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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Andrea Segre: "hoje, a direita sente que pode ir mais longe, ultrapassar os limites, porque a esquerda já não representa uma força radical, já não se opõe com firmeza"

Hugo Gomes, 11.06.25

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Berlinguer: La grande ambizione (2024)

A biopic enquanto motivação política, aliás, de políticas, o realizador Andrea Segre não se distancia no seu processo de idealização e concretização fílmica, assentando na máxima de “tudo é politizado”, basta saber interpretar.

Com anos e anos dedicados a obras sobre migração e imigrantes (muitos desses filmes ainda inéditos no nosso panorama) regressa aos cinemas portugueses com um retrato de Enrico Berlinguer, o carismático secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCI), desde o seu perfil humano, capaz de conquistar eleitores, passando pela ruptura ideológica para com os ideais vindos do Leste. O filme atravessa ainda o sequestro e assassinato do primeiro-ministro Aldo Moro (aqui interpretado por Roberto Citran), ferida ainda aberta na sociedade italiana e momento-charneira na descrença crescente nos aparelhos da esquerda.

Berlinguer: La grande ambizione” responde às questões sem nunca, enquanto filme, subir sozinho a um palanque para se manifestar. É a biopic enquanto filme político e os seus prognósticos de final de jogo. Como celebração da estreia nas nossas salas, o Cinematograficamente Falando… conversou com o realizador sobre a obra e tudo o que nela gravita. Tudo… já sabem: político.

A minha primeira pergunta prende-se com a génesis do projeto, mas gostaria de saber num ponto de vista enquanto idealização do projeto. O que esperava extrair da história de Enrico Berlinguer num mundo como este que nos deparamos?

Quando comecei a pensar neste filme, foi no final de 2020. O mundo era bastante diferente daquele que vemos. Por exemplo, ainda não havia a guerra na Ucrânia, nem esta escalada do conflito de Gaza, nem Giorgia Meloni estava no governo em Itália, nem sequer Donald Trump ainda havia reconquistado a presidência dos EUA. Portanto, o contexto global era outro.

A ideia surgiu-me por duas razões principais. Primeiro, porque me parecia uma grande lacuna no cinema italiano o facto de nunca ter sido feito um filme, não apenas sobre Enrico Berlinguer, como também sobre a comunidade do Partido Comunista Italiano (PCI) e o papel fundamental que esse partido teve na história e sociedade italiana e até no contexto europeu e mundial. O PCI desempenhou um papel muito relevante, sobretudo nos anos 70, e é surpreendente que nunca tenha havido um filme que explorasse essa dimensão. Não é uma história pequena … estamos a falar de uma enorme comunidade: cerca de dois milhões de membros e cerca de doze milhões de eleitores.

A segunda razão tem a ver com o presente. Tive a sensação de que essa história — a história dessa enorme participação coletiva, dessa grande ambição política — podia dialogar com a crise atual da participação política e da democracia. Ao acompanhar a história de uma comunidade inteira que acreditava num sonho e lutava por ele, dedicando tempo e paixão a uma ambição coletiva, podemos refletir sobre como essa forma de participação política se foi perdendo no mundo de hoje. Entretanto, enquanto estávamos a desenvolver o filme, o contexto político ia mudando. O crescimento da extrema-direita, a diminuição da participação nas eleições, a crise da democracia como sistema, tudo isso, agravado por conflitos armados, tornou ainda mais evidente a relevância e a atualidade dessa história.

O sucesso do filme em Itália, e agora também a nível internacional (pois já foi vendido para mais de 25 países), parece confirmar essa ligação entre a memória histórica e a situação atual. Acho também muito interessante que muitos jovens tenham ido ver o filme: em Itália tivemos cerca de 700 mil espectadores nas salas de cinema, e um terço deles tinham menos de 30 anos. Isso mostra que há curiosidade, há interesse e especialmente entre os mais jovens, por esse tipo de reflexão.

