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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Reparação Histórica?

Hugo Gomes, 26.11.24

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Às portas do meio académico, fora das paredes onde o debate em torno do acesso ao conhecimento se prolonga entre jovens pensadores e outros interlocutores, discute-se a vinda de 26 artefactos históricos do Louvre para o Senegal. Entretanto, um vendedor de rua organiza os seus livros numa estante improvisada — um simples manto estendido no chão, para sermos mais precisos. Sem grandes preâmbulos, a câmara instala-se nesta sua “montra”, onde vemos obras de Voltaire, Rousseau e até Petitfils, partilhando espaço com o inevitável Cheikh Hamidou Kane. Trata-se de uma espécie de utopia filosófica ilusória, em que o pensamento ocidental ainda predomina, obscurecendo a riqueza do pensamento subsariano. A imagem que se desenha, porém, é derrotada pelas intensas discussões que envolvem as figuras em cena, os tais académicos ou livres-pensantes. Fala-se desde reflexões e críticas sobre a natureza da “doação”, até ao conceito ocidentalizado de museu e à pertinência destes objetos museológicos no Senegal contemporâneo. Por entre este emaranhado de ideias, surge uma tertúlia pontuada por perguntas sem resposta e respostas sem as perguntas adequadas.

Dahomey”, o premiado documentário de Mati Diop (“Atlantique”) - Urso de Ouro em Berlim - vive deste olhar, desta análise, desta (a)provação. Não se trata de um discurso único nem ditado por agendas, o filme repousa nos jovens, sedentos de ideias e visões culturais pan-africanas, e é precisamente na sua inquietação que o documentário encontra o seu devido tom. Não há certezas absolutas, mas sim incertezas deliberadas. Reparações históricas? É fácil falar delas, mas o que significam verdadeiramente?

Fazendo um breve parênteses, recordo da busca do maliano cineasta Manthia Diawara da casa arquitetada por Ângela Ferreira no seu “Maison Tropicale” (2008). O artefacto de interesse cultural foi removido no fim da era colonialista e transladado para um museu europeu. Num dado momento, o filme debate-se sobre a possibilidade de uma devolução, porém a aceitação do projeto num museu estrangeiro como uma forma de preservação, perante as frágeis instituições do Mali e a sua incapacidade de proteger a própria história, é colocada em cima de mesa por alguns naturais, nomeadamente acadêmicos do ramo. O que clarifica que o assunto “Reparações Históricas”, por vias de um retorno cultural, não é consensual até mesmo nos países interessados.

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Feito o parênteses, voltando a “Dahomey” [título alusivo ao extinto Reino de Daomé], Mati Diop começa a sua “viagem” com uma certeza: o regresso dos 26 artefactos de Paris ao Benin, Senegal, o seu esperado “regresso a casa”. O filme adota uma abordagem semi-wisemaniana, observacional e sem interações diretas, mas com uma câmara atenta que, mesmo sob curto tempo de antena, incide criticamente sobre o museu e o processo de restituição. Nesse sentido, faz lembrar o esforço hercúleo de Nicolas Philibert em “Louvre City” (1990), mas num sentido inverso, e não o descarte de um fragmento de um vasto acervo.

Diop, no entanto, tenta apelar a um chamamento ancestral a toda esta recolocação. Há uma estátua — o número 26 — que, como num debate existencial, parece ecoar uma voz numa eternidade obscura. Existe um lado xamânico, característico do cinema de Diop, que anseia libertar-se, uma vocalização que transcende o tempo e o Homem. Contudo, esse elemento reforça um lugar-comum: o da África mística, incompreendida. Este chamamento parece supérfluo em relação ao que o filme realmente procura estabelecer: o foco numa discussão essencial, por vezes, desvirtuada por radicalismos oriundos do Primeiro Mundo. Um megafone dando ao espiritualismo desvirtua esse vínculo para com Mundo real e físico, onde estes objetos e as suas culturas se inserem. 

Em “Dahomey”, os verdadeiros protagonistas falam por si, sem depender de intermediários. Nós, espectadores, limitamo-nos a ouvir e a refletir.

Abril Sempre!

Hugo Gomes, 24.11.24

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Na procura de uma memória coletiva sobre os preponderância da Revolução, Luciana Fina “resgata” do arquivo uma montagem, quase a cheirar a coletânea, de ventos que se defrontam numa ideia conceptual num ato. O 25 de Abril, ponto-chave, e de lá o Antes, o Durante e o Depois: o que se ganhou, o que se perdeu e o que se manteve. “Sempre, título ou grito afirmativo das promessas, acalora corações, como a “venda” de um Abril retirado da normalização do seu calendário e transformado numa Primavera ideológica. Assim, deparo-me com os conselhos de “não descansar até o Abril se concretizar”.

Leia-se nos murais, nas faculdades, ouça-se das bocas dos idealistas, dos otimistas, dos sonhadores. Sonhar é fácil; acordar é mais difícil, porque é nessa sobriedade que nos damos por vencidos pelas frustrações do tempo. “Sempre é um ensaio de intenções, imagens e sons costurados, projetados dias e dias numa parede de tijolos do átrio da Cinemateca de Lisboa. Ali encontrou uma textura que lhe condizia: o picotado retangular de cada peça compunha cada imagem como um puzzle, algo apenas sustentado pelo “poder da projeção” — essa luz tremeluzente como uma acidental alegoria de um país imaginado.

Porém, 50 anos de Abril levam-nos a estas comemorações. Mas a comemoração adquire asas próprias: chega Veneza, e a oportunidade de esta instalação virar filme é outro sonho acordado. Os italianos também comemoram o 25 de Abril — não o nosso, outro. Será que entenderão o peso das imagens que Fina acarreta no seu “Sempre? Ou apenas as olharão como uma curiosidade de arquivo?

Para nós, portugueses, essas mesmas imagens são sentimentos: ora de compreensão, ora de indignação. As forças opostas — os saudosistas ou os que consideram que se perdeu a “essência” (qual, não sei) do primeiro cravo — encontrarão em “Sempre uma propaganda contra o seu paladar. Os críticos “pés-de-barro” virarão costas, como sempre (e “Sempre). Não foi para eles que o filme foi feito.

Luciana Fina demarca-se num ensaio cujo sabor difere conforme o espectador. Há quem o veja como uma continuação de uma luta. Há quem o entenda como uma desilusão: às influências de Abril, ao engodo, à traição e, sobretudo, à decepção trazida pela engrenagem política. “Bom Povo Português”, de Rui Simões, documento crucial dessas paradas, igualmente serviu-se de imagens para demonstrar o fracasso acima da exaltação. Muitos viram o ato como uma traição à Pátria, uma patranha, sem conceber a hipótese de que a crítica é o avanço da sociedade.

Sempre nunca obtém tal sentimento, até porque é um objeto do seu tempo, deste tempo, em que se olha para a Revolução tentando encontrar um fio condutor. Quem sabe, para seguir até esse sonho, cada vez mais distante, de um Abril Sempre.

Tribeca, um Web Summit que se fez passar por Festival

Hugo Gomes, 21.10.24

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Foto.: Ana Baião 

À porta do Doclisboa, discutia-se uma entrevista com Paula Astorga, a nova diretora do Festival de Documentário, ao site C7nema, na qual se destacava o evento como o [sublinhe-se] Festival de Cinema, em oposição ao Tribeca, a acontecer ali ao “lado”, e partilhando datas: “uma centelha, algo efémero e pouco transcendente”. Revoltado com tal afirmação, o meu “cúmplice” de "crimes" e de filmes, apelava à coexistência desses dois mundos nesta nossa conversa, coisa com a qual não pude deixar de concordar, embora não resistisse a criticar aquilo que se pretende vender como o nosso Tribeca.

