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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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"O digital é talvez o factor mais realista": Eduardo 'Teddy' Williams e a busca do auge da Humanidade

Hugo Gomes, 13.07.24

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Eduardo "Teddy" Williams na rodagem de "El auge del humano 3" (2023)

Foi em vésperas da estreia nacional (com ‘perninha’ no festival Indielisboa e uma retrospetiva no Cinema Batalha), que Eduardo Williams, conhecido por estas bandas cinéfilas como “Teddy”, me recebeu para falar sobre o seu mais recente projeto, "O Auge Humano 3" (“El auge del humano 3”), que conta com produção portuguesa, além de envolver outros 7 países, unidos para explorar uma ideia de universalismo. A nossa conversa abordou desde as ideias por detrás do filme até ao seu cinema em geral, consolidando Teddy como uma das vozes mais debatidas no meio académico cinematográfico e no mundo do cinema experimental e independente.

Com "O Auge Humano 3", lançado sete anos após o primeiro (atenção, nunca houve um "O Auge Humano 2", essa sequela está no “segredo dos deuses”), acompanhamos um grupo de jovens que testemunham um fenómeno difícil de caracterizar para lá das montanhas. Enquanto vivem e debruçam-se sobre os seus quotidianos, ponderam um retorno ao estado selvagem, ao primitivo ou até místico. Eis uma obra sobre a comunicação, mesmo diante de diversas línguas ouvidas ao longo deste percorrer de cenários em 360º e dos glitchs que vão sendo presenciados. Há uma distorção dessa realidade! Mas Teddy acalenta as nossas preocupações, tal é tão ou mais real do que a nossa própria realidade humana. Aliás, o que é ser humano?

A discussão alarga-se sobre "O Auge Humano 3", o virtual enquanto nova realidade, o filme das multi-interpretações e de estéticas e o AI contra a carne da nossa carne. 

Começo a conversa desta forma: que lugar acha o ideal para ver o seu filme?

O lugar para qual o meu filme foi feito? É isso que me está a perguntar?

Sim, é uma questão um pouco abstrata, porque entendo que a sua estética é provocadora, neste caso, neste filme, sinto uma certa distância das pessoas, do factor humano, por ter sido filmado com uma câmara de 360 graus o que lhe aufere uma sensação estética muito virtual. Não sei se era esse o seu propósito.

Sim, uma parte é voluntária, a outra surgiu através da descoberta e do experimento. Em relação ao local, faço filmes para o cinema, seja em película, seja em 360 graus, a sala de cinema será sempre o seu lugar, exceto algumas encomendas para museus. Tenho consciência de que se vê muito cinema em computadores e nos mais diversos lugares. Nada contra essa opção, mas os filmes que faço são concebidos para serem vistos e ouvidos no cinema, refiro o “ouvido” porque considero o som extremamente importante para a experiência cinematográfica, e penso deixar saliente esse elemento na minha filmografia.

Acerca da distância com o humano, não sei o que responder; depende de como se pense nisso. Não o encaro da mesma maneira, porque, para mim, o virtual hoje em dia é parte da minha vida, é essencialmente humano, é uma criação humana e é o mundo em que vivemos. Acho que, para mim, justamente esta presença do virtual no filme fala, pelo menos, de como experimento a vida hoje em dia, e creio que muita gente partilha tal experiência comigo. Então, simplesmente acredito que uso ferramentas para mostrá-lo de uma maneira mais sucinta, talvez. Quanto aos rostos se deformarem e especificamente integrarem a imagem, obviamente que na vida, no real, não vemos isso, mas talvez sintamos isso a acontecer de alguma maneira.

Não sei, pelo menos eu sinto aquilo que os ingleses apelidam de “uncanny valley”, sofro com isso, a deformação das faces das suas personagens quando nos aproximamos, leva-me a distanciar deste conjunto, porque tudo me soa na ressonância do fim da Humanidade. O nosso fim, de certa maneira, não sei, é a minha impressão acerca do seu filme, mas pelo que entendi, também é um filme com várias interpretações, dando uma exposição para quem o vê.