Uma coincidência é que o filme vai estrear em Portugal num momento em que tivemos uma eleições legislativas recentes e que o resultado revelou uma dizimação da esquerda em todas as frentes e uma subida acrescida da extrema-direita e do populismo. Mas o que aconteceu em Portugal é um reflexo do que está a acontecer na Europa, e não só, de um distanciamento dos eleitores com a esquerda. Acredita, e tendo em conta o tempo retratado no seu filme, que essa queda é um sintoma da perda identitária da esquerda política? 

A esquerda política, não só na Europa, mas especialmente na Europa, está hoje a enfrentar uma clara crise de identidade. Originalmente, a identidade da esquerda europeia, particularmente da Europa latina, estava fortemente ligada à ideia de construir uma sociedade não capitalista. Mas, durante os anos 80 e 90, essa esquerda decidiu abandonar a proposta de um sistema alternativo ao capitalismo. Ao invés disso, integrou-se no próprio sistema capitalista, passando a propor apenas uma moderação dos efeitos do mercado na sociedade. Fê-lo, no entanto, sem apresentar uma posição verdadeiramente alternativa ou um modelo claro de transformação. Isto levou os eleitores, os cidadãos, a questionarem-se: “onde está a diferença?” Se a esquerda já não representa uma proposta distinta, é natural que as pessoas deixem de votar ou escolham votar em quem defende, de forma mais clara, o sistema capitalista e a sua segurança e estabilidade.

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Andrea Segre e o ator Elio Germano

O que estamos a viver hoje é, em muitos países, uma radicalização da direita. A extrema-direita encontrou espaço para crescer justamente porque a esquerda deixou esse espaço vazio, porque deixou de afirmar uma posição firme, clara e alternativa. Neste contexto, a ausência de fronteiras ideológicas bem definidas abre caminho à radicalização: hoje, a direita sente que pode ir mais longe, ultrapassar os limites, porque a esquerda já não representa uma força radical, já não se opõe com firmeza. E isso é um problema.

Gostaria que me falasse do seu Enrico, mais concretamente Elio Germano, ator cada vez mais presente na indústria italiana (isto na perspetiva portuguesa das produções que nos chegam é claro), e de que forma foi essencial para humanizar a personagem.

Ele foi a segunda pessoa com quem falei sobre o projeto. A primeira foi Michele Pettenello, o meu co-argumentista. Depois disso, falei diretamente com o Elio [Germano], ainda antes de apresentar a ideia à produtora. Conhecia-o pessoalmente e, além disso, tínhamos estado juntos em várias lutas sociopolíticas em Itália, enquanto militantes. Nunca tínhamos trabalhado juntos, no entanto. Por isso, liguei-lhe e contei-lhe a ideia, porque tinha a certeza, antes de mais, do seu talento artístico extraordinário.

Mas também acreditava que o corpo dele podia ser o corpo de Berlinguer. Uma das características mais marcantes de Berlinguer é que, embora fosse um líder, era uma figura muito frágil enquanto ser humano: magro, pequeno, discreto. Não era fisicamente imponente, nem provocador na forma como se apresentava. Se pensarmos, por exemplo, em figuras como Mussolini ou Fidel Castro, Berlinguer era exatamente o oposto.

Pois, Mussolini é um bom exemplo, ele impunha uma grandeza e autoridade pela postura. Por exemplo, ele discursava sempre com a cabeça ligeiramente levantada com jeito de altivez. 

Sim, porque do outro lado do espectro político, figuras como Stalin e Fidel Castro encarnavam um corpo demagógico: uma presença física marcada por força e autoridade. Berlinguer era o oposto disso. Ele era frágil, silencioso, de certa forma até reservado, fechado. E foi precisamente por isso que achei que o corpo de Elio seria o certo para o papel graças à sua delicadeza física. Mas havia também uma terceira razão. Sabia que podia envolver o Elio num filme que não fosse apenas sobre Berlinguer, ou seja, não apenas sobre uma figura heroica da história, mas sim sobre um homem que dedicou a sua vida a uma comunidade, ao sonho coletivo dessa comunidade.

