados. Há cenas em que tudo o que vemos é totalmente escrito, enquanto outras revelam o improviso, e a maioria das cenas combina os dois registos. Esta é a norma no meu cinema.

E quanto ao que dizes sobre as casas, posso contar-te que a primeira razão para querer filmar no Sri Lanka foi exatamente este bairro. Já tinha ido ao Sri Lanka antes, numa viagem de lazer, digamos, não por motivos de filme ou curiosidade, e passei de autocarro por este bairro e fiquei muito surpreendido. Depois, ao investigar, descobri que tinham construído estas casas sob esta forma porque um tsunami havia destruído tudo, e estas estruturas provaram ser mais resistentes, caso haja outro tsunami, do que uma forma retangular.

O filme ia ser rodado sob a chuva, mas não conseguimos fazê-lo nesse contexto. No entanto, a presença do clima no filme tem o seu lugar nesta narrativa, por isso, achei por bem incluir este cenário estranho ou irreal para nós. Mas, ao mesmo tempo, quando estamos lá, vemos que para estas pessoas aquele bairro é um lugar normal. E isso fascinou-me, um local onde o irreal e o real se encontram na mesma imagem.

Podemos dizer que o seu filme é quase como um retorno ao selvagem, mais concretamente a Humanidade à Natureza, e por fim, as suas esperadas pazes?

Não sei se diria retorno, mas sim o ato de ir. Não vou sempre atrás da natureza, mas também em frente, como em tudo. Portanto, diria que é ir ou um pouco buscar, afastar-se da cidade que nos aprisiona. Talvez para depois voltar, porque no final a câmara cai, há algo de querer subir e depois descer novamente. Existe sim uma insatisfação com o lugar onde vivemos e a vontade de nos afastar para desencadear outras possibilidades, ir para a selva, ir para a montanha, etc.

Tem administrado um workshop no Porto [Cinema Batalha] e, devido a isso, queria questionar: o que pretende com o workshop que dedica aos jovens ou interessados em cinema?

Depende um pouco de quem vai. Antes de o fazer, não sei ao certo, nem projeto minuciosamente quem vai participar, desconfio se serão mais estudantes ou mais curiosos. Era algo aberto, por isso tenho a perfeita noção de que não seriam apenas estudantes. De qualquer modo, partilho a minha forma de trabalhar e estou disponível para responder às perguntas que tiverem. Partilho a minha abordagem desde o mais concreto, resolvendo problemas específicos, até os meus pensamentos sobre por que faço o que faço, etc. Tento esclarecer sobre o meu cinema, ou pelo menos tento. [risos]

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El auge del humano (2016)

E no seu caso, deixe-me mencionar uma coisa. Porque quando vi este e o primeiro “O Auge Humano“, notei uma estética e uma transição estética de filme para filme. Neste caso, é algo que percebo como muito virtual. Como já havia dito, sente-se uma grande distância em relação às pessoas. O porquê disto? Onde estou? O que é isto? Para onde vou?. Existe uma política estética nos seus filmes? Procura algo absoluto, uma meta?

Relacionado com o deformado realista? Sim. Quero dizer, para mim, o digital é talvez o factor mais realista. Mesmo que, à primeira vista, pareça irreal. É mais que realista, trespassa esse conceito. Através da utilização dessas ferramentas, podes mostrar pelo menos um ponto de vista da realidade de forma mais clara. Como te disse, quando vemos os rostos deformados, isso revela como me sinto, por exemplo, mesmo que não se veja o meu cabelo.

Mudar a estética, é, em parte, apenas curiosidade por usar diferentes ferramentas no cinema, mas, de forma geral, o sentido é sempre expressar um ponto de vista sobre o cinema, sobre a vida, e não restringir a “mim” e à minha perceção. Também tento fazer filmes que não sejam apenas sobre as minhas ideias, mas sobre como essas ideias são percebidas por pessoas em diferentes lugares e em diferentes idiomas. Por isso é que viajo para diferentes países e culturas, para ver como estas minhas ideias podem ser transformadas em outra 'coisa' que não sejam minhas.

E, como te disse, às vezes há improvisação, há “contaminação” de ideias de outras pessoas que integram o filme, e eu realmente pretendo tal contágio, valorizo muito. Estou a tentar agora juntar essas duas coisas, como me pediste, mas não sei. Pode ser muito longo falar sobre o que é realista ou não. Mas sim, não há dúvida de que há uma ideia de expressar ou partilhar pontos de vista sobre o mundo e a realidade, pelo menos como a vejo, e, em alguns casos, como as pessoas no filme a veem e acreditam.

Escolho imagens que mostram isso de forma mais clara, encaro-as como as imagens mais normais da vida. Vejo o mundo assim: o que é real e o que não é são quase indissociáveis. Portanto, há algo, mas não tenho certeza se respondi à tua pergunta neste caso.

Lembro-me de um colega meu, quando viu “O Auge Humano 3” em Locarno, dizer-me que parecia um filme feito por AI, Inteligência Artificial. Pergunto-lhe sobre isso, sobre os avanços na tecnologia para fazer filmes sem pessoas, sem cineastas. Tentaste com essa estética que temos estado a falar para te aproximar mais das propriedades estetizadas, hoje previstas, pelo AI, ou é apenas uma coincidência?

Nem por isso. Não uso AI nos meus filmes.

Não referia ao uso, referia à estética …

Sei, o que quero dizer é que não estou em contacto com a Inteligência Artificial, nem para o filme, nem na minha vida. Não estou a pensar nisso. Sei o que é de forma geral, mas não tenho tentação ou pretensão de me relacionar com isso. Para mim, está mais associado ao mundo digital de outra maneira, por ter vivido muito através da internet desde a juventude e por jogar videojogos. Está muito ligado a essa parte do mundo digital ou vida virtual. 

Quando penso em preparar um filme, estou num modo virtual, porque estou sentado em frente a um computador a descobrir mundos e a “escavar” ideias, porém, quando faço um filme, torna-se também uma experiência muito física. São os opostos da artificialidade vendida pelo conceito da AI. Descubro as cidades e os países que visito e as pessoas que conheço fisicamente, sem qualquer informação virtual. É muito importante que no filme existam esses dois mundos: o virtual e o físico. De um modo geral, se me perguntares o que penso sobre relacionar o filme com inteligência artificial, diria que não o faria, especialmente porque o que entendo sobre inteligência artificial se resume a juntar informações.

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Parsi (2016)

O filme é muito diferente disso, é sobre humanos a decidirem, no momento, o que fazer, sendo surpreendidos por vezes, e outras vezes a prepararem-se. Acho que o funcionamento do nosso cérebro difere dessa inteligência artificial, não estão no mesmo patamar. Contudo, como referi ao longo desta conversa, estou aberto a ouvir e a gerar diferentes pontos de vista com o filme, no entanto, não estou receptivo à AI. Não a utilizo; talvez se o fizesse, compreendê-la-ia de uma forma diferente.

Quanto aos outros elementos, como os videojogos ou a internet, surgem no filme porque fazem parte da minha experiência de vida, portanto, surgem naturalmente. Não acho que com isso desejo fazer um filme sobre a vida virtual ou a internet; isso acontece porque é assim que experiencio o mundo. Depois, percebo que, quando escrevo um filme, não penso muito no início, mas sim mais tarde. É mais tarde que me dou conta de como e quanto a presença da vida virtual está no filme.

Essa presença é muito evidente, não só quando falamos disso, mas ainda mais quando não falamos. A forma como falamos, de como as personagens se expressam, tem muita influência das conversas de chat. Em outras curtas-metragens minhas, isso é dito de forma mais evidente. Mas, em muitos momentos da minha vida, falei mais com as pessoas através de chat na internet do que na vida real. O ritmo da conversa e a forma como organizamos a informação diferem. Quando escrevo diálogos, percebo o quão presente isso está.

Mas neste momento não temos uma ideia clara do que é o cinema de inteligência artificial. Temos algumas imagens definidas e uma visão bastante ampla. Mas quero perguntar: o porquê das câmaras de 360 graus? De onde veio essa ideia?

Usei esta técnica uma vez numa curta-metragem, “Parsy”, em 2019. Escolhi inicialmente porque queria dar a câmara aos atores. Com uma câmara de 360 graus, não é necessário enquadrar durante a filmagem, os atores podem segurar a câmara e não precisam pensar no enquadramento. Isso foi muito útil na altura. Depois de experimentar, descobri outras vantagens durante a filmagem, mas o motivo principal para usar novamente esta técnica neste filme foi a possibilidade de enquadrar na pós-produção. Penso que isto é diferente do que penso sobre a inteligência artificial, porque ao visualizar as imagens num headset de realidade virtual, pude gravar os meus movimentos. Por exemplo, ao visualizar a imagem, se faço isto, o enquadramento fica assim; se faço aquilo, fica de outra forma. É uma maneira muito diferente de abordar o enquadramento num filme. Faço os meus filmes para pessoas que não sabem o que é o enquadramento ou a realidade virtual, mas espero que sintam esta forma especial de observar os outros e de estar com eles através deste método.

