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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Keoma enters ... no VHS!

Hugo Gomes, 24.06.25

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Ainda sobre Enzo G. Castellari, e em particular o seu “Keoma”, o western spaghetti apocalíptico, podem ouvir este episódio especial do podcast V.H.S (Vilões, Herois e Sarrabulho) em que discuto a minha experiência com cineasta ao lado dos anfitriões Daniel Louro e Paulo Fajardo. Há um excerto da minha entrevista (desculpas antecipadas acerca do meu “inglês empírico”) e os Encontros de Cinema do Fundão no coração. Um muito obrigado pelo convite e pela oportunidade.

Falando com Enzo G. Castellari: em danças com a morte e westerns apocalípticos no espírito

Hugo Gomes, 20.06.25

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Enzo G. Castellari

Cinco dias de cinema prezado e comungado no Fundão: assim se fizeram os 15.º Encontros de Cinema, e como recompensa aos cinéfilos devotos, a programação ofereceu um olhar atento sobre o cineasta e crítico de cinema espanhol Pablo García Canga, e uma tentativa de resgate de Pedro M. Ruivo (“A Força do Atrito”). Mas a “cereja no topo do festival” foi, sem dúvida, a vinda de Enzo G. Castellari, lendário cineasta do grindhouse, do poliziottesco, do western spaghetti e de outros subgéneros tantas vezes guiados ao preconceito dos snobs, mas amados por públicos das mais variadas geografias.

Aos 87 anos, o veterano mostrou as suas curvas e vitalidade, recebendo de braços abertos a audiência, entre aqueles que viam os seus filmes pela primeira vez e os adeptos de longa data, que atravessaram oceanos para não perder pitada desta oportunidade única de o ver ao vivo e a cores. Cumpriu quatro sessões de Q&A, nas quais foi “bombardeado” com questões sobre a sua vasta filmografia — especialmente a selecionada pelo festival — e Enzo, chamemo-lo assim, mostrou-se grato pelo afeto manifestado. Enquanto isso, negava ser político. Segundo as suas palavras: “nada de partidos, nem de ideologias”, para ele, o Cinema é a extensão do pugilismo. “Há que respeitar o oponente”, reafirmou, com os punhos erguidos. 

Na A Moagem, santuário cultural da cidade fundense, contemplaram-se quatro títulos fundamentais: “The Inglorious Bastards” (1978), esquadrão acidental de desertores e renegados da Segunda Guerra Mundial, numa missão suicida de corpos contra corpos de nazis empenhados, uma resposta a “The Dirty Dozen” (Robert Aldrich, 1967), mais tarde evocada e remixada — tarantinescamente falando — em “Inglourious Basterds” (2009). “The Big Racket” (1976), inserido na vaga de cinema justicialista e de policiais furiosos, onde um polícia se alia a um grupo de homens angustiados para combater uma quadrilha mafiosa. “Escape from the Bronx” (1983), a segunda parte da trilogia Bronx, onde Enzo, disparando sobre um certo filme de John Carpenter, oferece um arraial de tiroteios com pano de fundo pós-apocalíptico e comentário sociopolítico.

E por fim, a pedido do próprio realizador, nesta conversa com o Cinematograficamente Falando…, o amor declarado de “Keoma” (1976). O desejo de fechar o ciclo do western spaghetti gerou um Franco Nero mestiço, a combater a degradação e a corrupção humana no vilarejo que o acolhera na infância. Nesse retorno, terá de proteger uma mulher grávida, cuja vida no ventre carrega a esperança de um novo começo para a Humanidade. Castellari inspirou-se em Ingmar Bergman e na música que acerca para conceber um western à beira do fim da sua linhagem …

Fiquemos, então, com uma breve conversa, difícil de abarcar todos os pontos de uma carreira tão extensa. E sob o calor do Fundão, com capuccinos de máquina entre as mãos e uma multidão de curiosos em redor da obra do realizador, mantivemos “Keoma” no centro: no coração, no espírito, em direção ao sol-posto.

Numa das interações com público aqui no Encontros’ do Fundão, mencionou a comparação entre o boxe e o cinema, ligando-os com a necessidade de respeitar o oponente. No boxe, o qual foi pugilista, percebemos quem é o oponente. Mas em relação ao cinema? Quem é o oponente?

Bem... o boxe é algo que me ensinou, e acredito que ensina a todos que o praticam, o tempo da vida. O timing. Porque o boxe é isso: tempo e timing. Esperas... esperas… tentas algo com a esquerda… e depois entras com a direita. Há toda uma história que se desenrola na tua cabeça enquanto lutas. Portanto, esta ideia - fazer algo que te obriga a confiar na tua imaginação, no teu sentido de ritmo, no teu desenvolvimento da acção - isso é a vida. E isso é o cinema. O Cinema é o Cinema.

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Enzo G. Castellari e Franco Nero na rodagem de "Keoma" (1976)

“O Cinema é o Cinema”, até que gostei. Mantendo nesta sua experiência aqui no Fundão, quando lhe perguntaram sobre política, respondeu que não tem nada a ver, nem com partidos, ou ideologias. Mas parece impossível ver os seus filmes (seja em “The Big Racked”, seja em “The Inglorious Bastards”, entre outros) e não ver ali política.

Absolutamente! Tens razão, mas isso é consequência da história. Se a história fala de um comissário, e o comissário por acaso é de direita… então tudo bem, isso faz parte da vida. Mas não conte comigo para colocar ali uma grande intenção política. Não, estou apenas a narrar a história, não injectá-la nela minha imagem pessoal lá dentro.

Algo que também referiu, foi o facto de se considerar um “realizador-montador”. Disse que enquanto filma pensa muito na montagem, e quando deparamos com os seus trabalhos, notamos essa economia na montagem. Como também mencionou, por exemplo, que os novos realizadores, os de hoje em dia, filmam, filmam, filmam, e depois é que montam. No seu caso, já pensava com muito cuidado no que filmava, porque a montagem, para si, é essa questão de economia?

Antes de mais … sim! Devo dizer que a primeira ‘coisa’ que nos ensinam é a economia. O resto é a história. E a forma de fazer isso - através da montagem - é mostrar, tornar visível. Porque, sabe, o tempo é tudo. Quando viro a câmara tenho que ter noção desse tempo. Preciso de cortar e mostrar o que está a acontecer, e se o fizer apenas três ou quatro planos mais tarde… é muito simples, mas muda tudo.

Acredito que a montagem é a linguagem do cinema …

Exactamente!! Sem isso… qualquer pessoa pode filmar o que quiser. Só que aqui, o tempo, esse, deve ser encarado como o verdadeiro motivo. Em cada plano, é preciso conhecer o tempo certo. O tal timing

Porquê isso?

Por exemplo, adoro … sempre que vejo “Keoma” … aquele primeiro plano. Só preto… e uma janela. Para explicar isso ao diretor de fotografia, eu tive que desenhar. Depois encontrámos o local exacto. Há uma figura no fundo, muito, muito distante, e quando a janela se abre, e o vento se move… vemo-lo. É uma imagem que amo! Disse-lhe que tinha que começar o filme assim … apenas senti.

E sobre o “Keoma”, nunca escondeu que era o seu filme preferido. Mais, na sua opinião, o melhor que fez, a obra-prima! Um filme que, de muitas formas, simboliza o fim da era dourada do western spaghetti. Porque é que este filme deixou uma marca tão forte em si? Porque é que ficou consigo de forma tão profunda?

Porque o filme sou eu. Eu sou assim. Quando mostro ou tento explicar o meu filme… é difícil … porque estou a falar de mim próprio enquanto falo do filme.

Naquele momento, o realizador era eu. É ele que decide tudo. Que observa tudo.

E quando dirijo as pessoas — os técnicos, os figurantes, toda a gente — tento com que elas façam exactamente aquilo que estou a pensar, porque idealizo o filme na minha cabeça, tenho imagens em mim, só tenho que materializá-las.