Tribeca, o festival nova-iorquino, é uma "coisa", a extensão lisboeta na costa do Beato é outra bem diferente, um sintoma do que, lamentavelmente, parece ser o nosso desporto nacional: exaltar o provincianismo. Sob a bênção do presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, e da SIC / OPTO, com um “vaqueiro de prata” para exibir às visitas, o Tribeca Lisboa foi tudo menos um festival dedicado ao cinema. Aliás, de Cinema tinha pouco ou nada, e o que tinha parecia querer esconder debaixo do tapete como se fosse um embaraço. Talvez seja por isso que a palavra "Cinema" surgiu em terceiro lugar no cartaz, depois de "Cultura Pop" e "Talks". Porque, na verdade, este Tribeca importado chega-nos como um empreendedorismo quais-turistico, e apertos de mão e negócios com o seu quê de solarengo alfacinha, uma condição confirmada pela atenção mediática - com Robert De Niro, Chazz Palminteri, Griffith Dune, Patty Jenkins e Whoopi Goldberg a dividir o palco com as caras conhecidas da nossa praça, mas, mais uma vez, com pouco ou nada de cinema para partilhar com os nossos.

Infelizmente, mesmo nessa troca de fluídos, fizemos "figuras tristes". Sem cinema, o festival transformou-se no modelo que os portugueses tão bem conhecem: o da Web Summit, o estilo FIL, de passes caros e promessa de estrelas de Hollywood (poucas, diga-se) a circularem pelos corredores deste negócio metropolitano. A De Niro, a sua presença foi tudo menos cinematográfica, sendo a política, Trump e a sua oposição feroz a encher manchetes e reels promocionais. Do outro lado, a nossa oferta: o "cinema português", representado por César Mourão e séries-pilotos como montra. Alguém consegue explicar aos nossos como também à estrela o que é realmente cinema português, aquela com uma linguagem universal e não citações de fórmulas ou hibridez televisiva, ao invés de o aproximar da produção mista da SIC e a “gang do audiovisual” desejam fortalecer.

Como bem apontou o crítico Vasco Câmara, do jornal Público, bastava alguém sussurrar ao ouvido de De Niro com a dica de que na "terra natal" do Tribeca, em Nova Iorque, estava a decorrer um ciclo de cinema português no MoMA - “The Ongoing Revolution of Portuguese Cinema - que celebra a universalidade e contemporaneidade da nossa produção. Pedro Costa, Miguel Gomes, João Pedro Rodrigues, Fernando Lopes, Manuel Mozos, Teresa Villaverde, entre outros, filmes tão nossos que o "grande público português" despreza, mas, em vez disso, apresentamos protótipos baratos de enésimas produções hollywoodianas, De Niro e a sua trupe produzem uns quantos “Podia Ter Esperado por Agosto” com uma perna às costas. Como bem disse João Botelho: "patetice por patetice preferem os americanos, que são patetas grandes".

No final, é oferecido um galo de Barcelos, anuncia-se a edição de 2025, e pronto, fica arrumada esta Comic-Con dos CEOs do audiovisual [aqui um fica de um testemunho deste "festa cinematográfica" no site Tribuna do Cinema]. E o triste é saber que temos as condições e as estruturas para acolher um festival internacional à escala de Cannes, Veneza ou até Locarno, o que nos falta é a mentalidade, como também a vontade, para o concretizar.

Entretanto, o Doclisboa prossegue, e é, quer se goste, quer não, um festival de cinema. O outro... nem carne nem peixe. Uma terra de unicórnios …

Consolidar um legado: Doclisboa arranca com nova direção e para novos rumos

Hugo Gomes, 17.10.24

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Entre as novidades desta 22ª edição do Doclisboa, a maior de todas é claramente a presença da mexicana Paula Astorga, ex-produtora e ex-diretora da Cinemateca do México a assumir a liderança do festival neste 2024, cheio de riscos, despedidas e comitivas de boas-vindas a frescos olhares e autores e os habitués. O Festival Internacional de Cinema Documental de Lisboa recorda o crítico e programador Augusto M. Seabra, voz e corpo da secção de Riscos, uma das mais badaladas da história do evento, e que semeou os rumos que vingariam no formato, a homenagem é sentida e garantida, e até mesmo Astorga, não o conhecendo pessoalmente, dirige-lhe com uma respeitosa vénia ao seu legado. 

Paul Leduc (1942-2020), o cineasta mexicano e experimental nas diferentes vias cinematograficas, que tem uma das raras retrospectivas fora do México, e o brilho dos olhos na diretora ao referir a sua obra é por si só uma conquista, os habituais cantos da casa; Heart Beat, da Terra à Lua, Competição Nacional e Internacional, Verdes Anos e Harmony Korine com o bizarro “Agro Dr1ft”, o futuro do cinema? Enquanto oportunidade única. 

Paula Astorga recebeu o Cinematograficamente Falando … no “quartel general “ do festival na Culturgest, numa longa conversa sobre filmes, secções, autores e beleza cinematográfica. As seguintes vinhetas são extractos desse mesmo encontro, para alimentar o apetite nestes próximos 10 dias de janelas para o Mundo. Aquele que é de facto um dos mais importantes festivais de cinema da nossa praça.  

GS400377_post-scaled.jpgPaula Astorga

A Tocha … depois de Seabra

Esta não é a primeira vez que dirijo um Festival, e no fundo, adoro o conceito de Festival de Cinema que são espaços necessários que articula, cada vez mais pertinentes e integrados naquilo que encaramos como o ecossistema da vida dos filmes. 

Para mim receber o Doclisboa foi com grande prazer, porque é um festival de uma identidade bastante definida. São 22 edições e é um momento maravilhoso, porque ainda é um evento jovem mas com este número de edições já requer uma certa responsabilidade, um jovem adulto que sabe o que é e o que deseja ser. Um festival com uma audiência construída e claramente sabe o que quer dizer. 

Nestes 22 anos, o Doclisboa atravessou e testemunhou imensas mudanças, seja da indústria, de uma pandemia que vivenciamos recentemente, ou geracional. Nisto vemos um festival que pede renovação frente às abordagens frescas incentivadas pelas redes sociais, com as plataformas e com o surgimento de novas linguagens cinematográficas, sempre mantendo o rigor da programação que sempre nos habituou. É isso que significa ser um festival adulto.

Um festival que proponha Cinema, que fale-nos de política, do social, do Mundo em nosso redor, mas que não tenha medo do poético, que crê na beleza, no cinema enquanto arte. Isso são pontos intocáveis no Doclisboa

Portanto, receber o legado deste festival é também uma grande responsabilidade, e como tal devo manter e proteger os seus valores. A minha chegada deu-se com a despedida de Augusto M. Seabra, uma  voz predominante neste festival e fundador da secção Riscos, o qual sem essa secção não haveria Doclisboa. Nunca tive a oportunidade de conhecê-lo, mas parece-me que o seu pensamento crítico e a sua aposta nas equipas de programação tornaram esta despedida muito contundente para as estruturas do festival.  

Como tal, chego numa altura em que se solicitava novos rumos, novas ideias sem nunca perder a sua personalidade tão vincada. O meu papel é consolidar a ideia de um legado. 

Reed.-Insurgent-Mexico.jpgReed, México insurgente (Paul Leduc, 1970)

Paul Leduc, "nuevas miradas"

Quando estávamos a discutir a retrospetiva deste ano, pareceu-me evidente, e em certa parte um statment politico e não só, apresentar um cineasta mexicano. Mas mais do que ser mexicano, Paul Leduc a condizer com esta nova ideia de festival, porque não só experimentou os mais diferentes cantos, quer documentais, quer ficcionais - e até animação ["Los Animales", 1994]! - como também era um homem de esquerda, bastante político, sem nunca descartar o seu lado artístico. 