Sim, por isso, mesmo que por vezes se pense o mesmo ou não, o tipo de filme que faço, como bem disseste, é justamente para isso: para se abrir a múltiplas interpretações e não se reduzir somente à minha. Se assim não fosse, faria filmes mais claros e que comunicassem diretamente uma ideia minha, mas essa não é a minha noção de cinema. Gostei de ouvir a tua interpretação e respeito-a, mesmo que não vejas o filme à minha maneira. Não te posso censurar; se o fizesse, seria contra a minha essência. Só te digo como me sinto em relação aos lugares, ao binarismo do humano e do não-humano, mas isso também depende das nossas experiências, das nossas vidas, de como nos sentimos em relação ao cinema. Nem todos nos sentimos da mesma maneira. Mas, o que dizias concretamente no início?

Que existe uma certa distância, como o fim da Humanidade.

Sim, isso! O fim da Humanidade! Não sei. [risos] Tenho esta sensação desde os meus tempos de criança. Chega o ano 2000, termina a Humanidade, desde os lugares mais simples e até aos mais bobos, até coisas como a mudança climática e a destruição do planeta, que se tornam cada vez mais reais. E também há esse desejo de querermos o fim de certas ‘coisas’, mas não a Humanidade, talvez o sistema em que vivemos. Nesse sentido, há que escolher em colocar-se na crise ou de ver a crise do sistema, por assim dizer, de diferentes sistemas. Mas o fim da Humanidade... não sei! Não acredito, na verdade. Por agora, parece-me que ainda falta muito para tal acontecer.

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El auge del humano 3 (2023)

Digo isto, porque existe a certo momento do “O Auge Humano 3” uma personagem a lamentar-se de que existir é cansativo. Entendi isso como algo muito niilista no seu filme.

É verdade, e além disso, acho que deve haver um equilíbrio entre essas coisas. Deparamos por momentos mais niilistas, como esse que citaste, ou do cansaço em relação ao trabalho, à vida  como ela é ou por outras questões, só que também temos que ver que há esperança. O simples facto de pessoas, de países distantes, se reúnem e avançam em conjunto em direção a algo que não entendemos ao certo é para mim uma forma de esperança e de continuar a tentar algo em oposição a esse niilismo: uma revolução. Mas sim, há de tudo, as duas dimensões: falar sobre determinados elementos negativos ou sobre o facto de que a mera existência provoca cansaço, só que não podemos esquecer que temos um outro lado.

Outra característica do seu “O Auge Humano 3”, é que foi filmada em vários lugares do mundo, como Sri Lanka, Taiwan e Peru. Além disso, a forma como juntou os locais cria uma sensação de unidade. É como se toda a Humanidade estivesse conectada, com excepção da linguagem, visto ouvirmos uma panóplia delas, quase como uma Torre de Babel, que nos separa ou nos identifica. Mas, ao mesmo tempo, todos esses lugares e pessoas, apesar das distâncias, são semelhantes porque somos humanos. No entanto, sempre mudamos algo para sermos mais diferentes, especialmente no que diz respeito à linguagem.

Penso que no filme também está implícito uma fantasia: as personagens entendem-se em diferentes idiomas. Há cenas em que um fala mandarim e o outro responde em espanhol. Mostrando que as línguas não nos separam como realmente o fazem. 

Também, ao fazermos um filme, viajo para países cujo idioma não falo e, por vezes, usando a internet e outras ferramentas, conseguimos que essas barreiras linguísticas não sejam a nossa total separação. No filme, há pessoas que não falam inglês, espanhol ou qualquer idioma que eu fale e, de várias maneiras, conseguimos comunicar-nos. Parece-me que isso está presente, também na forma como o fazemos, o que é interessante. Não quero dizer que somos todos iguais, porque, felizmente, é melhor que não sejamos todos iguais, mas que podemos juntar-nos e ter um projeto como este. É como, a certo momento, todas aquelas personagens caminharem juntas para a montanha em busca de algo maior do que elas.

Por mera curiosidade, qual o lugar que, como demonstra no filme, tem aquelas habitações que parecem-nos cogumelos?

Ah, é o Sri Lanka!

É muito peculiar. É como um parque infantil! Gostaria que me falasse sobre os diálogos, li algures que estes foram conseguidos por via da improvisação.

Não só. Alguns textos foram escritos e outros foram improvisados. Há cenas em que tudo o que vemos é totalmente escrito, enquanto outras revelam o improviso, e a maioria das cenas combina os dois registos. Esta é a norma no meu cinema.