Gosto quando diz: “o filme sou eu.” Identifica-se com a personagem do Franco Nero de alguma forma?

Sim. Sempre. É um sonho. Gostava de fazer aquilo, só que não posso… portanto, ele faz isso por mim [risos].

Voltando, mais uma vez, ao tópico da política nos seus filmes. No final do “Keoma”, o homónimo protagonista declara como derradeiro acto perante a “nova vida”: “O bebé sobreviverá, porque ele é um homem livre.” Sinceramente, parece-me algo muito político [risos].

Algo assim [risos]. Para inventar essa frase… levou tempo, sabia? Porque tinha de fechar o filme com alguma coisa. Mas na verdade, não está terminado. É a vida!

O Oeste, aquela criancinha, nas mãos da Morte… imagem incrível, mas pensei em melhorá-la. E se dissermos: “Ele é um homem livre.”? [risos]

“Keoma” tem tanto de filme onírico, como conto apocalíptico. O Enzo aproveita o cenário e todo o pastiche do western e o envolve em um tom quase bíblico, vejo em Keoma e os seus três irmãos como uma espécie dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse: a Morte, a Guerra, a Peste e a Fome.

É isso mesmo.

A sério?

Quer dizer… a música. Começávamos por aí … a música é muito importante. Tens de colocá-la ao mesmo nível do diálogo, da história, porque a sonoridade mexe contigo. Por isso, quando quero mostrar algo com pujança, preciso de uma música com força. É difícil explicar isto antes. Tenho de mostrar. Por isso coloco a música enquanto estou a montar.

A música vem daí, mas tem de ter sentido com a cena. Não é só escolher a faixa certa … é usar a música com intenção.

Faço isso para mostrar ao músico o tipo de som, o tipo de suspense, o tipo de calor que preciso. Por isso, quando estou a montar, corto a música em partes, talvez o início de um som e o final de outro, só para capturar a atmosfera.

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Keoma (1976)

Mas nessa relação com a música, julgo que é importante referir que em “Keoma”, ela tem um papel mais do que atmosfera, do que um elemento decorativo. Faz parte da história.

Essa era a minha ideia! Comecei a dizer isso ao músico. Porque o Bob Dylan, o Leonard Cohen, contam histórias. Queria essa essência em “Keoma”. Não sabia como… mas queria isso. Por isso, fizemos a música a narrar a história. Claro que muitos disseram que é aborrecido, que teria que optar entre ouvir e ver. Mas respondia: “Preciso disso. Porque é para mim. O filme é meu e estou a fazê-lo para mim.

Numa entrevista, assumiu “roubar tudo” de outros filmes. Como muitos da sua geração, roubava de Peckinpah e Powell, de que esse pecado está presente em todos os seus filmes.

Isso é algo genuíno. Esse sentimento, de que estou a criar algo. Não tenho influência directa do [Sam] Peckinpah. Penso que… todos os filmes vêm de algum lado.

As influências estão atrás de mim. Trago-as comigo. Por isso que, quando desenho … aliás, também sou desenhador … desenho o meu sentimento.

Mesmo que assemelhe a Michelangelo ou Rafael, são minhas criações, fui eu que fiz, e para mim. Mais tarde mostro-lhe uns desenhos. Vai perceber o que estou a tentar dizer.

Falei disto porque em “Keoma”, e o Enzo não desmente, teve influências em outros westerns, sobretudo os americanos, em Ingmar Bergman e na música, com os cantautores que mencionou. Pergunto também, visto que em alguns momentos o filme traz-me à memória, com Akira Kurosawa.

Sim. Mas via Kurosawa só de vez em quando. Vi vários filmes dele, mas achei alguns aborrecidos a meio. Olho para eles para aprender, mas é impossível dizer que fui influenciado só por um. Sei disso.

“Keoma” apareceu numa altura em que o western spaghetti já estava no seu declínio, mas mesmo decidiu fazer um. Sentiu que estava a fazer o derradeiro do seu género, ou estava a tentar ressuscitá-lo?

Não fiz “Keoma" só como um western. Para mim e para o Franco, era um sonho fazer outro western juntos. Por isso, mesmo que o género estivesse acabado, tínhamos de o cumprir, e inventámos uma forma que talvez não fosse o último, mas sim o primeiro western de uma nova geração.

O facto de ter trabalhado muitas vezes com Franco Nero, pergunto-lhe porque é que ele nunca teve uma verdadeira carreira em Hollywood?

Realmente, não tive mesmo nenhuma carreira em Hollywood! Isso é verdade. Porquê? Bem… teria de perguntar a ele. Ou ao Destino… ou talvez a nós enquanto público.

Tirando algumas personagens bem secundarizadas e residuais, Franco Nero teve o seu ponto alto em Hollywood através do Tarantino enquanto cameo especial em “Django Unchained” (2012). Mas é só isso. Não o vemos muito mais do que isso. 

Pois. 

Já agora, alguma vez imaginou repescarem Nero para representar o seu “Keoma” como Tarantino fez com Django?

Acho mais difícil… sobretudo no início, quando queres apresentar a personagem de uma forma diferente, não como as outras. Tens de encontrar uma maneira de chegar ao ator e explicar-lhe: tu não és tu. És outro. E essa outra pessoa - essa personagem - quero mostrar-te quem ela é. 

É exactamente isto que tento fazer. É incrível. É fantástico. É o Cinema. É a parte que mais gosto de fazer. Porque quando faço o meu filme, até a personagem se torna minha. Não é a tua personagem. Nem a personagem de um outro filme. É a minha personagem! Minha!

Alguma vez teve o sonho ou o desejo de trabalhar em Hollywood durante a sua carreira?

De uma maneira ou de outra tive. Filmei dois ou três filmes lá, mas uma carreira dessas não integrava o meu sonho.

Porquê?

Porque tinha de discutir… e lutar… com demasiada gente. A indústria de Hollywood é muito… Se eles dizem: “Tem de ser assim”, e eu não gosto… então não consigo fazer.

Em Itália quem manda sou eu. Sou o chefe, e sê-lo também significa assumir todas as responsabilidades. Aceito isso.

Quero ajudar a produção, os atores, todos, só que à minha maneira.

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Escape from Bronx (1983)

Julgo que uma das suas marcas autorais, está na forma como os duplos / stuntmen reagem quando são baleados, esfaqueados, golpeados, aliás, como “morrem”.  As suas acrobacias incentivam a uma espécie de bailado, uma dança com a morte, digo …

Dança! Foi exatamente isso que o Tarantino me disse, que gostava da minha dança, porque cada tiro é como se as pessoas estivessem a dançar — não a morrer ou a disparar, mas a dançar. É estar a preparar um grande espectáculo, quase uma fantasia, à beira desse fim.

É verdade.

Mas se me pedires para explicar, não consigo fazê-lo. Mais uma vez, tudo vem de mim, de um sentimento meu. E quando estou no set, explico isso através da acção. Crio cada personagem assim. Brinco com o exagero. Apenas o suficiente para mostrar que tudo o que dirijo é exagerado, mas só para me destacar, diferenciar, criar algo único, nada frio. Quando isso se encaixa com o ator, torna-se uma dança extraordinária.

Sobre “The Big Racket”, esse seu zénite do poliziottesco, disse que foi filmado com agressividade, como um golpe. Então, vou fazer a pergunta desta maneira quase abstracta, mas ao encontro, da, mais uma vez, política dos seus filmes: podemos considerar o golpe num murro, de mão fechada, ou um “chapadão”, de mão aberta?

Ambos [risos]. 

Como assim?

É verdade [risos]. Até apareço no filme. Não sei se me reconheceu, mas surjo como um dos lojistas. Abro a cancela da loja, entro, e começam a bater-me. Sou eu [risos], e tenho uma arma, da qual puxo-a e aponto-a aos vândalos que me atacam. Curiosamente, era uma arma verdadeira, a minha arma. Isto porque nos anos 70, toda a gente podia andar armada assim. Vivíamos um tempo de grande violência na Itália. Era real naquela altura, podíamos senti-la.

