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A Morte de uma Cidade (2022)
“Há muito tempo que queria fazer um filme sobre a morte de uma cidade”, em voz-off João Rosas declara um desejo de testemunhar um fim, ou talvez uma transformação, ao conceito clássico de cidade. Esse exemplo, trazido pela perspectiva de um estaleiro e a sua comunidade trabalhadora, é encontrado na capital, Lisboa, a metrópole que lutou e cedeu aos fenómenos correntes que atropelam vários pólos populacionais da Europa (e não só). O documentário “A Morte de uma Cidade”, o título diz tudo e nada esconde, é um filme resposta à sede e à perplexidade do seu realizador perante esse local que não mais reconhece.
No entanto, sob uma arma poderosa, a câmara de filmar, ele penetra em obras, estaleiros propriamente ditos, e depara-se com uma outra cidade, uma cidade invisível e ao mesmo tempo visível, por vezes ignorada — a cidade que muitos temem e que outros fecham os olhos numa indiferença abismal. É a cidade destes trabalhadores de passagem, imigrantes das várias partes do globo, que aqui encontram a sua provisória Torre de Babel. João Rosas procurou um filme e o encontrou nessa gente. “A Morte de uma Cidade” é o colocar a cidade em nu.
Aproveitando a estreia, conversei com o realizador sobre este mesmo filme, a sua passagem na nossa contemporaneidade, desde as crises habitacionais até aos discursos inflamados sobre imigração, a Lisboa cada vez mais seletiva, e saindo desse círculo, sobre a ficção própria de João Rosas, das Marias do Mar aos Cataventos, sempre com a cidade na mente. Fiquemos com a conversa:
O filme estreia em sala após ter sido introduzido a nós no Doclisboa de há dois anos, julgo que recebeu lá um prémio …
Sim, o Doc Alliance, que é atribuído por seis ou sete festivais europeus de documentário. Cada um desses festivais nomeia um filme, e o Doclisboa nomeou o meu. Depois, o filme é avaliado por um júri independente, composto por três pessoas, que não está ligado a esses festivais.
Já tinha passado uns mil anos desde a estreia [risos].
Mas foi filmado antes da pandemia?
Sim, foi.
Faço esta pergunta porque só agora estreámos o filme em sala, no circuito comercial. E numa altura em que, talvez, este tema tenha sido sempre debatido, mas agora parece estar a ganhar ainda mais força — esta transformação da nossa cidade. Aliás, acho que foi na semana passada que saiu uma notícia sobre derrubar um quarteirão inteiro em Arroios para construir um hotel. Ou seja, ao ver o seu filme, mesmo com dois anos … quer dizer, foi feito durante a pandemia, não foi?
Sim, quer dizer, no fundo, acho que o que mudou foi apenas o agravamento da situação. Aquilo que presenciei quando comecei a filmar, no final de 2016, e continuei a registar até meados de 2018, já era um fenómeno em desenvolvimento há alguns anos. Este fenómeno começou, sobretudo, nos anos da crise, por volta de 2011 e 2012, durante a crise imobiliária mundial, que resultou num aumento do investimento estrangeiro em propriedades desvalorizadas e degradadas.
O que filmei já refletia esse fenómeno, que desde então só se agravou devido a uma série de factores. Alguns são de ordem internacional, como o investimento estrangeiro e o funcionamento do sistema capitalista e financeiro atual, que favorece os interesses dos investidores. Outros factores estão ligados a medidas governamentais, inicialmente introduzidas pelo governo do PS e depois continuadas, mas que tiveram origem no governo de Passos Coelho, como os vistos Gold e outras políticas para atrair investimento. Estas políticas, aliadas à desregulação do mercado de arrendamento, entre outras medidas, conduziram à situação dramática que vivemos hoje, especialmente para quem procura casa e tem o direito de viver na cidade.
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João Rosas
Este fenómeno não afeta apenas a habitação, mas toda a vivência da cidade. Estamos a assistir à criação de uma cidade virada, não só para o turismo, mas também para o consumo, para a privatização de espaços públicos e para uma vivência que exclui uma parte significativa da população local, que já não consegue viver na cidade. Isto inclui também pessoas que trabalham na construção civil e que, paradoxalmente, constroem a cidade, mas não encontram condições para viver nela.