O objetivo era fazer um filme com Berlinguer no centro, sim, mas com a alma e o corpo dessa comunidade presentes, e de facto, embora o Elio esteja no núcleo do filme, este está rodeado de pessoas: temos 50 atores e milhares de pessoas comuns, tanto em cenas de ficção como em imagens de arquivo. É um filme sobre um pedaço do povo italiano e sobre o seu sonho. Sabia perfeitamente que o Elio seria capaz de encontrar uma forma de não tornar Berlinguer uma figura isolada, mas sim de o colocar no seio dessa comunidade e de o tornar parte dela.

Talvez já saiba a resposta desta pergunta, mas necessito-a de uma confirmação para avançar com a seguinte. “Berlinguer: La grande ambizione”, mesmo sendo uma biopic na taxonomia fílmica, é um gesto político?

Sim, claramente é um filme político.

Certo. A narrativa do filme é intercalado com imagens de arquivo. Nesse sentido, gostava de perguntar: como é que estas imagens, enquanto matéria histórica e emocional, contribuem para a intenção política do filme?

A dimensão política do filme está intimamente ligada à sua linguagem cinematográfica. Acredito verdadeiramente no poder do cinema imersivo. Acho que o cinema tem essa capacidade única de te levar a um lugar onde, de outro modo, não poderias estar. Para ativar esse mecanismo de imersão, preciso de uma câmara — e de uma forma de a usar — que seja ela própria imersiva. É por isso que convidei Benoît Dervaux, o diretor de fotografia de vários trabalhos dos Dardenne, para ser o DOP deste filme. Ele é um mestre em usar a câmara para te transportar para dentro do mundo que está a filmar.

Também preciso de atores capazes de entrar nessa realidade, de a habitar, mental e fisicamente, como fez o Elio [Germano], e como fizeram também os outros. E, por fim, preciso de trabalhar na fronteira entre a ficção e a realidade. Essa fronteira é perigosa porque, se nos afastamos demasiado para um dos lados, podemos perder o equilíbrio. Mas, ao mesmo tempo, é uma fronteira criativa, se soubermos como habitar esse espaço intermédio. O objetivo não é criar ambiguidade, e ao mesmo tempo gerar uma confusão emocional produtiva, onde a transição entre ficção e realidade seja contínua e envolvente.

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Berlinguer: La grande ambizione (2024)

No filme, é claro que há imagens de arquivo: não estou a escondê-las. É o meu filme. Mas na montagem trabalhámos para que a fluidez entre a ficção e a realidade fosse emocionalmente contínua. Não queríamos uma estrutura em que a realidade explica algo e depois a ficção encena esse algo. Queríamos que tudo fosse vivido de forma integrada, como uma experiência imersiva, ao mesmo tempo dramática e realista, onde as duas dimensões cooperam. Foi um processo longo. Desde o início da escrita do guião, tive comigo um pesquisador de arquivo. Vi muitas imagens com o Marco, o co-argumentista, mas não só com ele: mostrámos arquivos aos atores, ao designer de produção, ao figurinista, ao diretor de fotografia... Durante a preparação, todos assistimos juntos a muito material de arquivo. E depois, claro, trabalhámos intensamente sobre essas imagens na sala de montagem. Diria que, pelo menos 70% do tempo de edição foi dedicado a encontrar o equilíbrio certo entre o que criámos e o que herdámos dos arquivos.

Decidimos que o material de arquivo devia estar cheio de rostos, de gente. Nunca os contei exatamente, mas devem ser entre 400 e 500 rostos diferentes nas imagens de arquivo. Porque queríamos transmitir a ideia de que aquela grande ambição não era a ambição de um único indivíduo, mas sim um sonho verdadeiramente coletivo.

Existem vários filmes que abordam o incidente de Aldo Moro, nem seja no propósito de contexto temporal. O seu filme, porém, o retrata como aquilo que verdadeiramente é na sociedade italiana, uma ferida, um trauma, e avança com as sequelas desse ato. esse acontecimento marcou o início do declínio da esquerda em Itália, a sua evaporação no campo das ideias, abrindo caminho ao avanço de forças conservadoras, populistas e até extremistas, como as que dominaram o cenário político nos anos 90, com figuras como Berlusconi e idem?