Foi autor de um dos primeiros retratos da artista plástica mais importante do México com "Frida, naturaleza viva" (1984), demonstrou as revoluções sócio-culturais, o seu latino-americanismo, o seu pensamento político e artístico, a geografia e a etnografia como foi o caso de "Etnocidio. Notas sobre la región del Mezquital" (1976), em que segue para território indígena. Em "Historias prohibidas de Pulgarcito" (1980), aborda a guerra civil de São Salvador sob o olhar do poeta Roque Dalton e do seu homónimo livro, ou por outro lado, na ficção, adaptaria os contos do escritor brasileiro Rubem Fonseca com "Cobrador: In God We Trust" (2007), com o ator Peter Fonda, que estreou no Festival de Veneza

O meu papel seria traduzir o que transmitia o Doclisboa, quer no seu pensamento político, papel social, estético, um festival que celebra autores e memórias, por exemplo, há uns anos tivemos uma retrospectiva do colombiano Luis Ospina o qual consolidava todas essas ideias, Leduc não estava longe disso, aliás dialogava com todos esses pontos. A Cinemateca após ter recebido a proposta deste ciclo - um dos mais completos do autor e e a primeira a ser realizada na Europa, com cópias restauradas - reagiram com bastante agrado. 

Posso garantir que é um ciclo alucinante, Paul Leduc era um autor ecléctico e prolífico no contexto completamente adverso para o cinema mexicano. Julgo que não haveria espaço melhor para honrar a sua memória do que o Doclisboa.

66fb0c5b85b6e.jpgSempre (Luciana Fina, 2024)

Competições, diálogo ao invés de concorrência … a cinematografia portuguesa como parte do Mundo

Em relação à Competição Internacional posso, antes de mais, revelar a minha surpresa e gratidão com a equipa de programação e artístico do Doclisboa. Este anos contamos com Cíntia Gil e Justin Jaeckle enquanto programadores associados, mas a Competição Internacional passou por todo nós, e foi uma seleção difícil de ser consolidada, porque o festival tem um sentido muito particular de encontrar quais os filmes que integrar o espírito do nosso espaço, fugimos do temático e do manipulador, e construímos pontes com a beleza, com as possibilidades de Cinema. 

Quando olho para esta selecção vejo isso, um cinema contemporâneo que persegue os horrores, os cantos tenebrosos, mas que mesmo assim encontra beleza na maneira de transmitir as suas histórias, mesmo sob cargas dolorosas, e o nosso ponto era ter uma linha de filmes que celebram, mais que tudo, o Cinema e com alguns autores não estranhos por este festival. Esforçamos para entregar aos espectadores uma seleção que dialoga entre eles, que vale a pena descobrir. 

Em relação à Nacional, enquanto mexicana os meus anteriores contactos com o cinema português foram em curadorias minhas, digo minha mas obviamente tive uma equipa de programadores associado, a retrospectiva de Miguel Gomes na Cinemateca Nacional ou o ciclo de Pedro Costa quando dirigia Festival Internacional de Cinema Contemporâneo da Cidade do México, distribui o "Tabu" de Miguel Gomes com a minha empresa e mais tarde o seu "Mil e uma Noites". Mas o meu relacionamento com o cinema português, o qual ia entendendo através dos grandes importados, tem um lado mais íntimo que para mim foi um prazer em descobrir. Na Competição Nacional temos seis co-produções, o que para mim é um sinal importante, porque demonstra um cinema que está a relacionar com o restante Mundo, e que está pactuando com uma visão global.

Já fora da Competição, gostaria de referir "Sempre" de Luciana Fina [Filme de abertura] e a minha experiência enquanto mexicana. O que é a História de Portugal Contemporânea a ser recontada de uma maneira que me faz querer saber mais. Vejo uma sociedade com os problemas do Mundo, os feminismos, as revoluções, os ideais, e vindo de uma país latino-americano como o México, essas imagens é como experienciar um parte da minha própria História, mas como não é realmente é aí que alimenta a minha curiosidade a partir da própria ideia do cinema numa investigação que quanto a mim, é impecável. E no ato consolidador para com novas visões, revisitando a sua História, apropriando-as e contextualizando-as, portanto, as suas memórias recentes, é algo que vibra com a razão do Mundo e que tem uma coerência maravilhosa. 

MV5BNTViYTI5YjEtOTgzMS00YjM1LTllNWEtMTg4M2EzNzYyMDAgro Dr1ft (Harmony Korine, 2023)

“Agro Dr1ft”, Harmony Korine (ar)riscado …

Esse é o futuro! Sim, tem uma linguagem videogame, é a desconstrução do código da violência nesta contemporaneidade e sem filtros, e falando em nome do Doclisboa, estamos inteiramente satisfeitos com a possibilidade de o projetarmos em sala de cinema. “Agro Dr1ft” é toda uma experiência visual, evidentemente, não necessariamente gratuita, porque infiltra-se em ti e a tela grande é literalmente uma oportunidade para o experienciar. Acredito que é uma obra que conflui, digamos, de todas as distorções da ideia da pós-verdade, da pós-violência, dos tratamentos e da intervenção da imagem até à última consequência. Além do mais, o Doclisboa tem uma relação com o cinema de Harmony Korine, portanto, seria imprudente deixar escapar esta secção especial.

Doclisboa arranca hoje (17/10), prosseguindo até dia 27, na Culturgest, Cinema São Jorge, Cinema Ideal e Cinemateca, a programação completa poderá ser consultada aqui

"A Morte de uma Cidade" vista por João Rosas: "a presença da câmara exige uma postura ética e moral"

Hugo Gomes, 03.09.24

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A Morte de uma Cidade (2022)

Há muito tempo que queria fazer um filme sobre a morte de uma cidade”, em voz-off João Rosas declara um desejo de testemunhar um fim, ou talvez uma transformação, ao conceito clássico de cidade. Esse exemplo, trazido pela perspectiva de um estaleiro e a sua comunidade trabalhadora, é encontrado na capital, Lisboa, a metrópole que lutou e cedeu aos fenómenos correntes que atropelam vários pólos populacionais da Europa (e não só). O documentário “A Morte de uma Cidade”, o título diz tudo e nada esconde, é um filme resposta à sede e à perplexidade do seu realizador perante esse local que não mais reconhece. 

No entanto, sob uma arma poderosa, a câmara de filmar, ele penetra em obras, estaleiros propriamente ditos, e depara-se com uma outra cidade, uma cidade invisível e ao mesmo tempo visível, por vezes ignorada — a cidade que muitos temem e que outros fecham os olhos numa indiferença abismal. É a cidade destes trabalhadores de passagem, imigrantes das várias partes do globo, que aqui encontram a sua provisória Torre de Babel. João Rosas procurou um filme e o encontrou nessa gente. “A Morte de uma Cidade” é o colocar a cidade em nu.

Aproveitando a estreia, conversei com o realizador sobre este mesmo filme, a sua passagem na nossa contemporaneidade, desde as crises habitacionais até aos discursos inflamados sobre imigração, a Lisboa cada vez mais seletiva, e saindo desse círculo, sobre a ficção própria de João Rosas, das Marias do Mar aos Cataventos, sempre com a cidade na mente. Fiquemos com a conversa:

O filme estreia em sala após ter sido introduzido a nós no Doclisboa de há dois anos, julgo que recebeu lá um prémio …

Sim, o Doc Alliance, que é atribuído por seis ou sete festivais europeus de documentário. Cada um desses festivais nomeia um filme, e o Doclisboa nomeou o meu. Depois, o filme é avaliado por um júri independente, composto por três pessoas, que não está ligado a esses festivais. 

Já tinha passado uns mil anos desde a estreia [risos].

Mas foi filmado antes da pandemia?

Sim, foi.

Faço esta pergunta porque só agora estreámos o filme em sala, no circuito comercial. E numa altura em que, talvez, este tema tenha sido sempre debatido, mas agora parece estar a ganhar ainda mais força — esta transformação da nossa cidade. Aliás, acho que foi na semana passada que saiu uma notícia sobre derrubar um quarteirão inteiro em Arroios para construir um hotel. Ou seja, ao ver o seu filme, mesmo com dois anos … quer dizer, foi feito durante a pandemia, não foi?