O apelo do cinema italiano em géneros como o western e os filmes pós-apocalípticos ressoava bem com o público da altura. Sabe-me dizer o porquê?

O cinema ainda é uma surpresa. Apenas não sabes como vai correr. Não sabes se será um sucesso, será um fracasso, ou a nova tendência. Não podes prever se o que estás criar vai ser amado ou não. Por isso tens de esperar pelo lançamento.

Só por mera curiosidade para este ”cair da cortina”: quando o Tarantino anunciou que iria, à sua maneira, refazer o seu “The Inglorious Bastards”, qual foi o seu primeiro sentimento?

Sentir-me um Rei! [risos] Se um génio como ele escolhe um filme entre milhares feitos e escolhe o meu, é uma honra. Recordo que na altura não acreditava, mas depois fiquei totalmente satisfeito. Naquele momento, olhas para trás e vês que vais deixar um legado.

Os (Re)Encontros de Cinema do Fundão: uma força de atrito na cinéfila do nosso tempo

Hugo Gomes, 25.05.25

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Keoma (Enzo G. Castellari, 1976)

O Fundão quer-se cinéfilo!! Anotem nas vossas agendas: os 15º Encontros de Cinema do Fundão arrancam já no próximo dia 28 de maio, deixando para trás Agosto (o “querido mês” que acolheu as edições anteriores) e olhando para o verão de 2025 nos seus primeiros passos, para nos transmitir uma mensagem clara. À medida que o mundo muda a olhos vistos, e se pressentem períodos sombrios, o Cinema manter-se-á uma certeza.

Até 1 de Junho, A Moagem – Cidade do Engenho e das Artes (com apoio do Cineclube da Gardunha) estenderá a sua passadeira vermelha, recebendo convidados ilustres como Enzo G. Castellari e o madrileno Pablo García Canga, não apenas cabeças de cartaz, mas orientadores para a temática destes Encontros. Porque do grindhouse ao western, da poesia rural ao cinema a conservar e assimilar, da crítica à cinefilia das paixões — algo velado, pessoal — refletido fora das grandes cidades e dos centros culturais habituais.

Como já vem sendo tradição neste espaço, o Cinematograficamente Falando… desafiou José Oliveira, realizador e crítico, cinéfilo irrequieto, mas sobretudo programador, para desvendar o que se poderá antever desta nova jornada … deste Encontro ou (Re)Encontro.

Prosseguindo nas perguntas da anterior edição e tendo foco essa mesma, que desafios encontraram para os Encontros de Cinema do Fundão de 2025, em comparação com os de 2024?

Os desafios da programação são para nós iguais aos desafios da vida: tem de ser uma aventura. E tem de ser divertido, mesmo que seja bem duro. Não nos deixarmos ofuscar pelos brilhos do contemporâneo, mas sim escavar na história, tentar fazer um pouco de justiça, resgatar preciosas constelações há muito soterradas pelo imediatismo do espetáculo e do jornalismo (anti-jornalismo!) básico que nada tem a ver com a crítica nobre nem com qualquer tipo de paixão. O resto, como arranjar financiamentos e quem acredite, aparecerá. O que tem de ser (porque está certo) continua a ter muita força.

Enzo G. Castellari é um dos três realizadores convidados e à mercê de uma retrospectiva-homenagem. Pegando na estética do realizador: como é que o seu universo punk e barroco ressoa num espaço como o Fundão, onde a ruralidade e a memória histórica se entrelaçam? Há aqui uma espécie de fusão entre o grindhouse italiano e a melancolia beirã?

Obras-primas como o “Keoma” (1976) ou o “Johnny Hamlet” [“Quella sporca storia nel west”, 1968] poderiam ter sido feitas neste território, claro. Meios naturais gigantescos e omnívoros combinados com estruturas poeirentas e obsoletas existem a rodos. Talvez haja acordes, harmonias, sensações secretas e correspondências subterrâneas entre territórios e memórias. Talvez os montes e vales de Almeria ou de Abruzzo falem com estes, estejam ligados internamente ou espiritualmente. E sem dúvida que muitas das contendas políticas e puramente humanas são as mesmas… Mas a razão é que descobrimos, de repente, e como uma revelação óbvia e epifánica, que um dos maiores cineastas que alguma vez mexeu a câmara, uniu planos e deu significado às histórias e à História através dos puros e exclusivos meios cinematográficos, está aí para as curvas e gostou da nossa abordagem. 

Também é o grande representante vivo e a síntese de um cinema italiano inesquecível, operático, cheio de ação, risco, carregado de dramaturgia e de tragédia, de vitalidade e constante surpresa, onde pontificaram Sergio Leone, Sergio Sollima, Sergio Corbucci ou Lucio Fulci.  E como esquecer o seu trabalho com Franco Nero, Woody Strode, Fabio Testi, Henry Silva, Fred Williamson… os amadores e os duplos… Stefania Girolami, Ennio Girolami…

A retrospectiva de Pedro Ruivo levanta uma questão rara no cinema português: por que é que a ficção científica continua a ser tratada como um corpo estranho? “A Força do Atrito” (1993) será uma anomalia ou um prenúncio ignorado? Terá lugar nesta atual vertente de reavaliação do nosso património cinematográfico?

“A Força do Atrito” é tanto uma anomalia - no sentido dos grandes filmes portugueses únicos, desalinhados, protótipos e acabados em si mesmos - como um risco sem cálculo, visto que o realizador quis fazer tanto um comentário sobre os tempos da altura como um conto romântico da juventude eternamente à deriva. Um filme tão frágil como belo no sentido do cinema do Nicholas Ray – tem de ser frágil porque tudo dentro dele o é, desde o ambiente até à dimensão temporal, passando pelos seres planantes, e assim é belo pela sua verdade despida de subterfúgios. Na altura foi tratado como lixo por toda a gente, mas isto continua a ser o pão nosso de cada dia – quem não faz os contactos certos nem fala (e como deve ser) com as pessoas certas, quem não vai às festas nem pratica os lobbys oficiais, não vai aos “grandes” festivais nem tem a papinha da crítica toda feita. O que descobrimos na entrevista ao Pedro Ruivo é que é um homem e um cineasta honesto.

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A Força do Atrito (Pedro M. Ruivo, 1993)

Pablo García Canga propõe uma poética do silêncio e da palavra contida. Como é que o seu olhar dialoga com o legado de Ozu, especialmente num tempo em que o ruído parece ser o novo realismo dominante?

Creio que essa será uma boa questão para colocar ao Pablo García Canga no Fundão. Mas julgo que parte da resposta, pelo menos, está no seu magnífico livro "Ozu, Multitudes", que será apresentado no dia 1 de junho, na livraria Livros Tintos. É um dos mais belos e apaixonantes livros dedicados a um cineasta, onde os fotogramas dos filmes de Ozu são como cartas de tarot, permitindo efabulações, tergiversações, histórias, sobre a ilusão, a felicidade, as contradições, os segredos, a amizade, o cómico, a espera, o tempo que passa sem fazer ruído, etc., como se estivéssemos a ler (ou a ver através das palavras) um autêntico vade-mécum para a vida de todos nós. E às vezes o drama contido nos pequenos gestos e movimentos, como a lata que cai da escadaria em “Uma Galinha no Vento” (“A Hen in the Wind”, 1948) e que conta toda uma história. Como disse o Mário Fernandes, “se imaginarmos um Montaigne cinéfilo estaremos próximos deste maravilhoso e original livro de Pablo García Canga”. 

Estes encontros celebram também a cinefilia enquanto gesto coletivo. Que papel ainda pode ter um cineclube, como o Gardunha, num país onde a política cultural parece esquecer o interior?