Para mim, a maior diferença é que agora posso fazer o enquadramento não durante a filmagem, como é habitual. Durante a rodagem, estamos a pensar em mil e uma coisas, incluindo no próprio enquadramento, agora, faço-o sozinho na pós-produção, numa sala, dedicando todo o meu corpo e mente a isso. É diferente a forma como penso sobre o que enquadrar, onde enquadrar e como sentir isso, incluindo a relação física. Normalmente, enquadramos com as mãos, agora, posso fazer isto, enquadrar e até mover o meu corpo. A relação física com o enquadramento revelou-se diferente. Essa foi a razão para escolher esta câmara. Além disso, editei as duas horas do filme no computador e depois assisti-as de uma vez, para que pudesse enquadrar o filme todo de uma vez. Normalmente, faríamos isso cena por cena. Agora, consegui fazer o enquadramento continuamente, cena após cena, à medida que me movia. A última parte do filme está relacionada com essa experiência de assistir e, não sei, de ter assistido ao filme.

A principal razão para usar a câmara de 360 graus foi essa diferença no enquadramento e, enquanto a usava, descobria outras coisas. Por exemplo, a relação com o tipo de imagem é, por vezes, como o Google Maps, outras vezes como uma câmara de segurança ou como um videojogo. Descobri isso mais enquanto a utilizava do que antes. Não pensei especificamente que queria a câmara por isso. Mas quando vejo e edito, sempre tenho a oportunidade de acentuar isso ou não. Por exemplo, deixei alguns movimentos robóticos no computador porque me faziam pensar numa câmara de segurança. Ou algumas cenas eram mais como o Google Maps e podia escolher se queria que isso fosse mais acentuado ou menos acentuado. Portanto, sim, essa foi a razão.

É fácil conseguir financiamento para os seus filmes? Pergunto isto porque o “Auge Humano 3” é uma coprodução entre 8 países [Argentina, Peru, Brasil, Portugal, Países Baixos, Taiwan, Sri Lanka, Hong Kong].

Não! Fácil não é. Não sei quem te dirá que é fácil. Ninguém sente que é fácil, certo? Mesmo que para alguns filmes seja menos difícil do que para outros, ninguém acha que é fácil. Mas sim, a primeira vez que consegui financiamento institucional vindo de institutos de cinema, como aqui em Portugal, Argentina, Brasil, Holanda e Taiwan, foi para este filme. Para os outros, nunca consegui esse tipo de financiamento, principalmente quando comecei a fazer curtas-metragens. O que escrevia nunca interessava às outras pessoas, porém, acabei por encontrar quem se interessasse pelo meu cinema. Para as curtas, recebia ajuda de pessoas que gostaram de algum trabalho ou que leram algo que escrevi. Talvez, se gostares dos meus filmes, possas “ler” o que quero para o meu próximo filme e entender ou ter uma ideia do que pretendo fazer.

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El auge del humano 3 (2023)

Tentei procurar maneiras de fazer cinema com o dinheiro que tenho, ou fazê-lo com o apoio dos amigos. Apercebi-me de que ter as imagens filmadas é uma forma de conseguir que as pessoas se interessem em financiar o filme. Para a primeira longa-metragem, consegui financiamento privado dessa forma, graças àqueles que viram imagens que já tinha filmado ou as minhas anteriores curtas-metragens. Penso que, para este filme, provavelmente foi porque os anteriores tiveram uma boa recepção nos festivais de cinema e em outras partes do mundo cinematográfico.

E nas escolas de Cinema?

Talvez as instituições confiem mais nos meus filmes agora. Mas não é fácil. Além disso, é interessante que essas complicações tragam novas formas de resolver problemas, o que também é sempre fascinante.

Sigo para a pergunta, do qual julgo que lhe mais fazem. [risos] Este é o “O Auge Humano 3”, e houve um “1”, mas nunca um “2”. Pensa em fazer mais algum “O Auge Humano”? Talvez o 4?

Não sei. O próximo filme não será sobre o “2”, isso é certo. Não há dúvida alguma. Talvez nem sequer seja sobre o universo do “Auge Humano”. Não sei. Talvez no futuro, num futuro muito distante, quem sabe?

Mas por onde anda “O Auge Humano 2”? [risos] Ficará como um mito urbano? [risos]

Perdido no tempo. [risos] Sim, mas por agora, essa é a ideia. Não é uma necessidade fazer essa sequela. Claro, é possível, mas gosto deste mistério. É esse espaço vazio que talvez possa ser preenchido no futuro, ou talvez não. Um buraco misterioso. Também está no meu campo existir tantos buracos e partes que não compreendemos ou que estão de alguma forma em falta.

Pode falar em novos projetos? Sinto que tem um novo filme na sua mente.

Não! [risos] Não estou a sentir-me bem quanto a isso. Claro que tenho ideias em mente, mas por agora são apenas pequenas notas. No início, faço apenas anotações sobre as coisas que me despertam interesse. Depois, quando quero começar um projeto, sento-me, leio as notas e dou-lhes forma. Na maioria das vezes, provavelmente já não gosto da maior parte dessas notas, mas aquelas que ainda me agradam, junto-as e começo a trabalhar nelas. Por agora, estou a viajar muito para apresentar este filme. Além disso, como falo tanto sobre ele, sinto que preciso me distanciar e direcionar a minha mente para outro lugar. Estou sempre muito ligado aos filmes que faço, por isso não consigo dividir os meus pensamentos. Algumas pessoas conseguem ter vários projetos na cabeça; no meu caso, só consigo focar num de cada vez.

Ou seja, um “filho de cada vez” …

Sim, espero começar em breve, mas desde agosto, desde Locarno, tenho viajado sem parar. Vou continuar a viajar por mais alguns meses. Assim que conseguir desacelerar, espero poder iniciar o projeto.

Revenge of the 80's e mais cultos. Arranca o 3º Screenings Funchal Festival com vénia ao cinema de género.

Hugo Gomes, 05.07.24

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"Dead or alive, you're coming with me!", proclama Peter Weller, ou melhor, Robocop na homónima obra-prima de Paul Verhoeven, enquanto, Roddy Piper, mascando pastilha e com a shotgun a postos, ameaça: "I have come here to chew bubblegum and kick ass... and I'm all out of bubblegum.", numa outra obra-mestra, desta com assinatura de John Carpenter. "They Live" e "Robocop", dois filmes que ilustram o frenesim da sci fi da década de 80, pouco pretensiosa e astuta como deve ser, tendo a violência e o humor corrosivo como brindes. São alguns dos exemplares que serão exibidos nesta terceira edição do Screenings Funchal Festival (do dia 5 a 27 de julho), que, de mãos dadas com o MOTELx, premiará a Madeira ao longo de um mês objetos de culto, ora extraídos da ficção científica dos anos 80, ora dos recentes trabalhos do género de terror com direito a holofote.

Pedro Pão, programador, foi novamente desafiado a apresentar-nos a iniciativa, os seus filmes, as suas representações e a possibilidade de futuras edições com arraial à mistura.

Segundo parece, foram 315 os filmes exibidos ao longo destes 7 anos que marcam a iniciativa Screenings Funchal, como se sente perante este número? Tem a sensação de legado? 

É um número jeitoso e que custa a acreditar porque arrancar com isto foi duro. Houve muitos entraves. Portas fechadas que deviam estar abertas e muita porta na cara. A insularidade por si só é tramada e aqui ainda temos algumas especificidades lynchianas que podem ser muito desgastantes e com as quais ou aprendemos a lidar ou desistimos. Eu ainda não aprendi, mas também ainda não desisti. Portanto, de certa forma, é difícil de acreditar, mas não creio que "legado" seja a palavra certa. A sensação que tenho é a de ter feito o melhor que podia (e sabia) com os meios disponíveis. E isso, o que finalmente começa a dar, é uma certa paz de espírito. E mais importante ainda é a sensação de que estas sessões são importantes para algumas pessoas. No final do dia, só isso importa, mas é um número muito bonito.

Este ano, o Screenings Funchal Festival terá como aliado o MOTELx, antes de partimos para a temática do evento, como aconteceu esta abordagem / parceria? 

A vontade de trazer o MOTELx ao Funchal começou na minha primeira visita ao festival em 2017. Aquele festival, com aquele público e ambiente, foi uma experiência que me marcou bastante e fiquei com muita vontade de trazer um pouco daquela magia ao Funchal. O cinema de terror por cá geralmente corre bem, mas acho que, apesar de estar melhor, há uma grande lacuna (até neste género) na diversidade das obras que estreiam aqui na ilha. A ideia andou a marinar desde então.

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Repo Man (Alex Cox, 1984)

Porquê ficção científica - terror, ou melhor, cinema de género? Como se seleccionou a programação?

Acho que a escolha deveu-se à riqueza e diversidade do cinema de género, das lacunas na oferta e é também uma tentativa de trazer público mais jovem ao Screenings. Tenho particular estima por este género e isso acaba também por influenciar as escolhas. Incluo com relativa frequência cinema de género na programação regular do Screenings Funchal. Recentemente exibimos o “Le règne animal”, “Les Cinq diables”, “Memoria” [Apichatpong Weerasethakul] entre outros e correram bem. Mas não foram bem sucedidos em atrair o público mais jovem que gosta e vai ao cinema ver este tipo de filme. Portanto, aproveitamos estas circunstâncias especiais, e preparamos uma “caixa” que lhes pudesse parecer apelativa (o terror e o sci-fi), para depois apresentar obras autorais o mais estilisticamente diversas possível. E tentou-se no processo, não alienar o público habitual.