O filme pretende não apenas retratar esta realidade, mas também servir como uma forma de eu próprio questionar este fenómeno, mais do que apresentar respostas ou fazer uma denúncia direta. Para mim, o desafio foi muito pessoal: tentar compreender estes fenómenos, que são extremamente complexos e de uma escala macroeconómica, através das histórias pessoais das pessoas que trabalham nestes edifícios e que integram este processo mais amplo.
Foi sempre um filme de perguntas. Durante o processo, estive constantemente a questionar, não só os outros, mas também a mim próprio, para tentar perceber melhor este fenómeno. Mais do que denunciar, o filme procura revelar as diferentes escalas e os diversos atores envolvidos neste processo...
É curioso como continuamos a lidar com este problema. Aliás, há uma frase no seu filme que diz: Lisboa, cidade sem memória, sem perdão. Esta cidade corre o risco de perder a sua memória e a sua cultura, de certa forma. E, ao mesmo tempo, há outro tema muito atual, que continua a ser debatido hoje, que é a questão da imigração, sendo que grande parte desta mão de obra para esses investimentos vem precisamente de pessoas imigrantes. Como é que vê esta relação entre os dois fenómenos?
Sim. É óbvio que, do ponto de vista do Estado e do governo, existe uma grande hipocrisia. Por um lado, há medidas que atraem certo tipo de imigrantes, como os vistos Gold, mas, por outro, existem políticas que dificultam a vida das pessoas que vêm para cá trabalhar e procurar melhores condições do que as que tinham nos seus países de origem, ou mesmo de pessoas que nasceram cá, mas enfrentam dificuldades por pertencerem a estratos sociais mais baixos, etc. No entanto, este debate não é novo. A nível português e global, temos assistido ao crescimento da extrema-direita, com discursos identitários e nacionalistas que ganham cada vez mais força, e que são, obviamente, fortemente direcionados contra a imigração.
Este fenómeno é o culminar de medidas que, apesar de apresentadas como centristas ou até benéficas para os imigrantes, na verdade acabam por dificultar a vida dessas pessoas. Medidas que, através de um processo burocrático brutal, da dificuldade na reunião familiar e da imposição de contratos de trabalho, colocam essas pessoas em situações de grande fragilidade. E, no fundo, estamos a falar de pessoas que são iguais a todas as outras, mas que...
Acho que isso é óbvio …
São pessoas que, na verdade, trazem uma grande riqueza, e não se trata apenas da riqueza de fazerem trabalhos que os portugueses não querem fazer. Elas trazem riqueza enquanto pessoas, pela sua presença humana e cultural. Na realidade, a cidade, a própria ideia de cidade, vive desse cruzamento de pessoas, de entradas e saídas, de trocas de ideias, culturas e experiências. É óbvio que, do meu ponto de vista — mais até do que cinematográfico, diria do ponto de vista humano — aprendi imenso e ganhei muito com esta experiência, ao ver como aquele estaleiro funcionava como uma pequena cidade. Ali, havia esta troca constante de experiências e ideias, tanto entre mim e os trabalhadores, como entre os próprios trabalhadores. O estaleiro era, assim, um ponto de encontro, um local de interação entre estas pessoas.
E as relações entre eles também.
Sim, claro, é isso mesmo. Também aprendi muito com essa experiência. No fundo, aquele estaleiro funcionava um pouco como uma mini-cidade, com esta ideia de cruzamento e passagem de pessoas, que é, aliás, o que eu referi anteriormente. Não se trata apenas de uma crise de habitação ou financeira, mas também de uma crise da própria ideia de cidade. A cidade está cada vez mais segregada, cada vez mais voltada para um certo tipo de população, perdendo-se essa noção de partilha de espaços, de percursos, e de trocas de ideias e experiências
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A Morte de uma Cidade (2022)
Há um ponto muito curioso no seu filme, que nem sequer é diretamente subjacente a estes temas de que estamos a falar — a gentrificação e a imigração — mas que, ainda assim, está presente: a sua própria busca enquanto realizador pelo filme. Se não estou em erro, na altura do “Catavento” (2020) li um artigo sobre uma longa-metragem de ficção que estava a preparar, a sua primeira longa de ficção. Este seria o filme que deveria ter nascido dessa ideia, não é? Ou seja, essa ficção que estava a preparar acabou por dar lugar a este documentário, certo?
Não, não. Este filme até foi filmado antes do “Catavento”. Só que o “Catavento” nasceu do meio da montagem deste “A Morte de uma Cidade”, até porque o processo de montagem foi muito longa, não só pela quantidade de material que tinha, mas também porque foi um filme que, inicialmente, tinha um financiamento muito reduzido e, por isso, foi sendo montado aos “bochechos”. Depois veio o Covid, tive outra filha... Enfim, a vida foi acontecendo no meio do cinema, como tem de ser. Durante esse período, o “Catavento” foi feito.