Uma das questões problemáticas da esquerda, e talvez uma das razões pelas quais fiz este filme, tem a ver com a forma como contamos a história do caso Aldo Moro. Um dos objetivos do filme foi também abordar essa história a partir do ponto de vista de Berlinguer e do Partido Comunista Italiano. É quase um lapsus freudiano coletivo o facto de nunca termos contado essa perspetiva. Fez-se muitos filmes sobre o caso Moro — filmes excelentes, realizados por cineastas importantes como Marco Bellocchio, só para dar um exemplo. Não tenho absolutamente nada contra esses filmes. Mas é de notar que, em todos eles, o ponto de vista de Berlinguer e do PCI esteja ausente.

E no entanto, o rapto e o assassinato de Aldo Moro foi um dos acontecimentos políticos mais extraordinários do século XX na Europa - raptar e assassinar um primeiro-ministro é algo extremamente raro, tem um peso histórico imenso. O que aconteceu é que esse assassinato serviu, claramente, para travar o avanço de Berlinguer e do PCI. Formalmente, o rapto foi levado a cabo pelas Brigadas Vermelhas. Mas até hoje não é claro quem as ajudou a fazê-lo. Se perguntares a qualquer italiano quem matou Aldo Moro, todos te dirão: “As Brigadas Vermelhas… com a ajuda de alguém”, e esse alguém nunca foi identificado. Porque é evidente que as Brigadas Vermelhas não teriam conseguido levar a cabo uma operação tão complexa sem ajuda de dentro do sistema … de alguém com poder se me entendes.

E o porquê dessa ajuda? Porque assassinar Aldo Moro foi uma forma de travar o projeto de abertura democrática que ele estava a tentar concretizar com Berlinguer. É muito claro, e, no entanto, nunca fizemos um filme que chegue ao caso Moro vindo “de trás”, dos cinco anos anteriores, que são fundamentais para entender por que razão ele foi raptado. Se quisermos realmente compreender esse acontecimento, temos de começar em 1973, com o golpe no Chile e a morte de Salvador Allende. A partir daí, percebe-se o significado histórico do que se passou com Moro.

Quando Moro foi assassinado, o projeto político de Berlinguer morreu com ele. Berlinguer ainda viveu mais cinco anos e tentou relançar a sua proposta, com um novo conceito chamado “Alternativa Democrática”: um projeto politicamente e intelectualmente interessante, mas que não teve o mesmo peso, a mesma força, que os cinco anos anteriores. Foram esses cinco anos que o filme tenta contar — os anos em que havia uma verdadeira possibilidade de mudança do poder numa democracia ocidental. O PCI tinha a maioria, administrava todas as grandes cidades, de Milão a Palermo, de Nápoles a Veneza. Era a maioria na sociedade, e, por isso, era legítimo que participasse no governo.

Mas isso não foi possível, por causa das estruturas invisíveis de poder - os chamados “Palácios do Poder, tanto em Itália como a nível internacional, e essa é uma enorme questão democrática. Hoje, compreendemos muito bem o que significa viver com problemas de democracia, quando há interesses que interferem nas escolhas legítimas dos povos. E é também por isso que este filme quer ligar a memória de Berlinguer ao presente.

No circuito português, conhecemo-lo sobretudo por “Io Sono Li” (2011), a história de uma imigrante que venceu a Competição da Festa do Cinema Italiano em Lisboa e estreou comercialmente nos nossos cinemas. Desde então passaram-se 13 anos até à estreia de “Berlinguer: La grande ambizione”, o seu segundo filme a estrear em sala em Portugal. Durante esse hiato, realizou vários outros filmes, muitos deles centrados na questão da migração. Hoje, esse tema tornou-se altamente politizado e central em várias eleições. O que continua a ver, tanto do ponto de vista cinematográfico como político, nesse tópico, para persistir enquanto foco recorrente do seu trabalho?

Fiz muitos documentários e filmes de ficção sobre migrações, e muitos jornalistas perguntam-me: “Por que estás tão interessado no tema da imigração?” Tenho duas respostas simples para isso.