Sobre a mostra de culto dos anos 80, continua a existir um diálogo destas alegorias / distopias com a nossa contemporaneidade? Estes filmes ainda funcionam perante um público moderno, e muitas vezes, mais sensível? 

Acredito que sim! Acho que nesta selecção o “They Live” é o melhor exemplo disso. O John Carpenter disse há uns anos numa entrevista que o filme não era ficção científica era um documentário. Basta pensar na pandemia para este filme parecer um documentário em vários e perturbadores níveis. Não sei o que poderá querer dizer que filmes futuristas distópicos feitos há quase 40 anos, estejam hoje a se aproximar do género documental. Mas espero que estes filmes também sirvam para pensarmos nisso.

E sobre a seleção infantil?

Toda a secção Lobo Mau do MOTELX é simplesmente incrível. Foi possível trazer ao Funchal o Sustos Curtos que eu acho particularmente mágico. Espero que haja curiosidade por parte dos pais, porque tenho a certeza que os miúdos vão adorar. Acho mesmo importante naquelas idades este tipo de experiências. É um investimento com retorno exponencial garantido.

Ambição para o futuro? O desejo de um ciclo de John Waters mantém-se?

Gostava muito de trazer o Paulo Carneiro e o Pedro Costa ao Funchal e tenho alguns ciclos em mente que gostaria muito de concretizar como por exemplo do Herzog… Mas como é que se escolhem só 4-5 filmes dele? O John Waters continua em cima da mesa. Festejar um aniversário com esse ciclo seria a festa de arromba que a Madeira merece. Adianto em primeira mão que quando isso se concretizar, a edição irá se chamar “Arraial Screenings Funchal”.

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Toda a programação poderá ser consultada aqui

À procura de Fernando Pessoa, enquanto se acha Manuel Guimarães: uma conversa com Leonor Areal

Hugo Gomes, 03.07.24

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Onde está o Pessoa? (2023)

Onde Está o Pessoa?” relembra, e bem relembrado, o jogo visual celebrizado mundialmente “Onde Está o Wally?”. Neste caso, trata-se de um ensaio audiovisual que se incorpora como um filme-documento sobre uma certa nata artística da capital portuguesa. Estamos em 1913, e à saída de um concerto que teve lugar no antigo Teatro da República, uma multidão apercebe-se que está a ser “espiada” por uma câmara do outro lado da rua. A reação desta, que vai desde o evidente desconforto, passando por brincadeiras, até ao pensamento de posterioridade, proporciona à estudiosa académica, realizadora e ensaísta Leonor Areal um delicioso jogo de “quem é quem?”, até que… zás… eis Fernando Pessoa!

Este loop de imagens de poucos minutos fez notícia por ser uma alegada captura do escritor de “A Mensagem” em movimento. Será mesmo ele, ou um sósia?

Leonor Areal conversou com o Cinematograficamente Falando … sobre este projeto, que faz parte de uma multi-plataforma em homenagem ao poeta – o Arquivo Pessoa – sobrando tempo para abordar “países imaginados”, Manuel Guimarães e os Saltimbancos nunca concretizados.

Gostaria que começasse por falar sobre este projeto, o Arquivo Pessoa.

Este projeto começou há cerca de 30 anos, desde que a ideia surgiu. Depois, levou alguns anos para ser realizado em CD-ROM. Desenvolvi-o no meu mestrado em Comunicação Educacional Multimédia e que converti em CD-ROM em 1997. Consiste numa base de dados de toda a obra atribuída a Fernando Pessoa até àquela data, e numa outra vertente mais de iniciação para leigos e estudantes, que é uma antologia guiada que depois se transforma num percurso labiríntico. Portanto, tem muitas ligações, porque a obra de Pessoa é labiríntica. Em 2008, esse CD-ROM foi transposto para a internet e é o que hoje está no site Arquivo Pessoa Net e Multi-Pessoa Net.

Mas de onde vem esse fascínio por Pessoa?

Estudei Literatura na minha licenciatura e, portanto, conheci a obra de Fernando Pessoa através das aulas e desenvolvi um gosto por ele. Acho que é difícil não se sentir atraído e fascinado por Pessoa, porque a sua obra é tão vasta e complexa que todos nós encontramos nela algo que nos toca, não é? E pareceu-me que o hipertexto, que na altura estava a emergir, era um instrumento de organização das ideias, das imagens e do pensamento em rede que se adequava perfeitamente à obra de Fernando Pessoa. Naquela época, estávamos habituados aos livros com uma estrutura linear, que não podem ser de outra forma. 

Ele mesmo explica que as suas ideias surgem em associações permanentes e iniciam caminhos que depois não consegue terminar, porque desses caminhos nascem inúmeras ramificações. Por isso, ele nunca conseguia terminar as coisas, porque as suas ideias proliferavam imensamente. Assim, pareceu-me que essa maneira como Pessoa descrevia o seu pensamento e a sua obra fragmentária era, especificamente, adequada ao hipertexto.

Com o auxílio das possibilidades de pesquisa de uma base de dados, construí aquela parte mais didática também como hipertexto, em que temos percursos lineares, como os percursos guiados, quando se conta uma história ou se apresenta um conteúdo. Mas depois, esses percursos cruzam-se entre si, e as ligações cruzadas estão lá feitas, de maneira que podemos saltar de um percurso para outro através de uma associação informada, indo de um para outro e, provavelmente, a certa altura, já estamos perdidos no labirinto da obra de Pessoa. Assim, construí essa parte como um labirinto, criando todo o sistema em torno da vastidão da obra pessoana.

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Leonor Areal

Gosto do termo "pessoano". Não sei quanto a si, mas quando olho para a Pessoa, reconheço o seu inegável génio, mas há qualquer coisa de conspiratório no seu percurso, como estivesse dependente e “e se”. No filme do Edgar Pêra, "The Nothingness Club", logo no início, é-nos informado que Pessoa poderia ter ganho o prémio Nobel se não fosse a guerra. Portanto, lanço esta questão; acha que hoje, apesar de ser tão estudado e reconhecido, Pessoa continua, de certa forma, incompreendido?

Não acho que Fernando Pessoa seja incompreendido; pelo contrário, acho que ele é cada vez mais compreendido. Até porque essa maneira de pensar, essa dispersão em que ele vivia, essa multiplicidade, até os vários heterónimos que são egos ou alter-egos. Nós hoje lidamos com isso como algo quase inevitável, porque acedemos à internet, começamos num sítio, acabamos noutro, perdemos tempo e deixamos coisas inacabadas…

Como os avatares?

Ele tornou-se de tudo: mítico, um autor projetivo, ou seja, alguém em quem as pessoas projetam as suas próprias ideias e sentimentos, que nem sempre são dele, e até um ícone. Hoje em dia, vemos Fernando Pessoa em camisetas, em objetos decorativos, até em sabonetes. Eu acho que ele alcançou uma notoriedade tão grande. Mas, quando vi isso, pensei: "Isto é tão superficial. O que é que Fernando Pessoa tem a ver com sabonetes?" [risos]. É apenas uma tentativa de vender um produto usando a sua imagem, um desenho com o sujeito de óculos e bigode…

Fernando Pessoa desprendeu-se do seu imaginário literário, tornou-se numa atração e por sua vez uma figura ficcional. Há pouco referia o filme do Pêra, mas também fruto de duas metragens de João Botelho [“O Filme do Desassossego”, “O Ano da Morte de Ricardo Reis”], de Eugéne Green, para além dos inúmeras obras literárias como a do José Saramago [“O Ano da Morte de Ricardo Reis”] …

Simplificadamente: Óculos, bigode e chapéu, e por isso, vendem sabonetes aos turistas. Só para dizer que ele se tornou, de facto, quase um gadget caricato. Até há bandas desenhadas, algumas até bem interessantes e uma quantidade de literatura e filmes sobre ele. Aliás, há uma revista chamada Pessoa Plural, se não me engano, dedicada ao estudo de Fernando Pessoa no cinema. Penso que está disponível online, por curiosidade. O cinema português, em particular, tem uma grande ligação a Pessoa.

Ele está no cinema, na literatura, e há imensos autores que se inspiram nele. Além de Saramago que bem referiu, temos também o Antonio Tabucchi, que escreveu "Requiem".

Que também virou filme …

Sim, Alain Tanner adaptou para o cinema … E há muitos outros autores, no fundo, ele é uma referência …

Sim, mas falo não só dessa adaptação à sua figura como também se separou da sua pele de escritor para se tornar numa figura ficcional em domínio público [risos]. Não sei qual a banda desenhada que se refere mas recordo de uma em que Pessoa era um espião numa das suas vidas duplas [“A Vida Oculta de Fernando Pessoa”, de André F. Morgado e Alexandre Leoni].

