Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

A assombração do cine-olho!

Hugo Gomes, 07.02.25

Presence.png

Eu sou o cine-olho. Eu sou o olho mecânico. Eu, máquina, mostro-vos o mundo como somente eu sou capaz de ver.

Eu emancipo-me, doravante e para sempre, da imobilidade humana. Estou em constante movimento... O meu caminho conduz à criação de uma nova perceção do mundo.

Posso, assim, decifrar um mundo que vós não conheceis.

Dziga Vertov, manifesto “Kino-eye” [Cine-Olho]

 

Steven Soderbergh é um experimentalista, um versátil, um travesso que não sossega no que toca ao Cinema, às suas possibilidades e expansões. Talvez por isso — ou talvez não — seja inevitável convocar Dziga Vertov e o seu manifesto “Kino-Eye” (cine-olho) para o seu tratado paranormal “Presence”. Aqui, noutras linguagens técnicas, assume-se o registo POV, o point-of-view de não pertencer ao mundo dos vivos nem ao dos mortos, algo gasoso, mas igualmente presente. O espectador ocupa essa posição, por vezes sentindo-se privilegiado no seio desta família que se muda para uma moradia ao estilo americano.

Sabemos, pelos vislumbres, que uma tragédia pesa neste agrupado, há ambiguidades que nos fazem duvidar da solidez das relações entre os membros desta família, o que poderia à partida ser a sinopse de qualquer old dark house genérico, um filme de assombração onde entidades sobrenaturais reclamam o seu espaço. Ou melhor, um “The Others” de Alejandro Amenábar conceptual. E é aqui que o Kino-Eye entra em ação de maneira parcial, não apenas pela perspetiva adotada, mas pela forma como encaixa na ambição possivelmente ideológica de Vertov: captar o que o olho humano não alcança. A câmara finge (porque o cinema é uma mentira pegada — vénia a Fellini) ser essa força extraordinária. O que vemos, por mais banal, dentro da sua lógica narrativa (eis a chave americano-clássica), é encarado como uma lente não-térrea. Esta presunção deve-se à própria presunção de Soderbergh, não é um miúdo a jogar Fortnite nem algo que se pareça, e sim um realizador atípico, bicho-carpinteiro de um cinema norte-americano que, apoiado nessas forças dominantes, se mantém distante de experimentos e diversidades conceptuais, narrativas ou estéticas.

Nesse ponto, é fácil torcer o nariz à proposta de “Presence”, com o seu plot twist estampado como marca de água do seu ADN, mas, entre os inúmeros ensaios do cinema de género e deste género em particular, este é Cinema na sua forma e fórmula mais puras. Captar o inexplicável, transformar o nosso olhar no inexplicável.

Soderbergh, o homem da câmara de filmar!

O realizador por detrás da câmara ...

Hugo Gomes, 14.08.22

fullwidth.775603fb.jpg

The Man with a Movie Camera (Dziga Vertov, 1929)
 
“Sem mediações nem mediadores, a relação do olho com a realidade é essencialmente direta. A distância, os impulsos, os movimentos, os desequilíbrios que ficam registados (na película ou em digital) são a reação, a resposta espontânea e autêntica da Visão e do Ser do realizador; assim, com o realizador à câmara, filmar torna-se um ato intenso e profundamente impressionista. O realizador que faz a câmara deixa marcas profundas nas imagens que constrói. Seja na relação com os atores, os corpos, a luz, os objetos, a distância / proximidade, o espaço ou o tempo … Cada realizador procura encontrar a sua expressão, o seu ponto de vista, uma maneira singular e própria de olhar para o mundo, de se aproximar e relacionar com as pessoas e a realidade. São estas descobertas que fazem o verdadeiro trabalho do realizador.”
 
- Cláudia Tomaz na crónica “O Homem da Câmara de Filmar”, integrado no número 59 da revista de cinema Premiere Portugal (Setembro 2004)

Só espero que os russos amem os seus filhos (e os seus filmes) ...

Hugo Gomes, 04.03.22

1_e9qjHqvozKDC_8tJBuHsQg.jpeg

Russian Ark (Aleksandr Sokurov, 2002)

O que está a acontecer perante os nossos olhos é horrível, mas peço-vos que não cedam à loucura. Não devemos julgar as pessoas pelos seus passaportes. Devemos, sim, julgá-las pelos seus actos”. Sergei Loznitsa falou e pelos vistos ninguém quis ouvir o cineasta bielorrusso (tendo em conta o processo em marcha de “higienização russa” no estado das artes, nomeadamente no espectro cinematográfico). 