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Io Sono Li (2011)

Primeiro: foi precisamente através do tema da migração que cheguei ao cinema. Eu não estudei cinema formalmente, o meu percurso académico é em sociologia. Tenho um doutoramento em Sociologia dos Processos Culturais, e o meu tema de investigação era a relação entre comunicação social e migração. Comecei, portanto, como sociólogo e foi nesse contexto que comecei a usar o cinema como ferramenta para contar as histórias das pessoas com quem fui-me cruzando no trabalho de campo. Ou seja, o cinema entrou na minha vida por causa do meu interesse pelas migrações.

Segundo: sempre senti que a migração era o grande tema que estava a transformar o mundo, e então… por que motivo não haveria de falar sobre isso? A migração é uma questão que está a mudar os equilíbrios dentro das democracias, dentro das sociedades.

Hoje isso é mais claro do que nunca: a extrema-direita está a conquistar poder em muitos países, usando a migração como arma política. Estão a apontar o dedo aos estrangeiros pobres, ao invés de responsabilizar os seus próprios membros ricos e privilegiados.

E quanto a novos projetos? Voltará ao tema da imigração?

Neste momento, ainda estou a pensar no que farei a seguir, mas, para ser sincero, não tenho nada decidido. Ainda estou muito envolvido com a distribuição de “Berlinguer: La grande ambizione”, que, como referi, está a correr muito bem a nível internacional. O meu cérebro ainda está bastante ocupado com este filme. O que posso partilhar, no entanto, é que estamos a considerar montar um documentário sobre o impacto do próprio filme na sociedade italiana. Durante a distribuição em Itália, levei comigo a minha equipa — o diretor de som, o comentador — e gravámos várias discussões, encontros e situações ligadas à exibição do filme.

Nestes dias tenho andado a rever essas imagens, e talvez possamos montar um documentário a partir disso: um filme sobre as reações, sobretudo dos jovens, e sobre a relação entre esta memória (a de Berlinguer e do PCI) e o presente. Portanto, talvez o meu próximo filme seja esse: um documentário sobre o efeito que Berlinguer teve. Ainda está em aberto, mas é uma possibilidade muito real.

Daniele Luchetti: "cresci com um cinema em que era preciso discutir para completar a experiência."

Hugo Gomes, 16.03.25

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Daniele Luchetti retoma as páginas de Starnone e, através de “Confidenza”, resolve tratar o espectador não como passageiro, mas como cúmplice de uma estratégia de suspense, hoje quase obsoleta pela fome desvairada do público por respostas exactas. Por isso mesmo, encontra-se nessa sugestão a sua ponta de inovação. Thriller que revolve um casal que, para manter a confiança mútua, decide segredar o seu mais escabroso segredo. O resultado é um constante jogo de bluff e suspeita, num clima adensado pela banda sonora de Thom Yorke [Radiohead] — e, dessa feita, um sucesso de bilheteira em solo italiano. Por cá, antes da sua revelação em Roterdão de 2024, fechou a 17ª Festa do Cinema Italiano e, quase um ano depois, chega às salas com um desafio aos espectadores portugueses: estarão aptos a sentir uma narrativa, ao invés de apenas conhecê-la?

O Cinematograficamente Falando … trocou umas breves palavras com o realizador sobre os pontos fulcrais desta sua obra, com o ator Elio Germano ao leme deste vertigo.

O que o fascinou neste livro de Domenico Starnone para proceder à sua adaptação?

O romance de Starnone atraiu-me muito por duas razões: uma é o conteúdo existencial, ou seja, a representação de um “homem assustado”, podemos definir assim, e a segunda, por outro lado, foi a proposta de invenção no que requer construir toda a narração em torno de um dito e no não-dito. Foram elementos que depois tive de transpor e transformar num filme. Evidentemente, que não tinha a ferramenta da escrita para poder entrar nos pensamentos da personagem, por isso tive de encontrar uma forma de construir essa tensão, de criar um interesse cinematográfico e igualmente libertar o filme de uma quotidianidade da escrita que era interessante em papel, mas que poderia não funcionar numa transposição direta para o cinema. Desta forma tive que encontrar um estilo, uma chave, e o encontrei sob o registo de thriller. Com isto tudo, devo garantir que o filme e o livro se assemelham pouco.

Mas é a terceira vez que adapta um livro deste autor, recordo “La Scuola” (1995) e “Lacci” (2020). O que tem este escritor de especial que o faz querer adaptar as suas histórias?