E quanto ao que dizes sobre as casas, posso contar-te que a primeira razão para querer filmar no Sri Lanka foi exatamente este bairro. Já tinha ido ao Sri Lanka antes, numa viagem de lazer, digamos, não por motivos de filme ou curiosidade, e passei de autocarro por este bairro e fiquei muito surpreendido. Depois, ao investigar, descobri que tinham construído estas casas sob esta forma porque um tsunami havia destruído tudo, e estas estruturas provaram ser mais resistentes, caso haja outro tsunami, do que uma forma retangular.

O filme ia ser rodado sob a chuva, mas não conseguimos fazê-lo nesse contexto. No entanto, a presença do clima no filme tem o seu lugar nesta narrativa, por isso, achei por bem incluir este cenário estranho ou irreal para nós. Mas, ao mesmo tempo, quando estamos lá, vemos que para estas pessoas aquele bairro é um lugar normal. E isso fascinou-me, um local onde o irreal e o real se encontram na mesma imagem.

Podemos dizer que o seu filme é quase como um retorno ao selvagem, mais concretamente a Humanidade à Natureza, e por fim, as suas esperadas pazes?

Não sei se diria retorno, mas sim o ato de ir. Não vou sempre atrás da natureza, mas também em frente, como em tudo. Portanto, diria que é ir ou um pouco buscar, afastar-se da cidade que nos aprisiona. Talvez para depois voltar, porque no final a câmara cai, há algo de querer subir e depois descer novamente. Existe sim uma insatisfação com o lugar onde vivemos e a vontade de nos afastar para desencadear outras possibilidades, ir para a selva, ir para a montanha, etc.

Tem administrado um workshop no Porto [Cinema Batalha] e, devido a isso, queria questionar: o que pretende com o workshop que dedica aos jovens ou interessados em cinema?

Depende um pouco de quem vai. Antes de o fazer, não sei ao certo, nem projeto minuciosamente quem vai participar, desconfio se serão mais estudantes ou mais curiosos. Era algo aberto, por isso tenho a perfeita noção de que não seriam apenas estudantes. De qualquer modo, partilho a minha forma de trabalhar e estou disponível para responder às perguntas que tiverem. Partilho a minha abordagem desde o mais concreto, resolvendo problemas específicos, até os meus pensamentos sobre por que faço o que faço, etc. Tento esclarecer sobre o meu cinema, ou pelo menos tento. [risos]

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El auge del humano (2016)

E no seu caso, deixe-me mencionar uma coisa. Porque quando vi este e o primeiro “O Auge Humano“, notei uma estética e uma transição estética de filme para filme. Neste caso, é algo que percebo como muito virtual. Como já havia dito, sente-se uma grande distância em relação às pessoas. O porquê disto? Onde estou? O que é isto? Para onde vou?. Existe uma política estética nos seus filmes? Procura algo absoluto, uma meta?

Relacionado com o deformado realista? Sim. Quero dizer, para mim, o digital é talvez o factor mais realista. Mesmo que, à primeira vista, pareça irreal. É mais que realista, trespassa esse conceito. Através da utilização dessas ferramentas, podes mostrar pelo menos um ponto de vista da realidade de forma mais clara. Como te disse, quando vemos os rostos deformados, isso revela como me sinto, por exemplo, mesmo que não se veja o meu cabelo.

Mudar a estética, é, em parte, apenas curiosidade por usar diferentes ferramentas no cinema, mas, de forma geral, o sentido é sempre expressar um ponto de vista sobre o cinema, sobre a vida, e não restringir a “mim” e à minha perceção. Também tento fazer filmes que não sejam apenas sobre as minhas ideias, mas sobre como essas ideias são percebidas por pessoas em diferentes lugares e em diferentes idiomas. Por isso é que viajo para diferentes países e culturas, para ver como estas minhas ideias podem ser transformadas em outra 'coisa' que não sejam minhas.

E, como te disse, às vezes há improvisação, há “contaminação” de ideias de outras pessoas que integram o filme, e eu realmente pretendo tal contágio, valorizo muito. Estou a tentar agora juntar essas duas coisas, como me pediste, mas não sei. Pode ser muito longo falar sobre o que é realista ou não. Mas sim, não há dúvida de que há uma ideia de expressar ou partilhar pontos de vista sobre o mundo e a realidade, pelo menos como a vejo, e, em alguns casos, como as pessoas no filme a veem e acreditam.