Numa guerra, é “normal” seguir-se por uma via de oposição contra o “outro” fora da somente matéria bélica, dando o exemplo da Segunda Guerra Mundial, a propaganda vindo dos americano que “pintavam” o nipónico, esse inimigo que partilhavam o Oceano Pacífico, como a “criatura nefasta" possuidora de todos os males da Humanidade. Era visível essa caricatura nos seus medias e nas vinhetas cinematográficas que mais tarde transpuseram para a narrativa cinematográfica em geral. Mesmo após a rendição dos japoneses, a "japanofobia" mantinha-se em solo americano anos após anos, e quanto à representação audiovisual, a prejudicial caricatura convertia-se numa outra ainda mais vincada. Perdendo a sua aura ameaçadora, o que restava era a ridicularização. 

A "russofobia", por outro lado, não se resume em somente caricaturar um povo (o cinema norte-americano encarregou-se disso nestes anos todos), mas sim inibi-lo da sua existência cultural. Tendo em conta as imagens divulgadas pelos órgãos de comunicação, aquele povo não estão totalmente alinhado com as ideias e agressões “putinescas”, o qual é lhes depositado esperança de cessam do conflito, mas enquanto isso segue-se a todo o gás, um "boicote" a toda uma produção cultural daí gerada. Cortes abruptos aos filmes russos em festivais e prémios, uma sanção cúmplice a outras sanções financeiras que tem como âmbito “parar” essa Rússia não consensual, medidas que são só possíveis perante os avanços da globalização. Mas quais são as implicações desses atos? Loznitsa falou exatamente disso na sua declaração; o sufoco de “vozes” interiores e críticas das políticas de Putin, e ainda mais, dos dissidentes como é o caso de Kirill Serebrennikov (“Leto”, "Petrov's Flu”), e uma possível mitigação de um cinema politizado e possível dentro de um sistema financeiro que concentrava uma atitude anti-estereótipos (Putin não é a Rússia, Russia não é Putin). 

image.jpg

Ivan The Terrible (Sergei Eisenstein, 1944)

O que será deles? Manteremos o combate à Rússia colocando em cheque a sua própria cultura? A verdade é que esta manifestação já está a evidenciar algumas medidas e precauções; um curso académico italiano sobre Dostoievski cancelado, num ciclo em homenagem ao escritor de ficção de científica Stanislaw Lem [polaco] na Filmoteca de Sevilha testemunhou a substituição do programado “Solaris” de Andrei Tarkovsky pela versão de Steven Soderbergh, a pressão no meio académico para suprimir qualquer referência cultura russa (literatura, cinema, música) das diferentes cadeiras (“O que será da História de Cinema sem Vertov?”) e, talvez insignificante mas igualmente preocupante, o silencioso desaparecimento de filmes russos do muito consultado Top 250 do site IMDB. Sabendo que esta Guerra, que poderá culminar numa Mundial ou quem sabe numa Nuclear, é um ataque aos Direitos Humanos, disso não há dúvida nem contestação (trata-se de um país invadido por um país invasor), mas entristece-me que este movimento de asfixia e de preconceito em tempos onde o politicamente correto e o cancelamento cultural são realidades (não confundir este fenómenos com estas duas manifestações) poderá ter consequências futuras no legado cinematográfico. Sejam na produção das obras do amanhã, seja nas relações das próximas gerações com o património russo. 

O que será de nós sem Eisenstein e outros soviéticos que tanto nos ensinaram o poder da montagem? O que será de nós sem o tempo esculpido de Tarkovski? O que será de nós sem as teias de poder examinadas por Sokurov na sua tida quadrilogia? O que será de nós sem o mais poderoso retrato anti-guerra que o cinema alguma vez filmou? Sim, falo de Elem Klimov e o seu “ Come and See” (1985). O que será de nós? Aliás, antes de responder a todas estas questões, estaremos insensíveis só pelo facto de estarmos a pensar nelas? 

