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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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“Precisamos de lutar contra a narrativa”

Hugo Gomes, 14.12.23

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Relatou-se a seguinte história e eu a apresento aqui conforme me foi narrada. Durante uma das sessões especiais de "Falling Lessons" (1992), na qual a nova-iorquina Amy C. Halpern ansiava pela sua esperada consagração, o evento decorreu de forma passiva, sem grande alarde, cortês e recebido com alguma indiferença pelos espectadores, conforme relatado na narrativa partilhada. Contudo, naquele público específico estava presente um poeta (a minha “fonte” não mencionou nomes) que, após a saída, dirigiu-se à florista mais próxima e adquiriu todas as flores disponíveis, endereçando-as a Halpern com a consideração “We need to fight against the narrative” (“Precisamos de lutar contra a narrativa”). 

O mito ficou, e se ficou perante esta, e única longa-metragem da experimentalista cineasta, filmada, montada e concretizada em mais de 15 anos. É um filme que tem sido esquecido, ignorado melhor palavra, pelo cânone do cinema avant-garde, mas encontrou, nos últimos tempos, uma crescente adesão. A história que acabei de partilhar evoca um pensamento que me acompanhou ao longo da visualização de “Falling Lessons”, que nas suas primeiras imagens, perante uma cartada numa mão de apostador, ouvimos alguém desafiar - “Escolhe o teu medo”. Obviamente, que um dos ‘medos’ comuns e nunca confessados do espectador, é o escape à narrativa, à convencionalidade que as palavras “storytelling” aglomeraram ao longo de gerações e gerações então destruídas por mero prazer, ou “embirrice” (e porque não o oposto?). Um filme como “Falling Lessons”, hoje, seria uma assombração coletiva, enquanto alimentados por um audiovisual cada vez ditado pela coerência, realismo e credibilidade e quiçá a supremacia do argumento, tão enfatizado na sua imperatividade.

A obra de Halpern é, por sua vez, estética, e essa estética transmite-nos a sua politização. No entanto, ao regressar aos medos, parece-me estar perante a bandeira içada pela realizadora. Trata-se de lições amedrontadoras, um confronto com o nosso desconforto manifestado nas poltronas em que acreditamos estar confortáveis. Os vários rostos que surgem, close-ups meticulosos, em panorâmicas verticais, "massageando" com certa sexualização os corpos e os seus contornos, até finalmente chegar à face — dezenas e bem dezenas delas — que direcionam o olhar sobre o nosso, aí, o medo do contacto visual surge, alavancando outro medo: a quebra da quarta parede. Contudo, os medos não terminam aqui; é uma panóplia para além do seu panóptico visual, o de sentirmos observados por esses rostos. É a vertigem que nos conduz, estrada fora pelo medo da diversidade, da inclusão, da tragédia e da morte, da autoridade e da tortura, do desconhecido e do feral, do selvagem e do civilizado, do sexo e do pecado. O medo abunda em todos nós; o medo é a nossa essência.

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Ao longo de "Falling Lessons" e das suas supostas imagens avulsas, o sentir do medo e o prazer dessas fobias imagéticas escondem uma ascensão ao calvário num caldeirão social e racial. Nesse contexto, um subenredo disforme do assassinato de uma criança negra pelas mãos de dois polícias desencadeia um espírito via sacra — "Oh mártir. Ah mártir" — seja João Baptista, jovial e belo como o quadro de Leonardo Da Vinci (também convidado para a coletânea visual), torturado pelos seus pecados e resignado aos mesmos sob a forma de Deus Baco, ou, regressando à cena do crime, com a mãe agressivamente abraçando o corpo do seu rebento fuzilado, bradando aos céus por um milagre lazarento que seja (um subliminar "A Pietà" de Michelangelo, em contraponto com o quadro de Da Vinci). O sacrilégio, o martirológio, quer da realizadora ao colher estes medos e dispersá-los ao longo de 60 minutos, quer das lutas inerentes, como a antirracista associada ao movimento LA Rebellions (Charles Burnett, Billy Woodberry, Larry Clark, Julie Dash), com imagens em campo e contracampo, com raccords intermitentes mas consolidados na mente de quem vê.

No fundo, uma narrativa é construída em todos nós, mediante a nossa adesão a estas propostas, às imagens cativas e trabalhadas em diálogos contínuos, ao número 84 que nos assombra ocasionalmente e à dança da morte com que um gueto desperta em nome de uma paz inalcançável. Contra a narrativa, sim, e depois da sua destruição, uma nova narrativa emerge.