A assombração do cine-olho!
Eu sou o cine-olho. Eu sou o olho mecânico. Eu, máquina, mostro-vos o mundo como somente eu sou capaz de ver.
Eu emancipo-me, doravante e para sempre, da imobilidade humana. Estou em constante movimento... O meu caminho conduz à criação de uma nova perceção do mundo.
Posso, assim, decifrar um mundo que vós não conheceis.
Dziga Vertov, manifesto “Kino-eye” [Cine-Olho]
Steven Soderbergh é um experimentalista, um versátil, um travesso que não sossega no que toca ao Cinema, às suas possibilidades e expansões. Talvez por isso — ou talvez não — seja inevitável convocar Dziga Vertov e o seu manifesto “Kino-Eye” (cine-olho) para o seu tratado paranormal “Presence”. Aqui, noutras linguagens técnicas, assume-se o registo POV, o point-of-view de não pertencer ao mundo dos vivos nem ao dos mortos, algo gasoso, mas igualmente presente. O espectador ocupa essa posição, por vezes sentindo-se privilegiado no seio desta família que se muda para uma moradia ao estilo americano.
Sabemos, pelos vislumbres, que uma tragédia pesa neste agrupado, há ambiguidades que nos fazem duvidar da solidez das relações entre os membros desta família, o que poderia à partida ser a sinopse de qualquer old dark house genérico, um filme de assombração onde entidades sobrenaturais reclamam o seu espaço. Ou melhor, um “The Others” de Alejandro Amenábar conceptual. E é aqui que o Kino-Eye entra em ação de maneira parcial, não apenas pela perspetiva adotada, mas pela forma como encaixa na ambição possivelmente ideológica de Vertov: captar o que o olho humano não alcança. A câmara finge (porque o cinema é uma mentira pegada — vénia a Fellini) ser essa força extraordinária. O que vemos, por mais banal, dentro da sua lógica narrativa (eis a chave americano-clássica), é encarado como uma lente não-térrea. Esta presunção deve-se à própria presunção de Soderbergh, não é um miúdo a jogar Fortnite nem algo que se pareça, e sim um realizador atípico, bicho-carpinteiro de um cinema norte-americano que, apoiado nessas forças dominantes, se mantém distante de experimentos e diversidades conceptuais, narrativas ou estéticas.
Nesse ponto, é fácil torcer o nariz à proposta de “Presence”, com o seu plot twist estampado como marca de água do seu ADN, mas, entre os inúmeros ensaios do cinema de género e deste género em particular, este é Cinema na sua forma e fórmula mais puras. Captar o inexplicável, transformar o nosso olhar no inexplicável.
Soderbergh, o homem da câmara de filmar!