Sim, quer dizer, no fundo, acho que o que mudou foi apenas o agravamento da situação. Aquilo que presenciei quando comecei a filmar, no final de 2016, e continuei a registar até meados de 2018, já era um fenómeno em desenvolvimento há alguns anos. Este fenómeno começou, sobretudo, nos anos da crise, por volta de 2011 e 2012, durante a crise imobiliária mundial, que resultou num aumento do investimento estrangeiro em propriedades desvalorizadas e degradadas.

O que filmei já refletia esse fenómeno, que desde então só se agravou devido a uma série de factores. Alguns são de ordem internacional, como o investimento estrangeiro e o funcionamento do sistema capitalista e financeiro atual, que favorece os interesses dos investidores. Outros factores estão ligados a medidas governamentais, inicialmente introduzidas pelo governo do PS e depois continuadas, mas que tiveram origem no governo de Passos Coelho, como os vistos Gold e outras políticas para atrair investimento. Estas políticas, aliadas à desregulação do mercado de arrendamento, entre outras medidas, conduziram à situação dramática que vivemos hoje, especialmente para quem procura casa e tem o direito de viver na cidade.

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João Rosas

Este fenómeno não afeta apenas a habitação, mas toda a vivência da cidade. Estamos a assistir à criação de uma cidade virada, não só para o turismo, mas também para o consumo, para a privatização de espaços públicos e para uma vivência que exclui uma parte significativa da população local, que já não consegue viver na cidade. Isto inclui também pessoas que trabalham na construção civil e que, paradoxalmente, constroem a cidade, mas não encontram condições para viver nela.

O filme pretende não apenas retratar esta realidade, mas também servir como uma forma de eu próprio questionar este fenómeno, mais do que apresentar respostas ou fazer uma denúncia direta. Para mim, o desafio foi muito pessoal: tentar compreender estes fenómenos, que são extremamente complexos e de uma escala macroeconómica, através das histórias pessoais das pessoas que trabalham nestes edifícios e que integram este processo mais amplo.

Foi sempre um filme de perguntas. Durante o processo, estive constantemente a questionar, não só os outros, mas também a mim próprio, para tentar perceber melhor este fenómeno. Mais do que denunciar, o filme procura revelar as diferentes escalas e os diversos atores envolvidos neste processo...

É curioso como continuamos a lidar com este problema. Aliás, há uma frase no seu filme que diz: Lisboa, cidade sem memória, sem perdão. Esta cidade corre o risco de perder a sua memória e a sua cultura, de certa forma. E, ao mesmo tempo, há outro tema muito atual, que continua a ser debatido hoje, que é a questão da imigração, sendo que grande parte desta mão de obra para esses investimentos vem precisamente de pessoas imigrantes. Como é que vê esta relação entre os dois fenómenos?

Sim. É óbvio que, do ponto de vista do Estado e do governo, existe uma grande hipocrisia. Por um lado, há medidas que atraem certo tipo de imigrantes, como os vistos Gold, mas, por outro, existem políticas que dificultam a vida das pessoas que vêm para cá trabalhar e procurar melhores condições do que as que tinham nos seus países de origem, ou mesmo de pessoas que nasceram cá, mas enfrentam dificuldades por pertencerem a estratos sociais mais baixos, etc. No entanto, este debate não é novo. A nível português e global, temos assistido ao crescimento da extrema-direita, com discursos identitários e nacionalistas que ganham cada vez mais força, e que são, obviamente, fortemente direcionados contra a imigração.

Este fenómeno é o culminar de medidas que, apesar de apresentadas como centristas ou até benéficas para os imigrantes, na verdade acabam por dificultar a vida dessas pessoas. Medidas que, através de um processo burocrático brutal, da dificuldade na reunião familiar e da imposição de contratos de trabalho, colocam essas pessoas em situações de grande fragilidade. E, no fundo, estamos a falar de pessoas que são iguais a todas as outras, mas que...

Acho que isso é óbvio …

São pessoas que, na verdade, trazem uma grande riqueza, e não se trata apenas da riqueza de fazerem trabalhos que os portugueses não querem fazer. Elas trazem riqueza enquanto pessoas, pela sua presença humana e cultural. Na realidade, a cidade, a própria ideia de cidade, vive desse cruzamento de pessoas, de entradas e saídas, de trocas de ideias, culturas e experiências. É óbvio que, do meu ponto de vista — mais até do que cinematográfico, diria do ponto de vista humano — aprendi imenso e ganhei muito com esta experiência, ao ver como aquele estaleiro funcionava como uma pequena cidade. Ali, havia esta troca constante de experiências e ideias, tanto entre mim e os trabalhadores, como entre os próprios trabalhadores. O estaleiro era, assim, um ponto de encontro, um local de interação entre estas pessoas.

E as relações entre eles também.

Sim, claro, é isso mesmo. Também aprendi muito com essa experiência. No fundo, aquele estaleiro funcionava um pouco como uma mini-cidade, com esta ideia de cruzamento e passagem de pessoas, que é, aliás, o que eu referi anteriormente. Não se trata apenas de uma crise de habitação ou financeira, mas também de uma crise da própria ideia de cidade. A cidade está cada vez mais segregada, cada vez mais voltada para um certo tipo de população, perdendo-se essa noção de partilha de espaços, de percursos, e de trocas de ideias e experiências

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A Morte de uma Cidade (2022)

Há um ponto muito curioso no seu filme, que nem sequer é diretamente subjacente a estes temas de que estamos a falar — a gentrificação e a imigração — mas que, ainda assim, está presente: a sua própria busca enquanto realizador pelo filme. Se não estou em erro, na altura do “Catavento” (2020) li um artigo sobre uma longa-metragem de ficção que estava a preparar, a sua primeira longa de ficção. Este seria o filme que deveria ter nascido dessa ideia, não é? Ou seja, essa ficção que estava a preparar acabou por dar lugar a este documentário, certo?

Não, não. Este filme até foi filmado antes do “Catavento”. Só que o “Catavento” nasceu do meio da montagem deste “A Morte de uma Cidade”, até porque o processo de montagem foi muito longa, não só pela quantidade de material que tinha, mas também porque foi um filme que, inicialmente, tinha um financiamento muito reduzido e, por isso, foi sendo montado aos “bochechos”. Depois veio o Covid, tive outra filha... Enfim, a vida foi acontecendo no meio do cinema, como tem de ser. Durante esse período, o “Catavento” foi feito.

Este filme já tinha, desde o início, esta forma e ideia de documentário, tal como é. Quanto ao filme que tinha planeado como ficção, a longa-metragem, essa, foi filmada no ano passado e agora estou a terminar a pós-produção desse projeto.

Então esse filme ainda existe?

O de ficção? Sim, será o próximo a sair …

Voltando à questão, e obrigado por este contexto temporal. Mesmo assim, parece haver neste filme um realizador que está à procura do seu próprio caminho. Ao longo, talvez, da primeira hora, acompanhamos o realizador — neste caso, você —, ainda que invisível no filme, numa espécie de busca. Primeiro, quer filmar a “morte” da sua cidade, talvez porque sempre teve esse desejo de retratar esse último suspiro. Aliás, é curioso, porque já tinha uma obra chamada “Birth of the City” (2009) e agora parece desejar o seu oposto estatuto. Depois, ao entrar no estaleiro, começou com uma certa intenção de denúncia, mas acabou por se aproximar das pessoas. Foi isso que aconteceu?