Escolho imagens que mostram isso de forma mais clara, encaro-as como as imagens mais normais da vida. Vejo o mundo assim: o que é real e o que não é são quase indissociáveis. Portanto, há algo, mas não tenho certeza se respondi à tua pergunta neste caso.

Lembro-me de um colega meu, quando viu “O Auge Humano 3” em Locarno, dizer-me que parecia um filme feito por AI, Inteligência Artificial. Pergunto-lhe sobre isso, sobre os avanços na tecnologia para fazer filmes sem pessoas, sem cineastas. Tentaste com essa estética que temos estado a falar para te aproximar mais das propriedades estetizadas, hoje previstas, pelo AI, ou é apenas uma coincidência?

Nem por isso. Não uso AI nos meus filmes.

Não referia ao uso, referia à estética …

Sei, o que quero dizer é que não estou em contacto com a Inteligência Artificial, nem para o filme, nem na minha vida. Não estou a pensar nisso. Sei o que é de forma geral, mas não tenho tentação ou pretensão de me relacionar com isso. Para mim, está mais associado ao mundo digital de outra maneira, por ter vivido muito através da internet desde a juventude e por jogar videojogos. Está muito ligado a essa parte do mundo digital ou vida virtual. 

Quando penso em preparar um filme, estou num modo virtual, porque estou sentado em frente a um computador a descobrir mundos e a “escavar” ideias, porém, quando faço um filme, torna-se também uma experiência muito física. São os opostos da artificialidade vendida pelo conceito da AI. Descubro as cidades e os países que visito e as pessoas que conheço fisicamente, sem qualquer informação virtual. É muito importante que no filme existam esses dois mundos: o virtual e o físico. De um modo geral, se me perguntares o que penso sobre relacionar o filme com inteligência artificial, diria que não o faria, especialmente porque o que entendo sobre inteligência artificial se resume a juntar informações.

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Parsi (2016)

O filme é muito diferente disso, é sobre humanos a decidirem, no momento, o que fazer, sendo surpreendidos por vezes, e outras vezes a prepararem-se. Acho que o funcionamento do nosso cérebro difere dessa inteligência artificial, não estão no mesmo patamar. Contudo, como referi ao longo desta conversa, estou aberto a ouvir e a gerar diferentes pontos de vista com o filme, no entanto, não estou receptivo à AI. Não a utilizo; talvez se o fizesse, compreendê-la-ia de uma forma diferente.

Quanto aos outros elementos, como os videojogos ou a internet, surgem no filme porque fazem parte da minha experiência de vida, portanto, surgem naturalmente. Não acho que com isso desejo fazer um filme sobre a vida virtual ou a internet; isso acontece porque é assim que experiencio o mundo. Depois, percebo que, quando escrevo um filme, não penso muito no início, mas sim mais tarde. É mais tarde que me dou conta de como e quanto a presença da vida virtual está no filme.

Essa presença é muito evidente, não só quando falamos disso, mas ainda mais quando não falamos. A forma como falamos, de como as personagens se expressam, tem muita influência das conversas de chat. Em outras curtas-metragens minhas, isso é dito de forma mais evidente. Mas, em muitos momentos da minha vida, falei mais com as pessoas através de chat na internet do que na vida real. O ritmo da conversa e a forma como organizamos a informação diferem. Quando escrevo diálogos, percebo o quão presente isso está.

Mas neste momento não temos uma ideia clara do que é o cinema de inteligência artificial. Temos algumas imagens definidas e uma visão bastante ampla. Mas quero perguntar: o porquê das câmaras de 360 graus? De onde veio essa ideia?

Usei esta técnica uma vez numa curta-metragem, “Parsy”, em 2019. Escolhi inicialmente porque queria dar a câmara aos atores. Com uma câmara de 360 graus, não é necessário enquadrar durante a filmagem, os atores podem segurar a câmara e não precisam pensar no enquadramento. Isso foi muito útil na altura. Depois de experimentar, descobri outras vantagens durante a filmagem, mas o motivo principal para usar novamente esta técnica neste filme foi a possibilidade de enquadrar na pós-produção. Penso que isto é diferente do que penso sobre a inteligência artificial, porque ao visualizar as imagens num headset de realidade virtual, pude gravar os meus movimentos. Por exemplo, ao visualizar a imagem, se faço isto, o enquadramento fica assim; se faço aquilo, fica de outra forma. É uma maneira muito diferente de abordar o enquadramento num filme. Faço os meus filmes para pessoas que não sabem o que é o enquadramento ou a realidade virtual, mas espero que sintam esta forma especial de observar os outros e de estar com eles através deste método.