Não temos pensamentos de inferioridade, programamos com toda a lógica e coração: como não temos cinema comercial no Fundão, tanto tentamos dar uma imagem do panorama actual, como estar atentos às injustiças, para que filmes como “A Força do Atrito” ou “O Movimento das Coisas” não precisem de esperar trinta anos para serem vistos como devem ser. Nos últimos anos tanto tivemos no Fundão o Víctor Erice como o Raul Domingues, o Pedro Costa como o Diogo Costa, tratando-os como iguais. Claro que as políticas desta cidade foram cruciais, mas temos de tentar fazer o melhor trabalho possível na recepção de cada cineasta e de cada obra, de cada músico ou convidado de outra área: desde a produção de textos, entrevistas, diálogos, espetáculos; sentindo que o tempo e o ar do interior propícia a delicadeza e a pulsão necessária para tudo isto. Mostrar o filme certo da maneira certa é uma questão grave.

Os concertos que evocam Castellari trazem uma performatividade sonora que ultrapassa a sala de cinema. Esta aproximação entre imagem e som pode ser vista como um novo tipo de crítica? Uma crítica que se faz com guitarras e distorção?

É uma boa imagem essa, obrigado. Será com certeza uma grande descarga sónica de emoções e de considerandos. Um novo tipo de crítica, com certeza. Tal como uma outra maneira de transmitir as sensações de algo que foi marcante. A Marta Ramos interpretará o tema-mãe de “Keoma”, que é um filme fascinante e obsessivo para ela tanto em termos dramatúrgicos como musicais, que no caso são inseparáveis. Ao longo dos anos ouvimos esse tema a reverberar na sua voz. E outros do Dylan, que obcecaram também o Castellari na montagem dos seus filmes. E assim, tal como o grande historiador Tag Gallagher disse recentemente na Cinemateca que deixou de escrever quando descobriu que conseguia mostrar com um plano o que muitas vezes necessitava de dizer em dez páginas, produzindo agora vídeos críticos e poéticos ao invés de textos, também a música parece um tipo de crítica muito mais forte do que a que lemos diariamente nos jornais ou na net.

Com “Há uma Sombra”, do realizador e poeta radicado no Fundão, Alejandro Pereyra, continua-se a explora a cinematografia que despoleta na região. Existe esforços, e se há frutos colhidos, sobre esse constante sublinhar do cinema fundanense?

Não creio que haja um "cinema fundanense". O que tem acontecido no Fundão nos últimos anos, felizmente, é uma concentração de cineastas muitos diversos e de diferentes gerações, que aqui residem ou que aqui têm produzido algumas das suas obras, muitas delas marcantes. Cineastas tão diferentes como Nelson Fernandes, João Dias, Rodolfo Pimenta, Joana Torgal, Manuel Mozos, Mário Fernandes, Marta Ramos, Alejandro Pereyra (poeta, músico e também realizador do agora programado “Há uma Sombra”), Aurélie Pernet, Raul Domingues, Manuel Melo, Leonor Noivo, Margaux Dauby, Gonçalo Mota, Mariana Neves, Hugo Pereira, Ana Pio, Fernando Carrolo, entre muitos outros. Creio que os Encontros de Cinema do Fundão também têm desempenhado um papel de relevo na atracção e descoberta da região por vários destes cineastas, uns mais conhecidos, outros mais invisíveis que importa revelar. É realmente uma sorte, ou talvez não seja uma questão de sorte, se olharmos para a história cinematográfica do concelho do Fundão

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La nuit d’avant (Pablo García Canga, 2019)

Recordemos, a título de exemplo, que há registos de projecções de filmes no Fundão desde 1903; que o cartoonista, escritor e pintor José Vilhena realizou aqui o seu único filme, “O 5º Pecado” (1959), antecipando nalguns aspectos o que viria a ser o cinema novo; que o Jornal do Fundão teve quase desde o início crítica de cinema (um dos primeiros jornais portugueses a defender realizadores tão diferentes como Manoel de Oliveira ou Sam Peckinpah, quando estavam longe de ser consensuais); que o “Jaime” do António Reis teve a sua primeira exibição pública no Cineteatro Gardunha do Fundão, em Janeiro de 1974, com a presença do próprio António Reis, mas também de Fernando Lopes, Margarida Cordeiro, Carlos Paredes, Eugénio de Andrade, José Cardoso Pires, Lagoa Henriques, Óscar Lopes, Alice Vieira, etc; que à época, por iniciativa da equipa do IMAGO - Festival Internacional de Cinema, o Fundão teve um dos primeiros festivais do país dedicados exclusivamente ao cinema documental - o Festival Dok. Portanto, diria que o filme do Alejandro Pereyra é um dos frutos colhidos de uma árvore imensa com diversas ramificações. 

Voltando a uma questão recorrente, mas quem sabe: há planos de expansão, de alguma forma, do Encontros de Cinema do Fundão em edições futuras?

Existe todos os anos uma extensão na Cinemateca Portuguesa, e este ano não fugirá à regra. De resto, não há planos para aumentar ou diminuir os Encontros, mas apenas, reforço, embarcar sempre numa aventura, rio ou montanha acima ou abaixo, para que depois o público possa participar em eventuais perigos ou maravilhas.

Toda a programação poderá ser consultada aqui

Conexões e fidelidades cinéfilas: Encontros de Cinema do Fundão celebra mais uma edição com Cinema, amizade e memória

Hugo Gomes, 07.08.24

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Atlântida – Do outro lado do Espelho (Daniel del Negro, 1986)

Agosto, silly season como se aborda em matéria de cinema, um deserto de ideias ou de criatividades, ou as faces mais descobertas dos mercados dominantes. Contudo, no Fundão, o desejo é outro, fazer dessa “estação parva” numa comunhão cinéfila, uma reunião, um debate constante sobre o Cinema e as suas periferias. Recebemos a 14ª edição dos Encontros Cinematográficos, desta vez de “cara lavada” e nome alterado - Encontros de Cinema do Fundão - ficando por aí as radicais mudanças, o espírito, esse, mantém-se … tal como prometem … assim como a Moagem permanece como albergue desta “peregrinação cinematográfica” e o Cineclube da Gardunha no apoio fundamental.

De 8 a 12 de Agosto, a cidade será a capital do cinema em Portugal, novamente com sessões, debates, convívios e ainda um espéctaculo concebido pela fadista Aldina Duarte, a “Princesa Prometida”, segundo Manuel Mozos. Teremos novidades, primeiras imagens, amizades e ligações entre duas nações, duas cinefilias, e que bem. E claro, Pedro Costa! Este ano, José Oliveira, programador e realizador (Os Conselhos da Noite”, "35 Anos Depois, O Movimento das Coisas") responde às dúvidas do Cinematograficamente Falando …, descortinando o programa destes quatro dias e o que podemos esperar destes Encontros. 

Começo por lhe perguntar sobre os desafios de mais uma edição dos Encontros de Cinema do Fundão, não apenas no sentido de ser uma comunhão cinéfila fora de Lisboa e do Porto (cada vez mais tidos como epicentros cine-culturais), mas também das cada vez mais propostas que vão preencher o verão, nomeadamente o mês de agosto.

No ano passado tivemos, devido a várias condicionantes, pela primeira vez os Encontros no mês de agosto. E foi a edição com maior sucesso em termos de espectadores. Portanto, não mexemos no que funcionou. Talvez as outras propostas de verão sejam uma ajuda. Quem gosta mesmo de cinema, quem quer ver filmes difíceis de ver em qualquer lugar, opta pelos Encontros. Os desafios são sempre os mesmos: fazer muito, fazer bem, com pouco. Fazer homenagens e trazer autores há muito sonhados por nós. E não pensar um segundo na questão dos grandes ou dos pequenos centros. Os certames de cinema que sempre admirei foram anomalias de grande sucesso como o Telluride film festival, de Tom Luddy, nas montanhas do Colorado, o Midnight Sun Film Festival, fundado por Aki e Mika Kaurismäki e Peter von Bagh, em Sodankylä, ou, entre outros, o MDOC Festival Internacional de Documentário de Melgaço, no Alto Minho, organizado pela Associação Ao Norte.