Ou seja, interessava-me precisamente por isso ser, como eu disse, um “filme de pergunta", um chavão que pode parecer pouco pretensioso, mas que traduz bem a minha abordagem. Era um filme de pergunta no sentido de que eu estava a explorar e a descobrir o terreno à medida que o fazia. Não tinha respostas pré-definidas, e para mim isso era essencial, não de uma forma narcisista ou para chamar a atenção para a minha arte ou para o ofício de realizador, mas porque achava importante que o processo de procura da forma do filme, e a forma como se filma naquelas condições, estivesse visível.

Parecia-me também interessante, e essencial, refletir sobre esta dúvida que tinha em relação ao que significava fazer um filme destes. Havia um paralelismo entre a construção do filme, a construção de uma cidade e a construção de um prédio. Tal como uma cidade, ou aquele estaleiro, os filmes são construídos por camadas.

A rodagem foi muito longa, e com pessoas que iam e vinham no estaleiro, acabou por passar por várias fases diferentes. Nesse processo, eu próprio passei por várias fases. Houve, de facto, uma fase inicial mais marcada pela denúncia, pelo confronto direto com a violência daquele trabalho e daquelas condições. Foi uma experiência muito crua. Depois, veio uma fase de maior distanciamento, quase de frustração, em que cheguei a sentir-me perdido, achando que talvez não conseguisse fazer o filme.

Quando as primeiras equipas de trabalhadores mudaram e os primeiros andares começaram a ser construídos, tornou-se ainda mais difícil. Tive de refazer todo o processo de aproximação às pessoas, começar tudo do zero. Mas o momento de viragem foi, sem dúvida, quando conheci este grupo de trabalhadores guineenses, que me acolheu como parte do grupo, por assim dizer. Apesar das distâncias que existiam entre nós, essa ligação permitiu-me encontrar um novo rumo para o filme.

Pareceu-me interessante refletir sobre todo este processo na própria narração, na voz off. Desde o início, essa ideia já existia, até porque há uma ligação com o “Birth of the City", que também tinha voz off e foi filmado em Londres. A voz off permitiu-me não só refletir sobre o processo de fazer o filme, mas também preencher algumas lacunas em relação às histórias que estas pessoas me iam contando e que, por uma razão ou outra, não consegui captar diretamente com a câmara … tive pena, achei que era mais uma camada que se acrescentava ...

Em algum momento durante a rodagem deste filme, sentiu que devia intervir, mas tentou manter-se como um observador passivo, apenas a captar aquilo que via? Como lidou com essa tensão entre a vontade de agir e a necessidade de apenas registar?

Acho que este é um filme em que estou bastante interventivo. O que me parece mais interessante, tanto enquanto cineasta quanto em termos de reflexão, é a relação que estabeleci com as pessoas. Embora o filme tenha uma abordagem, até certo ponto, observacional, a minha presença é muito marcante. Apesar de estar atrás da câmara, há uma interação significativa entre mim e as pessoas. Para conseguir esse grau de intimidade — filmar em suas casas, captar certas conversas — foi necessário um envolvimento pessoal muito grande, e com todo o gosto. Na verdade, grande parte do tempo que passei no estaleiro era tempo de convívio, e isso tornou-se uma rotina diária para mim. Para mim, essa parte foi até mais fácil, porque, enquanto as pessoas estavam a trabalhar, eu também estava, mas a parte do trabalho envolvia também o convívio e a conversa.

Todos os dias, percorria o estaleiro pela manhã, conversando com as diversas pessoas e, depois, começava a filmar gradualmente aqueles que me interessavam mais. Não diria que sou uma presença passiva; pelo contrário, a minha presença é muito forte. 

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Sim, até em relação àquele trabalhador do estaleiro que ainda trabalha no café do patrão. Lembro-me de que o João lhe questionava se ele não estava a ser enganado.

Sim, exatamente. A questão é que, a certa altura, o que mais me interessava era como essa barreira entre o cinema e a vida se foi esborrando. Há sempre uma câmara presente, e a presença da câmara exige uma postura ética e moral. É importante ter essa consciência, porque acabamos por ter um poder na relação que não é, à partida, horizontal. O que me interessava era construir essa relação de igualdade, apesar da presença da câmara. Por isso, a minha presença no estaleiro, às vezes sem a câmara ou, pelo menos, com a câmara desligada, foi essencial.

Essa barreira foi-se esbatendo porque desenvolvi relações de amizade. Nesse sentido, a minha intervenção foi forte, pois estava muito presente e partilhava aspectos da minha vida, embora esses aspectos não estivessem no filme. As pessoas conheciam coisas sobre mim, sobre a minha família, as minhas dificuldades, porque também partilhei coisas com elas. A relação tornou-se, de facto, uma amizade.

O filme foi, então, construído com base nesses pressupostos. Embora estivesse a filmar, grande parte do processo envolvia relações que continuam a existir até hoje.

Portanto, para além do filme, tem contato com algum deles?

Sim.

É que se fica com a sensação que eles desaparecem, como aquilo é trabalho de passagem e estão sempre em transição.

Os primeiros trabalhadores com quem estive não conseguimos manter contacto, porque, como menciono no filme, muitas vezes desapareciam de um dia para o outro. No entanto, na fase de construção — ou seja, na segunda fase da obra — houve uma certa estabilização das equipas. Embora houvesse rotatividade de pessoal, a equipa dos pedreiros, composta por um grupo de guineenses, manteve-se durante vários meses, alguns até por um ano, o que permitiu construir uma relação mais sólida.

Hoje, com alguns dos trabalhadores, ainda mantenho contacto, enquanto outros mudaram de país ou de número de telemóvel e desapareceram do meu radar. Não sei se estão cá ou não, mas muitos deles ainda mantêm contacto. Aliás, alguns estiveram presentes na estreia do Doclisboa, o que foi um momento muito emocionante. Ver-se a si próprios na tela e ver o seu trabalho valorizado num contexto cultural que muitas vezes lhes é inacessível foi algo muito significativo para eles.

Houve um lado emocional muito forte, como o exemplo da esposa de um dos trabalhadores, que viu o trabalho do marido pela primeira vez no filme. Ela subiu ao palco e falou sobre o esforço do marido para sustentar a família, sublinhando a importância de ver o que ele passava durante o dia para garantir o sustento da família. Essa experiência foi um dos pontos de partida do filme.

Assim, o filme explora também a ideia de como se filma num estaleiro, como se entra naquele ambiente, como se aborda pessoas que têm os seus próprios códigos, regras de conduta e formas de sociabilidade. O funcionamento daquele espaço é muito particular, e o desafio foi exatamente entender e respeitar esses aspectos enquanto se capturava a realidade, e essa relação passa por anteceder ou vai para além do cinema, não passa só por filmar.

Saindo da ‘Cidade, gostaria que me falasse sobre essa ficção.

“Entrecampos” (2013), “Maria do Mar” (2015) e "Catavento" (2020) formam uma trilogia que segue a história do Nicolau (Francisco Melo) e, em menor grau, da Mariana (Francisca Alarcão). Conheci o Nicolau quando ele tinha 11 anos e fui acompanhando o seu crescimento ao longo dos anos. Esta longa-metragem [“A Vida Luminosa”] é o quarto capítulo da trilogia, que agora se transforma numa tetralogia, onde continuo a acompanhar o crescimento do Nicolau, que agora tem 24 anos.

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Catavento (2020)

Uma espécie de “Boyhood às fatias”?

Sim, é como se fosse o “Boyhood" em partes [risos]. Esta abordagem reflete um outro lado do meu trabalho, com certos pontos de contacto com a exploração da “Morte de uma Cidade”. A ideia, mais uma vez, é a relação com a cidade, com certos lugares que vou descobrindo a partir das pessoas que trago para os filmes. A narrativa parte sempre do núcleo central, que é o Nicolau, quer dizer, do Francisco, o rapaz que o interpreta. A partir dele, conheço outras pessoas, seja através de castings ou de contatos, e descubro a cidade pelos olhos dessas pessoas, inserindo esses elementos no filme, muitas vezes de uma forma mais ficcional.