 

“I don't subscribe to this point of view

Believe me when I say to you

I hope the Russians love their children too

We share the same biology, regardless of ideology

But what might save us, me and you

Is if the Russians love their children too”

Sting - Russians 

 

Viajamos para Famalicão! Arranca a 2ª edição do Close-Up, Observatório de Cinema

Hugo Gomes, 13.10.17

The-Spirit_05.png

"El espíritu de la colmena" (Victor Erice, 1973)

Numa viagem, no seu sentido mais poético e elusivo, o que menos importa é o destino. São os trilhos, essas veias sanguinárias que nos transportam para uma experiência à mercê da vivência. E são as experiências que vão este segundo episódio do CLOSE-UP – Observatório de Cinema de Vila Nova de FamalicãoDe 14 a 21 de outubro, a ocupar os mais diferentes espaços da Casa das Artes, e tendo como mira o sucesso da edição anterior, o CLOSE-UP apresentará mais de 40 sessões de cinema, workshops direcionados a escolas e famílias, uma produção própria (de Tânia Dinis) incluída no panorama no feminino de produção portuguesa, e a exposição fotográfica de André Príncipe (realizador de Campo de Flamingos, Sem Flamingos), intitulada de “O Perfume de Boi”, a ter lugar no foyer.

O primeiro dia será marcado pelo filme-concerto de “A Man with a Movie Camera”, de Dziga Vertov, devidamente sonorizado pelos Sensible Soccers (encomenda do CLOSE-UP). O gosto da melodia pop do grupo a tentar provar cadência para com uma das obras mais influentes da História do Cinema. Como qualquer viagem, digna do seu nome, o CLOSE-UP será dividido por diferentes etapas (secções) que nos acompanharão ao longo destes sete dias de pura reflexão cinematográfica. O Tempo de Viagem revela-nos uma metáfora sobre a maturação, o crescimento induzido por esses caminhos dados a lugares incertos. Andrei Tarkovsky é a “rock star” desta secção com “Nostalghia, a sua “aventura” em Itália. O existencialismo procurado por um poeta russo em terras toscanas e romanas funciona como um sacrifício que nos guia quase em modo retrospectivo e introspectivo ao cinema do seu cineasta. Wim Wenders é outro importante signo deste mesmo espaço, não fosse ele um dos grandes “caminhantes” do road movie.

Em “Fantasia Lusitana” esperam-nos quatro longas-metragens portuguesas em oposição a um programa de nove curtas, incluindo uma sessão dedicada a Tânia Ribeiro com a estreia de “Armindo e a Câmara Escura”. No lote nacional, destacamos principalmente as exibições da mais recente longa de Salomé Lamas, "El Dorado XXI", e de Luciana Fina, “O Terceiro Andar”. Vinda da nova vanguarda soviética, a cicerone Larisa Shepitko e Elem Klimov serão figuras relembradas nesta edição de Histórias de Cinema. Mas não serão as únicas. A partilhar o espaço está a dupla Peter Handke e Wim Wenders com “The Left-Handed Woman” e o sempre poético “The Wings of Desire”, bem como David Lynch, indiscutivelmente o realizador do ano, nem que seja pelo reavivar da série “Twin Peaks” que tanto deu que falar, no Observatório, representado pelo spin-off cinematográfico, “Fire Walk with Me”.

38117_56227_89857.webp

Eldorado XXI (Salomé Lamas, 2016)

O resto da programação será constituído por sessões direcionadas para escolas e família, e ainda Infância & Juventude, que como o nome indica será um olhar coming-to-age; desse crescimento que por si deverá ser visto como uma viagem. E que melhor filme para transpor essas duas jornadas alusivamente interligadas que “American Honey” de Andrea Arnold? Claro que nem todas viagens são felizes e a juventude pode ser inconstante, inconsequente e até inconcebível, como o caso de “The Tribe”, de Myroslav Slaboshpytskyi, filme que, infelizmente, chegara demasiado tarde ao circuito comercial português, tendo em conta o seu historial de controversas passagens em festivais por esse Mundo fora. Nesta seção destacamos ainda o clássico de Victor Erice, “El espíritu de la colmena”.

A música e o cinema vão se fundir para criar um encerramento memorável, assim promete esta 2ª edição do CLOSE-UP, com três curtas de Reinaldo Ferreira, ou Repórter X + Dead Combo. A proposta parece indigesta, incompatível e sobretudo experimental, mas o cinema é um experimento que se transformou, como se pode verificar, na mais complexa das experiências. A viagem está marcada.