Há outra obra engraçada, uma banda desenhada do Miguel Moreira e da Catarina Verdier. Pessoa dá origem a uma quantidade enorme de obras que o questionam, interpretam, que o leem. No cinema, ele tem sido interpretado por vários atores, mas inicialmente adquiriu um aspecto mais grave, pesado e sorumbático. De certo modo, isso é reforçado pelos comentários das pessoas, que perpetuam essa imagem mais austera de Pessoa. Mas isso também tem a ver com os retratos fotográficos da época. Curiosamente, naquela altura, as pessoas não sorriam para os retratos, muitas vezes porque as fotografias eram tiradas em pose, e sorrir poderia resultar numa imagem tremida.

Isso porque o processo de fotografia era muito demorado?

Exatamente. Durante muitos anos, pensei que essa seriedade nas fotografias refletia a seriedade da sociedade da época. Depois, percebi que era devido à necessidade de ficar imóvel para que a fotografia ficasse nítida. Por exemplo, no caso das fotografias de rua, as pessoas muitas vezes eram capturadas em movimento, o que dificultava a obtenção de sorrisos. Temos muito poucas fotografias de pessoas a sorrir ou a rir, e o mesmo acontece com Fernando Pessoa. Não temos uma fotografia onde ele mostre os dentes ou sequer um sorriso. Isso nos transmite uma imagem de gravidade ou tristeza que talvez não corresponda completamente à sua personalidade.

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Fernando Pessoa

Ou até tormento? A sua alma torturada é também mítica.

Sim, mas em relação a isso, ele queixa-se nas correspondências e nos seus poemas. Como toda a gente, ele tinha dias bons e maus, dias mais produtivos e criativos. No entanto, tendemos a congelar uma única imagem dele, uma imagem séria e grave. De certo modo, essa imagem se descongela com este filme, permitindo-nos ver outras facetas de sua personalidade.

Sobre este filme, as primeiras divulgações que tivemos através da comunicação social, foi o de alguém ter encontrado uma suposta imagem em movimento de Pessoa neste trecho. Portanto, começo por perguntar: como foi que o encontrou? Será mesmo ele, como o filme indica?

Sim, eu o encontrei porque fui à procura dele, sem saber que realmente o encontraria. [risos] Achei interessante que tantos homens daquela época se parecessem com o que hoje consideramos o ícone de Pessoa: chapéu e bigode. Todos pareciam iguais naquela altura. Como eu sabia que ele circulava por Lisboa e frequentava concertos, havia a possibilidade de ele estar ali, e igualmente a possibilidade de não estar, como tudo na vida. Fui à procura, pensando que essa pergunta seria interessante como ponto de partida para um filme ou ensaio que pudesse fazer a partir daquelas imagens.

Quando comecei a analisá-las, houve um momento em que o vi e tive aquele insight imediato: “É ele, pronto!”. Mas isso não bastava, tive que verificar e comparar. As fotografias de Pessoa não são muitas, mas os fotogramas desses segundos, cerca de 12 segundos, são muitos, talvez uma centena ou duas, todos diferentes porque ele se move. A partir do trabalho e da análise desses fotogramas, consegui verificar se os traços correspondiam às fotografias conhecidas dele.

Após muito tempo de dúvida, tive a certeza. Aquela certeza intuitiva inicial foi confirmada pela análise. No filme, demonstro isso. Claro que não mostro todo o processo de meses, quase um ano, mas destaco alguns pontos chave que permitem, com bastante segurança, afirmar que aquela é Pessoa. Claro que devemos sempre admitir a possibilidade de erro, mas estou bastante segura. Segura o suficiente para arriscar a minha reputação e dizer: "Acredite em mim, se quiser, eu estou segura."

Naturalmente, é normal que o espectador tenha dúvidas até aceitar a conclusão. Será difícil provar que não é Pessoa, porque se não for, é alguém igual a ele. E o que significa alguém ser igual a alguém?

Mas o que é curioso no seu filme, logo a começar pelo título - "Onde Está a Pessoa?" - é a proposta que apresenta. Ao longo do filme, antes de irmos diretamente a Pessoa, codifica aquela nata artística que saía daquele espetáculo, que atualmente é o Teatro São Luiz, mas que antes se dava pelo nome de Teatro da República. Ou seja, o filme não é apenas um dispositivo para encontrar Pessoa, mas também é quase uma reflexão sobre a elite artística da época. Eles praticamente conviviam e mantinham relações próximas, pelo menos de homem para homem.

Sim, aquilo era o centro de Lisboa, era a comunidade da Brasileira. Todo mundo sabia que os intelectuais se encontravam na Brasileira [café lisboeta]. Era lá que eles trabalhavam, mesmo vivendo em outros lugares da cidade. Todo mundo passava por lá, era o ponto de encontro. Naquela época, Lisboa recebia influências do comércio e da cidade, mas comparada aos dias de hoje, era relativamente pequena. Ali era o coração da capital, onde as pessoas se encontravam.

Se havia um concerto especial ao domingo, como música sinfónica, quem tinha uma certa cultura ou frequência habitual desses ambientes certamente ia. Talvez não houvesse muito mais além disso. Talvez teatro, e já havia os animatógrafos, onde se passavam peças curtas. Então, era natural que eles se encontrassem na Brasileira.

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Onde está o Pessoa? (2023)

Aliás, o concerto que aparece no filme foi um evento esgotado, muito disputado. Para reconhecer as pessoas, precisei fazer um trabalho meticuloso de pesquisa em documentos antigos, revistas como a Ilustração Portuguesa, revistas musicais, biografias, fotobiografias e sites, procurando pessoas que viveram em Lisboa naquela época para verificar se correspondiam às imagens que encontrava. Foi um trabalho que também dependeu de insights.

Por exemplo, por vezes folheava uma revista e de repente via uma ilustração que reconhecia, associando-a a uma pessoa que conhecia da vida real ou do filme. O inverso também aconteceu, procurando no filme pessoas que eu conhecia. Assim, foi um processo que se estendeu ao longo de meses e anos, porque mesmo depois de terminar o filme na forma atual, continuei a descobrir mais pessoas e informações.

Há mais pessoas para além daquelas que apresenta no filme? Descobriu mais alguma após terminar o filme?

Há mais uma coisa. Por exemplo, fiz algumas descobertas depois de terminar o filme (porque os filmes não podem ser feitos e refeitos), o que é um trabalho contínuo e exigente. O percurso não termina com o filme, ele continua.

Quanto ao filme, já descobri muitas coisas. Por exemplo, encontrei a Florbela Espanca, que na altura não a identifiquei. No entanto, um espectador que saiba disso hoje poderá possivelmente identificá-la quando ela aparecer.

Julgo ter lido Florbela Espanca nos exemplos dados no press release do filme, mas não recordava de a ter visto.

Pois é, mas isso faz parte das conversas, não é verdade? Posso dizer onde a Florbela está. Talvez se lembre. Há um momento no início em que digo: "O casal feliz.”, é ela. Eu estava atenta, mas é verdade que não esperava descobrir todos esses famosos. Para mim, eles eram todos anónimos, como qualquer multidão, seja hoje ou em outra época. Estava mais curiosa para entender o comportamento das pessoas diante da câmara, como elas se mostram interprerlativas. Queria capturar esses momentos de vida entusiástica. Depois, aos poucos, foram surgindo os famosos que encontrava. O primeiro que tocou particularmente no meu percurso foi o António Silva. Foi o primeiro que vi.

Sim, o homem fardado!

Bombeiro, de fato. Então, vejo o homem com aquela farda e penso: "António Silva!”. Volto atrás, exatamente como fiz na minha investigação, quase da mesma maneira como as coisas aconteceram. Claro, tive que condensar um pouco.

É curioso ver no seu filme, a relação das pessoas, desta época, em relação a uma câmara. Hoje a nossa interação é completamente diferente …

Sim, comportavam-se como crianças …

Exato …

Isso suponho que tenha a ver com a novidade que era uma câmara a filmar pessoas na rua. Hoje em dia, ninguém pararia para ver ou até...

Hoje, a maioria evitaria a câmara …

Naquela época, a novidade por si só devia ser suficiente para deixar as pessoas fascinadas. Quando as filmagens eram feitas, o que não era muito frequente, era costume apresentar esses filmes nos animatógrafos ou em outros locais. Provavelmente as pessoas que estavam presentes eram filmadas sem saber exatamente para quê, mas esperavam ansiosamente para verem a si mesmas na semana seguinte.

Estas imagens datam do ano 1913, décadas depois do primeiro “filme” português …

Sim, o realizado por Aurélio Paz de Oliveira em 1896 [“Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança”]. Naquela época [em 1913], ocasionalmente viam-se filmes estrangeiros, além de curtas-metragens, onde as pessoas iam principalmente para ver aquela ‘coisa’ espantosa que era a imagem animada. O cinema naquele tempo encantava e intrigava, assim como hoje a inteligência artificial nos intriga. No entanto, hoje em dia temos que lidar com ‘coisas’ que nos assustam, talvez, a mim assustam um pouco.

Havia uma sensação de novidade naquela época, era isso que queria dizer. As atitudes das pessoas podem revelar ou refletir isso. Embora muita coisa daquela época já não se consiga explicar exatamente, pois eram filmes mudos, e por isso, nós não sabemos o que as pessoas diziam. Estou à espera de que alguém com dotes de leitura labial me possa ajudar a decifrar.