Certamente, sempre que leio um livro dele, parece-me que construiu um pedaço da minha biografia. Evidentemente, temos traços de personalidade em comum, uma formação cultural semelhante, mesmo que ele tenha vinte anos a mais do que eu. No entanto, há algo mais profundo, que são os grandes temas das nossas gerações, e, por isso, tenho a sensação que ele me poupa o trabalho de investigar a mim mesmo. Ao investigar a si próprio, no fundo, estou a fazê-lo sobre mim.

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Daniele Luchetti

No filme, nem no livro existe essa revelação do segredo oculto. Não desejo, como muitos jornalistas o fizeram em variadas entrevistas, questionar o que realmente se tratava esse segredo guardado a sete chaves, mas se, durante o processo de escrita e de rodagem deste filme, havia uma ideia, sugerida que fosse, do que seria, e assim construir um filme envolto dessa ideia?

Sim, digamos que passei um ano e meio de escrita em torno dessa questão. A verdade é que foi Francesco Piccolo [co-argumentista] quem me fez manter-me firme na ideia de ser fiel ao conceito do livro, que é o mesmo do filme – criar esse buraco negro. É claro que coloquei algo de meu dentro disso. Por exemplo, não revelei certas coisas aos atores, ao invés disso pedi-lhes que cada um encontrasse, por si só, um ponto de vergonha, um ponto de escândalo no presente. Acredito que eu e os atores estávamos envolvidos nesse elemento do segredo, mas cada um tinha algo diferente em mente.

Porque, na verdade, os atores gostam de fazer um filme sobre ambiguidade, mas querem certezas para poder trabalhar. Querem saber: "O que estou a dizer? O que estou a pensar? O que estou a comunicar ao outro?" Foi aí que pedi a cada um que trouxesse o seu próprio segredo. Não queria um filme que desse um significado fechado, mas um filme que produzisse significado. Não um filme com uma mensagem única, mas um que gerasse possíveis mensagens. Como se fosse um objeto, uma máquina que, dependendo de como a giramos, produz um som ou outro.

Confesso que quando via o seu filme, e não conhecendo o romance original, desejava no meu íntimo que o segredo não fosse revelado, e assim concretizou-se a fantasia. Interpreto que essa vontade de permanecer oculta a confissão serve quase de forma combativa à audiência atual, aquela habituada a plot twists, ao tudo explicado, e, por sua vez, às produções que alimentam esse conformismo. “Confidenza” é a preservação do bom cinema sem resposta?

Estou absolutamente de acordo consigo. O cinema americano e a televisão comercial acostumaram-nos sempre a fechar todas as pontas, como se o público precisasse de alguém que o pegasse pela mão e o ajudasse a chegar a uma conclusão. Mas cresci com um cinema em que, depois do filme, era preciso discutir para completar a experiência.

E há outro elemento: ao longo da minha vida, vi inúmeros filmes em que se anunciava uma grande revelação. Adorava esperar por essa revelação, mas detestava ouvi-la, porque nunca estava à altura das expectativas, por isso, tentei encontrar um modo de eliminar esse problema.

E como conjuga a banda sonora de Thom Yorke na atmosfera do seu filme?

Quando ele leu o guião, revelou-me que sentiu um desconforto durante em toda a sua leitura, como se em cada relação houvesse algo errado, em cada cena de diálogo houvesse algo profundamente desajustado, desequilibrado. Então, fez a sonoridade de forma "errada" para o filme, para evitar que o público se sentisse num estado contínuo de desequilíbrio. E foi por isso que lhe pedi principalmente para trabalhar nos subtextos, na tensão, nas ‘coisas não ditas’, mas de forma sistemática. Sim, a comunicação é que seja vocacional.

Há um desconforto subliminar ao longo deste filme e do protagonista, principalmente na sua relação, enquanto professor de uma aluna, que mais tarde será um casal. Refiro isto porque encontrei inúmeras entrevistas no âmbito deste filme, em que se falou muito de masculinidade tóxica e feminicídio. Perante essas questões que lhe lançaram, pergunto se pensou nestes temas enquanto fazia este filme?