Olhando para a programação, podemos constatar uma forte presença portuguesa na sua seleção, desde os consagrados (Pedro Costa), aos homenageados (Jorge Silva Melo) e aos que merecem atenção no nosso radar (Manuel Mozos). De certa forma, os Encontros Cinematográficos espelham uma vaga ou um pensamento transversal do cinema português através da sua mostra?

Se virmos a história dos Encontros, percebemos que umas das questões mais importantes, e que tantas vezes estrutura a nossa programação, é a questão da fidelidade. Fidelidade aos cineastas que admiramos, aos autores, às vozes únicas. E assim, desde que eles tenham um novo filme, é quase certo que regressarão aos Encontros. Pedro Costa, Manuel Mozos, mas também Rita Azevedo Gomes, o saudoso Pierre-Marie Goulet, entre outros. O caso do Jorge Silva Melo é importante, e também tocante, pois sempre o quisemos trazer, mas nunca o conseguimos devido a conflitos de datas. Mas agora, com a presença da Aldina Duarte, fadista que ele admirava imenso, percebemos que seria a hora de uma homenagem condigna. 

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Aldina Duarte: Princesa Prometida ( Manuel Mozos, 2009)

Mas não podemos deixar de referir um acto justiceiro que é para nós um dos vetores fundamentais deste ano: a exibição da cópia restaurada pela cinemateca de “Atlântida – Do outro lado do Espelho”, de Daniel Del Negro, um filme de 1986. Temos uma entrevista inédita e extremamente confessional de alguém que erradamente é considerado um eremita. A cópia está surpreendente. E assim todos poderemos apreciar em boas condições um filme único no cinema português, que combina o fantástico e o labiríntico com o lado documental e poético sobre Lisboa de uma forma nunca vista por aqui. Evidentemente, por ser uma peça única, um molde sem exemplo anterior nem posterior, foi muito mal recebido por uma certa crítica politicamente manhosa e interesseira e sem pingo de humanidade ou saber. Basta comparar o fabuloso texto de João Bénard da Costa, uns anos depois, sobre o mesmo filme, para percebermos que foi ele, como sempre, que acertou. Citando-o: «é mesmo, eventualmente, a mais radical aposta no fantástico de que me recordo no cinema português. As suas quedas - ou quebras - são, como os seus riscos, abissais. Do fundo deles, vale bem a pena sustentar o desafio que, insólita mas rigorosamente, Daniel Del Negro nos lançou.» Um momento único.

No terceiro bloco da programação [dia 11 de agosto], o José Oliveira, em conjunto com a sua parceira de realização (posso também incluir de vida?) Marta Ramos, serão o grande destaque. Enquanto realizador e programador, o eterno malabarismo, gostaria que me falasse sobre esse projeto de nome “Génesis” (cujo work in progress será exibido), assim como da escolha de “Milestones” de Robert Kramer e John Douglas na proposta carta branca.

É importante começar por dizer que os Encontros têm vários programadores, amigos, conselheiros. E que, obviamente, nem eu nem a Marta programamos o nosso filme. Foi o Mário Fernandes que fez questão, como já aconteceu noutras ocasiões em que nem eu nem a Marta estávamos ligados à programação. Outro factor decisivo é que o filme foi produzido num contexto de uma bolsa artística atribuída (em concurso) pelo Município do Fundão. Ou seja, para o processo ser validado o filme terá de ser exibido no Fundão

O “Génesis” resulta de um longo processo de vivência e de observação de um vasto território onde o poder da natureza e das forças da natureza são soberanos. De alguém que larga a grande metrópole e se perde e se encontra num meio completamente diverso. É complicado desvelar mais sobre o filme, pois nem nós mesmos, os realizadores, estamos bem seguros de como falar dele, e muito menos de como resumir. 

O “Milestones” é para nós um dos filmes mais belos, radicais e escondidos da história do cinema. Feito por amor, por puro amor, com todo o tempo e disponibilidade do mundo. Um épico intimista onde a confiança entre quem está atrás e à frente da câmara é total.

Repito esta pergunta, feita a Mário Fernandes no ano passado: os Encontros de Cinema do Fundão, podemos considerá-los um festival? Uma mostra? Uma comunhão entre cinéfilos?

A palavra Encontros é mesmo a mais preciosa e precisa para nós. Encontro entre quem ama o cinema, entre quem está interessado em descobrir novas formas, novas relações, sensibilidades, visões do mundo. Por isso desprezaremos sempre os prémios, os concursos, a competição, o circo. Importa os belos encontros, as pessoas, tornar o mundo um pouco mais habitável. 

Gostaria que me falasse sobre a restante programação, de Paulo Carneiro a Miguel Ildefonso, os convidados e as cartas brancas, passando, claro, pela presença da fadista e artista Aldina Duarte.

Além da fidelidade, o que mais gostamos é de descobrir novos cineastas, novos filmes que nos toquem. O que mais apreciamos no “Via Norte” foi o respeito e o afecto do Paulo Carneiro para com os imigrantes apaixonados por carros e com coisas primordiais para dizerem. Seria muito fácil e tentador gozar com essa paixão, tornar o filme jocoso, como outros realizadores portugueses costumam fazer, e com desgraçado sucesso, mas o Paulo esteve à altura, foi digno, e por isso o filme tem momentos comoventes em que ele cria o espaço para uma expressão sincera assomar.  As cartas-brancas são outra das constantes dos Encontros, e que permite achar e conversar sobre filiações com que as escolhe. Por exemplo, o filme do Miguel Ildefonso foi escolhido pelo Paulo para acompanhar o seu. Quanto à Aldina, tanto tem a ver com a homenagem ao Silva Melo, como com a nossa parceria com a Associação Fado Cale, que muito almejava tê-la no Fundão.

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Na rodagem de "Contactos" (Paulino Viota, 1970)

Quais são os próximos desafios a ter em conta com os Encontros de Cinema do Fundão? Existe interesse em expansão ou o nicho/regionalidade é um artifício necessário para a sua identidade? 

Não existe qualquer interesse na expansão, além da habitual extensão na Cinemateca, nossos amigos. Só faltou referir o único convidado internacional: Paulino Viota, que vem acompanhado por figuras míticas da cinefilia espanhola, como Enrique Bolado, programador e fundador da cinemateca de Cantabria e uma figura importantíssima em termos culturais mais latos, ou José Luis Torrelavega, do Cine Club Santander, catedral cinéfila de um culto precioso. 

De resto, Viota é uma das grandes descobertas dos últimos anos, realizador de um dos filmes mais radicais, políticos, misteriosos e importantes dos anos 70 espanhois – “Contactos”. Jean Narboni chegou a dizer que se os Cahiers du Cinéma tivessem visto “Contactos” nos anos 70, quando Langlois costumava mostrar estes filmes duas vezes na sua cinemateca, eles teriam imediatamente promovido (e consagrado) este filme como promoveram as primeiras obras de Kramer, Cassavetes ou Huillet/Straub. Viota é ainda um enormíssimo historiador, escritor, com livros sobre John Ford, Godard ou Eisenstein, ou maravilhosos artigos sobre diversos grandes autores, como os presentes no seu último livro, La Familia del Cine”, que será apresentado nos Encontros

Toda a programação poderá ser consultada aqui

A terra que os une

Hugo Gomes, 10.10.23

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Vilarinho das Furnas (António Campos, 1971)

No auditório da Moagem, em plena reta final dos Encontros Cinematográficos do Fundão, com Raul Domingues a apresentar a sua segunda longa-metragem - “Terra que Marca” (2022), um rugoso e bruto poema bucólico sobre o vínculo gradualmente perdido entre carne [Homem] e terra [Natureza] - e como é “tradição” nestes eventos, é posteriormente proposto um debate após a projeção. Nesse diálogo entre o realizador e o público, dois nomes são constantemente proclamados, citados em forma de comparação, ou simplesmente uma referência a uma herança, quer no olhar cinematográfico, quer na incessante procura neste meio. Os nomes eram Manuela Serra e António Campos, que de tudo têm e nada o possuem, excepto uma ruralidade captada e até mesmo tremeluzidas no progresso o qual muitos vincam, ou desejam vincar. 