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Nasci com a Trovoada: Autobiografia póstuma de um cineasta (2017)

Saímos agora do filme … poderia-me falar um pouco sobre “Cinema Português - Um País Imaginado”, o seu livro-tese?

Então, esse livro, que foi publicado há aproximadamente 12 anos, foi baseado na minha tese de doutoramento, concluída cerca de 14 ou 15 anos atrás. Ele realiza uma análise abrangente de um período da história do cinema português, geralmente situado entre 1950 e 1980, com algumas variações devido à natureza fluida do tempo, da história e da vida em geral. Para efeitos metodológicos e para concluir a tese de maneira robusta, foi necessário estabelecer limites claros.

O livro tem como corpo somente as longas-metragens de ficção ambientadas na contemporaneidade, refletindo o mundo atual, e não em filmes históricos. Além de analisar as representações gerais, explora os temas e o contexto cultural desses filmes. Examina como Portugal é retratado ao longo do tempo e como esse retrato evolui nas produções cinematográficas. Não se restringe apenas a uma análise das representações, mas também investiga a evolução do cinema em si, a sua linguagem e estética, o que reflete diferentes maneiras de pensar e de ver o mundo.

Vim cerca de 200 filmes integralmente para conceber essa tese. [risos]

Essa relação com o país que estamos a ver, e com o mundo, é muito interessante. Você realizou um filme chamado "Nasci com a Trovoada: Autobiografia póstuma de um cineasta", sobre Manuel Guimarães, realizador com uma visão muito ligada ao neorrealismo da época. Poderia-me falar sobre esse filme como também sobre Manuel Guimarães, que me parece um cineasta que, por mais tentam resgatar a sua obra, nunca conseguem plenamente.

Mas há muita gente hoje em dia que aprecia o Manuel Guimarães! E eu os aprecio bastante [os filmes]. Eles têm sido revisitados ao longo do tempo. Houve um período nos anos, se não me engano, 80 ou 90 … talvez nos anos 90 [em 1997], em que a Cinemateca fez um ciclo dos filmes do Manuel Guimarães, exclusivamente dedicado: "A Travessia do Deserto", um título muito adequado. Essa foi a travessia que ele enfrentou nos anos 50, quando tentava fazer cinema interessante tanto socialmente quanto cinematograficamente, mas enfrentava a censura e a falta de recursos. Mesmo assim, ele conseguiu produzir algo significativo.

Por outro lado, ele faleceu em 1975, após a Revolução. Por isso, a sua sequência de carreira não se deu como esperado. Mais tarde, começaram a surgir os DVDs, uma coisa mais recente, talvez nos anos… 2009, 2010, mas posso estar errada em relação às datas.

Não estou a duvidar da sua dedicação a Manuel Guimarães, sei fez curadoria à exposição [com pesquisa de Carlos Braga, Miguel Cardoso e Rafael Prata.] que aquando no mais “recente” ciclo do cineasta na Cinemateca [em 2015]. O que refiro é este esquecimento que parece ainda envolver Guimarães, por exemplo, deu-se um gesto de reavaliação de António Macedo que parece, hoje em dia, ter dado frutos em relação à sua deixada obra.

Devo dizer que fiz um grande esforço para recuperar Manuel Guimarães, pois acredito que era um bom cineasta e que, se a sua obra não é perfeita, foi devido às condições adversas e às lutas que teve de enfrentar. Todos os seus filmes foram censurados, exceto o último [“Cântico Final”, 1976], que não foi cortado, mas que ele não conseguiu terminar porque morreu. A obra é um reflexo de uma vida difícil, e considero isso de grande valor. O que restou das suas intenções ainda possui qualidade, apesar de tudo.

Tenho uma teoria, que não posso comprovar, mas acredito que existe uma certa rejeição a Manuel Guimarães por ele ser visto como comunista ou esquerdista. Ele, de facto, tinha afinidades com os neo-realistas comunistas, como Alves Redol, por exemplo, e com Manuel da Fonseca.

Ele tinha desejo de adaptar a “Seara de Vento” do Fonseca, certo?

Sim. Ele tinha um projeto de adaptar o livro, que nunca chegou a realizar. Projetos havia muitos naquela época terrível. Hoje em dia também há muitos projetos; embora os tempos não sejam tão terríveis, continuam a ser desafiantes, de uma forma ou de outra. Faz parte do sonho, no fundo. Em vez de vermos isso como obstáculos, devemos ver como sonhos. Era o que Manuel Guimarães fazia. Ele usava, aliás, muito essa palavra, "sonho".

A mim, parece-me que existe um preconceito, uma rejeição inicial por ele ser esquerdista ou por estar associado a isso. Não sei se é, mas é o meu palpite.

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Saltimbancos (Manuel Guimarães, 1952)

Mas em relação ao seu documentário - “Nasci com a Trovoada”?

Então, esse filme era um projeto do Manuel Guimarães, que ele queria realizar como filme autobiográfico. Nos seus documentos, que listava os filmes que pretendia fazer e sobre os quais falava em cartas aos amigos, havia alguns esboços. No início, não escreveu sequências e planos, mas redigiu algo que corresponde a uma voz off, uma voz interior na primeira pessoa.

Utilizei esses documentos e outros materiais pessoais dele, além dos seus filmes, para construir essa autobiografia póstuma. Portanto, é uma falsa autobiografia, mas como é tudo feito com materiais dele, fui muito purista: tudo o que está ali é Manuel Guimarães remixado por mim.

E o que é feito desse filme?

Não consegui distribuir o filme nem que a televisão o passasse. E acho que a RTP tinha a obrigação de passar um documentário que é sobre o cinema português, como tem passado tantos outros. Tinha essa obrigação moral e estatutária, digamos, de serviço público, de passar filmes portugueses, especialmente os que são sobre a nossa história e cultura. A RTP deve isso ao cinema nacional.

Foi dado algum motivo a essa rejeição?

Houve muitos emails de um lado para o outro, conversas e negociações. Chegaram a dizer que sim, mas o sim nunca se concretizou. Acabei por desistir, de certo modo. Desisti de insistir ou de persistir, mas tenho o filme disponível para quem quiser ver. Para divulgar o filme, gosto de mostrar aos interessados.

Mas voltando à reavaliação de Manuel Guimarães, falou-me do seu quadrante político-ideológico, mas também se associa a fraca adesão do público português ao seu trabalho pelo facto de os anos 50 terem sido uma década difícil para o nosso cinema. Guimarães começou nessa altura a dar os primeiros passos na realização e fez isso lindamente com "Saltimbancos", três anos antes de "La Strada" de Fellini.

Já que menciona isso, é interessante que recentemente escrevi um ensaio onde li e analisei os projetos de filmes do Manoel de Oliveira, aqueles que ele teve nas décadas de 1930, 1940 e 1950, mas que não pôde realizar. Todo esse espólio está atualmente disponível na Casa do Cinema no Porto e fui lá consultar esses guiões. Há um deles que se chama "Saltimbancos", que li atentamente e comparei com o filme do Guimarães.

Esse projeto é de '44 ou '45, não tenho a certeza, mas esse meu texto já está publicado. Para além desse guião, tem planificação, orçamentos, tudo mesmo ‘preparadinho’, só que o filme nunca foi realizado. Era um projeto muito duro, muito neorrealista antes do tempo, e com muitas semelhanças na crueldade humana retratada em “La Strada” de Fellini, lançado 10 anos depois. É impressionante.

Isto é durante a Guerra que ele faz este projeto, portanto, são formas de olhar para o mundo e de construir uma visão, uma história dentro desse mundo, com preocupações, neste caso, acerca da sociedade, do tratamento dado às crianças e da vida errante e difícil dos saltimbancos.

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Manoel de Oliveira

Falava-se disso na época nos jornais, e, por volta de 1945, surgiu o romance "O Circo" de Leão Penedo, que depois foi adaptado pelo próprio escritor para o "Saltimbancos" de Guimarães. Portanto, na mesma altura, havia um escritor em Lisboa e um cineasta no Porto a abordar o mesmo assunto. Além disso, existem representações de "Saltimbancos" na pintura, embora não se saiba se essas datam da mesma época. Às vezes, há ideias que andam no ar, são preocupações comuns. Fellini, mais tarde, em outro contexto, também abordou temas semelhantes.

Só para concluir sobre Manuel Guimarães, fiz aquele documentário ”Nasci com a Trovoada” apenas com materiais de arquivo. No entanto, também realizei cerca de vinte entrevistas com pessoas que trabalharam com Manuel Guimarães. Se não tivesse encontrado o arquivo na Cinemateca, teria utilizado apenas as entrevistas, mas não consegui juntar ambos os elementos. Assim, metade do filme das entrevistas está montado, enquanto a outra metade aguarda há 10 anos. É isso que pretendo fazer a seguir.

O Tempo, trabalho e melodia em "Soma das Partes": falando com o realizador Edgar Ferreira

Hugo Gomes, 23.06.24

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Seis décadas, sessenta minutos de filme, é o que se resume a esta composição documental que se dá pelo nome de “Soma das Partes”, um projeto que vénia faz ao percurso histórico da Orquestra Gulbenkian, salientado as suas importâncias sociais, políticas e artísticas. 