Para mim, a maior diferença é que agora posso fazer o enquadramento não durante a filmagem, como é habitual. Durante a rodagem, estamos a pensar em mil e uma coisas, incluindo no próprio enquadramento, agora, faço-o sozinho na pós-produção, numa sala, dedicando todo o meu corpo e mente a isso. É diferente a forma como penso sobre o que enquadrar, onde enquadrar e como sentir isso, incluindo a relação física. Normalmente, enquadramos com as mãos, agora, posso fazer isto, enquadrar e até mover o meu corpo. A relação física com o enquadramento revelou-se diferente. Essa foi a razão para escolher esta câmara. Além disso, editei as duas horas do filme no computador e depois assisti-as de uma vez, para que pudesse enquadrar o filme todo de uma vez. Normalmente, faríamos isso cena por cena. Agora, consegui fazer o enquadramento continuamente, cena após cena, à medida que me movia. A última parte do filme está relacionada com essa experiência de assistir e, não sei, de ter assistido ao filme.

A principal razão para usar a câmara de 360 graus foi essa diferença no enquadramento e, enquanto a usava, descobria outras coisas. Por exemplo, a relação com o tipo de imagem é, por vezes, como o Google Maps, outras vezes como uma câmara de segurança ou como um videojogo. Descobri isso mais enquanto a utilizava do que antes. Não pensei especificamente que queria a câmara por isso. Mas quando vejo e edito, sempre tenho a oportunidade de acentuar isso ou não. Por exemplo, deixei alguns movimentos robóticos no computador porque me faziam pensar numa câmara de segurança. Ou algumas cenas eram mais como o Google Maps e podia escolher se queria que isso fosse mais acentuado ou menos acentuado. Portanto, sim, essa foi a razão.

É fácil conseguir financiamento para os seus filmes? Pergunto isto porque o “Auge Humano 3” é uma coprodução entre 8 países [Argentina, Peru, Brasil, Portugal, Países Baixos, Taiwan, Sri Lanka, Hong Kong].

Não! Fácil não é. Não sei quem te dirá que é fácil. Ninguém sente que é fácil, certo? Mesmo que para alguns filmes seja menos difícil do que para outros, ninguém acha que é fácil. Mas sim, a primeira vez que consegui financiamento institucional vindo de institutos de cinema, como aqui em Portugal, Argentina, Brasil, Holanda e Taiwan, foi para este filme. Para os outros, nunca consegui esse tipo de financiamento, principalmente quando comecei a fazer curtas-metragens. O que escrevia nunca interessava às outras pessoas, porém, acabei por encontrar quem se interessasse pelo meu cinema. Para as curtas, recebia ajuda de pessoas que gostaram de algum trabalho ou que leram algo que escrevi. Talvez, se gostares dos meus filmes, possas “ler” o que quero para o meu próximo filme e entender ou ter uma ideia do que pretendo fazer.

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El auge del humano 3 (2023)

Tentei procurar maneiras de fazer cinema com o dinheiro que tenho, ou fazê-lo com o apoio dos amigos. Apercebi-me de que ter as imagens filmadas é uma forma de conseguir que as pessoas se interessem em financiar o filme. Para a primeira longa-metragem, consegui financiamento privado dessa forma, graças àqueles que viram imagens que já tinha filmado ou as minhas anteriores curtas-metragens. Penso que, para este filme, provavelmente foi porque os anteriores tiveram uma boa recepção nos festivais de cinema e em outras partes do mundo cinematográfico.

E nas escolas de Cinema?

Talvez as instituições confiem mais nos meus filmes agora. Mas não é fácil. Além disso, é interessante que essas complicações tragam novas formas de resolver problemas, o que também é sempre fascinante.

Sigo para a pergunta, do qual julgo que lhe mais fazem. [risos] Este é o “O Auge Humano 3”, e houve um “1”, mas nunca um “2”. Pensa em fazer mais algum “O Auge Humano”? Talvez o 4?