E é curioso essa partida do Nicolau, porque não era o protagonista de “Entrecampos”, e sim, um secundário, a Mariana, a menina de Serpa, ou melhor Francisca Alarcão, era sim, a protagonista.

No fundo, a ideia de “Maria do Mar" já existia na altura de “Entrecampos", mais ou menos, com mais ou menos desenvolvimento, e tinha esta ideia da descoberta da sexualidade, da ideia de o rapaz estar fora do seu contexto durante o fim de semana. Depois, quando conheci o Francisco durante a realização de “Entrecampos”, pensei: “Por que não continuar esta relação com ele?”. Embora a Mariana, essa rapariga, não tenha tido lugar nessa história, foi daí que nasceu a ideia de continuar a história. Não havia essa ideia no início, pois “Entrecampos” era um filme isolado, mas depois essa ideia foi-se desenvolvendo cada vez mais, de trabalhar com certas pessoas, de trabalhar em continuidade e de explorar também...

E há também um trabalho... o tempo, e como esse elemento o influencia, neste caso com o Nicolau, o Francisco Melo. Como também, acredito, que houve em fazê-lo crescer enquanto ator? Notei que de “Entrecampos” a “Maria do Mar” ocorreu uma evolução muito grande.

Sim, é engraçado, porque muitas pessoas me diziam quando comecei a filmar o “Maria do Mar”: “tens a certeza de que queres trabalhar com ele? Porque ele não tem jeito nenhum.” Mas, claro, ele era muito jovem na altura. Estava a lidar com páginas e mais páginas de texto, e ele, coitado, tinha de lidar com tudo isso. Mas o que realmente me interessava não eram as suas capacidades enquanto ator, e sim a pessoa que ele é e a relação que conseguimos estabelecer. A relação dele com as pessoas que entraram em “Maria do Mar” foi fundamental, incluindo um grupo formado que conheci, como a Maria do Mar, que trabalhava na biblioteca onde eu estava a estudar, e a italiana Júlia, que trabalhava num quiosque.

O filme aborda o dilema e o deslocamento que o Nicolau sente, algo comum a muitos nessa fase da vida, como a descoberta da sexualidade, a indecisão sobre o que fazer após o secundário e a escolha de um curso. No caso da longa-metragem, trata-se de sair de casa dos pais, começar a trabalhar, enfrentar uma primeira relação amorosa mais séria e a descoberta de um segundo amor. A partir do núcleo do Francisco e das suas dúvidas, construí um mosaico de pessoas que ajudam a criar o seu universo. É ficcional, mas parte de pessoas reais que não são atores, e que partilham aspectos das suas vidas, da cidade em que vivem, dos lugares que frequentam e das suas personalidades, o que enriquece o filme.

Apesar de haver um guião bem definido da minha parte, o trabalho sempre envolve diálogo com as pessoas e descobrir a linguagem de cada uma, para construir uma verdadeira sinfonia de experiências e sentimentos.

Gosto da palavra sinfonia. De certa forma, faz filmes para causar um efeito de Proust, quase como a “madalena de Proust”. Há um lado seu nestes filmes apesar da presença de Francisco / Nicolau?

Sim, há um lado de... E esses aspectos nascem um pouco daí. Embora não seja autobiográfico e eu não tenha vivido exatamente as situações que aparecem no filme, há certamente memórias e experiências pessoais que influenciam o trabalho. Os filmes, de facto, partem dessa tentativa de, apesar de se situarem em universos muito específicos — como a certa classe média lisboeta e os seus circuitos —, tentar transcender esses contextos e, humildemente, alcançar sentimentos, dúvidas, medos e indecisões que muitos de nós enfrentamos no nosso quotidiano. Assim, há uma tentativa de explorar e refletir sobre a ideia de aprender a viver e, ao mesmo tempo, aprender a filmar, enquanto se vive.

Os Verdes Anos já foram ... excepto Isabel Ruth, ela fica entre nós

Hugo Gomes, 02.12.23

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Onde fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois (2022)

Lisboa, minha Lisboa, em tempos vi-me incrustado nas tuas ruas, enraizado nas respetivas calçadas, tal que nasceu em mim um desejo de não apartar-me de ti. Resistir a sair, mesmo quando forças antagonistas me empurram para longe dos teus braços, é o meu intento. Meu Ubbos, minha maravilha de Ulisses. No entanto, foi através do Cinema que me uni a ti. Os "nossos" cineastas, dispostos a encantar e a propagar as tuas virtudes, a cidade-destino para muitos vindos do “campo”, a nossa Las Vegas para alguns provincianos em busca de novas oportunidades, em direção à modernidade que lhes foi negada no berço. Vejo isso nas comédias da chamada "Idade de Ouro", em tempos, foi assim que me foi vendido, a mim e aos meus, através de um mito, tal como o mito da Expansão Marítima, onde auto-intitulamos de os "melhores" e cuja a desgraça caímos por descuido. Lendas forjadas e hoje debatidas perante uma objetiva que não se deixa envolver pelo saudosismo, mas não importa. Vasco Santana passeando no Jardim Zoológico, contando macacos ou diagnosticando problemas de fígado à girafa - "Chama-me doutor" - dizia ele ao seu acidental assistente para impressionar.

E o que dizer dos olhares estrangeiros? Que belos olhares trouxeram até nós! Desde Alain Tanner a Wim Wenders, sem esquecer o passeio fora do Teatro de S. Carlos de Christine Laurent. Fascínio ou turismo, era uma diversidade, uma Lisboa não única, mas multifacetada. E hoje, testemunhamos essa cidade em constante transformação, com mudanças atrás de mudanças: de Manuel Mozos a Jorge Cramez, de Teresa Villaverde a Pedro Cabeleira, e tão recentemente Telmo Churro pisando o solo sagrado em histórias e historietas, mas apesar de tudo, a capital alfacinha já havia escolhido o seu filme-estandarte - "Os Verdes Anos" de Paulo Rocha, e quem mais? Não irei prolongar a importância cinematográfica e histórica do filme de 1963. Não é o tempo nem o momento para me perder quanto ao seu impacto geral, e sim envolver-me nas suas paisagens. A Lisboa em ‘crescimento’, entre o campo baldio e agreste e o Areeiro que acenava ao asfalto.

O sapateiro da cave, com a sua janelinha apontada para o passeio, onde poucas vistas mereciam ser apreciadas através dela, a não ser Isabel Ruth. Ela, a menina e moça da cidade, que mais tarde, em cenas seguintes, encostada corpo a corpo com Rui Gomes, dançando ao som de "Os Verdes Anos", num travelling naturalmente decorrido pelo salão a direito. Sempre afirmei que era a dança mais bela, e terna, que a tela projetou, ou talvez seja a cobiça de integrar esse mesmo bailado, nessa época desvairada e desconcentrada, onde um senso inquieto nos fazia desafiar a falsa estabilidade de um regime. Mais algumas cenas depois, Rui Gomes descia a escadaria em direção ao Cais do Sodré, penetra numa casa de alterne, mas aí o lápis azul teve que funcionar, já era demais segundo as sensibilidades da época. "Os Verdes Anos" é isso, um filme imutável apesar de tratar de mutações e gerações instáveis. É através dele que deparamos com o coração de todo o cinema português, que despoletou ao longo de anos, mesmo para aqueles que repudiam o seu cinema em favor de fórmulas televisivas ou telenovelescas, isso nem sabemos ao certo. Toca-se Carlos Paredes, acordes reconhecíveis que se tornaram um hino citadino, apenas equivalente ao chamamento do amolador de facas, e eis a obra-prima portuguesa.