Um trabalho informativamente rico, integrado por dezenas de entrevistados, solistas, maestros, todos juntos com batutas e instrumentos na mão, sonorizando este “tic-tac” - da sua fundação em 1962 por Madalena Perdigão, até à nossa contemporaneidade -, numa pauta de imagens de arquivo e performances em forma de brilharete, um aperitivo para todos aqueles que estão alheios a este universo, e que mesmo assim musicado para todos os públicos. 

Já nos cinemas: “Soma das Partes”, um filme de história e das suas historietas, dirigido por Edgar Ferreira, o condutor – apesar da sua negação – que nos recebeu na própria Fundação Gulbenkian para uma conversa sobre a sua composição e que, adivinhem, terá acompanhamento futuramente…

Questiono-lhe, este filme foi um encomenda ou uma proposta sua à Fundação?

Este filme nasce da necessidade de comemorar os 60 anos daquele que é um dos agrupamentos mais importantes da Instituição e, nessa altura, convidaram-me para fazer o documentário.

E havia alguma estrutura pré-estabelecida pela Gulbenkian?

Não. Não houve uma conversa prévia com o serviço de música. Logo nessa conversa inicial surgiu a ideia de "60 anos, 60 minutos", e tal ficou decidido. Começámos a trabalhar nesse conceito e em como poderíamos fazer um documentário que tivesse paralelismo com a música, sugerindo um determinado ritmo ou compasso, e que conseguisse contar toda a História da Orquestra gulbenkiana, desde o seu início até à formação que se conhece hoje.

E como foi essa gestão de tempo, principalmente nas entrevistas que insere?

O filme é feito em co-argumento com a Andrea Lupi, que fez as entrevistas aos 23 entrevistados. Quando tivemos uma conversa prévia, explicitei a minha proposta de demonstrar o tema do tempo, visto estarmos a comemorar o marco temporal da própria orquestra, e explorar as suas diferentes perspetivas: o tempo da música, o tempo da interpretação, o tempo dos maestros, a própria longevidade do agrupamento ou mesmo o tempo das obras que tocam, que têm entre 200 e 300 anos, e que ainda assim permanecem resistentes à erosão da passagem do tempo.

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Edgar Ferreira / Foto.: Elsa Mónica Alexadrino

Com esta estrutura definida, as perguntas que fizemos seguiram essa ideia. Incluímos, sempre que possível, questões relacionadas com o tempo, para nos dar diferentes perspetivas sobre a temática, que depois espelhámos ao longo da narrativa do documentário.

Respondendo especificamente à sua pergunta, com essas entrevistas, havíamos angariado muito material, abrangendo diferentes décadas. Perguntámo-nos se estaríamos a ser demasiado redutores ao restringir-nos a uma estrutura tão rígida que nos obrigava a deixar determinadas partes de fora. O exercício foi: vamos tentar condensar tudo o que queremos dizer num curto período de tempo e perceber se conseguimos fazê-lo ou não.

Fizemos a primeira década, depois passámos para a segunda e assim por diante, mas a dúvida persistia. Houve décadas em que partimos de um pré-argumento com 40 minutos, que tinham que ser concentrados em 10. Como foi feito esse exercício? Na edição, muitas vezes utilizamos a complementaridade do discurso dos entrevistados para conjugar – alguém começa uma frase, outro termina; alguém enuncia um conjunto de obras, outro acrescenta – permitindo que cada entrevistado retomasse o discurso, não se restringindo apenas àquela pequena parte. Respirações, interjeições, tudo o que não era essencial para o entendimento do documentário foi retirado. Adjetivação dupla: "é bonito e elegante", não, basta "elegante". O elegante já contém a beleza, então ficámos apenas com esse adjetivo.

Dessa forma, conseguimos incluir todas as temáticas que nos interessavam em cada uma das décadas. O documentário adquiriu uma cadência e uma rapidez de desenvolvimento inesperadas.

O facto de ter “conduzido” e trabalhado o tempo neste documentário, sente-se com isso próximo dos propósitos de um maestro / condutor?

Não me atrevo a fazer essa comparação porque não tenho domínio suficiente no ato de dirigir uma orquestra. [risos]

Não refiro à arte de dirigir uma orquestra, refiro mesmo a essa ginástica e ensaio de tempo …

Posso dizer algo complementar: a ideia de termos uma marcação de tempo no filme não é nada de novo, já foi feita inúmeras vezes, mas, regra geral, essa marcação de tempo é em contagem decrescente, o que gera ansiedade quanto ao fim. Aqui é o inverso, temos uma contagem crescente, uma soma, não uma subtração. Acrescentamos à história deste agrupamento, não na expectativa de um fim que resolva o filme. Em vez de sentir expectativa ou ansiedade sobre o fim, há um sentimento de crescendo, continuidade e progressão.

Eu tinha dúvidas porque, quando sentimos a passagem do tempo, nem sempre é por um bom motivo; estamos à espera de algo, e isso reflete-se no documentário. Ou seja, para o espectador, ver que o tempo está a passar pode ser prejudicial, mas devido à elevada cadência, o que acontece, ou a sensação que pretendemos obter, é que quando chegamos ao fim de uma nova década, ficamos curiosos por saber o que vem a seguir. O que vamos ouvir a seguir? Isso combina com o momento final que de alguma forma nos transmite o que é comum num movimento de uma orquestra ao longo de 60 anos.

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Maria João Pires em "Soma das Partes" (2023)

Mas essa decisão de colocar um cronómetro no seu filme, não teve medo de transmitir uma ideia contrária ao espectador?

Como estava a dizer, tive essa dúvida. Acho que no resultado final não sinto. Em qualquer momento poderia ter optado por retirar, mas não o fiz porque senti que este cronómetro faz sentido existir no filme. Ao contrário de fechar, esta contagem permanece, é um movimento contínuo.

Quanto aos entrevistados? À sua seleção? Houve alguém que recusou o convite?

Ninguém recusou o convite, houve dificuldades em reunir com alguns deles, seja por motivos de agenda. Estamos a falar de pessoas com agendas muito preenchidas, concertos a nível internacional. No caso dos maestros, dirigem orquestras em todos os cantos do globo, semana após semana. Alguns solistas, como Maria João Pires ou Evgeny Kissin, dão igualmente concertos pelo mundo inteiro com frequência, e reunir todas as entrevistas no mesmo espaço, no Grande Auditório, foi uma tarefa difícil, requerendo alguma logística.

Como funcionou essa abordagem com os entrevistadores?

Com a Andrea, falávamos previamente sobre a questão do tempo, e depois falávamos antes e durante cada entrevista, tendo algumas perguntas-guia para direcionar os conteúdos que pretendíamos obter, especificamente para aquela área ou para aquilo que aquela pessoa nos poderia dar. Houve esse exercício. A conversa fluía naturalmente e, normalmente, eu e a Andrea discutíamos na entrevista: "Que tal perguntarmos isto também?". E, se houvesse disponibilidade, essa pergunta era feita.

Em relação à investigação?

Tenho trabalhado com a Gulbenkian com alguma regularidade, e é um privilégio poder estar neste meio com os músicos e tudo o que isso envolve. Tendo a oportunidade de trabalhar com o serviço de música, vou conhecendo parte da história. Do diálogo com os músicos e técnicos, vou conhecendo histórias, coisas que aconteceram ou estão a acontecer, momentos importantes que, de alguma forma, marcaram a vida da Orquestra Gulbenkian

Quando comecei o documentário "Soma das Partes", já tinha em mente temas que para mim eram bastante evidentes: a música contemporânea, a Madalena Perdigão, que está na génese dos três agrupamentos da Fundação Calouste Gulbenkian: Orquestra, Coro e Ballet.

À medida que o documentário foi se desenvolvendo, adquiri conhecimento de outros episódios até então desconhecidos para mim, seja por via de pesquisa, seja de menções feitas pelos entrevistados nas nossas conversas. Como as entrevistas foram espaçadas, ao obter uma resposta, permitiu-nos investigar um pouco mais sobre o tema e, se achássemos pertinente o seu desenvolvimento e aprofundamento, fazíamos isso com outro entrevistado a seguir.

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Houve algum episódio dentro desta “Soma de Partes” que o fez repensar na estrutura do documentário? Por exemplo, enquanto espectador, senti curiosidade em saber mais sobre o afastamento de Madalena Perdigão da Fundação.

A Madalena Perdigão merece um trabalho exclusivo sobre ela. Este documentário não é sobre ela, é sobre a Orquestra. Achei importante mencioná-la, porque obviamente está ligada à história da Orquestra, mas houve um momento em que tivemos que deixar essa questão de lado. Estaria mais preocupado, como havia afirmado há pouco, se aqueles dez minutos correspondentes a uma década não fossem suficientes para esquematizar todos os acontecimentos desse período e se tornasse redutor, refém de uma estrutura inicial que nos impedia de atingir todo o potencial prometido. E as décadas foram-se resolvendo, uma a uma, e no final sinto que não ficou nada de fora que eu achasse que deveria estar no documentário.

Mas em relação a esse filme sobre Madalena Perdigão. Seria o realizador indicado para essa tarefa?

Gostava muito, mas ... só o tempo dirá. [risos]

Fale-nos desse outro projeto seu, o “Coro: 60 Anos do Coro Gulbenkian”?