Domingues abertamente falou dos seus avós como inspirações, os "objetos" de uma resistência em transformar o espaço, a terra neste caso, das suas sujidades convertidas em purezas fabricadas. É a agricultura como domesticação do selvagem, a imprevisibilidade da Natureza, de certa forma cíclica, como uma teimosia por eles decretada. Do outro lado da "barricada", a persistência nunca comovida, com consequências na decadência das mãos ou das pernas marcadas por feridas há muito infligidas, daqueles que enfrentam o esforço contínuo como "trabalhadores de solo". A idade aqui é representada como um iminente fim, não apenas das vidas que a câmara segue em planos pormenorizados, num tremor que se disfarça na naturalidade do seu dia-a-dia, mas também na função de "trabalhar a terra", termo mencionado várias vezes por Domingues.

Na chegada a Manuela Serra, a inspiração das inspirações modernas no que se trata do regresso ao campo, às tradições e ao rural num exotismo cultivado, e como a terra aí desvendada é trabalhada. A realizadora e o seu único filme "O Movimento das Coisas" (1985) serviram de bandeira, incentivo ou a 'palmadinha' nas costas para as seguintes gerações, com câmara em punho e histórias de infância, ou a partir daqueles avós "marginalizados" nos enésimos confins do mundo, desenterrando as raízes da sua portugalidade. A relação Domingues - Serra advém dessa intenção para com a terra e as pessoas que a marcam, no entanto, é entre Serra e Campos que o elo, não aparente, surge-me. “O Movimento das Coisas”, a partida da realizadora à aldeia de Lanheses, em Viana do Castelo, resultou numa cápsula temporal; de pessoas, quotidianos, costumes, tradições ou relevos, à beira da sua extinção, ou meramente ultrapassados, ideia reforçada por aquele plano final no qual Serra lutou para que no filme integrasse. Aí “contemplamos” uma fábrica, a indústria figurada como modernidade, o epílogo de todas aquelas imagens, desde a, hoje quase impraticável, festa da desfolhada. 

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Terra que Marca (Raul Domingues, 2022)

Campos, por outro lado, dedicou uma parte da sua vida em etnografias estudadas por Jorge Dias (apesar de desviar-se de qualquer designação de “cine-etnógrafo”), na procura destas especificidades, não só remetentes à portugalidade, mas aventurando num país “obscuro”, ora vivacio em praias em ilhas inexistentes [“A Almadraba Atuneira”, 1961], ora em territórios quase inacessíveis do qual se formaram reinos à parte [“Falamos de Rio de Onor”, 1974], ou como é aqui o caso mais evidente, o captar da extinção de um lugar - o “não-lugar” - e consequentemente uma identidade. Realizador de poucos meios - esquecido, sendo nos últimos tempos recuperado (a descatar os esforços da iniciativa a FILMar, promovida pela Cinemateca), e elevado a autor trágico, igualmente único nestas nossas bandas (e não só …) - Campos prosseguiu ao Gerês, em direção a Vilarinho Da Furna, aldeia comunitária secular, atualmente “submersa” na barragem de Vilarinho das Furnas (o plural, por si apropriado pelo título do filme, é entendido como um carrasco a esta identidade). Após ter conhecimento do local e do seu povoado através dos estudos de Dias, o realizador permaneceu um ano na aldeia, sob constante resistência e agressividade, contou ele, por parte dos habitantes que o encaravam como um “infiltrado” do Estado. Ao longo desse período, e tentando conquistar a “boa graça” dos iminentes despejados, registou os costumes e os cantos que futuramente [um ano após a rodagem] seriam “afogados” pelas próprias águas que um dia geraram Vilarinho da Furna. Como se pôde ler na última legenda da obra - “Morreu Vilarinho da Furna sob o manto que lhe deu vida” - enquanto é “contemplado” o paredão cinza e verticalmente sem fim à vista da barragem aí sonhada, projetada e materializada. Este último plano dialoga com o dito plano final da (tal) ambição de Serra, de igual espírito com que a água une os dois documentos - com 14 de anos de diferença entre si. 

Em “O Movimento das Coisas” seguimos o fluxo do Rio Lima ao encontro do “paraíso perdido”, enquanto em “Vilarinho das Furnas”, sob a narração do seu trovador local [que eventualmente nos surge no mesmo nível de olhar para com a câmara, subscrevendo a intenção de Campos em nunca superiorizar-se aos demais], somos aludidos à primeira e pequena porção de água gerada pelas figurativas “pedras parideiras” (que pariram Homens e não outros minerais como o fenómeno de Arouca). Aqui estão as rochas que preencheram o cenário que anteriormente albergava a comunidade, paisagens essas, desaparecidas. 

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O Movimento das Coisas (Manuela Serra, 1985)

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Vilarinho das Furnas (António Campos, 1971)

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O Movimento das Coisas (Manuela Serra, 1985)

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Vilarinho das Furnas (António Campos, 1971)

Campos voluntariou-se em conhecer o local e os respetivos habitantes, sem saber que o seu ato iria preservar para a posterioridade a sua cerimónia fúnebre (a procissão aí desfilada surge-nos como uma coincidência terrível), “acidentalmente” (aspas porque não acreditamos que fora totalmente”) persiste na negociação (invasivas e abusivas) entre o Governador civil e os “furnenses”, estes últimos conscientes do “roubo” que ali estava ser executado. Trocas de palavras em vão, mas visualmente ditadas como sentenças, recortadas pelo quotidiano filmado e emanado por Campos como um urgente testamento (era necessário “arquivar” aquilo de alguma maneira). Hoje Vilarinho da Furna “sobrevive” na memória dos “poucos” que ainda restam entre nós, e sobretudo neste trabalho cinematográfico, os seus vestígios de existência são as ruínas que numa eventualidade ou outra se revelam ao “mundo” em ares mais áridos e tórridos, os fantasmas permanecem como que acorrentados a um “não-lugar”, a uma assombração, recusando abandoná-las para um descanso, digamos eterno, pairando no definitivo esquecimento.

Furna de Campos está desaparecida, Lanheses de Serra está alterada, distorcida e irreconhecível [ver o regresso da realizadora ao local décadas depois “35 Anos Depois, O Movimento das Coisas” de Mário Fernandes e José Oliveira] e quanto a Domingues, até um dia aquele seu ambiente desintegrará com o tempo. Como o próprio indicou no contacto do público, é só uma questão dos seus avós … já sabem, não é preciso especificar.

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Encontro-debate entre o realizador Raul Domingues ("Terra que Marca") e o professor e investigador Manuel Guerra, com moderação de José Oliveira, na A Moagem - Cidade do Engenho e das Artes

Aí do alto, ó Senhora, rogai por nós

Hugo Gomes, 16.08.23

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Nota: os Encontros Cinematográficos exibiram uma Cópia de Montagem (Work in Progress) da "Senhora da Serra", não sendo a versão finalizada e prontamente comerciável.

Persistindo no ditame popular de que o “escritor escreve maioritariamente sobre ele próprio”, extrapolamos às outras artes, o “eu” como a causa de toda a criatividade, se não fosse ela um veículo de expressão. Nessa máxima, prestamos atenção ao percurso de João Dias - montador cujo o seu trabalho, sem muitos perceber, fora maravilhado nos contornos das demandas fora-do-comum de Pedro Costa (“Cavalo Dinheiro”, “Vitalina Varela, são alguns dos exemplos de colaboração), tendo aventurado na realização com algumas curtas e o documentário “As Operações Saal” - que parte de Lisboa rumo a Atalaia do Campo, entre Covilhã e Fundão, terra agraciada pela ancestralidade da Serra da Gardunha, que preenche o seu redor num ecstasy de misticismos e natureza indomável. 