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Onde fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois (2022)

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Os Verdes Anos (1963)

Ou, não façam caso de todo este “textão”, o amor por este filme é imenso; apenas poucos ultrapassaram a mera fronteira do belo e alcançaram o íntimo, onde morar e onde sonhar. Talvez seja por esse amor que rejeitei "Onde fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois", o suposto tributo de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata ao mesmo filme. Uma manifestação de amor vindo de outros sobre o meu amado, e para embarcar em tal declaração, é necessário aceitar essas carícias e beijos de mão. Infelizmente, o amor proclamado pela dupla levou-me a negá-lo, mesmo que os gestos sejam pré-concebidos e reconhecidos como uma "carta de paixões proclamadas" - filmar Lisboa de "Os Verdes Anos" plano a plano como se fosse um trajeto turístico e memorialista. A prática revela-se mais como umbiguismo da dupla do que supostamente um beijo encenado ao vento. Contudo, fiquemos com Isabel Ruth, em dois momentos cruciais: um pairando como um fantasma, negligenciando o seu próprio desaparecimento e renegando a sua redução a mero ícone, desejando com isso viver acima da sua própria imagem (fora Paulo Rocha, foram poucos aqueles que souberam captar a essência da atriz); e por último, despertando da passividade do filme, cantarolando para uma cidade aberta e vazia, uma pin-up tardia e colorida, a protagonista do seu próprio filme sem imposição dos realizadores. 

Mas estas duas aparições de Nossa Senhora fazem pelo registo in local de "Os Verdes Anos", aproveitando o confinamento para induzir a liberdade de filmar e movimentar-se na metrópole. Ao espectador, é oferecida uma viagem às suas recordações, constatando as alterações vincadas do cenário de Paulo Rocha, um contracampo, e sim, a projeção original. Só que a subversão do projeto leva-me a questionar as reais ambições dos autores perante a sua ideia de "Os Verdes Anos", entre as quais a estrutura aparentemente mimetizada, abalroada pela instintividade do ato de filmar, numa câmara por vezes trocista e individualista.

É a Lisboa de Rodrigues, aqui, em mar plantado, com a sua "fauna" (personagens que também poderiam integrar o seu rol fílmico) a pavonear nos bastidores de Rocha e mais alguns (o projeto não se limita a seguir os "lugares-comuns" do filme anterior, inventa-se... ou reinventa-se). O que indica é o uso do "tributo" como uma desculpa para impor a sua marca, o seu mundo que 'engole' o outro, separando o objeto do propósito inicialmente 'vendido', e recompensados como "brinde" de bolo-rei em forma de Isabel Ruth (não canso de mencionar a diva, e sempre será a nossa diva). Portanto, não consideramos uma homenagem ao clássico, mas sim uma via para uma Lisboa entre confinamentos, desertos artificiais, necessitadas de uma transformação político-social. Se fosse isso, teríamos um filme a elogiar; de outro modo, fomos enganados acriticamente.

Até amanhã, camaradas

Hugo Gomes, 29.10.23

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A morte saiu à rua num dia assim

Naquele lugar sem nome pra qualquer fim

Uma gota rubra sobre a calçada cai

E um rio de sangue dum peito aberto sai

“A Morte Saiu à Rua”, música de Zeca Afonso (dedicado a José Dias Coelho)

 

Com base na obra autobiográfica de Margarida Tengarrinha (1928 - 2023) - "Memórias de uma Falsificadora" - "Clandestina" parte da mórbida ideia de uma repetição histórica, em prática exagerada, mas em tese pensada como um "desejo ao vertigo", perante esse eventual retorno (vindo dos mais pessimistas dos pessimistas), quase como um exorcizar de espíritos oriundos de outras eras.

O filme é, então, a conjugação de duas realidades; a primeira, o texto de Tengarrinha, fantasmagoricamente citado e refletido como uma cápsula de um tempo não muito distante - a fase clandestina da autora enquanto falsificadora de documentos e na redação do jornal Avante, entre o período de 1955 a 1961, data fatídica do assassinato do seu companheiro, José Dias Coelho, pelas mãos da PIDE - e as imagens, reconstituídas numa contemporaneidade identificável. É pintar o moderno no passado, é construir uma ponte sobre as duas memórias, uma real, a outra abstratamente fabricada (há uma influência de “A Metamorfose dos Pássaros” nessa mesa de mistura imagética), de forma a gerar uma só realidade: a realidade da resistência. Portanto, a primeira longa-metragem de Maria Mire (“Parto sem Dor”) é essa continuidade do ativismo, tentando, com isso, e fracassadamente, equiparar-se ao relato de Tengarrinha. O ativismo de hoje, e felizmente, no nosso país, soa-nos como voluntariado, sem as consequências obtidas na luta em estados novos (ou antes, velhos).

"Clandestina" resulta desse exercício de escuta às histórias de coragem, bravura nas sombras, esse exército obscuro que não arredou pé perante a opressão, enquanto o visual, esse manufaturado, por mais interessante que possa ocasionalmente atingir, enfraquece com uma tendência atualizada de unir todos os "punhos erguidos" numa só luta. É uma visão politizada, essa, não correspondida às lutas travadas pela autora daqueles enredos. É um filme dotado de boas intenções, boas condições e bom material, mas demasiado ingénuo na sua posse; enquanto isso, há aquela elipse final ao som do grande Zeca Afonso, numa melodia que Tengarrinha nunca esquecera. 

"A Morte Saiu à Rua", e a clandestina exilou-se fora daquele jazigo em forma de país, levou o seu combate para outras extremidades, a partir daí a história tornou-se outra. 

 

O vento que dá nas canas do canavial

E a foice duma ceifeira de Portugal

E o som da bigorna como um clarim do céu

Vão dizendo em toda a parte o pintor morreu

 

E a seguir, Leonor?

Hugo Gomes, 12.08.23

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A miúda dos sapos”, cognome que Leonor Teles, assumidamente, deseja evitar após a sua “brincadeira” em forma de curta-metragem [“Balada dos Batráquios”] ter sido agraciado pelo Urso de Ouro do Festival de Berlim em 2016. A partir daí, surge-nos uma busca por algo maior: que cineasta temos em Leonor Teles? Uma demanda que a levou a uma longa à margem do Rio Tejo no rasto de uma personagem que sobressaísse do seu próprio filme - Terra Franca (2018) - passando para uma curta ambientada no Porto, com o fenómeno da gentrificação a remeter ao coração-vadio desse falso coming-to-age (“Cães que Ladram aos Pássaros”) em 2019. Talvez é nessas escapadinhas de “rapazes” que troçam de um iminente e incerto futuro que esteja encontrada a vertente do seu cinema, a preocupação de uma jovem urbana que enfrenta sozinha as adversidades do Mundo em movimento, um reflexo de todos os outros jovens, partilhando experiências, fraquezas e inquietações, e é daí que nasce um “Baan” (do tailandês “Casa”), a ficção em metragem de longa como desvirginação desse território. Será que desvendamos a Teles cineasta?

Contado em dois tempos e em dois locais, a jovem L (Carolina Miragaia), um heterónimo não assumido, dividida entre a Lisboa das orlas do Almirante Reis e o Bangkok de braços abertos (e apropriados) às estéticas de Wong Kar-Wai, fascínios e fixações, realidades e simulações, uma protagonista como tantos outros adultos “verdinhos”, de futuro pixelado, e ansiosos por uma resgatada luz ao fundo do túnel (conhecemos ‘gente’ assim, e pior, nada fazemos para os retirar dessa existencial situação, porém, até nessa passividade confirma a nossa impotência enquanto sociedade coletiva). Para todos os efeitos, este é um filme de descoberta e auto-descobertas, é Leonor Teles, esbanjada de elogios carreira acima e carreira abaixo, encarregada de tarefas hercúleas que vai desde a fotografia do díptico de Canijo ou do outro conto de inquietudes joviais (“Verão Danado”) em jeito festivaleiro, e agora motivada a emancipar-se, com isto, usufruindo dessa história de superação ao status vivente.

