“E quando ele abriu o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal dizer: Vem e vê. E olhei, e contemplei um cavalo amarelo: e o nome dele que estava em cima dele era a Morte, e o Inferno seguia com ele. E foi-lhes dado poder sobre a quarta parte da terra, para matar à espada e com fome, e com a morte e com os animais da terra.”
Livro das Revelações, Capítulo 6
Chega em cópia restaurada a obra de 1985 que é descrita como um dos “maiores filmes de guerra de sempre”.
“Era humano, agora sou alemão”
Encarna a criança, aliada ao jovem Fyora (Aleksey Kravchenko), que será o nosso guia perante um cerco de horrores no último filme de Elem Klimov. Mas já lá vamos! É nesta exclamação, com o intuito de afugentar o velho louco que adverte a estes “enfants” o perigo de vasculhar aquelas terras. Não poderia estar mais certo, o nosso protagonista encontra o brinde que tanto ansiava, sem saber que esse mesmo se convertia no seu mais íntimo pesadelo: uma espingarda. Com essa mesma arma, quase seguindo as cantigas de teor militar popularizadas no universo yankee: “This is my rifle, there are many like it but this one is mine. My rifle is my best friend. It is my life. I must master it as i master my life. Without me it is useless, without my rifle i am useless” (parafraseando “Full Metal Jacket”, de Stanley Kubrick), este fraudulento coming-to-age dá-se como iniciado.
Fyora viu neste seu achado a sua entrada em grande para a resistência bielorrussa contra os invasores nazis, os alemães, os não-humanos que as crianças invocam como autênticos papões. O mundo do jovem instala-se numa fantasia concretizada quando dois “camaradas” entram pela sua casa adentro preparando-a para a sua partida para o acampamento clandestino. A felicidade de Fyora é cortada pelas lágrimas desesperantes da sua mãe, como se fosse esta a última imagem do filho.
Tudo parece correr como planeado. Fyora integra a resistência com dedicação e sobretudo motivação pela causa, mas apercebe-se do que o rodeia no preciso momento que se perde do resto do pelotão. O choro é transposto para a gargalhada, e vice-versa, a negação que o mantém na perseverança de um sonho, uma ingenuidade no alvo de uma violação de consciências. O nosso “herói”, como é descrito nas enésimas sinopses, não é mais uma personagem de consequências, é um espectro que paira num cenário dantesco da banalização do mal e a sua superlativa devoção.
"Come and See" perde-se do rasto dos outros retratos da Segunda Guerra Mundial por se “reduzir” à sua pequenez humana. Ou seja, não explora o heroísmo, nem sequer invoca o esplendor do bélico. Aliás, renuncia ao belicismo, despindo o seu "encanto" e apostando contra a sua doutrinação. Possivelmente é dos filmes de guerra mais adversos à sua essência, o verdadeiro "antiguerra", não o oposto que muitos desejam proclamar de peito aberto. Obviamente que toda esta boleia pela barca de Caronte se faz pelo grau dimensional de psicologia imposta por Klimov, seja através da impotência do seu protagonista, quase reduzido a uma somente perspetiva, seja pelos constantes foras-de-campo (os "travellings" "tarkovskianos" que perseguem Fyora, condicionando diversas vezes o ângulo do espectador) ou os ecos de trevor que se assumem como sonoplastia, como se transportasse a personagem para fora do seu corpo (porque esta sua carne já não lhe pertence). Eis um mero farrapo humano condenado a deambular nas cada vez mais escassas réstias de existência, citando "tintim por tintim" o negativismo extraído de Primo Levi.
Já o escritor concentrava esse pensamento lúcido durante a sua “estadia” no campo de concentração de Auschwitz, experienciando os seus homólogos convertidos em farrapos humanos, despidos das características que o sempre tornaram “homens civilizados”. Essa redução ao estatuto animal é uma das armas do regime nazi, a fim de redefinir uma “raça superior” embutida num cenário darwinista (assim como é pronunciado o militar nazi no requiem, sem mostrar nenhum apontamento de remorso). Esse mesmo discurso, que consequências trará, joga em contacto com o prólogo, a dita criança que fantasia o “bicho-mau” alemão.
Novamente recorrendo à melodia fúnebre do contraste, o assombro gemido que alustre como uma atmosfera sonora, partilha o seu espaço com Mozart, pontuando a sua “civilizada” barbárie – no fim de contas, como é dito num discurso seminal do militar das SS, toda a violência emanada é inibida de sentimento e remorso, uma limpeza étnica, um embate entre castas humanas e a produção de uma civilização superiorizada tendo em conta uma “gloriosa” História. A desumanidade contamina qualquer imagem: “Come and See” é, em toda a sua inglória, um filme produzido com um tenebroso gesto de revolta, pesar e repudia ideológica. Mas Klimov tece-o sem acórdãos descarados da propaganda, ruminando uma reprimida emoção, um "fardo" que pretende carregar colocando em risco a sua narrativa e o seu protagonista, o inocente que se metamorfoseia [envelhece] em frente aos nossos olhos.
A obra ficou-se como o último trabalho de Elem Klimov, um retrato obscuro que suga vampiricamente qualquer otimismo e alegria residida no espectador, que se vê (verbo adequado em toda esta jornada) par a par com o seu protagonista impotente e debilitado. O realizador declarou que depois de “Come and See”, consagrada no Festival de Moscovo, “perdeu o interesse em “fazer filmes”. Tudo o que era possível fazer, já o fizera.“.
Os judeus criaram uma palavra para caracterizar o genocídio do seu povo – Shoah (Holocausto). Para os bielorrussos, possivelmente “Idi i Smotri'' [título original do filme] seja a expressão perfeita.