É um projeto que tem um ponto em comum com o filme da Orquestra, que é a passagem por 60 anos de existência …

Ou seja, não terá 60 minutos?

... e as semelhanças terminam aí. O documentário do Coro permitiu-me conceber algo distinto do que fiz com a Orquestra e só faria sentido fazê-lo dessa forma. Isto está relacionado com a forma como abordo cada projeto. Tem que ser desafiante, tem que me propor algo de novo, que não me faça sentir que estou a replicar um modelo ou esquema do que fiz anteriormente. Tendo dois agrupamentos que pertencem à mesma instituição e que estão a comemorar o mesmo arco temporal, achei que tinham que ser dois projetos inteiramente distintos.

Sobre o título “Soma das Partes”? Este é alusivo à composição do documentário, seis décadas a 10 minutos cada, dando no seu total 60 minutos de duração, ou é uma referência à estrutura da orquestra, ela uma formação de vários músicos, talentos, instrumentos e classes musicais?  

É as duas coisas. A resposta está na pergunta. [risos] E daí, sendo natural, que é um nome comum, sempre utilizamos essa expressão "A soma das partes é maior que o todo", e isso não deixa de ser verdade neste caso, tanto nos elementos que compõem uma orquestra, no som que acabam por produzir, na perseguição pela excelência que está na génese da iniciativa da Madalena Perdigão até à formação atual, como também é maior do que o próprio tempo que foi experienciado pela Orquestra.

Sandro Veronesi, de "Colibri" a "Comandante": "escrever não é sobre controlo"

Hugo Gomes, 14.06.24

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Comandante (Edoardo De Angelis, 2023)

Un italiano vero”, o realizador Edoardo De Angelis avança neste episódio ambientado da Segunda Guerra Mundial, no seio do turbilhão geopolítico em águas internacionais com a história de Salvador Todaro, capitão do submarino Cappellini, que após uma investida a um navio belga, acabou por resgatar os 26 tripulantes do mesmo, da morte certa. Por que o fez? A “Lei do Mar”, pregada por Todaro, seguida pela exaltação dos valores italianos, foram a resposta.

Comandante” (que estreia agora nas salas portuguesas) promete ser um filme de guerra à sua moda antiga, de submarinos e tripulantes restringidos ao Oceano e ao cerco do couraçado. De nossa mente chegam-nos clássicos do subgénero como “Das Boot” ou “K-19”, mas o que encontramos verdadeiramente é uma obra com forte vertente ecuménica, humanista, para relembrar da nossa solidariedade e a sua “cegueira” perante facções, ideologias e divergências.

A escrita pertence a Sandro Veronesi, romancista popular e agraciado com os mais diversos elogios, cujas obras encontram uma nova existência na grande tela, seja personificadas por Nanni Moretti numa espera sem hesitações em “Caos Calmo” (Antonello Grimaldi, 2008), seja com Pierfrancesco Favino - que além deste “Comandante” - foi peça pessoal no filme “Il Colibrì” (Francesca Archibugi, 2022), a adaptação do trabalho mais famoso do escritor.

Durante uma das suas passagens por Portugal, mais concretamente durante a Festa do Cinema Italiano, na apresentação do filme, Sandro Veronesi partilhou connosco a sua experiência em argumentos cinematográficos e na escrita, como processo criativo e extensão da sua identidade.

É sabido que estudou arquitectura antes de se iniciar nas lides da escrita. Porquê a decisão? Será que perdemos um bom arquitecto para ganharmos um excelente escritor?

Nunca me considerei um arquitecto. Estudei arquitetura porque a encarei como um campo maravilhoso, e para isso fui para Florença, uma cidade que nos leciona arquitetura apenas caminhando pelas suas ruas. É um lugar onde tudo comunica arquitetura, especialmente no famoso centro da cidade. Embora os meus estudos tenham sido abrangentes e gratificantes, nunca me imaginei como um arquiteto.

Depois de concluí-los e obter o diploma, fugi de Florença para Roma, onde tinha amigos que, como eu, eram jovens e sonhavam em tornar-se poetas ou escritores. Eu também sonhava em tornar-me num, seja poeta ou escritor, imediatamente mudei de rumo e evitei qualquer oportunidade de trabalhar num estúdio de arquitectura ou em empregos relacionados. Depois de terminar os meus estudos, comecei do zero.

Claro que esta decisão foi tomada com o acordo dos meus pais, pois eu não tinha dinheiro, encontrei alguns pequenos trabalhos em Roma para ganhar algum, mas não era suficiente para me sustentar. O meu pai apoiou-me durante mais de um ano, até que finalmente encontrei um editor para o meu primeiro romance. A partir desse momento, a minha vida como escritor começou.

Eu estava incerto, na minha mente pensava: "Ok, deixa-me tentar. É melhor do que ficar em Florença e escrever apenas aos fins de semana. Deixa-me realmente dar uma oportunidade. Se falhar, sempre posso voltar e começar finalmente como arquiteto."

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Sandro Veronesi / Foto.: Matilde Fieschi

E esse risco foi bem-sucedido …

Sim, porque levei isso muito a sério. Mantive a ideia mais para deixar os meus pais confortáveis com o facto de que não viveria como um boémio, mas na realidade estava realmente a pensar em viver como um. Se o fracasso fosse explícito, tudo bem, teria algo para fazer. Eu sabia como me desenrascar num estúdio de arquitetura.

Numa das suas entrevistas sobre o seu livro "Il Colibrì", mencionou que a história começou com uma imagem forte na sua mente, e tentou encontrar significado a essa imagem. Frequentemente ouço que existem dois tipos de pessoas neste Mundo: aquelas cujos pensamentos traduzem em imagens e aquelas que as palavras são os seus pensamentos. No seu caso, parece que a sua formação em arquitectura o influencia a pensar em imagens. Esse pensamento visual serve como ponto de partida para o seu processo criativo na escrita?

A questão não é sobre pensar, porque sou mais guiado por imagens. Não estou a atuar; simplesmente deixo-me levar por essas imagens durante semanas, meses ou até anos. Não sei por que motivo tenho essas imagens ou sequências estruturadas na minha mente. Nunca escolhi pensar nelas; simplesmente acompanham-me, por vezes, tento descobrir onde e o porquê destas imagens formarem este mundo que carrego comigo, mas não as controlo.

Para mim, escrever não é sobre controlo, posso influenciar, embora não completamente, o estilo e a linguagem, escolhendo cada palavra com cuidado. Mas o que escrevo é decidido pelo próprio processo de escrita. Enquanto escrevo, memórias, ideias e invenções surgem enquanto digito, se parar de digitar para refletir, não consigo encontrar o que necessito. Sei que, enquanto digito, compondo uma frase e tentando melhorá-la, algo pode acontecer que revele por que aquela imagem está ali e onde ela pode encaminhar a minha história. Nunca é predefinido. O que posso controlar é a composição, costumo brincar, embora para mim seja uma verdade, que não entendo como os meus colegas escritores conseguem escrever um romance sem ter estudado arquitetura. [risos]

Estudar arquitetura ensinou-me muito sobre composição e a relação entre o homem e o espaço. Para mim, escrever um romance é exatamente isso: composição e a relação entre as pessoas e o espaço, e é nisso que foco a minha atenção, porque acredito que posso controlar uma parte significativa do processo. Mas porque ter estas ideias? É melhor não aprofundar muito nisso, pois seria mais apropriado para uma terapia psicanalítica. [risos]

O que é importante para mim é a confiança de que, ao trabalhar numa frase ou numa página, durante o esforço de escrever um romance, terei a revelação das próximas páginas e capítulos. Sempre foi assim para mim. Inicialmente, foi uma surpresa, mas agora sei: não se pode chamar isto de método porque nada é controlado. Mas existe uma confiança de que, ao fazer o que faço de melhor, torno-me mais sensível ou capaz de captar todos os elementos, sejam eles internos ou externos a mim, que são importantes para expressar o que quero dizer.

Não sei exatamente o que é até ao final do meu processo de escrita.

Em relação àquela imagem poderosa que inicialmente o impressionou, como se sente ao ver a adaptação cinematográfica, como em "Il Colibrì"? Alguma vez pensa: "Isso não foi o que imaginei," ou tem reações semelhantes? Tem algum controlo criativo sobre esses filmes?

Prefiro não me envolver nas adaptações cinematográficas dos meus romances porque acredito que é melhor manter as linguagens separadas. Sou responsável pela forma literária da história e não desejo influenciar o processo de argumento, aqueles que trabalham no filme devem ter completa liberdade para interpretar e adaptar a história como bem achar, sabendo que não podem capturar todos os detalhes que um romance detém na sua totalidade. Por vezes, encontro elementos no filme que não são meus — eles emergem do mundo interior do realizador - nessas situações, reconheço-os como a contribuição do realizador para o seu próprio filme, respeitando as suas experiências e sensibilidades únicas.

Encontrar essas divergências pode ser como encontrar subitamente no exterior estando ainda no seu próprio país — um reconhecimento de algo não originalmente concebido ou escrito durante o processo de criação do romance. No entanto, aprecio quando cineastas trazem as suas próprias ideias, imagens e interpretações para a minha imaginação, que a “contaminam”, que as tornam suas. Nas adaptações para o cinema, assim como nas outras formas de arte, há um diálogo respeitoso entre a obra original e a sua tradução cinematográfica.