Esta mudança deveu-se a uma intenção de recomeço, salientado pelo próximo, a fim de fugir às tormentas das suas ansiedades, e aqui, nesse seu refúgio, embarcando na motivação de um novo horizonte, abraça um novo projeto, um filme-atalhamento interligando a região ao seu íntimo. É na paisagem aí descrita que reencontra o cenário puramente cinematográfico, e é nas histórias e ditos aí povoados o qual deparamos com os enredos a crú, matéria mineralizada pronta a ser trabalhada. 

Conta-se em tempos, longínquos devemos salientar, que uma menina perdeu-se algures nestes cantos, causando rebuliço no seu local de nascença. Após dez dias de procuras intensas, serra acima e serra abaixo, a menina foi, por fim, encontrada sem um único arranhão. Da sua boca partiu um relato inacreditável, uma Senhora a havia acolhido, cuidado dela como uma mãe extremosa em relação ao seu rebento. Como agradecimento a aldeia ergue no cimo da serra um altar rochoso em sua homenagem, uma capela improvisada e no seu interior uma santa de pedra como marco de uma generosidade divina. Dias viu nesta lenda uma “porta aberta” ao seu conto cinematográfico, levando consigo para aquele estúdio que o Mioceno ofereceu de bom grado, Patrícia Guerreiro, atriz de João Botelho (“Quem és Tu?”, “O Fatalista”) e em recentes anos resgatada da penumbra e da sua decadência por Leonor Noivo em “A Raposa”, nela, o realizador, argumentista e montador encontrou uma Maria, a mãe de Cristo, descida à terra com convicções, guerras declaradas e acima de tudo dúvidas; dúvidas na Humanidade, dúvidas na ideologia, e dúvidas na crença cristã (“longe de Marx, longe de Cristo”). 

Vagueando por pedra sob pedra - “Acorda rochedo” - de mão encostada a estes colossos minerais, numa tentativa de despertar um gigante milenarmente adormecido, uma defesa como prevenção de um iminente mal que “assaltará” o seu sagrado corpo, Maria reage ao ‘fracasso’ da sua missão, digamos, o de convencer uma revolução, ou melhor, reformar os dogmas da sua religião. Mas antes do apelo às forças que o tempo esqueceu, a Nossa Senhora encontra-se com três homens que fizeram da Serra a sua morada, indeterminadamente ou temporariamente, trazendo a eles, como ocasionalmente declara: “palavras que eu não conhecia, mas que Deus semeava diretamente nos meus lábios”. 

O primeiro, eremitão, cristão devoto sem réstia alguma de expectativa humanitária, a sua misantropia voluntária o revela cego, preso a um passado imutável e de uma Igreja enquanto instituição inabalável. Para ele, o pregado culto mariano é um sacrilégio, uma insurreição à vontade, inegável, do Todo Poderoso. O segundo homem é um bandido, um ladrão ou bandoleiro (como quiserem designar), um ser que faz da vida um jogo de apostas, roubando e evadindo de eventuais sentenças (e penitências) na orla florestal que circunda a Serra. É um homem (baseado na figura de Cirineu, mais um episódio histórico-folclórico ligado àquela terra) que trocou a espiritualidade pela fisicalidade, aguardando uma revolução social incredulamente. A carne será a sua fraqueza, para Maria, a sua ruína. 

Por fim, o delegado de um partido marxista-leninista, cujos diálogos mais tensos terá com a mãe de Cristo, no qual preocupada com a preservação da ideologia, a raíz que deve, a todo custo, ser mantida, a força esperada para uma futura revolução. Os três encontros, trindade de fragilidades da nossa contemporaneidade - o cego que não quer ver, a convicção que se não se quer importar, e a ideia que não se quer idealizar - guiam Maria para a sua perdição, como Prometeus, que ao roubar o fogo divino aos deuses, entregando-os aos Homens enquanto sabedoria, tem como “recompensa” um castigo eternizado por toda a História oral. 

No caso de Maria, esta aparição com o intuito de comover, de avançar numa outra trajetória, a qual Igreja negou anos e anos, reduzindo-se ao burguesismo, às riquezas sem compatibilidades de partilha, e a classe, delimitadoras de fés e de palanques celestiais. A sua vinda à mortalidade entende-se como castigo, incrustado nas vozes das musas e dos cânticos de outros terrenos, aí, João Dias presta-se às suas experiências fílmicas. Pedro Costa, obviamente, é tido como paralelismo aqui, a perseguição final de pedregulho a pedregulho dialoga com as crianças arbóreas nas rochosas colinas em chamamento a Ventura, imagem de “Sweet Exorcist”, mais tarde “impresso” em “Cavalo Dinheiro” (mas anteriormente retirado do colectivo Centro Histórico). 

É nesse clímax, que “Senhora da Serra” afronta na sua estética plastificada, como pintura rupestres estampada nas grutas outroras habitadas, hoje rendidas ao obscuro, e no fim, a senhora, desta vez de pedra, reduzida às trevas e de rosto voltado à luz que, quem sabe, a poderá salvar num impreciso dia. Imagem bela, essa, o último plano, que adivinha uma trégua com as divindades, mas o realizador grita “Corta”, o enredo lendário é uma fabricação, não há espanto nenhum, tal havia sido igualmente mostrado na sequência inicial com João Dias, invisivelmente dando indicações aos seus cúmplices, a ficção iniciado após duas mãos, fingindo ser uma claquete, surgem à luz da cena. A farsa que ensanduichado a encenação, como, e de sugestão do realizador na apresentação da cópia nos Encontros Cinematográficos do Fundão, com “Benilde ou a Virgem Mãe” de Manoel de Oliveira (de 1975, ainda assinado como Manuel de Oliveira), não só com a entidade herética e do divino violado da trama, mas com o travelling inicial (e final) que desvendando cenários e bastidores, ostentando o “esqueleto” da “produção”, desafia-nos a reconciliar com a crença tingida na nossa imaginação. 

Este momento vérité comunica-nos que é um filme aquele que veremos, que os diálogos são fruto de uma expressão de um homem insaciavelmente por um recomeço em outros ares. Transformando a Serra nessa albergaria teatral onde a Palavra é mais que tudo validada, para João Dias, a Senhora de Guerreiro é a Senhora das suas tormentas, suplicando aos céus e interrogando o seu Pai porque a fez “menos Virgem e mais Maria”. “Senhora da Serra” segue a tradição, hoje desprezada pelo corte do dito cinema moderno lusitano, da importância do Verbo enquanto ação centrífuga do mundo. A teatralidade é só um “corpo” há muito testado como bandeja prateada desse mesmo, e invocado, Verbo. 

Arranca o 13º Encontros Cinematográficos: "um poema colectivo de louvor ao cinema e de amor à liberdade."

Hugo Gomes, 10.08.23

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Paradise Alley (Sylvester Stallone, 1978)

A proposta é a seguinte: a 40 km da fronteira com Espanha, mais precisamente na cidade do Fundão, realiza-se um seminário para cinéfilos com o intuito de ver, discutir, debater e apreciar o Cinema, seja através de filmes variados, modernos, clássicos, cultos e ocultos. Trata-se de um seminário anual que chega à sua 13ª edição, um número associado à má sorte para os supersticiosos, mas à sorte para aqueles para quem o Cinema é uma religião única e absoluta. Referimos, sim, aos Encontros Cinematográficos, que acontecerá de 11 a 14 de agosto, na Moagem do Fundão. 

Este ano, o evento prestará homenagem à animação portuguesa, na sua fase ascendente e resgatada, e as primeiras imagens da obra (ainda em fase de montagem) “Senhora da Serra”, de João Dias (editor de alguns trabalhos de Pedro Costa), que remete-nos a lendas oriundas do interior português, com especial atenção ao misticismo da Gardunha. Além disso, o Serge Daney será o signo destes quatro dias, não apenas pela apresentação do livro "Perseverança" (editado em português pela The Stone and the Plot), mas também porque será o ponto de partida para a exibição de dois clássicos amados por este crítico e eterno cine-amante: "Hiroshima Mon Amour" de Alain Resnais e "Paradise Alley" ("O Beco do Paraíso") de Sylvester Stallone.