Não sei. O próximo filme não será sobre o “2”, isso é certo. Não há dúvida alguma. Talvez nem sequer seja sobre o universo do “Auge Humano”. Não sei. Talvez no futuro, num futuro muito distante, quem sabe?

Mas por onde anda “O Auge Humano 2”? [risos] Ficará como um mito urbano? [risos]

Perdido no tempo. [risos] Sim, mas por agora, essa é a ideia. Não é uma necessidade fazer essa sequela. Claro, é possível, mas gosto deste mistério. É esse espaço vazio que talvez possa ser preenchido no futuro, ou talvez não. Um buraco misterioso. Também está no meu campo existir tantos buracos e partes que não compreendemos ou que estão de alguma forma em falta.

Pode falar em novos projetos? Sinto que tem um novo filme na sua mente.

Não! [risos] Não estou a sentir-me bem quanto a isso. Claro que tenho ideias em mente, mas por agora são apenas pequenas notas. No início, faço apenas anotações sobre as coisas que me despertam interesse. Depois, quando quero começar um projeto, sento-me, leio as notas e dou-lhes forma. Na maioria das vezes, provavelmente já não gosto da maior parte dessas notas, mas aquelas que ainda me agradam, junto-as e começo a trabalhar nelas. Por agora, estou a viajar muito para apresentar este filme. Além disso, como falo tanto sobre ele, sinto que preciso me distanciar e direcionar a minha mente para outro lugar. Estou sempre muito ligado aos filmes que faço, por isso não consigo dividir os meus pensamentos. Algumas pessoas conseguem ter vários projetos na cabeça; no meu caso, só consigo focar num de cada vez.

Ou seja, um “filho de cada vez” …

Sim, espero começar em breve, mas desde agosto, desde Locarno, tenho viajado sem parar. Vou continuar a viajar por mais alguns meses. Assim que conseguir desacelerar, espero poder iniciar o projeto.

“Fiel ao espírito independente”: as novidades do 14º Indielisboa, segundo Mafalda Melo

Hugo Gomes, 02.05.17

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Mais um ano, mais uma edição do Indielisboa. Para sermos mais exatos, o festival lisboeta com especial dedicação ao cinema alternativo e independente vai para o 14º ano de existência. A melhor forma de celebrá-lo é apresentar-nos outra rica seleção, desde as habituais retrospectivas, novidades, experiências e uma das maiores competições de filmes nacionais da História do evento. São seis longas-metragens, desde nomes prontos para saírem do anonimato até o regresso de veteranos, tais como Jorge Cramez, que segundo Mafalda Melo, uma das programadoras do festival, “é uma infelicidade não filmar mais”.

 

Quem disse que não havia Cinema Português?

Foi sobre esse signo lusitano que arrancou a nossa conversa com a programadora, que afirma, devidamente, que é sob a língua portuguesa que a 14ª edição terá o seu pontapé de saída. Sim, “Colo”, o novo filme de Teresa Villaverde, presente na competição do passado Festival de Berlim, terá a honra de abrir mais um certame, criando um paralelismo com a tão rica Competição Nacional: “É um ano feliz, aquele que sempre poderemos abrir com um filme português

Mas voltando ao ponto de Cramez (“Amor, Amor”), o retorno do realizador ao formato da longa após dez anos de “Capacete Dourado”,  é “uma confirmação do seu talento”, que se assume como forte candidato da Competição Nacional e Internacional, no qual também figura. E isto sem  desprezat o potencial dos outros cinco candidatos ao Prémio de Melhor Filme Português: “Coração Negro”, de Rosa Coutinho Cabral, “uma ficção dura, de certa forma ingénua e verdadeira”, o regresso de André Valentim Almeida ao trabalho “sob a forma de filme ensaio” em “Dia 32”, a aventura de Miguel Clara Vasconcelos na ficção em Encontro Silencioso, que remete-nos ao delicado tema das praxes universitárias, “Fade into Nothing” de Pedro Maia, “um excelente road movie” protagonizado por The Legendary Tiger Man, e, por fim, “Luz Obscura”, onde Susana de Sousa Dias persiste no “registo documental em tempos da PIDE”.