Não se deixem iludir pelo tom aqui descrito e escrito, Leonor Teles é um dos nomes maiores do nosso cinema, mesmo em tenra idade, por detrás das câmaras ou detrás da sombra de outros realizadores, é o rosto de um novo movimento, de um novo cinema português. Portanto, falar de Leonor Teles é falar do futuro, mesmo que em “Baan” encara-se uma experiência de impasse. Onde o filme quer-nos levar? Ou, o que poderemos extrair do filme? Nesse sentido, há que realçar a sensibilidade temporal e espacial de Teles em construir por via de uma diluição local um não-lugar. Entre Bangkok e Almirante Reis existe uma New Lisbon ou será um Bangkok europeu? É através do tal não-lugar que se reencontra a não-presença, a heroína silenciosa que está lá e não está, um brilhantismo espectral onde cada tempo é uma imprecisão.

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Flashbacks? Tal não é delineado, nem descrito visualmente como um conto em estado de progressão, “Baan” é sobre uma jovem, não de frente ao seu tempo, mas do seu tempo, não está presentemente no local nem na época, o seu espírito permanece ausente, talvez “preso” aos ecrãs de dispositivos tecnológicos em desejo de uma reabilitação, quem sabe? É um filme de desespero, de um desespero contínuo, sufocado e rebaixado. Leonor Teles, em conformidade com o já mencionado “Verão Danado” de Pedro Cabeleira, com “unhas” suas no visual, comunica com a sua geração, sem condescendências nem padronizações, e sim com empatia às suas “dores”.

Sentimo-nos em casa com as angústias da protagonista, contudo, é também uma obra de despertar a uma cineasta, a voz está embutida neste não-lugar e neste não-tempo, mas infelizmente a realizadora ocasionalmente abandona o corpo de Miragaia e avança às prestações a um ativismo colectânea, tentando “enfiar” tudo o que consegue no que requer a preocupações da Teles político-social sem o mínimo avanço nas bandeiras que escolhe. Perde-se a coerência do seu intimismo, adquire (sublinha-se intermitentemente) uma ânsia de agir (leia-se “apontar”) às patologias da sua contemporaneidade, como se assumisse um objeto plenamente politizado, enfim, todo o ato é político e o retrato desta jovem naufraga é mais que suficiente para o embarcar.

Desvia-se do coração e desvia-se da fonte, mas Teles é futuro e o seu cinema encontrará a forma sintática devida, nisso, sim, acreditamos. O restante é uma vidência do que Leonor Teles poderá se tornar, e ainda bem … 

Sangue Azul ...

Hugo Gomes, 20.11.22

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Reininho, o Rei, o Rui Rei ou Rei Rui, figura errante em territórios mesclados que o próprio apelida de sonhos, vangloriando a sua capacidade de os idealizar e controlar. É fruto da sua ambição, da sua excentricidade, da sua destrutiva aura em encontrar razão para o irreal da sua existência. Rui Reininho (deixemos os “trocadilhos” de lado), é do conhecimento de todos, a imagem, a voz, a musicalidade com que as palavras “expulsas” da sua boca são proferidas, o esoterismo motivado pela sua presença, o nosso GNR (o nosso artista-a-solo da Companhia das Indias)

Cantautor, poeta e artista, de braços estendidos para nos receber nesta estância cinematográfica, a sua vendida não-biografia, uma confissão decorrida no seu estado onírico. “A Viagem do Rei”, com o nosso Rui a servir de modelo perante a assinatura de João Pedro Moreira e Roger Mor, esboça-se como um protótipo de videoclipe, chanfrado, xamânico, chamado a depor. É uma jornada como o título indica, da realeza pelo real, um conjunto de formas que fazem “vai-e-vêm”, pelo passado, pelas memórias, pelas mágoas, atravessando o desejo, a criação e o abraço à morte, a próxima paragem entre as mil e uma paragens. 

"Descobriste o que podes ver dentro de ti! Sabes o que é que isso significa? Foste promovido. Já não és mais um vagabundo, és um artista”, a frase de Hans Richter em “Dreams that's Money Can Buy” (1947) pode ser enxertado, convidado inesperado, aqui. É o sonho e o que fazer com eles, essa essência rara que torna Rui Reininho no autor, no dito artista. Mas as comparações terminam aqui, o experimentalismo vanguardista de Richter não encontra páreo (nem influência) com as camadas entre camadas de dimensões e extorsões à realidade desta “A Viagem’”. Das ameaças ao Sol, às valsa entre detectives, da saliva que nos afoga e a poeira quente do sangue oculto, João Pedro Moreira e Roger Mor construíram um vídeo-musical prolongado, de ideias atiradas e conjugadas a imagens avulsas. 

Não é dos gestos mais originais, nem mesmo em panorama nacional - The Legendary Tigerman ousou converter-se a nada em 2017 (“Fade into Nothing”, Pedro Maia) - mas a performance de Reininho desculpa o vasto leque de sonhos limitadamente representados. A sua benção nos guia, e o ouvimos com mais gosto, ambicionando por mais e mais, sem fim de cumprir. Um exercício de estilo, de música pop e psicadélica, de vénia ao artista com prestação do mesmo. 

Rui Reininho é cá um personagem! Tem todo o direito de o ser e de o fazer. A viagem prossegue …

A sombra do marmeleiro

Hugo Gomes, 27.10.22

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As grandes montanhas são vistas à distância, as pequenas é preciso aproximarAntonio López

Para quem estiver a ler este texto, perderá e muito a pertinência transmitida por Irene M. Borrego neste seu concebido filme, até porque, para tal experiência é importante desconhecer qualquer indício de existência de Isabel Santaló. Primeiro, como mote ao tema latente - o esquecimento que paira nesta artista - e segundo, a inquietude e a indefinição da existência da mesma. 

A realizadora confronta diversas vezes Santaló, da sua memória e da sua auto-percepção enquanto artista, fala-se em subvalorização ou até negligência por parte do núcleo artístico madrileno (acrescenta-se sexismo), de outra maneira entendemos a uma síndrome “Norman Desmond” no preciso momento em que a anciã debate com a realizadora (do qual somos informados tratar-se da sua sobrinha) sobre a sua própria relevância. Aí o filme joga no campo da ilusão e da incerteza, o espectador é embarcado nessa dúvida que metamorfoseia em algo à parte do mero biopic ou obra-tributo. Longe do resgate que poderia suscitar neste gesto, este “La Visita y un Jardín secreto” é uma confrontação com "fantasmas interiores”. 

Para Borrego, as comparações com a sua tia, ouvidas vezes sem conta nos seus “verdes anos”, a perseguem, assombram-na como sinal de imprecação lançada pelo oculto conservadorismo às mulheres que desejam a emancipação. A realizadora guarda para si essa ambição e igualmente essa resistência em deserdar qualquer maldição ou espectros agarrados. O resultado, possivelmente, é esta “desavença” com a pessoa que a mais lhe assemelha, a sua tia “maldita”, a “artista da família”, a única, Isabel Santaló. Obviamente que o “inimigo” é fabricado, Isabel não é a antagonista na história de Irene, mas antes a sua dura inspiração. O destino hoje deparado, em que a idade é uma vilã tendo como aliada a solidão, invoca o maior temor de Irene

Dito desta forma, “A Visita e um Jardim Secreto” é uma farsa de filme, encosta-se como um “filme de artista”, mas é mais que isso, um filme sobre buscas internas em divãs proporcionalmente cinematográficos. Irene M, Borrego inconscientemente concretizou um filme sobre ela própria (se bem que os artistas falam deles próprios através do seu ofício). Isabel, o seu esquecimento (curiosamente, contamos com um voz-off de António López, o pintor de “El sol del membrillo” ["O Sol do Marmeleiro"] de Victor Erice, o único artista que declaradamente se lembra dela), a sua força enquanto mulher e artista, os seus quartos “secretos”, revelam-se como parte dessa tela. 

“Serás como a tua tia Isabel”