No entanto, não revelaremos mais detalhes sobre o programa desta intensa peregrinação cinéfila, deixaremos isso para o programador Mário Fernandes, nesta conversa que traz à baila surpresas e destaques deste “encontro entre cine-amigos”.

Na 13ª edição e com uma perspetiva / retrospectiva, o que podemos esperar dos novos Encontros Cinematográficos, para onde se direcionam e quais são as ambições deste evento?

No essencial, dar a ver um cinema diferente de uma forma diferenciada: um Encontro na verdadeira acepção da palavra, assente na partilha e não na competição. Todas as edições são naturalmente diferentes, mas creio que o maior desafio para o futuro será manter o nosso espírito identitário ou linha editorial: «posicionados ao lado dos que resistem, dos que fazem do ofício um acto de amor, dos que divergem da unanimidade premiada, das “anomalias” dos pequenos e grandes gestos cinematográficos.» [Catálogo da XI edição dos Encontros Cinematográficos, p. 6].

Ao tentarmos definir os Encontros Cinematográficos, podemos considerá-los um festival? Uma mostra? Uma comunhão entre cinéfilos?

Diria que os Encontros Cinematográficos são essa comunhão, não apenas entre cinéfilos. Podemos defini-los como um poema colectivo de louvor ao cinema e de amor à liberdade.

Celebrando o centenário da animação portuguesa, que nos últimos meses ganhou destaque, em grande parte devido à nomeação para o Óscar de "Ice Merchants" de João Gonzalez. No entanto, nem sempre foi assim, uma vez que já foi considerada um subproduto do cinema nacional. Sem questionar se concorda ou não com esta depreciação, acredita que são necessárias mais iniciativas como esta para promover e divulgar este tipo de produções? O que mais acha que deve ser feito?

O cinema de animação começou por ser uma das vanguardas cinematográficas por excelência, em linha com as vanguardas artísticas do início do séc. XX, pelo menos era esse o entendimento do Henri Langlois, que nunca teve qualquer problema em programar filmes de animação ao lado dos maiores filmes da vanguarda francesa, por exemplo. Talvez tenha sido ele o primeiro a perceber a relação visceral entre o cinema de animação e a pintura, a música, a dança, o desenho, etc. Muitos animadores são, na verdade, extraordinários artistas, além de cineastas de corpo inteiro. Desde o Émile Cohl, o Picasso da animação, ao Theodore Ushev. No caso português, penso que o filme do João Gonzalez foi fundamental para o cinema de animação recuperar uma certa “carta de nobreza”, pelo menos em Portugal, onde há grandes talentos, com um universo muito próprio e muito poético, desde o Abi Feijó ao Nelson Fernandes, entre muitos outros. Seria perfeitamente possível programar blocos de filmes de animação na televisão em horário nobre…  Falta-nos o Vasco Granja!

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Ice Merchants (João Gonzalez, 2022)

Olhando para a programação, não apenas deste ano, mas também dos anos anteriores, constatamos que existe muita produção portuguesa que não tem tido divulgação nem distribuição em grande parte do país. Os Encontros Cinematográficos têm a intenção de quebrar essa barreira, realçando um cinema independente (um dos poucos no nosso panorama 'industrial') ou de criar um polo criativo-artístico?

Um dos objetivos dos Encontros é, de facto, resgatar do esquecimento ou dar visibilidade a importantes obras e autores, muitas vezes fora dos circuitos comerciais ou festivaleiros. Assim tem acontecido com várias obras e realizadores do cinema português. Chegámos mesmo a organizar ciclos paralelos, como os Filmes Proibidos, onde programávamos filmes portugueses censurados pela ditadura política ou económica ou, mais genericamente, pela ditadura da estupidez. Talvez a grande (re)descoberta nos Encontros tenha sido um dos mais belos filmes de sempre, “O Movimento das Coisas”, de Manuela Serra. O filme foi aqui exibido várias vezes, desde 2011, com a presença da realizadora. Escrevemos vários textos sobre o filme, entrevistas para o nosso catálogo, etc.. Para nós era inconcebível que pouca gente conhecesse essa maravilha. Como a própria Manuela Serra reconheceu em entrevistas recentes, agora que o filme já circulou pelo país e pelo mundo, foi fundamental a persistência dos Encontros Cinematográficos.

Em relação à programação desta 13ª edição, o que destacaria, seja em termos de filmes ou convidados? E já agora, sobre a recente reavaliação da carreira de Sylvester Stallone, que José Oliveira considerou um autor numa crónica do jornal Público no âmbito dos Encontros Cinematográficos?

Além do bloco dedicado ao cinema de animação, com as presenças de grandes realizadores (Abi Feijó, Regina Pessoa, João Gonzalez, Nelson Fernandes e Bruno Caetano), destaco a estreia do filme “Senhora da Serra”, de João Dias, um filme belíssimo e surpreendente, que transforma a Serra da Gardunha num palco giratório onde se debatem as grandes questões universais, como numa tragédia grega. E o filme “Terra que Marca”, de Raul Domingues, um dos grandes filmes portugueses dos últimos anos, de imensa poesia telúrica, concreto e abstracto, absolutamente extraordinário, único. 

Pela raridade, o épico terreno “Uma Aldeia Japonesa: Furuyashikimura” ("A Japanese Village", 1984) de Ogawa Shinsuke. Quanto ao filme “O Beco do Paraíso”, julgamos que será uma boa revelação para muita gente. É mais um filme que urge descobrir e talvez ajudar a derrubar o preconceito que existe em relação ao Stallone. O grande músculo de Sly é mesmo o coração e, no caso deste filme, conseguiu uma realização totalmente à altura das personagens, com momentos de grande emoção. Foi, de resto, um filme muito importante para cineastas tão diferentes como Carax ou Tarantino, que escreveram sobre ele. No fundo, ao programá-lo, continuamos o esforço de recuperação de realizadores pouco consensuais, como quando organizamos retrospectivas de Michael Cimino ou Sam Peckinpah

Para lá dos filmes e dos realizadores, os excelentes convidados que irão conversar sobre os filmes, a apresentação do livro do Serge Daney (outro admirador de “O Beco do Paraíso”), a caminhada na Serra da Gardunha, o concerto dos Blue Velvet.  

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Senhora da Serra (João Dias, 2023)

A importância de iniciativas cinematográficas como esta, realizadas fora das metrópoles como Lisboa e Porto.

Em 13 edições, sem apoio do ICA e com a paixão e dedicação de 3 ou 4 voluntários, a importância dos Encontros Cinematográficos é manifesta: 192 convidados de nacionalidades diferentes, 200 filmes exibidos e discutidos, 13 catálogos com textos inéditos e entrevistas aos realizadores convidados, um livro de celebração do 10º aniversário, diversas colaborações, lançamentos de livros, concertos, exposições, exibições especiais para a população escolar, projecções descentralizadas, extensões anuais na Cinemateca Portuguesa, vários artigos nacionais e internacionais a elogiar o trabalho desenvolvido e um número crescente de participantes com algumas sessões esgotadas nos últimos anos.

E, claro, a qualidade dos convidados que têm passado pelos Encontros Cinematográficos do Fundão: Victor Erice, Pedro Costa, Billy Woodberry, Manuela Serra, Pierre-Marie Goulet, Andrea Tonacci, Peter Nestler, Miguel Marías, Chris Fujiwara, Luís Miguel Cintra, Virgínia Dias, Pablo Llorca, Adolfo Luxúria Canibal, Bruno Andrade, Patrick Holzapfel, Andy Rector, Mercedes Álvarez, Rita Azevedo Gomes, Pierre Léon, Vítor Gonçalves, Paulo Faria, Manuel Mozos, Mike Siegel, entre muito outros.  E, sem dúvida, os Encontros também contribuíram para a fixação de cineastas no concelho do Fundão, como o próprio João Dias, realizando nesta região muitos dos seus filmes que depois viajam pelo mundo.

 

A entrada é livre. Ver toda a programação aqui.