Em relação à competição de curtas-metragens, Mafalda Melo destaca algumas experiências neste formato, entre as quais o nosso “Urso de Ouro”, “Cidade Pequena”, de Diogo Costa Amarante, assim como Salomé Lamas (“Ubi Sunt”), José Filipe Costa (“O Caso J”), Leonor Noivo (“Tudo O que Imagino”) e André Gil Mata (“Num Globo de Neve”). Ou seja, apesar de serem filmes de “minutos”, nada impede que sejam “impróprios” para grandes nomes da nossa cinematografia e “uma seleção bastante consistente”.

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Tudo o que Imagino (Leonor Noivo, 2017)

 

A Emancipação dos Heróis

Para Mafalda Melo, o que une os dois Heróis Independentes deste ano é o seu espírito marginal: “Quando falamos de Cineastas Independentes, quer do Paul Vecchiali como do Jem Cohen, não pelas mesmas razões, nem pelas opostas, são dois cineastas verdadeiramente independentes.

Jem Cohen é provavelmente o mais fundamentalista a receber este título de “Herói”. O nova-iorquino “quando começou a filmar, há cerca de 30 anos, precisou só da sua câmara e ter ideias para fazer filmes. Foi assim que ele trabalhou e continua a trabalhar.” Uma carreira diversificada, que vai desde o documental à música, ao ensaio até à pura experiência que não limita a sua cinematografia, com orçamentos “baixíssimos” até a micro-equipas, um verdadeiro “sentido de independência”. O Indielisboa irá dedicar-lhe um extenso ciclo, incluindo o seu mais recente filme, “Birth of a Nation”, uma visita a Washington no dia da tomada de posse de Donald Trump: “um filme onde encontramos aquilo que sempre encontrámos na sua filmografia, uma ligação emocional às coisas, aos espaços e aos sítios. Um gesto político, silencioso, mas igualmente agressivo”.

No caso de Vecchiali, “a sua independência garantiu-lhe um lugar à margem das manifestações artísticas da sua época.”. Longe da nouvelle vague, por exemplo, o outro Herói foi ator, realizador, produtor, um homem voluntariamente marginalizado dos eventuais contextos cinematográficos que foram, no entanto, surgindo. Como produtor, Vecchiali mantinha-se fiel ao “espírito do realizador e da obra”. Tal fidelidade resultou na sua produtora, a Diagonale, onde os realizadores usufruíram da mais intensa liberdade criativa, tendo apenas como condição respeitar o “orçamento imposto”.

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Paul Vecchialli

 

Uma Família Cinematográfica

Os métodos de liberdade concebidos por Paul Vecchiali fortaleceram a ideia de “família cinematográfica”, um círculo partilhado pelo Indielisboa que aposta sobretudo na crescente carreira de muitos dos seus cineastas. Melo sublinhou com curiosidade, o regresso constante de muitos autores premiados, como por exemplo das secções de curtas, ao festival com novos projetos entre mãos. É a família, esse revisitar, que alimenta a ideia de que um festival é sobretudo mais que uma mera mostra de filmes, um circuito de criadores e suas criações.

Nesse sentido, o 14º Indielisboa conta com três realizadores anteriormente premiados nas secções de curtas, “com filmes seguríssimos que só apenas confirmam os seus já evidenciados talentos”. Quanto a outros convidados, Mafalda Melo destaca a presença dos dois Heróis Independentes, dos realizadores das duas grandes Competições (Nacional e Internacional) que terão todo o agrado de apresentar as suas respectivas obras e ainda Vitaly Mansky, um dos documentaristas russos mais aclamados.

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Viejo Calavera (Kiro Russo, 2016)

 

Mantendo-se Internacionalmente Competitivos

São 12 primeiras, segundas e terceiras obras que concorrerão pelo cobiçado prémio. Uma seleção rica, quer em temas, nacionalidades e estilos. A programadora refere novamente Cramez, um português a merecer destaque numa Competição que esteve várias edições fora do alcance do nosso cinema, e ainda as provas de Kiro Russo (“Viejo Calavera”), Song Chuan (“Ciao Ciao”), Eduardo Williams (“El Auge Del Humano”) e a produção brasileira “Arábia”, de Affonso Uchoa e João Dumans. “Todos estes filmes são descobertas e têm em conta”, acrescentou.

A destacar ainda a união de Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel, dois investigadores da Sensory Ethnography Lab, de Harvard, que conduziram em 2013 o grande vencedor do Indielisboa, “Leviathan”, agora remexendo no onirismo do letrista nova-iorquino Dion McGregor.