Este filme já tinha, desde o início, esta forma e ideia de documentário, tal como é. Quanto ao filme que tinha planeado como ficção, a longa-metragem, essa, foi filmada no ano passado e agora estou a terminar a pós-produção desse projeto.
Então esse filme ainda existe?
O de ficção? Sim, será o próximo a sair …
Voltando à questão, e obrigado por este contexto temporal. Mesmo assim, parece haver neste filme um realizador que está à procura do seu próprio caminho. Ao longo, talvez, da primeira hora, acompanhamos o realizador — neste caso, você —, ainda que invisível no filme, numa espécie de busca. Primeiro, quer filmar a “morte” da sua cidade, talvez porque sempre teve esse desejo de retratar esse último suspiro. Aliás, é curioso, porque já tinha uma obra chamada “Birth of the City” (2009) e agora parece desejar o seu oposto estatuto. Depois, ao entrar no estaleiro, começou com uma certa intenção de denúncia, mas acabou por se aproximar das pessoas. Foi isso que aconteceu?
Ou seja, interessava-me precisamente por isso ser, como eu disse, um “filme de pergunta", um chavão que pode parecer pouco pretensioso, mas que traduz bem a minha abordagem. Era um filme de pergunta no sentido de que eu estava a explorar e a descobrir o terreno à medida que o fazia. Não tinha respostas pré-definidas, e para mim isso era essencial, não de uma forma narcisista ou para chamar a atenção para a minha arte ou para o ofício de realizador, mas porque achava importante que o processo de procura da forma do filme, e a forma como se filma naquelas condições, estivesse visível.
Parecia-me também interessante, e essencial, refletir sobre esta dúvida que tinha em relação ao que significava fazer um filme destes. Havia um paralelismo entre a construção do filme, a construção de uma cidade e a construção de um prédio. Tal como uma cidade, ou aquele estaleiro, os filmes são construídos por camadas.
A rodagem foi muito longa, e com pessoas que iam e vinham no estaleiro, acabou por passar por várias fases diferentes. Nesse processo, eu próprio passei por várias fases. Houve, de facto, uma fase inicial mais marcada pela denúncia, pelo confronto direto com a violência daquele trabalho e daquelas condições. Foi uma experiência muito crua. Depois, veio uma fase de maior distanciamento, quase de frustração, em que cheguei a sentir-me perdido, achando que talvez não conseguisse fazer o filme.
Quando as primeiras equipas de trabalhadores mudaram e os primeiros andares começaram a ser construídos, tornou-se ainda mais difícil. Tive de refazer todo o processo de aproximação às pessoas, começar tudo do zero. Mas o momento de viragem foi, sem dúvida, quando conheci este grupo de trabalhadores guineenses, que me acolheu como parte do grupo, por assim dizer. Apesar das distâncias que existiam entre nós, essa ligação permitiu-me encontrar um novo rumo para o filme.
Pareceu-me interessante refletir sobre todo este processo na própria narração, na voz off. Desde o início, essa ideia já existia, até porque há uma ligação com o “Birth of the City", que também tinha voz off e foi filmado em Londres. A voz off permitiu-me não só refletir sobre o processo de fazer o filme, mas também preencher algumas lacunas em relação às histórias que estas pessoas me iam contando e que, por uma razão ou outra, não consegui captar diretamente com a câmara … tive pena, achei que era mais uma camada que se acrescentava ...
Em algum momento durante a rodagem deste filme, sentiu que devia intervir, mas tentou manter-se como um observador passivo, apenas a captar aquilo que via? Como lidou com essa tensão entre a vontade de agir e a necessidade de apenas registar?
Acho que este é um filme em que estou bastante interventivo. O que me parece mais interessante, tanto enquanto cineasta quanto em termos de reflexão, é a relação que estabeleci com as pessoas. Embora o filme tenha uma abordagem, até certo ponto, observacional, a minha presença é muito marcante. Apesar de estar atrás da câmara, há uma interação significativa entre mim e as pessoas. Para conseguir esse grau de intimidade — filmar em suas casas, captar certas conversas — foi necessário um envolvimento pessoal muito grande, e com todo o gosto. Na verdade, grande parte do tempo que passei no estaleiro era tempo de convívio, e isso tornou-se uma rotina diária para mim. Para mim, essa parte foi até mais fácil, porque, enquanto as pessoas estavam a trabalhar, eu também estava, mas a parte do trabalho envolvia também o convívio e a conversa.