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La forza del passato (Piergiorgio Gay, 2001)

Os cineastas possuem todo o direito de introduzir mudanças, e entendo que alterar a linguagem e a expressão no filme inevitavelmente envolve perdas e ganhos. Essa transformação é natural, é semelhante a um pintor retratar uma personagem de um romance — inevitavelmente infundindo a pintura com a sua própria perspectiva e inspiração.

Quando se trata de avaliar as adaptações cinematográficas dos meus romances, foco no impacto emocional, na interpretação, na cinematografia — todas as qualidades específicas que fazem de um filme uma obra distinta em relação ao romance. Inicialmente, fiquei chocado com a adaptação do meu primeiro romance - "La forza del passato" [de Piergiorgio Gay] - especialmente ao ver Bruno Ganz incorporar as minhas palavras no palco principal do Festival de Cinema de Veneza em 2001. Foi uma experiência desconcertante, especialmente enquanto jovem escritor.

Desde então, aprendi a abordar as adaptações cinematográficas com objetividade, tentando vê-las como obras independentes, ao invés de reflexos diretos da minha criação original. Posso gostar ou não de uma adaptação cinematográfica, e se me decepcionar, posso hesitar em expressá-lo ao realizador — talvez esteja a ser demasiado crítico. No entanto, tive experiências principalmente positivas com as adaptações porque, fundamentalmente, tenho um sincero apreço pelo cinema.

Em "Comandante", teve mais influência criativa no filme porque esteve envolvido na escrita do argumento. Como foi a experiência de escrever um argumento em comparação com escrever um romance para si?

Para mim, é simples. Escrever argumentos não é onde a minha criatividade prospera; não é o meu papel principal, e muitas vezes, sinto-me como um outsider nesse processo. A verdadeira fonte de energia inventiva sempre foram os outros, não eu mesmo, isso tornou-se evidente nas versões iniciais dos argumentos. No entanto, as circunstâncias mudaram durante o confinamento e a pandemia de COVID-19, tornando impossível prosseguir com as filmagens. Então, decidi escrever um romance em vez disso.

Ao escrever o romance, encontrei inúmeras ideias, imagens e invenções. Eventos históricos exigiram diálogos e narrativas inventivas, especialmente sobre o que ocorreu a cinquenta metros abaixo do nível do mar — detalhes que precisavam ser inventados. Escrever o romance gerou inúmeras ideias para versões subsequentes dos argumentos. Esse processo iterativo envolveu a transição do guião para o romance e vice-versa várias vezes. Encontrei-me muito mais envolvido criativamente na elaboração do aspecto literário do que nas fases iniciais do argumento. No entanto, escrevê-los não é a minha especialidade; apenas concebi cinco argumentos em quarenta anos — não é o meu foco.

Tenho dificuldade em contribuir plenamente com a minha sensibilidade quando me é solicitado escrever algo desprovido de estilo, o foco não está na eloquência, pois uma escrita funcional é suficiente para a equipa de filmagem: o filme em si será o verdadeiro empreendimento. Como mencionei antes, as ideias vêm a mim enquanto procuro encontrar beleza na minha escrita. Focar na forma permite-me capturar a essência. Por outro lado, acho desafiador libertar a minha criatividade totalmente na escrita de argumentos. Isso, para mim, destaca a diferença fundamental; não sou um argumentista.

Escritores excepcionalmente hábeis tanto na escrita de romances quanto na de argumentos atestarão o contraste acentuado nos processos. Escrever argumentos exige pensamento rápido e distanciamento, afastando-se da influência pessoal, no final das contas, os espectadores são indiferentes ao argumentista ao assistir a um filme — eles envolvem-se com o produto final, não com o seu criador. Em contraste, os leitores escrutinam e avaliam todos os aspetos de um livro, colocando uma pressão imensa sobre o escritor.

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Comandante (Edoardo De Angelis, 2023)

Paradoxalmente, essa pressão aprimora o meu processo criativo. Ela encoraja-me a explorar novas ideias livremente, sem o peso do julgamento que acompanha a escrita de romances. Essa sensação foi palpável não apenas em "Comandante", mas também nos meus outros projetos cinematográficos. Embora tenha contribuído, muitas vezes senti-me dispensável, Edoardo De Angelis poderia facilmente assumir as responsabilidades de argumentista após o romance, mas as minhas ideias mostraram-se inestimáveis na formação das versões subsequentes dos argumentos.

Porquê esta história concretamente?

Esta história é emblemática para a Itália, especialmente durante o verão crítico de 2018. Foi um período político tumultuado marcado por ações do governo e políticas ministeriais que propagaram uma narrativa prejudicial. Esta narrativa sugeriu permitir que migrantes perecessem no Mar Mediterrâneo na sua jornada da África para a Sicília. Esta representação não reflete quem realmente somos. Como italianos, somos melhores do que isso.

Como deixa transparecer no filme: “os Nazis os deixariam no fundo” …

No filme, esse tema é enfatizado, refletindo uma realidade histórica. Naquela época, nós, italianos, éramos retratados por palavras e ações verdadeiramente deploráveis. Eu e os meus amigos — escritores e realizadores — buscávamos maneiras de expressar veementemente a nossa indignação. Criei um grupo no Signal (não no WhatsApp), mas numa plataforma similar, para explorar ações além de meros protestos, mais próximas das nossas profissões como escritores e cineastas.

Edoardo encontrou um artigo no jornal diário italiano Avvenire, publicação da Conferência Episcopal Italiana. O artigo narrava um discurso de um almirante da Guarda Costeira italiana durante o 121º aniversário da fundação. A mensagem foi contundente: ele reconhecia seu dever de obedecer às ordens, mas lembrava às autoridades de suas responsabilidades morais. Naquele momento, as ordens haviam mudado, instruindo a não realizar resgates além das águas territoriais, deixando efetivamente aqueles no mar à deriva.

As palavras do almirante ressoaram profundamente connosco, o seu lembrete da história de Salvatore Todaro — brevemente mencionada no discurso — tocou uma corda sensível. Edoardo entrou em contato com o jornalista que escreveu o artigo, um firme defensor das missões de resgate no mar mesmo diante de ameaças da máfia da Líbia. Decidimos seguir adiante com essa história.

Escrever um romance foi mais fácil do que fazer um filme, dado o significativo custo deste último. Foram necessários cinco anos para que o filme se concretizasse, enfrentando desafios como a COVID-19 e dúvidas pessoais sobre sua viabilidade. Tragédias, como a do último inverno, com a perda de 90 vidas nas águas ao sul da Itália devido à falta de intervenção, destacaram a urgência de nosso projeto.

O exemplo de Salvatore Todaro durante a guerra destacou a primazia do direito marítimo e da solidariedade no mar acima de tudo. É a única garantia que leva as pessoas a se lançarem ao mar. O contraste com a retórica vergonhosa de certos funcionários do governo, negando resgates e ajuda no mar, foi gritante. O exemplo de Todaro foi claro e puro, nos compelindo a trazer essa narrativa à luz.

Após cinco anos de incerteza, finalmente concluímos o filme. A história que ele conta é clara — não é uma história de guerra, mas de homens no mar, defendendo a lei do mar e o imperativo de ajudar aqueles que precisam.

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Il Colibrì (2022)

Com “Il Colibrì” e agora “Comandante”, ficamos com a sensação que o ator Pierfrancesco Favino é a face das adaptações cinematográficas dos seus romances. Já está a preparar o seu próprio papel? [risos]

Atualmente, estou a finalizar um novo romance em que a personagem principal tem 12 anos [risos]. Brinquei com ele, dizendo: "Prepara-te, porque desta vez será difícil voltar aos 12 anos - vai trabalhar muito, vai." [risos] Mas estou realmente emocionado porque ele é um ator verdadeiramente fantástico. Já o conhecia antes, mas foi só depois de "Il Colibrì" que descobri verdadeiramente a sua abordagem.

Uma vez ele apontou para mim: "Nunca descreves diretamente a aparência da personagem principal. Tudo acontece com ele, mas nunca é revelado o rosto dele." Pelo que respondi: "Não, porque não é necessário para mim. Não quero perder tempo a descrever aparências." Ele perguntou: "Mas como eu vou retratá-lo então?" Disse diretamente: "Isso é contigo. Não esperes que eu faça isso."

Depois de algum tempo, ele disse: "Encontrei inspiração em você." Ele especificamente quis usar óculos. Não era uma imitação; ele usou a minha figura como modelo para moldar a sua personagem. Ele explicou que enquanto afirmo não ser Marco Carrera nem um Colibri, já que não dei mais especificações, ele decidiu me incorporar através dos óculos.

Através dessa experiência, entendi melhor o seu processo. Ele pega algo objetivo do exterior e transforma-o numa personagem completamente nova, começando a partir desse ponto. Em "Comandante", houve muitas pistas externas, como um ombro quebrado, para ajudar um ator a encontrar a sua personagem. No entanto, em "Il Colibrì", foi diferente. Ele simplesmente voltou-se para mim e disse: "Você será a minha inspiração."