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Free Birds (Ben Wheatley, 2016)

 

O Inferno continua no Indie

Mafalda Melo foi desafiada a falar da crescente secção Boca do Inferno, dedicado ao cinema de género e de temáticas ainda mais alternativas, sem mencionar a sensação de “Grave” (“Raw”), o filme de canibalismo de Julia Ducournau, que vai mantendo um registo de desmaios, vómitos e saídas repentinas por parte dos espectadores, por onde passou.

Respondendo ao desafio, a programadora falou, incontornavelmente, de “Free Fire”, o mais recente trabalho de Ben Wheatley (“Kill List”, “Sightseers”), “uma espécie de Cães Danados da nova geração”. Brie Larson, Cillian Murphy e Armie Hammer são os protagonistas. Mas foi em “I Am Not a Serial Killer” que se sentiu um maior fascínio: “Um pequeno grande filme sobre um jovem de tendências homicidas que descobre que Christopher Lloyd, o Doc do “Regresso ao Futuro”, é um verdadeiro monstro. Uma obra geek, mas de um humor negro inacreditável.

O russo “Zoology”, “outro pequeno grande filme, sobre uma mulher que descobre que lhe está a crescer uma cauda, não colocará ninguém desapontado”. Estas entre outras “experiências bastante distintas” que alimentaram esta cada vez mais procurada secção.

 

Director’s Cut: entre Zulawski e Herzog

Dois eventos esperados para cinéfilos são a exibição do filme “maldito” de Andrzej Zulawski,On The Silver Globe”, e “Fitzcarraldo”, de Werner Herzog. Em relação a Zulawski, “estamos muito satisfeitos por fazer parceria com a White Noise, como resultado iremos exibir uma recente cópia restaurada” de um filme incompleto devido à decisão da época do Ministério da Cultura polaco de vir a comprometer questões politicas e morais.

Quanto a “Fitzcarraldo”, a sua projeção foi motivada por outra projeção, a da curta de Spiros Stathoupoulos, “Killing Klaus Kinski”, que durante a rodagem do tão megalómano filme,propôs a Herzog o assassinato do ator Kinski de forma a restabelecer a paz.    

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On The Silver Globe (Andrzej Zulawski, 1988)

 

Redescobrir o Português subestimado

Ainda no Director 's Cut, está agendado um encontro com Manuel Guimarães, o cineasta que tentou incutir o neorrealismo no cardápio cinematográfico português, mas que hoje tornou-se numa figura esquecida e constantemente subestimada. O Indielisboa passará O Crime de Aldeia Velha, uma história sobre inquisições e superstições, que dialogará com o filme de Leonor Areal, “Nasci com a Trovoada”, um olhar atento à figura e os motivos que o levarão a tão triste destino – a falta de reconhecimento.

 

Indiemusic ao Luar!

Uma das secções mais habituais do Indielisboa terá um novo fôlego. O Indiemusic abrirá em paralelo com a reabertura do Cineteatro Capitólio/Teatro Raul Solnado. Serão sessões ao ar livre com muito cinema e música como cocktail. A mostra terá início no dia 5, com a projeção de “Tony Conrad: Completely in the Present”, o documentário que olha o legado incontornável do “padrinho” dos Velvet Underground.

 

Um festival a crescer!

Ao longo de 14 anos, o Indielisboa tem se tornado um festival cada vez mais “acarinhado por parte do público”, o que corresponde a mais espectadores, mais seções. Mas para Mafalda Melo, o “Indie não se fechou, mas sim expandiu fronteiras e ao mesmo tempo manteve-se fiel ao seu espírito independente. Conseguimos ao longo destes anos uma mostra esperada dentro deste circuito, uma plataforma para a descoberta. E é isso que temos mantido, esta evolução gradual ao longo dos anos, o dever de apresentar cineastas e filmes que as pessoas desconhecem.”

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Tony Conrad: Completely in the Present (Tyler Hubby, 2016)

 

O Indielisboa acontecerá no Cinema São Jorge, Cinema Ideal, Cinemateca Portuguesa Museu do Cinema, Cineteatro Capitólio e a Culturgest, a partir do dia 3, prolongando-se até ao dia 14 de maio.