Todos os dias, percorria o estaleiro pela manhã, conversando com as diversas pessoas e, depois, começava a filmar gradualmente aqueles que me interessavam mais. Não diria que sou uma presença passiva; pelo contrário, a minha presença é muito forte.
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Sim, até em relação àquele trabalhador do estaleiro que ainda trabalha no café do patrão. Lembro-me de que o João lhe questionava se ele não estava a ser enganado.
Sim, exatamente. A questão é que, a certa altura, o que mais me interessava era como essa barreira entre o cinema e a vida se foi esborrando. Há sempre uma câmara presente, e a presença da câmara exige uma postura ética e moral. É importante ter essa consciência, porque acabamos por ter um poder na relação que não é, à partida, horizontal. O que me interessava era construir essa relação de igualdade, apesar da presença da câmara. Por isso, a minha presença no estaleiro, às vezes sem a câmara ou, pelo menos, com a câmara desligada, foi essencial.
Essa barreira foi-se esbatendo porque desenvolvi relações de amizade. Nesse sentido, a minha intervenção foi forte, pois estava muito presente e partilhava aspectos da minha vida, embora esses aspectos não estivessem no filme. As pessoas conheciam coisas sobre mim, sobre a minha família, as minhas dificuldades, porque também partilhei coisas com elas. A relação tornou-se, de facto, uma amizade.
O filme foi, então, construído com base nesses pressupostos. Embora estivesse a filmar, grande parte do processo envolvia relações que continuam a existir até hoje.
Portanto, para além do filme, tem contato com algum deles?
Sim.
É que se fica com a sensação que eles desaparecem, como aquilo é trabalho de passagem e estão sempre em transição.
Os primeiros trabalhadores com quem estive não conseguimos manter contacto, porque, como menciono no filme, muitas vezes desapareciam de um dia para o outro. No entanto, na fase de construção — ou seja, na segunda fase da obra — houve uma certa estabilização das equipas. Embora houvesse rotatividade de pessoal, a equipa dos pedreiros, composta por um grupo de guineenses, manteve-se durante vários meses, alguns até por um ano, o que permitiu construir uma relação mais sólida.
Hoje, com alguns dos trabalhadores, ainda mantenho contacto, enquanto outros mudaram de país ou de número de telemóvel e desapareceram do meu radar. Não sei se estão cá ou não, mas muitos deles ainda mantêm contacto. Aliás, alguns estiveram presentes na estreia do Doclisboa, o que foi um momento muito emocionante. Ver-se a si próprios na tela e ver o seu trabalho valorizado num contexto cultural que muitas vezes lhes é inacessível foi algo muito significativo para eles.
Houve um lado emocional muito forte, como o exemplo da esposa de um dos trabalhadores, que viu o trabalho do marido pela primeira vez no filme. Ela subiu ao palco e falou sobre o esforço do marido para sustentar a família, sublinhando a importância de ver o que ele passava durante o dia para garantir o sustento da família. Essa experiência foi um dos pontos de partida do filme.
Assim, o filme explora também a ideia de como se filma num estaleiro, como se entra naquele ambiente, como se aborda pessoas que têm os seus próprios códigos, regras de conduta e formas de sociabilidade. O funcionamento daquele espaço é muito particular, e o desafio foi exatamente entender e respeitar esses aspectos enquanto se capturava a realidade, e essa relação passa por anteceder ou vai para além do cinema, não passa só por filmar.
Saindo da ‘Cidade, gostaria que me falasse sobre essa ficção.
“Entrecampos” (2013), “Maria do Mar” (2015) e "Catavento" (2020) formam uma trilogia que segue a história do Nicolau (Francisco Melo) e, em menor grau, da Mariana (Francisca Alarcão). Conheci o Nicolau quando ele tinha 11 anos e fui acompanhando o seu crescimento ao longo dos anos. Esta longa-metragem [“A Vida Luminosa”] é o quarto capítulo da trilogia, que agora se transforma numa tetralogia, onde continuo a acompanhar o crescimento do Nicolau, que agora tem 24 anos.
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Catavento (2020)
Uma espécie de “Boyhood às fatias”?