Tenho uma visão, obviamente, democrática, de esquerda, progressista, etc. Porém, também é verdade que essa redefinição da relação homem-mulher não é tão fácil quanto se pensa. Porque, deixando de lado os episódios extremos, como a violência, etc. – essas são reações criminosas, ações criminosas – o problema está exatamente no quotidiano. Ou seja, o problema no quotidiano é para quem vive numa situação democrática, num casal que deveria ser libertado, mas que, pessoalmente, não consegue libertar-se de certos comportamentos automáticos.

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Por exemplo, não aceitar a igualdade num casal, não aceitar a inversão de papéis, não aceitá-la psicologicamente, não nos atos práticos. A inversão a ser feita é psicológica, psíquica, e isso é complicado, porque temos centenas, senão milhares, de anos de literatura, de construção do imaginário, de construção de arquétipos, de construção de... provavelmente das nossas conexões neurológicas, que são culturais, mas que também se tornaram naturais. Inverter tudo isso de uma só vez não é nada fácil.

Desde que “Mio fratello è figlio unico” (2007) estreou, os seus filmes sempre chegaram aos cinemas do nosso país, e posso garantir que existe uma certa cinefilia bastante fascinada pelo seu cinema. Contudo, na altura de fazer uma retrospetiva do cinema italiano atual, sinto que Luchetti é deixado um pouco de lado dos holofotes, e talvez associe isso ao próprio estado do cinema italiano. Portanto lhe pergunto, como vê a indústria atual e como acha que a indústria italiana o vê a si?

Sou exatamente como o resto da indústria. Estamos desorientados porque é um momento de transição bastante importante. Grande parte dos filmes que antigamente seriam adequados para o cinema, hoje também o são para as plataformas, e isso obriga-nos a mudar algo. Muitos dos meus colegas, os da minha idade, entram e saem, fazem um filme para o cinema, um filme para as plataformas, uma série de televisão. E nós ainda estamos a tentar entender esse vaivém, e sobretudo essas mudanças de produção.

Acredito que a narrativa clássica, que antes era feita para o cinema, hoje pode ser feita com bastante satisfação para as plataformas, enquanto no cinema deve haver espaço para algum tipo de experimentação. Devemos reservar para a sala de cinema não o produto clássico, mas o produto de ponta, aquele que busca inovar. Essa é a minha ideia, e a minha tentativa de cinema de hoje em dia.

Confia ...

Hugo Gomes, 11.03.25

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O que impressiona em “Confidenza” não é o seu constante e hercúleo equilíbrio em manter a sua atmosfera de suspeita em notas altas, nem sequer do desespero nunca escondido através do olhar de Elio Germano (um ator notável, diga-se de passagem), e sim, em subverter as expectativas e a recusa de saciar facilmente as fomes dos seus espectadores. 

Em dias como estes, em que notamos uma indiferença naquilo naquilo que o espectador vê ou deixa de ver, exigindo dos seus filmes um cumprimento para a sua própria intelectualidade, ou encará-los como meros puzzles para serem resolvidos com "teorias". O que Daniele Luchetti (“Mio fratello è figlio unico”, “Lacci”) exerce com esta adaptação de um livro de Domenico Starnone é o de manter o seu macguffin, o segredo confessado, ou melhor segredado ao ouvido, como um mistério sem revelação à vista, porque o que move a narrativa não é o que é a realmente a confidência, mas a existência dessa confidência, sempre apoiada pela banda-sonora atmosférica de Thom Yorke. Portanto, ver  “Confidenza” é penetrar num "e se" quanto aquilo que esperamos contrair nas metragens, ao invés de termos a garantia dos seus nós atados e de como tudo se conjuga num final pleno. Não vemos plot twists nem exigências de género num thriller carpinteiro com entrelinhas para serem dissecadas e interpretadas à maneira do freguês. 

Mesmo que a sua especialidade seja uma efêmera curiosidade e pode-se esgotar num visionamento apenas, Luchetti brinca com o espectador, fazendo dele "gato-sapato" e "tripas coração" para com o destino deste tão ambíguo personagem, e mesmo assim a desafiar a nossa empatia. Sim, senhor ...