Sim, é como se fosse o “Boyhood" em partes [risos]. Esta abordagem reflete um outro lado do meu trabalho, com certos pontos de contacto com a exploração da “Morte de uma Cidade”. A ideia, mais uma vez, é a relação com a cidade, com certos lugares que vou descobrindo a partir das pessoas que trago para os filmes. A narrativa parte sempre do núcleo central, que é o Nicolau, quer dizer, do Francisco, o rapaz que o interpreta. A partir dele, conheço outras pessoas, seja através de castings ou de contatos, e descubro a cidade pelos olhos dessas pessoas, inserindo esses elementos no filme, muitas vezes de uma forma mais ficcional.
E é curioso essa partida do Nicolau, porque não era o protagonista de “Entrecampos”, e sim, um secundário, a Mariana, a menina de Serpa, ou melhor Francisca Alarcão, era sim, a protagonista.
No fundo, a ideia de “Maria do Mar" já existia na altura de “Entrecampos", mais ou menos, com mais ou menos desenvolvimento, e tinha esta ideia da descoberta da sexualidade, da ideia de o rapaz estar fora do seu contexto durante o fim de semana. Depois, quando conheci o Francisco durante a realização de “Entrecampos”, pensei: “Por que não continuar esta relação com ele?”. Embora a Mariana, essa rapariga, não tenha tido lugar nessa história, foi daí que nasceu a ideia de continuar a história. Não havia essa ideia no início, pois “Entrecampos” era um filme isolado, mas depois essa ideia foi-se desenvolvendo cada vez mais, de trabalhar com certas pessoas, de trabalhar em continuidade e de explorar também...
E há também um trabalho... o tempo, e como esse elemento o influencia, neste caso com o Nicolau, o Francisco Melo. Como também, acredito, que houve em fazê-lo crescer enquanto ator? Notei que de “Entrecampos” a “Maria do Mar” ocorreu uma evolução muito grande.
Sim, é engraçado, porque muitas pessoas me diziam quando comecei a filmar o “Maria do Mar”: “tens a certeza de que queres trabalhar com ele? Porque ele não tem jeito nenhum.” Mas, claro, ele era muito jovem na altura. Estava a lidar com páginas e mais páginas de texto, e ele, coitado, tinha de lidar com tudo isso. Mas o que realmente me interessava não eram as suas capacidades enquanto ator, e sim a pessoa que ele é e a relação que conseguimos estabelecer. A relação dele com as pessoas que entraram em “Maria do Mar” foi fundamental, incluindo um grupo formado que conheci, como a Maria do Mar, que trabalhava na biblioteca onde eu estava a estudar, e a italiana Júlia, que trabalhava num quiosque.
O filme aborda o dilema e o deslocamento que o Nicolau sente, algo comum a muitos nessa fase da vida, como a descoberta da sexualidade, a indecisão sobre o que fazer após o secundário e a escolha de um curso. No caso da longa-metragem, trata-se de sair de casa dos pais, começar a trabalhar, enfrentar uma primeira relação amorosa mais séria e a descoberta de um segundo amor. A partir do núcleo do Francisco e das suas dúvidas, construí um mosaico de pessoas que ajudam a criar o seu universo. É ficcional, mas parte de pessoas reais que não são atores, e que partilham aspectos das suas vidas, da cidade em que vivem, dos lugares que frequentam e das suas personalidades, o que enriquece o filme.
Apesar de haver um guião bem definido da minha parte, o trabalho sempre envolve diálogo com as pessoas e descobrir a linguagem de cada uma, para construir uma verdadeira sinfonia de experiências e sentimentos.
Gosto da palavra sinfonia. De certa forma, faz filmes para causar um efeito de Proust, quase como a “madalena de Proust”. Há um lado seu nestes filmes apesar da presença de Francisco / Nicolau?
Sim, há um lado de... E esses aspectos nascem um pouco daí. Embora não seja autobiográfico e eu não tenha vivido exatamente as situações que aparecem no filme, há certamente memórias e experiências pessoais que influenciam o trabalho. Os filmes, de facto, partem dessa tentativa de, apesar de se situarem em universos muito específicos — como a certa classe média lisboeta e os seus circuitos —, tentar transcender esses contextos e, humildemente, alcançar sentimentos, dúvidas, medos e indecisões que muitos de nós enfrentamos no nosso quotidiano. Assim, há uma tentativa de explorar e refletir sobre a ideia de aprender a viver e, ao mesmo tempo, aprender a filmar, enquanto se vive.